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Accent : Périphéries des villes, périphéries du monde

Urbanos e rurais

Circulação e mobilidade nas famílias da periferia de Maputo
Urban and Rural: Circulation and Mobility in Families on the Periphery of Maputo
Populations urbaines et rurales : Déplacements et mobilité dans les familles de la périphérie de Maputo
Ana Bénard Da Costa
p. 147-165

Résumés

Au cours d’une recherche sur les stratégies de survie et de reproduction sociale des familles de la périphérie de Maputo, il a pu être vérifier que la mobilité des personnes et des biens entre les régions rurales et la ville était, non seulement, une stratégie économique fréquente, mais aussi un moyen de faciliter le maintien de relations familiales entre différentes branches d'une même famille. Après un bref rappel du contexte de l'analyse et des changements survenus dans la ville de Maputo dans les deux dernières décennies du xxe siècle, l’article aborde cette mobilité illustrée par le parcours de deux familles d’un quartier périphérique de cette capitale africaine. Bien que la mobilité puisse adopter plusieurs modalités, pas uniquement entre différentes familles, mais aussi au sein de la même famille à divers moments, cette pluralité n'enlève rien à l’importance des contacts établis par cette mobilité ni aux types d'échanges que ceux-ci nécessairement impliquent. Ce phénomène est donc une variable fondamentale dans l'analyse des processus sous-jacents au développement des stratégies poursuivies par des familles – stratégies qui, dans ce contexte spécifique, sont essentiellement caractérisées par une articulation de différents moyens et sources de revenus diversifiés.

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Mozambique, Maputo
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Texte intégral

  • 1 O presente texto decorre de uma investigação realizada no âmbito da tese de doutoramento em Estudos (...)

1No decorrer de uma investigação sobre estratégias de sobrevivência e reprodução social de famílias da periferia de Maputo1, verificou-se que a circulação de pessoas e bens entre o meio rural e urbano, não só constituía uma estratégia económica recorrente, como possibilitava a manutenção e a recriação de relações familiares entre os diferentes núcleos de uma mesma família. Este artigo, após uma breve referência ao contexto de análise e às principais mudanças ocorridas na cidade de Maputo nas últimas décadas do século xx, reflecte sobre essa circulação, argumentando que embora esta possa assumir características muito diversas, tanto entre as diferentes famílias, como numa mesma família ao longo do tempo, essa diversidade não retira importância aos contactos que assim se estabelecem e aos diferentes tipos de trocas que estes necessariamente implicam. Desta forma, independentemente da regularidade dos contactos, do « valor » (material, simbólico ou afectivo) dos diferentes tipos de « trocas » que estes possibilitam e do grau de parentesco existente entre os actores sociais envolvidos, esta circulação, como este artigo demonstrará, constituiu uma variável fundamental na análise dos processos subjacentes ao desenvolvimento das estratégias familiares que, no contexto em análise, se caracterizam essencialmente por uma articulação de recursos e de fontes de rendimento diversificadas.

Os bairros de Mafalala, Polana Caniço A e Hulene B

  • 2 Foram entrevistadas 81 famílias e inquiridas 1 000 e foi realizado trabalho de terreno mais aprofun (...)
  • 3 A cidade de Maputo tem 66 bairros divididos por 5 distritos municipais.

2Este artigo baseia-se em investigações realizadas entre 1998 e 2002 a famílias2 de três bairros da cidade de Maputo, Mafalala, Polana Caniço A e Hulene B. Mafalala e Polana Caniço A situam-se no Distrito Municipal 3 da cidade de Maputo3, mas, se Mafalala está praticamente rodeado pela « cidade de cimento », Polana Caniço A está separado desta pelo Campus Universitário. O bairro de Hulene B fica mais distante da « cidade de cimento », situa-se no Distrito Municipal 4, e é um bairro de características mais rurais.

  • 4 Em termos dos bairros estudados é em Mafalala que a origem dos habitantes é mais diversificada reun (...)
  • 5 Existem grandes probabilidades de um número significativo dos membros destas famílias se incluírem (...)
  • 6 O aumento da população da periferia fez-se e faz-se em dois sentidos : através da expansão geográfi (...)
  • 7 Durante a época colonial, a migração do campo para a cidade era maioritariamente masculina, mas a p (...)
  • 8 De acordo com os dados do último recenseamento, 40,5 % da população de Maputo tinham menos de 15 an (...)

3Maputo, à semelhança de muitas outros centros urbanos africanos, herdou do colonialismo uma estrutura dualista que permite distinguir dois núcleos, a « cidade de cimento » outrora « cidade dos brancos », com construções planeadas, ruas asfaltadas, água canalizada, electricidade e reunindo um conjunto significativo de infra‑estruturas sociais e de serviços, e os « bairros de caniço » onde, na época colonial, residia a chamada população indígena e onde hoje reside a grande maioria da população urbana excluída dos centros do poder. Apesar de existirem inúmeras diferenças entre os três bairros em que esta investigação incidiu, em termos de proximidade em relação ao centro, dimensão e densidade populacional ou origem dos seus habitantes4, todos eles partilham com os restantes « bairros de caniço » da cidade de Maputo, uma grande precariedade de infra‑estruturas urbanas e de serviços sociais, elevados índices de « pobreza »5 e de desemprego formal. A estas características aliam-se outras, tais como o facto de nestes bairros se concentrar a grande maioria da população que nas últimas duas décadas emigrou para a capital6, ou de aí residirem uma percentagem significativa de mulheres7 e de jovens8 que acentuam, por várias razões – as mulheres têm maior dificuldade em encontrar emprego formal e os jovens são na teoria dependentes improdutivos –, as diferenças socioeconómicas herdadas do tempo colonial entre os chamados « bairros de caniço » e a « cidade de cimento ».

Mobilidade e crescimento populacional em Maputo

  • 9 Esta visava « limpar » a cidade dos « improdutivos ». Quem não possuía os documentos necessários (l (...)

4Desde a independência até ao presente, Maputo sofreu sucessivos processos de mudança e as diferenças que actualmente se observam entre o centro e a periferia da cidade resultam de um processo complexo onde se articulam condicionalismos históricos (herança colonial) com opções políticas pós-coloniais. Sem nos alargarmos sobre este assunto, nomeamos aqui as mais significativas : numa primeira fase conjugam-se o desaparecimento dos entraves que no tempo colonial impediam a fixação de africanos na « cidade branca » com a nacionalização de todo o território Moçambicano e do parque imobiliário que os colonos tinham abandonado e a ocupação da « cidade de cimento » por habitantes da periferia. Numa fase subsequente, instituem-se as « licenças de cidadania » e os africanos de comportamentos considerados « menos próprios » são expulsos dos prédios de Maputo e reconduzidos para a periferia da cidade (bairros de caniço) ou para as suas terras de origem e em 1983 é lançada a « operação produção »9. No entanto estas e outras medidas não conseguiram travar o crescimento populacional da periferia de Maputo, que se acelera sobretudo a partir de meados da década de 80, quando a guerra se intensifica no Sul do país (Costa 1993 : 8).

  • 10 O denominado bairro de Magude, ocupado maioritariamente por deslocados de guerra, oriundos desta re (...)

5Nesta fase a coincidência no tempo da liberalização económica e do aumento demográfico agravou de forma dramática as condições de vida de grande parte dos habitantes da cidade. Todavia, quanto mais não seja pelo simples facto de a periferia concentrar um número muito maior de habitantes, pode-se afirmar que esta zona da cidade e os seus habitantes foram particularmente penalizados pelos efeitos multiplicadores da conjugação da guerra e do PRE (Programa de Reabilitação Económica). As populações residentes na periferia de Maputo, afectadas pela subida de preços dos bens de consumo essenciais, dos serviços sociais e dos transportes, vêem ainda o seu agregado familiar ser aumentado com familiares que fogem da guerra no meio rural. As condições de vida deterioram-se, o espaço habitacional é reduzido e os familiares recém-chegados são obrigados a partir e a tentar encontrar espaços alternativos onde possam edificar uma palhota em relativa segurança. Em Maputo, todo o local vago é passível de ser ocupado e novas habitações surgem em lixeiras10, cemitérios, campos de futebol ou valas de drenagem. Muitos destes novos urbanos não têm outra alternativa e erguem as suas casas (voluntária ou coercivamente) em bairros muito afastados do centro e onde há ataques esporádicos da Renamo. Face a esta situação, voltam a deslocar-se, vivendo durante estes últimos e conturbados anos de guerra num permanente movimento que é dificultado pela cada vez maior escassez de espaço disponível e seguro (Costa 1995: 64).

  • 11 Num relatório das Nações Unidas (Junho de 1993) previa-se que um total de 5,8 milhões de pessoas re (...)

6Com o fim da guerra esse movimento populacional não abranda mas o retorno dos deslocados às suas regiões de origem não foi tão rápido nem intenso como previsto11 e muitos desenvolveram estratégias « mistas ». Parte da família regressava (aproveitando as ajudas que o Governo e as ONG disponibilizavam para as viagens e para o recomeço da vida) e parte ficava na cidade, continuando as actividades geradoras de rendimento que tinham entretanto desenvolvido (Costa  1995, Médecins sans Frontières 1993).

7Dentro da cidade, entre os vários bairros dos diferentes distritos municipais, a mobilidade continuou e ainda continua, pois as mudanças que desde a independência até aos dias de hoje acompanharam o processo político, social e económico de Moçambique e particularmente de Maputo originaram diferentes estratégias de sobrevivência e reprodução social, sendo a mobilidade espacial (urbana-urbana, rural-urbana e urbana-rural) parte integrante dessas estratégias.

8Este complexo movimento populacional, o facto de em 1990 não ter havido recenseamento e de ter havido alterações no conceito de urbano e nos limites da cidade entre alguns dos censos que foram realizados, dificultam as análises da evolução demográfica da cidade de Maputo entre 1980 e 1997 e explicam as disparidades existentes entre as diferentes estimativas que se realizaram nos últimos anos da guerra e no período do pós-guerra.

9Estas incertezas e dificuldades estatísticas não impedem, no entanto, a constatação de que houve efectivamente um aumento significativo da população da cidade de Maputo entre os dois últimos censos realizados (1980 e 1997), tendo a população duplicado. Todavia, o crescimento populacional de Maputo nas últimas décadas do século xx não se distribuiu de forma uniforme entre a « cidade de cimento » e os « bairros de caniço ». São sobretudo estes últimos (onde a maioria das habitações já não é de caniço) que crescem em área e em densidade populacional. Este crescimento não é acompanhado, salvo raras excepções, por uma planificação urbana e investimentos que possibilitem a manutenção ou a implementação de infra-estruturas.

Urbanos e Rurais

10Esta breve referencia às mais significativas mudanças que ocorrem na cidade de Maputo em termos políticos, económicos e demográficos nas últimas duas décadas do século xx, ajuda-nos a explicar porque consideramos a mobilidade da população entre o meio rural e urbano como uma variável fundamental na análise das estratégias das famílias. Estas últimas resultam também de um acumular de experiências e nestas inscrevem-se as deslocações entre o meio urbano e rural que, como neste artigo se demonstrará, continuam a realizar-se e constituem um dos processos essenciais através dos quais a identidade das famílias se reconstrói e se afirma e as estratégias de sobrevivência e reprodução social se desenvolvem.

  • 12 Nome dado em Moçambique aos terrenos destinados à produção agrícola.

11Para a grande maioria dos indivíduos e famílias estudadas, a vinda para a cidade não implicou uma ruptura com o mundo rural ou com a família que aí continuou a residir. A circulação de pessoas entre o campo e a cidade é constante e processa-se de diferentes formas : visitas regulares ou esporádicas mais ou menos prolongadas no tempo ; manutenção de casas ou machambas12 no meio rural ; manutenção e desenvolvimento de estratégias matrimoniais que implicam alianças com famílias da mesma região de origem ; participação conjunta em cerimónias e rituais ; circulação de crianças entre diferentes núcleos familiares ; troca de produtos e dinheiro entre a cidade e o campo ; ajuda a familiares recém-chegados à cidade.

12Neste ponto importa ainda esclarecer que a importância que a circulação de pessoas e bens assume ao nível das estratégias familiares levou a que neste estudo se opta-se por estudar famílias e não agregados familiares (ménage, household). Esta última categoria – definida enquanto grupo de pessoas que partilham o mesmo tecto ou panela num dado momento – não só não representa, neste contexto, uma unidade de análise significativa ao nível das decisões económicas e sociais, como « é uma categoria residencial que não favorece a observação de laços interpessoais » nem permite apreender » a complexidade do jogo cruzado de identidades e interesses que caracteriza toda a vida social (Pina Cabral 1991:  114). Considerou-se ainda que

« família é aqui, como em tantos outros contextos sociais, um conceito émico e polissémico (Pina Cabral 1991 : 113-4 ; Bestard 1998 : 38-40), pelo que pode ser usado, pelas mesmas pessoas, para definir coisas distintas em circunstâncias diferentes, que nas mesmas situações podem atribuir-lhe significados distintos » (Lima 1999 : 147).

  • 13 Neste caso e como a grande maioria das famílias estudadas é originária das regiões do Sul de Moçamb (...)

13Simultaneamente utilizou-se o termo « famílias alargadas » para distinguir estas famílias das « famílias extensas patrilineares ou matrilineares ». A organização e estrutura interna destas últimas são diferentes e implica a observação de certas regras e princípios que emanam dos sistemas de parentesco tradicionais13 e que, em muitos casos, já não são observados nas famílias estudadas. Estas últimas, caracterizam-se por uma grande flexibilidade que possibilita as mais diversas composições. Em termos metodológicos a opção foi iniciar o trabalho de terreno com o conjunto de pessoas que residiam na kaya ou mùntì î  termos utilizados em circunstâncias diferentes pelos actores sociais na designação dos seus espaços habitacionais, quer estes fossem constituídos por uma única casa ou por um conjunto de casas, com ou sem talhão circundante (Loforte 1996 : 141) – e, partindo deste núcleo, incluíram-se outros familiares (ausentes temporariamente ou a residir noutros mùntìs quer estes se situassem, no mesmo bairro, noutros bairros da cidade ou noutras localidades) com quem os membros deste primeiro núcleo mantinham relações de reciprocidade de qualquer ordem, nível e grau, pois essas relações, como testemunham os exemplos que este artigo passa a analisar, são importantes para o desenvolvimento das estratégias de sobrevivência e reprodução social.

Família de Josué

14Josué de 40 anos, natural de Chibuto, na província de Gaza é o filho mais novo de Nora e o único dos seus filhos do sexo masculino. Nora enviuvou cedo e, apesar das pressões familiares, não voltou a casar, conseguindo manter na sua posse aquilo que era do marido (várias cabeças de gado, machambas e casa). Por esse facto, quando Nora enviuvou, Josué passou a ser o « chefe de família », herdando aquilo que era do pai. Com a guerra (que opôs a Renamo à Frelimo), o gado foi roubado e foi por essa altura, em 1979, que Josué veio viver para Maputo, com 19 anos.

  • 14 Este termo é aqui empregue de um modo simplista, para designar o local considerado pelos próprios c (...)

15Josué é « chefe » de uma família que incluia, à época da investigação, as suas três mulheres, que residem todas na mesma casa no bairro do Polana Caniço A, em Maputo, os onze filhos (menores e que vivem todos em casa dele) que nasceram destas uniões ; a sua mãe (que actualmente reside com ele), as suas quatro irmãs (uma delas já morreu) e respectivos filhos e filhas. A maior parte destes parentes residem noutras casas no mesmo bairro ou na « terra de origem»14  (distrito de Chibuto, província de Gaza) e há alguns sobrinhos emigrados na África do Sul. Porém, muitos dos que não residem em Maputo ficam na casa de Josué quando vêm à cidade.

16Através da observação e em conversas com Josué e com outros membros da sua família, constatou-se a existência de relações e entreajudas entre o núcleo de parentes residentes na « terra de origem » e aqueles que estão em Maputo. Destaco aqui alguns momentos em que essas inter-relações se expressaram e/ou onde a entreajuda esteve presente :

17– Em Chibuto, Josué deixou de estudar para ser pastor do gado do tio, pois o filho deste « já estava crescido ». Quando veio para Maputo foi viver para casa da irmã mais velha (já casada) e aí residiu seis anos. Foi esta irmã que lhe arranjou as terras de cultivo em Boane, onde, desde há uns anos, tem machambas que as suas mulheres cultivam e donde retiram grande parte dos alimentos que a sua família consome. Quando veio para Maputo, Josué abandonou a igreja que seguia na sua terra natal (Metodista) e passou a frequentar a igreja da sua irmã (Missão Suíça) : « Achei melhor estarmos juntos, não estarmos aí separados ».
– Josué vivia em Maputo quando se casou com a sua primeira mulher, Gabriela, que é natural de Chibuto (« nasci longe da terra do senhor Josué, mas sou da mesma zona […], duas, três horas a pé ») e é filha de um grande amigo do cunhado de Josué, casado com a sua irmã mais velha. Este cunhado dizia a Gabriela quando ela era pequena : « vais casar com meu pai » (Josué era o filho mais velho e, como tal, de acordo com o sistema de parentesco patriliniar dos tsongas, « pai » das suas irmãs e por extensão dos maridos destas).
– Nos últimos anos da guerra, Josué recebeu na sua casa de Maputo a mãe, algumas irmãs, cunhados e sobrinhos. Uma das irmãs era mãe solteira e tinha duas filhas de pais diferentes. Josué, como o próprio refere, « é pai » dessas crianças (uma já faleceu). Josué também recebeu em sua casa os filhos de uma outra irmã depois de esta enviuvar e foi buscar a Chibuto a mãe, e esta agora vive com ele. Refere outra das sobrinhas de Josué : « Quem ajuda muito é o senhor Josué, ele é que é o mais velho da família, é como pai, quando estamos doentes é só ligar que ele leva-nos ao hospital ». Alguns dos sobrinhos mais velhos de Josué visitam-no com regularidade e, para eles, ele é « pai ». Durante a estadia de terreno, um dos seus sobrinhos foi preso e Josué afirmou que tinha ajudado a arranjar o dinheiro para pagar os subornos necessários à sua libertação, além de ter sido ele que acompanhou a irmã nas diligências (e foram muitas) que este processo implicou.

18Como estes exemplos testemunham, a família de Josué é um exemplo de uma família coesa (o que não significa obviamente que não haja conflitos) e dificilmente se podem entender as estratégias de sobrevivência e reprodução social sem ter em conta as múltiplas relações, trocas e entreajudas, entre os diferentes membros que a compõem, independentemente dos seus locais de residência.

  • 15 De acordo com as regras tradicionais de parentesco tsonga as mulheres casadas e loboladas ficam a p (...)

19As vidas de todos aqueles que se referiram (e de muitos outros não mencionados) foram e são moldadas pelos compromissos e responsabilidades mútuas e esta inter-relação tem como um dos referente e alicerces fundamentais a « terra de origem ». Neste caso concreto, foi a partir dos bens que aí se produziram (gado) que foi possível à mãe de Josué afirmar a sua independência quando enviuvou. Foi a partir das relações que se desestruturaram na terra de origem (entre a mãe de Josué e a família do marido desta) que a possibilidade da construção desta família se originou. Se a mãe de Josué tivesse voltado a casar com um irmão do seu marido15, como a família deste queria, nunca Josué teria ascendido à posição de chefe que hoje ocupa. Toda a sua educação teria sido diferente, como seriam diferentes as responsabilidades, obediências e ajudas que criou, desenvolveu e possibilitou. Foi em Chibuto que Josué estabeleceu a sua primeira relação matrimonial, e é lá que ainda residem irmãs, cunhado e sobrinhos. E é em viagens constantes a este local e deste local para Maputo (durante o trabalho de terreno foi possível testemunhar essa intensa circulação) que muitos dos membros desta família, sobretudo mulheres, gastam as suas economias e o seu tempo, recebendo ajuda material e moral e reforçando a sua identidade familiar e individual.

A família de António

20Como contraponto deste exemplo, apresenta-se outro : de uma família em aparente processo de desagregação. Para essa família, a « terra de origem » continua a ser o referente fundamental e a entreajuda (conflituosa e controversa) entre um grupo alargado de familiares continua a existir e a ser um dos elementos fundamentais nas estratégias de sobrevivência e reprodução social desenvolvidas.

21Esta família é composta por António (56 anos, natural de Massinga, Inhambane), a sua actual mulher, o filho de ambos, e a sua primeira mulher, Cláudia, da qual está separado. Claúdia e António vivem actualmente em casas diferentes no mesmo bairro (Polana Caniço A), mas a casa onde vive Cláudia ainda é, segundo António dele (« ainda sou dono »). Cláudia e António têm quatro filhos, entre os 24 e os 11 anos, estando os dois mais velhos, uma rapariga e um rapaz, na África do Sul. Esta rapariga tem dois filhos de pais diferentes, e a sua filha mais velha vive com a avó, Cláudia, em Maputo. Cláudia considera que esta neta é « sua filha » e esta trata-a por mãe. Vivem ainda com ela um sobrinho, filho do irmão mais velho (já falecido) do marido, e três hóspedes, a quem Cláudia aluga quartos.

22António, o mais novo de oito irmãos, separou-se aos 15 anos da sua família. A mãe tinha morrido e o pai tinha casado de novo :

« Foi devido aos tratamentos, não havia entendimento, separei-me da família e andei de um lado para outro sozinho. O sofrimento é que faz uma pessoa aprender muita coisa. Eu andei a viver assim mesmo, como uma pessoa pobre, assim, que não tem valor ».

23Veio em 1967 para Maputo com um amigo, para a casa de familiares deste. Pouco depois, arranjou trabalho como empregado doméstico de uma família portuguesa. Estes, em 1973, foram para Portugal e ele voltou à « terra de origem » para casar com Cláudia, irmã de um amigo de Maputo. Cláudia era de uma família vizinha da família de António e comenta : « a minha família e a do meu marido eram vizinhas, conheciam-se, já havia casamentos entre nós ».

24Quando António regressou a Massinga, retomou os laços com a família cumprindo os costumes : fez o lobolo. Cláudia foi viver com a sogra e trabalhou na machamba desta (madrasta de António), e António regressou a Maputo.

25António, apesar de a distância ser grande, continua a visitar a família de Massinga nas férias e recebe visitas de familiares que aí residem na sua casa de Maputo. Nestas visitas, há trocas de produtos de valor simbólico. E afirma :

« Numa infelicidade posso sempre voltar para Inhambane, vou lá ter com o meu tio, irmão do meu pai, que é o chefe de toda a família quando estamos ali na cerimónia. Ele interfere e ajuda-me nos problemas ».

26A importância da « terra de origem » parece atravessar as gerações. António contou que o seu filho de onze anos tinha fugido três vezes de casa para ir ter com a família em Inhambane. As razões que originaram esta fuga são complexas e relacionam-se, segundo António, com os antepassados da família e com a atribuição de nomes « tradicionais ». Apesar de António estar separado de Cláudia, o seu sobrinho continua a viver em casa desta. Cláudia refere a propósito do assunto :

« Ele não me ajuda, mas mandar embora é difícil, ele, por si próprio, é que tinha de sentir. Quando o meu marido vivia cá dávamos-lhe de comer, mas quando ele se casou [o sobrinho], vimos que já não íamos aguentar sustentar a mulher e o filho. Então dissemos-lhe : "tu já és crescido, tens que arranjar uma maneira, vamos fazer escalas : este mês tu compras um saco de arroz e nós compramos o caril, no mês seguinte trocamos". Mas o meu marido perdeu o emprego e começou a haver desequilíbrio nas escalas. Mas tentei manter e consegui durante algum tempo, só que o meu marido foi-se embora e o sobrinho começou a pensar : "eu é que hei-de sustentar aquela família toda ?". Carregou a esposa, foi deixar em Inhambane e ficou cá ele, mas já não dá mais nada ».

27Embora com uma história e uma situação (em termos de coesão) muito diversa da família de Josué, muitos dos membros da família de António mantêm uma relação próxima com a « terra de origem », com os membros que aí residem e com elementos de identidade que aí se centram. Muitas das estratégias de sobrevivência e reprodução social desta família centram-se nas relações familiares que se mantêm, ao longo do tempo e através de percursos que, como os exemplos demonstram, são complexos e contraditórios.

28Por exemplo, o facto de António afirmar que se afastou do pai e da madrasta devido « aos tratamentos » levanta suspeitas de que houve algumas acusações de feitiçaria (o pai dele era curandeiro) e este tipo de acusação foi muitas vezes apontado por diversos informantes como a causa das desuniões familiares. O facto de António associar os termos « solidão » e « pobreza » é também significativo. E o facto de ele ter ido casar à terra de origem com uma mulher conhecida da família (mas que ele não conhecia) e de ter cumprido os costumes demonstra uma necessidade de recuperar alianças e relações que, para além de muitas outras coisas, reestruturaram a sua situação em termos sociais e familiares. Talvez não seja por acaso que isso acontece quando ele perde o emprego na cidade. Fazendo conjecturas, pode-se pensar que ele teve vontade de se afirmar sozinho, mas que não foi capaz de o fazer. Como alternativa, recorreu de novo à sua rede familiar, mantendo, a partir daí, relações estreitas que implicam obrigações e reciprocidades.

29É também controversa e ambígua a relação actual de António com Cláudia e com a casa que foi – e não se conseguiu perceber se ainda é – de ambos. Como é ambígua a relação que Cláudia mantém com o marido : ele vai lá a casa mas fica no talhão, não entra no espaço construído. Ela recebe-o, serve-lhe refeições, mas que não lhe fala.

30Estes exemplos ilustram a importância das relações familiares dentro da chamada « família alargada », mesmo nos casos em que esta está, aparentemente, a desestruturar-se, e neles constata-se a importância das relações familiares nas suas múltiplas dimensões : materiais, emotivas, simbólicas e identitárias. É a partir destas diferentes dimensões que os actores se posicionam e constroem as suas estratégias e que as relações familiares se estruturam. E são as relações familiares que possibilitam o desenvolvimento de estratégias conjuntas que visam a sobrevivência e a reprodução social do grupo. A « terra de origem » funciona como uma das « âncoras », um dos « eixos » fundamentais que permite a cada um situar-se em relação aos outros, numa complexa rede de hierarquias onde direitos, deveres, obrigações e responsabilidades simultaneamente se definem, se recriam e são manipulados.

Relações familiares e reconstruções identitárias

31A importância das relações entre os núcleos familiares residentes em Maputo e na « terra de origem » foi constatada na análise de outras histórias de famílias tendo-se verificado que muitos dos que nasceram em Maputo ou que aí residem há vários anos mantêm relações mais ou menos regulares com a « terra de origem » : os familiares de ambas as regiões visitam-se (e estas visitas podem implicar estadias prolongadas no tempo) e trocam produtos entre si ; existem ainda aqueles que cultivam uma machamba na « terra de origem » e que por isso aí se deslocam com regularidade ; por vezes, essa machamba é trabalhada por familiares que aí residem em permanência.

32No caso dos recém-chegados à cidade, essa relação ainda é mais constante : alguns dos entrevistados têm machamba e casa na « terra de origem », e uma das mulheres reside nesse local com alguns dos filhos do casal. Outros visitam com regularidade a família e trocam produtos entre si. Apenas um dos informantes disse que nunca mais tinha ido à terra de origem desde que está a viver em Maputo, por falta de dinheiro para as viagens, mas referiu que os familiares dela e do marido viviam aí e que estes « vêm sempre » visitá-los a Maputo. Afirmou ainda que gostava mais da vida em Manjacaza do que em Maputo, porque « lá em casa temos machamba, produzimos tudo, enquanto aqui para viver é necessário dinheiro ».

33Todos aqueles que declararam o facto de terem familiares nas províncias do Sul de Moçambique mantêm com eles algum tipo de relação, que muitas vezes perdura ao longo do tempo. Por exemplo, um dos informantes do bairro de Mafalala, de 70 anos, natural de Manjacaza, residente em Maputo desde os seus 25 anos, comenta a relação que mantém com os seus familiares do campo nos seguintes termos :

  • 16 As cerimónias dedicadas aos antepassados, mesmo quando realizadas de acordo com as regras costumeir (...)

Tenho muita família em Gaza […] vou sempre lá e à missa16 fomos, e havia muita gente que tinha sido convidada para a missa, fomos até para lá à casa […]. Sou chefe de família lá e cá. […] Calculando não posso, são muitas pessoas, mais de 200 com certeza, no dia em que fizemos a missa lá foi feita em minha casa, com terreno muito grande até lá… mas estava cheio, cheio mais de 300 e tal pessoas no dia da missa, […] mesma família […] tenho lá muito lugar para machamba, está lá essa minha cunhada, mulher do meu falecido irmão mais velho […] faleceu, deixou a casa, está comigo, e quem toma conta da casa sou eu. A machamba tem tudo. […] A gente faz o seguinte : compramos os produtos que lá fazem falta, sal, açúcar, quando houver dinheiro arranjamos roupa das calamidades […] um pouco daqui dá sal, petróleo e em troca é fácil, basta arranjar isso, eles têm de cultivar todas as vezes, semear […] e já ficam lá a tomar conta […] sim, trago, tem muito lá, tem muita coisa, não há fome, e este ano como choveu bastante […].

34As relações com a « terra de origem », o sentimento de pertença a um lugar e a noção dos direitos de posse sobre esse lugar estão intimamente ligados ao culto dos antepassados e a questões simbólicas que são importantes elementos constitutivos da identidade familiar, explicando por isso coesões existentes. Não cabe aqui o desenvolvimento deste tema, mas importa salientar que estas relações são complexas e dinâmicas, pois a « terra de origem » não é algo de estático ou fixo e pode existir independentemente do espaço geográfico real onde em tempos se localizava. Diz a mãe de Josué (80 anos), a propósito deste assunto :

« Se um dia voltar para lá, tenho lá casa, tenho netos que podem construir uma casa para mim […] As minhas filhas e netos que estão lá continuam, só que não é no mesmo espaço porque tiraram as pessoas e fizeram uma espécie de aldeia com casas muito próximas. Foi o Estado que fez durante a guerra por causa dos bandidos, essa aldeia ainda existe, as machambas ficam à volta ».

35Por outro lado, a relação com a « terra de origem » pode existir apenas no plano ideal, não sendo efectivada, na prática, por muitos anos

« Qualquer membro dessa família pode ir para lá, mesmo que os pais nunca tenham lá ido, pode chegar lá e pedir para mostrarem onde estavam os pais, o régulo vai mostrar. […] É o régulo que sabe onde é a machamba de cada família e sabe se for lá alguém que não é da zona. […] Há sempre muita terra, não falta, eu mesmo tenho machamba que guardei para os filhos, se querem cultivar vão lá, se querem fazer uma casa vão lá, se querem fazer uma cidade vão lá na zona da família do meu marido. (Vera, casada, de cerca de 60 anos) ».

  • 17 De acordo com as informações obtidas no trabalho de campo e noutras fontes (Junod 1996, Feliciano 1 (...)
  • 18 A palavra changana equilavente a xará é Màb’ìzwenì e designa o « tratamento entre pessoas que têm o (...)

36No caso das mulheres casadas ou viúvas, esta terra localiza-se, na maioria das vezes, na região de origem da família do marido e mesmo nos casos em que existem conflitos entre os membros colaterais de uma família, essa relação pode manter-se. É o caso de uma mulher viúva (Victória, de 40 anos) que está em conflito aberto com os familiares do seu marido por, entre outras coisas, não aceitar casar com um cunhado. Esta mulher, não só mantém na terra do marido uma machamba e paga « presentes » a algumas das suas parentes colaterais para estas a cultivarem, como tem lá um filho que está a ser criado pela avó paterna17. Esta criança tem o nome do avô paterno e foi este (o xará18 da criança) que o levou para a « terra de origem » (neste caso no distrito de Jangano, província de Inhambane). A criança vive aí desde que deixou de mamar. Por causa dessa criança, mas também por outras razões, Vera mantém a relação com a « terra de origem » do seu marido e com os familiares que aí residem :

« Quando faço dinheiro aqui, eu sempre mando para lá, porque tenho uma criança e também para eles. Não posso deixar de os ajudar e eles de Inhambane mandam coisas ».

  • 19 De acordo com H. Van Dijk, D. Foeken & K. Van Til : « A migração temporária é frequente na África s (...)

37O facto de a « terra de origem » constituir simultaneamente um símbolo da identidade familiar e um recurso material gerador de produtos para auto-consumo ou venda (ou passível de o ser) explica a circulação dos membros de uma família entre os dois espaços geográficos e os investimentos que esta circulação e/ou as relações entre os diferentes núcleos necessariamente implicam. Constituindo, por isso, esta dispersão geográfica dos membros de uma família e a existência de uma « migração circular »19 entre o campo e a cidade, uma das características essenciais das estratégias de sobrevivência e reprodução social das famílias estudadas.

38A concretização efectiva desta estratégia de dispersão familiar não é uniforme nas diferentes famílias nem sequer, obviamente, entre os membros de uma família. Inúmeros factores explicam esta diversidade, nomeadamente a distância geográfica entre a cidade e a « terra de origem » e a idade, o sexo e o estatuto dos membros da família. Mas em todas as famílias foi possível constatar a existência de relações entre os núcleos urbanos e rurais, quer estas relações se traduzissem em visitas e trocas regulares de produtos, quer implicassem deslocações esporádicas e mais ou menos prolongadas no tempo. Muitas das famílias mantinham igualmente casas e machambas no meio rural onde continuavam a residir parentes próximos (mulheres, filhos) ; outros informantes referiram explicitamente estratégias matrimoniais que implicaram alianças com famílias da mesma região de origem. Constantemente foram ainda mencionadas as cerimónias e rituais que se realizaram na « terra de origem » e sobretudo a importância vital de que se revestia a ajuda que os familiares residentes na cidade proporcionavam aos seus parentes recém-chegados do campo, em termos de residência, trabalho, inserção social e religiosa. Em relação a este assunto constatou-se na análise dos diferentes percursos dos actores sociais que as suas vidas foram e são moldadas por compromissos e responsabilidades familiares e que esta inter-relação entre membros de uma família tem como um dos referentes e alicerces fundamentais a « terra de origem ». Por último, a circulação de crianças entre diferentes núcleos familiares, observada em muitos casos, surge como uma estratégia geradora de coesão familiar reveladora dos processos através dos quais se constituem e partilham identidades no seio das famílias. A criança não pertence à sua mãe, ou aos seus pais, mas à família. E a criação e o desenvolvimento de laços afectivos entre pessoas de diferentes gerações implica estadias, mais ou menos prolongadas no tempo, com outros que não os pais. Este processo, iniciado na infância, quando a criança tem meses ou um ou dois anos (após deixar de mamar), aliado ao facto de esta por vezes partilhar o nome e consequentemente a identidade, com outro(s) familiar (vivo e/ou morto), tem implicações profundas na formação da sua personalidade. Daí a importância desta vertente para a análise das interdependências existentes entre diferentes núcleos de uma mesma família e da própria noção de família e de identidade que os actores sociais têm no contexto em análise.

* * *

39Concluindo, pode-se afirmar que é a enorme mobilidade dos actores (observável no presente e relatada nas inúmeras histórias de vida e de família) entre o meio rural e o meio urbano que permite às famílias a sua sobrevivência e reprodução social. Nestes diferentes espaços os membros da família desenvolvem actividades geradoras de rendimentos e produtos e a mobilidade entre estes espaços permite a existência de trocas e entreajudas (estratégias de articulação), de diverso tipo e regularidade, essenciais à sobrevivência quotidiana e futura de todos os envolvidos (e como tal à sua reprodução social). Nestas trocas e entreajudas os ganhos materiais não são os únicos factores que importam, pelo contrário, os prejuízos são por vezes facilmente contabilizados pelos próprios e pelo observador. Neste caso, é licito afirmar que as interdependências materiais e económicas existentes entre membros de uma mesma família são a consequência e não a causa da coesão efectiva existente.

40Esta coesão, permanentemente ameaçada pela mobilidade e a dispersão dos diferentes membros, é constantemente recriada e reafirmada, através de diferentes e multi-dimensionais processos que, entre muitas outras coisas, tendem a gerar nos diferentes membros da família uma identidade comum (familiar) e partilhada.

41Um dos símbolos através dos quais essa identidade familiar se expressa é a « terra de origem ». E a maioria das pessoas contactadas mantém com a « terra de origem » e com os familiares que aí residem relações profundas (mas não necessariamente regulares) e estas relações reforçam e actualizam a sua identidade familiar. A « terra de origem » funciona assim como uma das « âncoras », um dos « eixos » fundamentais que permite a cada um situar-se em relação aos outros, numa complexa rede de hierarquias onde direitos, deveres, obrigações e responsabilidades simultaneamente se definem, se recriam e são manipulados. E é a existência de um conjunto de elementos identitários específicos – ancorados em referentes e memórias, e actualizados nas relações e nas práticas daí decorrentes –, partilhados por um conjunto de indivíduos unidos entre si por laços de filiação ou aliança, que permite ao grupo-família o desenvolvimento das estratégias de sobrevivência e reprodução social.

42Em certo sentido, e para o conjunto das pessoas estudadas, a família está ancorada num espaço geográfico definido, mas não necessariamente imutável. Fazer parte de uma família implica ser de um lugar e este sentimento de pertença (identitário) é actualizado através das relações que cada um mantém e desenvolve com aqueles com quem partilha essa identidade. A actualização dessas relações processa-se de forma diversa e, nomeadamente, é a elas que se faz apelo no processo de instalação na cidade. A grande maioria das pessoas estudadas, quando veio para a cidade, instalou-se em casa de familiares e aí residiu até conseguir os meios que lhe permitissem alugar ou comprar o seu talhão, ou a sua casa. Foi, na maior parte dos casos, graças a esses familiares que residiam na cidade que conseguiram o primeiro emprego. Foi por via destes familiares que se integraram em igrejas, chegando por isso a mudar de culto. Por sua vez, ao longo do tempo em que têm vivido na cidade, receberam vários familiares que vinham do campo. Esta ajuda é, para muitos dos recém-chegados, condição vital para a sua sobrevivência nos primeiros tempos em Maputo.

4318 de Março de 2005

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Notes

1 O presente texto decorre de uma investigação realizada no âmbito da tese de doutoramento em Estudos africanos (Bénard da Costa 2003) articulada na sua fase inicial, com o projecto interdisciplinar « Urbanização acelerada em Luanda e Maputo : impacto da guerra e das transformações sócio-económicas nas décadas de 80 e 90 ». Este projecto foi realizado pelo CEsA (Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento) do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, coordenado pelo professor Jochen Oppenheimer (2002) e contou com a participação de uma equipa de onze investigadores portugueses de diferentes áreas académicas (sociólogos, antropólogos, economistas e arquitectos urbanistas) e com colaboradores de ambos os países africanos. Ambas as investigações foram realizadas com o apoio financeiro da Fundação da Ciência e Tecnologia (Programa PRAXIS XXI e POCTI).

2 Foram entrevistadas 81 famílias e inquiridas 1 000 e foi realizado trabalho de terreno mais aprofundado, utilizando a metodologia da observação participante e de histórias de vida e histórias de família, com seis famílias do bairro Polana Caniço A.

3 A cidade de Maputo tem 66 bairros divididos por 5 distritos municipais.

4 Em termos dos bairros estudados é em Mafalala que a origem dos habitantes é mais diversificada reunindo um conjunto de significativo de famílias provenientes das regiões do Norte de Moçambique, nos outros dois bairros a maioria da população residente é originária da regiões do Sul de Moçambique (Instituto Nacional de Estatística 1998) e foi maioritariamente com famílias desta zona que a investigação se realizou.

5 Existem grandes probabilidades de um número significativo dos membros destas famílias se incluírem na percentagem da população de Maputo (50 % a 70 %) que foi considerada « em situação de pobreza e carência alimentar » (Ginja & Schwarz 1997 : 8, Green 1991, Ministério do Plano e das Finanças 1998, Oppenheimer & Raposo 2002 : 66). « De uma população total de cerca de 540 000 habi­tantes em 1980, cerca de 8 100 viviam então abaixo da linha da pobreza. Em 1997, são cerca de 460 000 os que vivem nesta condição, numa população total de quase um milhão. Enquanto a população global quase duplicou nestes 17 anos, o número de pobres quase sextuplicou » (Oppenheimer & Raposo 2002 : 99). Nestes 540 000 habitantes não se incluem os que residem na Matola. Manuel Araújo (1988: 48) refere que a população total da cidade de Maputo é de 755 300 habitantes, mas estes dados são retirados do Censo de 1980, que agrega a população de Maputo e de Matola.

6 O aumento da população da periferia fez-se e faz-se em dois sentidos : através da expansão geográfica da periferia, que se estende por vários quilómetros ; e através da densificação da ocupação do espaço nos diferentes bairros. A distância relativa dos diferentes distritos municipais face ao centro da cidade determina a densidade popu­lacional, que é menor nos distritos mais afastados do centro, embora na década de 90 seja precisamente nestes distritos que se verificam os maiores aumentos de densidade populacional (Oppenheimer & Raposo 2002 : 24).

7 Durante a época colonial, a migração do campo para a cidade era maioritariamente masculina, mas a partir da independência e sobretudo a partir da década de 1980 (período de guerra) o número de mulheres que abandona as zonas rurais para se fixar na cidade aumenta significativamente (Oppenheimer & Raposo 2002 : 20-21).

8 De acordo com os dados do último recenseamento, 40,5 % da população de Maputo tinham menos de 15 anos em 1997 (Instituto Nacional de Estatística 1998).

9 Esta visava « limpar » a cidade dos « improdutivos ». Quem não possuía os documentos necessários (licença de cidadania, bilhete de identidade, cartão de residente ou guia de marcha) ou quem era acusado de ter comportamentos desviantes ou subversivos (bebia, praticava actos « tribalistas », era vagabundo, prostituta e até artista) era encaminhado para a província do Niassa para ser « reeducado ».

10 O denominado bairro de Magude, ocupado maioritariamente por deslocados de guerra, oriundos desta região, foi edificado numa lixeira do bairro da Urbanização.

11 Num relatório das Nações Unidas (Junho de 1993) previa-se que um total de 5,8 milhões de pessoas regressassem às suas terras, incluindo neste número 4 milhões de deslocados internos, 1,5 milhões de refugiados e 200 000 soldados (incluindo os seus dependentes). Calculava-se que cerca de 1 milhão de deslocados permanecessem nos locais onde se encontravam, a maioria em cidades. Segundo estes cálculos da ONU, até finais de Maio de 1993 já teriam regressado 1 milhão de deslocados e aproximadamente 300 000 refugiados, a maioria vindos do Malawi.

12 Nome dado em Moçambique aos terrenos destinados à produção agrícola.

13 Neste caso e como a grande maioria das famílias estudadas é originária das regiões do Sul de Moçambique (províncias de Maputo, Gaza e Inahmbane) a estrutura de parentesco tradicional a que nos reportamos é a dos tsongas, patrilinear e patrilocal. Importa, porém salientar que nenhuma das pes­soas contactadas ao longo da investigação empírica se identificou etnicamente como tsonga. Changana, ronga e matsua são alguns dos nomes que utilizaram para desig­nar as línguas que falam e a sua identidade « étnica ». Como existe uma equiva­lência entre os nomes referidos e o nome tsonga, não se questiona aqui este assunto lembrando apenas que existe alguma controvérsia em relação à identidade tsonga e à forma como esta poderá ter sido « inventada » por missionários e administradores coloniais e perpetuada pela política do colonialismo (Harries 1979, Medeiros 2001, Ngoenha 1999).

14 Este termo é aqui empregue de um modo simplista, para designar o local considerado pelos próprios como a sua « terra de origem ». Esta pode ser o seu local de nascimento, dos seus pais ou avós, ou de todos estes. No caso das mulheres (do Sul de Moçambique), pode ser a terra do marido, ou de um primeiro marido já falecido, ou de um de quem entretanto se separaram. Pode ainda ser um outro local, onde estejam enterrados antepassados de há várias gerações. Por estas razões, e por outras (Geschiere 2000), a questão da pertença a uma dada região é complexa e merece um tratamento mais aprofundado e fundamentado do que aquele que é possível realizar neste artigo.

15 De acordo com as regras tradicionais de parentesco tsonga as mulheres casadas e loboladas ficam a pertencer à família do marido. No caso de viuvez devem, idealmente, casar com um irmão do marido. Se não aceitarem esta união são expulsas e ficam sem nada. No caso de separação ou divórcio, o lobolo que a família da noiva recebeu deve ser devolvido à família do marido. E, em qualquer caso, os filhos de um casamento pertencem à família do pai, e a mãe separada ou divorciada não tem, de acordo com os costumes, direitos sobre os seus filhos. É um modelo claramente patrilinear e patrilocal, embora, na prática e desde sempre, haja excepções e infracções a estas regras.

16 As cerimónias dedicadas aos antepassados, mesmo quando realizadas de acordo com as regras costumeiras, são muitas vezes no discurso dos actores designadas, em português, por missas.

17 De acordo com as informações obtidas no trabalho de campo e noutras fontes (Junod 1996, Feliciano 1989) a estadia das crianças em casa dos avós após o desmame, Junod refere que ficavam com os avós entre os 3 e os 14 anos (1996 : 77) e durante a infância era um costume recorrente entre os tsongas. « No próprio dia do desmame a criança deve deixar a aldeia dos pais e ir viver com os avós […] Se é o primeiro filho, deve ir para casa dos avós maternos ; o filho segundo será recebido pelos avós paternos » (Junod  1996 : 76).

18 A palavra changana equilavente a xará é Màb’ìzwenì e designa o « tratamento entre pessoas que têm o mesmo nome » (Sitoe 1996: 101). Por conseguinte duas pessoas com o mesmo nome são màb’ìzwenì (xarás) uma da outra. Muitas vezes, o padrinho ou a madrinha (ou aqueles que são escolhidos para dar o nome a uma criança) dá o seu nome próprio ao afilhado e por isso passam a ser seus « xarás ». Por extensão, « padrinho » e « xará » apareceram por vezes no discurso das pessoas como sinónimos sem que houvesse repetição de nomes próprios. Ser « xará « de alguém é um facto com algum significado, existindo uma identificação entre o nome e as pessoas. Partilhar um nome próprio, mesmo quando não existem relações familiares ou de compadrio entre as pessoas em questão, é sempre partilhar uma identidade.

19 De acordo com H. Van Dijk, D. Foeken & K. Van Til : « A migração temporária é frequente na África subsariana, sobretudo na forma de migração sazonal ou circular. A migração sazonal está geralmente associada ao tipo rural-rural, enquanto que a migração circular tem um carácter rural-urbano-rural. Contudo, nem sempre a distinção entre ambas é clara, já que a migração circular também pode ser de natureza sazonal » (2001: 12).

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Pour citer cet article

Référence papier

Ana Bénard Da Costa, « Urbanos e rurais »Lusotopie, XIII(1) | 2006, 147-165.

Référence électronique

Ana Bénard Da Costa, « Urbanos e rurais »Lusotopie [En ligne], XIII(1) | 2006, mis en ligne le 10 avril 2016, consulté le 02 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1498 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01301010

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Auteur

Ana Bénard Da Costa

Instituto de Investigação Científica e Tropical, Centro de Etnologia Ultramarina, Lisboa

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Droits d’auteur

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