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Autobiografia da Angola colonial

Memórias da mulher dum chefe de posto (1945-1975)
Une autobiographie de l’Angola colonial : les mémoires de l’épouse d’un chef de poste (1945-1975)
Autobiography of Colonial Angola: Memoirs of a Civil Administrator’s Wife (1945-1975)
Cláudia Castelo et Daniel Melo
p. 95-115

Résumés

Cet article analyse la situation de la femme de colon dans l’Angola portugais entre la Seconde Guerre mondiale et la décolonisation, à travers l’histoire de vie de l’épouse d’un chef de poste administratif. Il se propose de rendre compte du rôle attribué à la femme de colon dans la dissémination des relations de pouvoir dans l’espace domestique et de l’importance de sa contribution politique, sociale et culturelle à la portugalisation de l’empire. La complexité des relations entre colonisateurs et populations indigènes suscite une réflexion sur l’importance des attitudes personnelles et de certaines stratégies de réciprocité ou de contreparties symboliques.

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Texte intégral

  • 1 Vd., nomeadamente, Clarence-Smith 1979, Penvenne 1993, Freudenthal 1995-1999, Isaacman 1996, Neto 1 (...)
  • 2 A estranheza, o isolamento, a insegurança relativa e a adversidade estão omnipresentes nos relatos (...)

1A historiografia sobre o colonialismo português costuma enfatizar aspectos ligados à exploração económica, à discriminação racial e aos conflitos sociais nas possessões africanas1. De facto, as colónias foram espaços de desigualdade, nos quais os colonizadores brancos detinham o poder político, o aparato jurídico e administrativo, os recursos económicos e o controlo sobre a mão-de-obra indígena. Sem pôr em causa a necessidade de compreender o funcionamento e as consequências do sistema de dominação colonial, interessa-nos perscrutar a condição específica dos migrantes metropolitanos que se estabeleceram no ultramar português, não esquecendo que estes se encontravam em circunstâncias difíceis – uma minoria étnica, fixada num ambiente estranho e/ou adverso, cuja sobrevivência dependia de mecanismos de vigilância sobre uma população nativa, maioritária e potencialmente hostil. Por este ângulo de análise, vemos emergir uma face menos estudada dos povoadores europeus : a de elementos deslocados, vulneráveis e ameaçados, a quem se exigia uma enorme capacidade de adaptação (Kennedy 1987 : 187)2. Julgamos que só encarando os colonos na sua dupla face poderemos perceber o processo sui generis de construção da sua identidade.

  • 3 Quanto à questão da construção social do género vd. Almeida et al. 1996.
  • 4 A noção de cultura adoptada é tributária da antropologia cultural : referimo-nos a atitudes, crença (...)

2Após o fim das « campanhas de pacificação », e depois do interregno provocado pela Ia Guerra Mundial, entra-se definitivamente em Angola na fase de ocupação administrativa do território. Neste texto pretendemos acompanhar a narrativa autobiográfica duma mulher portuguesa que durante trinta anos viveu em Angola com o marido, funcionário do quadro administrativo. A sua história remete-nos para quatro domínios diferentes que nos interessa explorar : 1) as contradições e insuficiências do poder colonial ; 2) as relações que os colonos estabeleciam entre si e com os indígenas ; 3) as percepções do território e dos seus habitantes ; 4) a influência do género nas relações sociais e na sua visão do mundo3. O itinerário individual desta mulher – reconstruído no espaço, no tempo, no quotidiano e nas emoções – funcionará como nosso guia para uma leitura (inevitavelmente parcial, fragmentada e subjectiva) da ocupação administrativa do interior de Angola e, em particular, da cultura4 que enformava as micro-comunidades colonas embrenhadas nos « sertões », num itinerário eminentemente rural (cf. mapa dos locais de residência).

  • 5 Vd. Gomes 1998. A perspectiva da autora sobre os factos que narra vale por si, enquanto exercício d (...)

3Começamos por seguir as « andanças » de Maria Leal Gomes segundo o seu olhar memorialístico5, para depois as situarmos na história. Formalmente linear, a sua narrativa assemelha-se a uma composição cíclica, formada por três momentos (chegada, processo de adaptação, partida), que se repetem constantemente. A adaptação fica quase sempre incompleta, pois é interrompida a cada nova partida. No fim, o círculo fecha-se : Maria regressa ao local de origem. O texto original destas memórias foi um manuscrito que a autora Gomes foi escrevendo ao longo da sua vida, e que familiares seus transcreveram recentemente, tendo o livro sido publicado com a sua autorização (além da sua autoria) em 1998, através duma editora local, contendo c. de 200 páginas sem imagens, excepto o mapa das suas andanças, que reproduzimos neste artigo. Este tipo de fontes é raro em Portugal, onde não há uma tradição memorialística, daí a sua maior relevância e preciosidade, e daí propormos esta deambulação enquanto contributo para suprir lacunas que as fontes arquivísticas institucionais não conseguem cobrir, ao nível das vivências, emoções e olhares pessoais.

Lugares citados e de residência da família do chefe de posto

Lugares citados e de residência da família do chefe de posto

Fonte : Gomes 1998 : [197].

Ir na peugada (o sonho colonial)

4Maria Leal Gomes era originária do Norte de Portugal (Paços de Ferreira, distrito do Porto), duma família de médios proprietários fundiários, portanto, vinha dum estrato da burguesia rural, sem problemas económicos. Casa-se religiosamente em Julho de 1945. O marido propusera-lhe irem para Angola, onde cumprira o serviço militar e, provavelmente, tentado pelo desejo de aventura. Finda a cerimónia matrimonial, embarcam com destino à colónia da costa ocidental africana. Depois do Equador, a viagem torna-se agitada e Maria, que nunca tinha andado de barco, tem medo que ele naufrague. Chegados ao Lobito, enquanto o marido levanta a bagagem na alfândega, Maria confronta-se pela primeira vez com nativos africanos, vestidos apenas com tanga, que lhe falam numa língua local. O sentimento de estranheza e apreensão só é superado com a intervenção dum europeu branco, guarda do porto, que lhe diz para não ter receio « daqueles pretos ».

5No Lobito, apanham o comboio para Benguela. Nesta cidade, hospedam-se numa pensão de pessoas conhecidas do marido, próximo da Praia Morena. Ali ficam durante sete meses, à espera que o marido seja nomeado para o quadro administrativo para o qual tinha concorrido. Maria recorda que passou esses meses aborrecida, com saudades da terra natal (de resto, um sentimento que perpassava os colonos pioneiros – cf. Raposo 1926 : [31]-58, ou Ervedosa imp. 1990: 20-24). Lia, fazia renda e trabalhos de costura. A única lembrança que guarda daqueles dias sempre iguais é a do macaco que lhe roubou e desmanchou o crochet.

6Finalmente, em Março de 1946, o marido é nomeado aspirante no quadro administrativo e colocado em Vila Nova do Seles (distrito do Cuanza Sul). Seguem de Benguela até ao Lobito de comboio e dali num camião de carga que transportava sisal. Maria recorda que o calor abrasador e a estrada horrível – estava-se no fim da época das chuvas e o capim tapava o trilho das rodas dos carros –, mas foi acordada durante a viagem pois queria observar a fauna selvagem.

7Chegaram a Vila Nova do Seles uma quinzena depois. A povoação não tinha muito para ver : havia um hospital com um médico/delegado de saúde, quatro casas comerciais (de quatro irmãos), uma pensão, uma igreja, uma escola primária e o edifício da administração do concelho (onde trabalharia o marido). Era uma terra muito isolada, sem meios de transporte. Para alguém se deslocar dependia da boleia de algum comerciante. Como a casa destinada ao aspirante não estava pronta, foram viver na casa dum comerciante solteiro. Maria era das primeiras mulheres brancas a fixar-se naquela região ; por isso, « quando saía à rua, as crianças iam a correr chamar a[s] mãe[s] para ver a menina das tranças que estava a passar » (p. 9). Da diferença chegava-se à curiosidade e desta ao relacionamento próximo.

8O diagnóstico de dificuldades é partilhado no relato doutros colonos (vd. caso dum outro chefe de posto em Martins 1998) e mostra-nos as limitações da penetração administrativa, e, por consequência, do domínio colonial português em Angola. A extensão dos territórios que constituíam os postos administrativos tornava o trabalho de recenseamento, cobrança de impostos, resolução de contendas, etc., muito difícil e demorado. As insuficiências materiais, a indigência dos meios disponibilizados e a multiplicidade das tarefas acometidas aos funcionários administrativos eram outros factores que entravavam a máquina administrativa. Ou seja, o facto do próprio corpo administrativo colonial sentir grandes dificuldades logísticas, a sua presença reduzida e isolamento físico indiciam a incompletude do domínio colonial, mesmo já no pós-II Guerra Mundial. A estes elementos aditar-se-á a falta de enraizamento local dos quadros administrativos coloniais (derivado da sua constante mudança de local de trabalho e de residência), o que dificultava a interacção cultural e social, potenciando o afastamento étnico e os sentimentos de estranheza, insegurança e vulnerabilidade.

9Um mês após chegar a Vila Nova do Seles, nasceu a primeira filha de Maria. A casa onde viviam estava em más condições. Por causa da bebé, mudaram-se para outra (a destinada ao aspirante continuava por concluir), mas também esta não era boa. Ficava nos arrabaldes da vila, no lugar de Quaxaper. Aí viveram cerca de um ano. Os vizinhos, negros e alguns mestiços, eram seus amigos e sentiu-se lá bem.

10Numa noite uma menina negra que brincava com a filha e dormia lá em casa foi atacada por quissonde, uma formiga carnívora capaz de matar pessoas quando em muita quantidade. O marido não conseguiu matar as formigas com DDT. Era uma praga. Só uma vizinha africana, queimando uns arbustos e borracha, as conseguiu afastar. Noutra ocasião, a salalé deu cabo do estojo da barba do marido. Estas formigas eram também um alimento muito apreciado pelos indígenas, que as apanhavam para comer com funge durante o cacimbo, mas Maria nunca as chegou a provar. Aquilo que era um perigo e uma vulnerabilidade para a cultura branca colona era facilmente neutralizado pela cultura do Outro.

11Um ano depois nasceu a segunda filha. Era uma noite de chuva. A casa ficou destelhada e a bebé adoeceu. O médico disse que não podia fazer nada. No mesmo dia, foi visitá-la uma velha mestiça, que curou a menina com milongo. Novamente, a mão do Outro, aplacando a fragilidade colona.

12Em Novembro, o marido foi designado chefe de Posto de Vila Arriaga (Bibala, distrito de Moçâmedes). Os vizinhos, na despedida, ofereceram-lhes um almoço de comidas africanas. Maria ainda não tinha provado calulú, muamba e outros pratos carregados de jindungo, de que gostou muito.

13Quinze dias depois foi concedida guia de marcha ao marido para seguir para Bibala. Foram numa camioneta de carga, primeiro até Quilengues, e daí até Nova Lisboa. Em Nova Lisboa tomaram o comboio até Sá da Bandeira, onde estiveram três dias à espera de seguir até Bibala. O comboio era muito vagaroso, havia muitas curvas e a viagem era cansativa.

14A Bibala era uma pequena vila, com apenas um hotel sem condições, algumas casas comerciais e uma escola, com um professor primário. Não tinha médico nem enfermeiro, só disponíveis a muitos quilómetros de distância, em Moçâmedes. Os nativos dali falavam outra língua e Maria não os entendia. O rapaz que tinha levado de Vila Nova do Seles também não os compreendia e chorava : « Pediu-nos muito para o levarmos connosco e depois era tudo muito estranho para ele. Arranjei uma lavadeira de lá que sabia alguma coisa de português. Então, pedi-lhe que ensinasse o rapaz » (p. 13). Um aspecto central da cultura colona (a língua de comunicação) era transmitido por uma outra mulher (nativa) que já tinha essa competência linguística, demonstrando a importância dos mediadores e do elo feminino no espaço doméstico.

15Um homem que trabalhava nos fornos de cal e que só ia à vila aos fins-de-semana ofereceu-lhes parte da sua casa, sem cobrar renda. Aquela terra estava próxima do deserto de Moçâmedes, sendo fustigada por um vento contínuo com areia fininha, até c. das três horas da tarde. A casa não estava forrada e a areia entrava por toda a parte. Maria conta que « punha por cima das camas um lençol estendido e, antes de [se deitarem], sacudia no quintal aquela mistura de terra e folhas de eucalipto » (idem). A filha mais nova estava sempre com pó nos olhos e nos ouvidos. Aos poucos, foi-se adaptando ao novo lugar, com um misto de estranheza (usa a palavra « esquisito ») e curiosidade :

« Aquela terra tinha os seus encantos. Às vezes, apareciam homens e mulheres que vinham de longe, dos matos, com a cara e o peito pintados com desenhos a branco e preto e de brincos no nariz. As tintas eram feitas pelos próprios, com pau de tacula moído » (p. 15).

A experiência do isolamento

16O isolamento e a pobreza agrícola da Bibala reflectiam-se na escassez de bens de consumo e no seu elevado custo. Se em Vila Nova do Seles as bananas eram de graça, ali custava cinco tostões a unidade. A riqueza da região residia no gado. Qualquer nativo tinha muitas cabeças. Mas os comerciantes portugueses ludibriavam os nativos para lhes ficarem com o gado. Em vez de lhes venderem os seus produtos a dinheiro, faziam transacções com base na permuta :

« A permuta era feita com gado. Levavam um boi e amarravam-no à porta da loja. Entravam e diziam que traziam o boi. Compravam óleo, sal, feijão, fuba, vinho, que até já estava composto com água, mais uns panos para a mulher e búzios para os colares. Tudo aquilo não valia, nem de longe, a cabeça de gado que estava lá amarrada […]. Havia lá um comerciante rico que exportava gado. Esse fazia assim : o freguês comprava vários artigos para o que levava dois bois. Ele ia-lhe impingindo quinquilharias à mistura com uns copos de vinho que o punham alegre e, no momento certo, logo mandava buscar outro boi porque aqueles já não chegavam para pagar. Não deixava levar as compras. Uma exploração ! » (p. 14-15).

  • 6 Vd. Medeiros 1976 : 500-504. Aquando da sua futura estadia em Cariango (Quibala), Maria falará dos (...)

17Nem todos os comerciantes eram desonestos e deve reconhecer-se o papel pioneiro que desempenharam, precedendo, em muitos casos, o dispositivo administrativo e estabelecendo relações de entreajuda com os indígenas6.

18Maria estava quase habituada àquele ambiente quando surgiu uma nova transferência do marido, para o Posto do Gungo (concelho de Novo Redondo, distrito de Cuanza Sul). Chegaram em Dezembro de 1948. Mais uma vez, foram habitar uma casa em más condições : as janelas não tinham vidros, as portas não tinham fechaduras, os tectos não tinham forro. Também este era um lugar muito isolado. Só havia a casa deles e a do enfermeiro. Por falta de assistência médica, perdeu um filho nesta povoação. O contacto com outros brancos era muito esporádico e passageiro, quase tão espaçado no tempo como as notícias da metrópole :

« Só passava lá algum carro, quando vinham a umas casas comerciais que ficavam a oito quilómetros da nossa casa […]. O meu marido mandava um estafeta levar o correio a Novo Redondo e, só passados dez ou quinze dias, é que ele regressava. […] Quando regressava ao Posto, chegava com muito correio. Muitos jornais da Metrópole e muita correspondência da família, que, às vezes, me alegrava e outras me entristecia » (p. 17).

19O marido falava com outros colegas com um aparelho de transmissões, mas um dia uma faísca duma trovoada destruiu a instalação e ficaram mais isolados. Daí que situações insignificantes servissem para interromper a monotonia :

« Os dias eram sempre iguais. Quando se ouvia um ruído de um carro, para mim era um dia diferente. Alguém que vinha à secretaria tratar de assuntos com o chefe. Logo que as pessoas fossem embora, esperava que o meu marido contasse as novidades. Só que às vezes vinham buscá-lo para resolver problemas administrativos e andava por longe alguns dias. Eu ficava só, com as minhas filhas pequeninas » (p. 17).

20O isolamento provocava-lhe um sentimento de insegurança e de medo, aguçava-lhe os sentidos e estreitava a sua relação com a lavadeira nativa, que dormia com ela no seu quarto (a seu pedido), na ausência do marido, e a acalmava : « Senhora ! Ninguém faz mal ! Eles [os indígenas, lá fora] estão bêbados mas o barulho é com eles ! » (p. 17).

21Tal som era percepcionado como algo negativo por incapacidade de compreensão do contexto sócio-cultural em que era produzido, enquadrando-se na definição de ruído proposta por Bailey, socialmente gerador de desordem (1996 : [49]-50). Essa incompreensão, por sua vez, causava insegurança pessoal perante o meio envolvente e só era aplacada com o amparo e descodificação por um membro da outra etnia mas do mesmo sexo com quem convivia mais proximamente, domesticamente. A ordem do mundo era ciclicamente refeita, com o auxílio do Outro, e com a cumplicidade de género. Mas nem sempre aquilo que poderia ser ruído para muitos dos seus conterrâneos o era para Maria : assim, o som do motor anunciando a aproximação dum automóvel era recebido com alegria, pois trazia novidade e quebrava o isolamento rotineiro em que vivia. Neste caso, representava um elo de ligação ao mundo.

22O desconhecimento da aparência de alguns animais selvagens protegia-a de grandes sustos, apesar do perigo potencial. Certa ocasião, ia com as filhas para uma horta que cultivava na baixa dum rio e cruzou-se com um animal semelhante a um gato grande. Só à noite, em conversa com o marido, soube que se tratava duma onça.

23Recorda que no interior de Angola perdia com facilidade a noção do tempo (do calendário gregoriano, melhor dizendo). Sabia quando era domingo e feriado por nesses dias, à porta do posto administrativo ou da sede da administração da circunscrição ou do concelho, se hastear a bandeira nacional, às oito da manhã. Mas aconteceu algumas vezes, os funcionários administrativos só à tarde se lembrarem disso. O tempo alterava-se ; à noção moderna do tempo ocidental (mecânico e burguês) e colonialista juntava-se uma outra, potenciada pelo ambiente envolvente, pelo isolamento físico e social e pelas dificuldades logísticas, que introduzia cortes na ordem oficial.

Reciprocidade e dependência

24Segundo Maria, o Gungo era uma terra pobre, mas, desde a chegada do marido, terá melhorado. Ele mandava distribuir sementes de milho e feijão para os nativos semearem. Aquando da colheita teriam que devolver o milho entregue e mais um quilo. O seu marido tê-los-á ensinado a trabalhar a terra e ganhou muito prestígio entre os indígenas. Por toda a área do Posto, havia roças : culturas de café, explorações de óleo de palma e de algodão. Também havia uma fazenda de sisal.

25Mas a reciprocidade não era invulgar, e Maria recorda com agrado uma situação especial, um almoço ofertado pelo Soba Matos Rita (de Cambinda, Gungo) à sua família :

« O primeiro prato era calulu de peixe seco e pirão com muito gindungo [piripiri]. Depois, a tal caldeirada de cambele, um pequeno antílope. […] Tudo muito saboroso. Também havia batata doce assada, ginguba [amendoim] torrada, bagas de dendém [espécie de palmeira] cozidas com açúcar. Acabou-se de comer era quase noite » (p. 27).

26O mundo dos sentidos, sobretudo dos sabores e odores (mas também da audição musical e da visão das danças e trajes), aproximava assim pessoas de distintas culturas, integrando-se a diferença pela partilha, à refeição, na festa, etc..

27Por vezes, Maria e as filhas acompanhavam o marido no trabalho de recenseamento indígena, percorrendo os vários sobados e ficando alojadas nos acampamentos. Certa ocasião, um branco veio de tipóia (espécie de liteira de rede transportada ao ombro por indígenas) avisar o marido que os brancos duma roça daquela área não deixavam os nativos tirar água do rio nem queriam deixar o gado deles beber. O chefe teve que ir resolver o assunto. Foi de capapula, uma cadeira levada aos ombros dos nativos, e, em partes do caminho, a pé.

28A propósito de desmandos de colonos contra as populações locais, alude também à expropriação de terrenos e à violência do contrato. O marido da sua lavadeira tinha uma lavra de café e palmar. Como tinha mais de trezentos pés de café, estava isento do contrato. Quando o marido foi transferido para outro Posto, « Levaram o Fazenda [marido da lavadeira] para o contrato, uma forma legalizada de escravatura. Invejas, porque ele tinha uma lavra boa que dava café e óleo de palma, perto da roça de um branco que tentava apoderar-se da lavra. E conseguiu » (p. 42).

29A dádiva do Outro, o seu auxílio e saber medicinal, não chegou para salvar um dos seus recém-nascidos, mas salvou-lhe a própria vida nessa mesma ocasião, no fim do mundo :

« Uma mulher, que era curandeira na sanzala, disse-me : "Senhora, estás com muito frio. Vou fazer aqui dentro lume. Ficas já melhor e faço também água de galinha. Nós, pretos, fazemos assim. Fiquei comovida. Os pretos foram amigos. Passei lá a noite e, se não fossem eles, eu morria como o meu bebé" » (p. 39).

30A reciprocidade ajudou-a a integrar-se e a relacionar-se com o Outro :

« Eu tinha uma lavadeira [no Gungo] já bastante velhinha a quem, às vezes, dava uma canequinha de vinho e ela dizia-me : "Muito obrigada, senhora ! Esta canequinha de vinho fez-me bem ao coração. […]" Era uma mulher muito simpática e muito minha amiga. Ensinou-me a viver em Angola e a língua deles. Dizia-me como era que eu devia tratar os da raça dela » (p. 41).

31Ambos os relatos mostram como a solidariedade feminina, feita de cumplicidade de género (em contexto doméstico ou em situações específicas da vida duma mulher como as « complicações pós-parto »), mas também de altruísmo, generosidade e troca, foram essenciais para a reconstrução identitária, para a vivência e mesmo para a sobrevivência da narradora.

32Em Novembro de 1950, deu à luz outro filho. Desta vez, em Luanda, onde estavam de passagem a caminho do Zaire. O marido fora nomeado para chefe de Posto da Pedra do Feitiço, na fronteira com o Congo Belga. Chegaram a Santo António do Zaire, por barco, no dealbar de 1951. A casa em Pedra do Feitiço era razoável e o local aprazível. Da janela da sua casa, Maria via os hipopótamos a brincar no rio. Outros episódios relacionados com vários bichos são recordados (jacarés, jibóias, pacaças, hienas, onças, lacraus e borboletas). Comenta que, devido ao calor, ali não se davam hortaliças e legumes. Já camarão, lagostins e peixe fresco havia em abundância. Porém, a maior parte do peixe sabia a lodo, só o peixe prata era bom. Para passar o tempo, a autora tinha uma lavra de cultura de ananás. Servia para fazer refresco e uma espécie de vinho espumante.

  • 7 Corrente religiosa de pendor messiânico, fundada por Simão Gonçalves Toco no final dos anos 1940 do (...)

33Maria afirma que os negros daquela região eram muito supersticiosos e faziam muitos feitiços. Refere-se também à penetração do tocoísmo7 e à sua perseguição pelas autoridades portuguesas e belgas.

34Embora não entre em detalhes, percebe-se que o marido não aprovava o comportamento do seu superior hierárquico e, para não arranjar problemas sérios com o Intendente, pediu ao médico que lhe marcasse uma Junta Médica em Luanda. Esta passou-lhe uma licença graciosa na metrópole. Aí ficaram entre Novembro de 1951 e Maio de 1952.

35De regresso a Angola, o marido foi nomeado para o Posto do Cariango, concelho da Quibala (Cuanza Sul). Foram de comboio até ao Dondo e depois de machimbombo [camioneta]. O Estado pagava trezentos kg de bagagem, o resto era por conta do funcionário. Maria, a inventivas do marido, procurava sempre ater-se aos haveres essenciais.

36A Quibala era uma vila pequena, mas com bom clima. Tinha algumas lojas de comércio, um hotel, a administração do concelho e um hospital (com um médico, um enfermeiro e alguns auxiliares). Pouco mais havia. Era um ponto de passagem para Nova Lisboa. As quatro casas comerciais de Cariango faziam permuta com os nativos. Recebiam milho, feijão, amendoim, cera e macoca [derivado da mandioca] ; vendiam panos, vinho, fuba, azeite de palma e peixe seco. A casa atribuída ao seu marido não tinha qualidade : sem vidros nas janelas, sem fechadura nas portas (trancavam-se com um pau à noite), sem forro nos tectos e o pavimento com ladrilhos de barro.

37Também aqui, Maria fez uma horta. Além disso, tinha galinhas, patos e alguns perus. Lá não se vendia carne de vaca ou de porco. De vez em quando, um caçador trazia um veado ou um nunce [espécie de antílope grande]. A caça miúda e grossa era abundante. O Estado dava cartuchos gratuitos aos caçadores, mas o que caçava para o posto recebia mais.

  • 8 Esta situação contrasta com a definida por Hunt (2005) para o Congo belga entre 1920-1959, onde uma (...)

38A dada altura, os três filhos ficaram doentes. Os sintomas eram visíveis : a urina muito escura e a pele amarela. O médico de Quibala receitou-lhes quinino mas não deu resultado. O seu cozinheiro indígena, de seu nome Capitão, é que os tratou com uma infusão de raízes de brutudo e de casca de muzamba. Mas muitas outras pessoas e maleitas eram tratadas pela medicina tradicional autóctone, revelando as limitações da medicina colonial – a falta de preparação dos médicos coloniais, a debilidade das estruturas de saúde pública, a falta de medicamentos, etc.8.

Luanda : o choque com a grande cidade

39No início de 1953, a filha mais velha tinha seis anos e devia iniciar os estudos escolares. Como por ali não havia nenhuma escola, Maria começou a ensinar as filhas a ler, uma prática que já tinha exercido informalmente na metrópole, e que tinha beneficiado pessoas da sua comunidade. O marido decidiu ir a Luanda pedir transferência para um posto onde houvesse escola primária, mas só arranjou colocação na administração civil local. Quando foi ter com ele, Maria levava os filhos e uma rapariga mulata de Cariango para a ajudar. Como a rapariga ia descalça (na povoação não havia onde comprar calçado), no comboio o revisor não a deixou ir ao pé dos brancos. Teve que ir para uma carruagem de 3ª classe, onde seguia uma leva de indígenas contratados. A segregação étnica persistia, por via doutros pretextos e implicando uma dupla segregação, étnica e económica.

40Em Luanda o custo de vida era muito elevado. O seu marido recebia um subsídio de renda de casa de setencentos escudos, mas a casa que conseguiu arrendar custava dois mil escudos. O ordenado era de seis mil escudos e só com dificuldade dava para cobrir as despesas. As suas filhas foram para o Colégio João das Regras. Depois de transitarem de classe foram para a escola Anchieta : uma para a 2ª e outra para a 3ª classes. Mas Maria não gostava da grande cidade, sentia-se uma estranha.

41Em 1955, o marido pediu transferência para o Posto Administrativo do Ritondo. A treze quilómetros, na cidade de Malanje, havia oferta escolar. Como era longe, perigoso ir a pé e sem transportes, as filhas ficaram internadas num colégio católico.

42No Natal de 1955, foi buscar as filhas ao colégio. Foi de boleia, como de costume ; o marido recusou-se a ir porque tinha pouca gasolina e esta era do Estado, ao contrário de « tantos [colegas] que se não importavam com esses pormenores » (p. 87). Além disso, estava para chegar um contingente de pessoal repatriado (contratados que regressavam à terra deles no fim do contrato), e ele tinha que estar presente para assistir ao pagamento. Eram cento e tal homens que iam receber o salário no posto e pagar o imposto.

43Nessa ocasião, e devido à dificuldade em arranjar boleia para si e suas duas filhas, Maria desesperou : « Já ando há dez anos por estas terras e cada vez tenho mais dificuldades na vida ! » (p. 88).

44No Ritondo, Maria vivia muito isolada. A casa era boa, mas não tinha a companhia das filhas, nem vizinhos ou sanzalas por perto. Apenas a chegada do Outro rompia essa espécie de clausura interna em que viviam :

« O que se via de manhã era o que se via à noite. Só se quebrava a monotonia quando chegavam as camionetas com o pessoal que vinha do contrato. Vinham a cantar. Isso, para mim, já era uma novidade » (p. 89).

O apaziguamento no hinterland de Benguela

45Em meados de 1956 o marido foi transferido para Dombe Grande, onde havia mais meios e escola oficial para as filhas. Maria considera que aquela terra, situada « numa baixa de vegetação luxuriante, na margem do rio Coporolo, entre morros escalvados, com clima semi-árido », era uma bênção divina (p. 90). Isto porque dispunha dum hospital, que pertencia à Companhia do Açúcar de Angola, com um médico muito competente, um enfermeiro branco, alguns enfermeiros mestiços e uma parteira. A Companhia tinha uma povoação, cuja entrada ficava a cem metros da casa do chefe do Posto e da área comercial do Dombe. Na povoação havia nove casas comerciais, um talho, um hotel e uma padaria. Vendia-se de tudo, até medicamentos. Também havia uma escola primária com boas professoras e uma igreja com dois padres (um branco e outro negro). A diferença de nível de vida relativamente à generalidade das povoações do interior de Angola era evidente :

« O pessoal da empresa tinha comodidades desconhecidas em todo o interior de Angola. A povoação do Dombe não tinha luz eléctrica mas, na empresa, havia-a. Quando o médico queria, dava ordem para a luz ficar ligada a noite toda. Senão, ficava só até às 11 horas da noite. Havia cinema todos os sábados ou vésperas de feriados. Era num telheiro, coberto a capim, com bancos de madeira corridos. Nós íamos sempre ao cinema de graça, bem como toda a gente do Dombe, pretos ou brancos, mesmo que viessem de fora. […] Aquela terra era muito movimentada » (p. 91).

46No Dombe, o chefe de Posto tinha melhores condições de trabalho. O posto abarcava um território muito extenso – ia até ao Mamué, pelo interior da mata da anhara e selva, e pelo litoral até à Baía-Farta, a oito km de Benguela –, mas dispunha dum jipe ainda novo.

47Maria conta que lhes foi atribuída uma casa grande e muito razoável. Ficava no meio dum pomar de mangueiras. Mais de duzentos de todas as qualidades. Também havia goiabeiras, jambos, bananeiras de muitas espécies. Enfim, era uma terra rica e a fruta tanta que se estragava. Dava fruta a muita gente, fazia compotas e frutas cristalizadas. O marido fez uma plantação de laranjeiras e limoeiros porque lá não havia. Também semeou fruta-pinhas, sape-sapes e abacaxis. Quando saíram de lá, já estava tudo a começar a dar fruto. A casa tinha rede a toda a volta, nas janelas e varandas porque os mosquitos eram demais. Os lacraus também eram abundantes. Por isso, andavam sempre com sapatos fechados e desinfectavam os sapatos e o chão com creolina, porque o cheiro afastava os lacraus (p. 92-93).

48Ao lavar os pés nas valas que conduziam a água para regar a cana do açúcar, Maria apanhou bilharziose. Esta é a única atitude relatada em que Maria contraria as regras de higiene colonial ministradas aos colonos (Castelo 2005 : cap. VI). Neste passo da sua narrativa, aproveita para descrever outras doenças « muito esquisitas » com que tomou contacto no Dombe (a filária, « bitacaias », etc. ; p. 94).

49Apesar dos insectos e das doenças, foi no Dombe que mais gostou de viver. Tinha os filhos por perto. Afirma que todos os habitantes eram seus amigos, brancos e pretos. Semanalmente, dispunha de quatro mulheres, enviadas pelo soba, para irem buscar água à nascente. Sem evidenciar qualquer espírito crítico sobre a situação, afirma que lhes dava comida porque queria : « Este pessoal vinha cumprir a obrigação e já traziam comida, diziam os sobas » (p. 100).

50Entretinha-se com a sua horta e a sua criação. Fazia farinha torrada de mandioca. Com a goma, aproveitava para passar a ferro os bordados e as rendas. Também fazia farinha para cozinhar pirão. Aprendeu muitas receitas (e a secagem da carne) com os seus cozinheiros negros e outras inventou por necessidade.

51O facto de ser um território mais rico, menos isolado (sobretudo socialmente) e da família de Maria aí ter residido « muito tempo » (idem), permitiu-lhe um dos momentos de maior estabilidade e felicidade na sua vida. Apesar dessa maior permanência (dez anos) não aprendeu a falar a língua local, ambundo, tendo que comunicar gestualmente com muitos dos autóctones (por exemplo, com as aguadeiras), pois grande parte destes não dominava o idioma oficial.

52As pretensas vantagens desse território, aliás, seriam visíveis para as várias comunidades étnicas ; salienta que os indígenas da região não passavam fome e eram felizes :

« Os pretos colocavam visgo à volta do muro do quintal e bastavam alguns minutos, esperando que os pássaros pousassem que os apanhavam aos trinta ou cinquenta pássaros para comer. Naquelas terras, era fácil arranjarem alimentação. O visgo tirava-se duma árvore que estava por lá perto. Os pássaros eram sem número. Aquela gente não passava fome. Viviam bem. Era frequente terem uma boa lavra em que cultivavam milho e mandioca, que era a base do sustento. Também semeavam amendoim e batata doce. Viviam felizes. Faziam muitas festas e muitos batuques » (p. 112).

53Em 1958, as filhas foram para Benguela, para estudarem no liceu. A cidade distava sessenta e cinco quilómetros, mas as acessibilidades eram péssimas, e a viagem podia ser uma aventura, perigosa e muito demorada. No início de 1959, nasceu-lhe o último filho. Finalmente, estava numa terra com boa assistência médica, coisa rara em Angola. Ainda assim, faltavam postos sanitários e escolas, lacunas referidas pelo seu marido aquando da visita do governador distrital de Benguela, Sá Viana Rebelo, em 1958. Em Agosto de 1960, houve festa na igreja da Missão de São Francisco, dentro da Companhia do Açúcar. « Veio o Bispo e foi uma festa que nem em Portugal » (p. 109). Os filhos foram crismados e a « criada » Helena foi baptizada, sendo aqueles os seus padrinhos, costume corrente no meio rural da metrópole. À tarde, realizou-se uma partida de futebol. O contacto com autoridades superiores era raro e só as de estatuto intermédio eram acessíveis.

54Por motivos de saúde, o marido foi de licença à metrópole. Maria e os filhos acompanharam-no. As filhas foram transferidas para o Liceu da Póvoa do Varzim e o filho para a escola primária de Vila do Conde. Ficaram seis meses, mas estavam sempre doentes, por causa do frio. No regresso, por grande sorte, voltaram ao Dombe Grande. Maria levou sementes de Portugal e a sua horta fazia inveja a muita gente (p. 110). Tinha também muita criação. Uma vez um lussengue (lagarto grande, parecido com o jacaré mas com uma pele mais fininha) comeu-lhe um leitão.

55Quando o terceiro filho entrou no liceu, a autora montou casa em Benguela e foi viver para lá. Nos feriados iam visitar o marido ao Dombe. Refere que Benguela era « encantadora », uma « cidade-jardim », muito bonita e com tudo o necessário (p. 114). Os filhos iam para o liceu de bicicleta. Tinham tudo à mão. Havia muito peixe fresco. Na nova casa, plantou muitas árvores e flores. O filho mais novo brincava com o filho da lavadeira. Embora fosse uma grande urbe, Benguela não lembrava os maus tempos passados em Luanda.

A guerra colonial e a descolonização

56Residiam ainda no Dombe Grande quando souberam das « horríveis matanças no Norte de Angola », ou seja, dos ataques da UPA de Março de 1961 (p. 148). Refere o caso duma família branca que já ia na quarta geração natural do Ambrizete e que ficou sem nada, na miséria, com a fazenda de café toda destruída. Já em Benguela, correu o boato de que a água do reservatório teria sido envenenada. « Andavam todos, brancos e negros, sobressaltados e as mulheres e as crianças que tinham meios financeiros iam para Portugal » (p. 149). Noutra ocasião correu o boato dum assalto iminente a Benguela. Ordenou-se, então, o recolher obrigatório a partir das vinte e uma horas. A sua família foi dormir na casa duma vizinha ; e os adultos ficaram de guarda, com armas. A autora tinha o treino da defesa civil. Nada ocorreu. Finalmente, os boatos cessaram. O senhorio que tinha ido para Lisboa, vendeu-lhes a casa apesar deles não terem dinheiro suficiente (pagaram-na a prestações mensais). Venderam a casa de Vila do Conde para acabarem de pagar a de Benguela, onde queriam ficar.

57Em 1966, o marido teve de enfrentar um colono de Moçâmedes que se tinha apoderado ilegalmente duma cacimba em Mamué e que proibia o gado dos nativos daí beber água (p. 122-123). Era cúmplice daquele o governador de Moçâmedes.

58Entretanto, o marido adoeceu, tendo ficado nove meses na metrópole para recuperar. Quando voltou foi transferido para o Posto do Cassai, no concelho de Nova Chaves, na Lunda. Ficou desapontado, porque queria voltar para o concelho de Benguela, onde residiam a mulher e os filhos (excepto a filha mais velha, que já estava na universidade, em Luanda). A autora acompanhou o marido com o filho mais novo. Os outros dois ficaram a estudar em Benguela.

59A viagem foi muito dura, a estrada do Luso até Saurimo, Vila Henrique de Carvalho, estava toda esburacada. Ali o calor era muito e as trovoadas também. Todas as casas, até as cubatas dos nativos, tinham pára-raios. De Vila Henrique de Carvalho seguiram até Nova Chaves. Toda a viagem, de Benguela a Nova Chaves, durou quinze dias. De Nova Chaves até ao Posto Administrativo do Cassai (a quinze quilómetros da fronteira do Catanga) havia muitas árvores de fruto espontâneas. A estrada era péssima e ficaram atolados. Chegaram na segunda quinzena de Janeiro de 1967. A casa de habitação era boa e tinha algumas comodidades. Ia-se buscar água a três quilómetros. Era um lugar muito isolado. Só havia uma casa comercial e estava quase sempre fechada. A população era diminuta e vivia em grande atraso quando comparada com a do litoral. O posto sanitário tinha um enfermeiro mestiço que estava sempre bêbado : bebia o álcool da farmácia. O automóvel do Posto estava muito velho. Pontualmente, iam às compras a Teixeira de Sousa, mas era perigoso porque no caminho havia leões e o carro por vezes avariava-se. Era uma cidade pequena, embora bem abastecida, via caminho-de-ferro de Benguela e pela fronteira do Catanga. A Companhia de Diamantes, que ficava relativamente próxima, originava muito movimento.

60É só nesses finais da década de 1960 que Maria faz a primeira referência a problemas criados pela tropa portuguesa e que a autoridade administrativa foi chamada a resolver. A tropa matou um boi dos nativos e comeu a carne no quartel. O chefe do Posto exigiu que pagassem o boi e assim foi (p. 133). Fora o elemento estranho da tropa, a entreajuda era muito praticada, por necessidade : « Naquelas terras por onde eu andei, toda a gente se ajudava uns aos outros. Pretos, brancos ou mestiços, éramos uma família » (p. 141).

61Entretanto, o marido foi promovido a Adjunto de Administrador do Concelho e colocado no concelho de Nova Gaia, no distrito de Malanje. A autora gostou da viagem, pelas paisagens e pelos animais que viu na estrada, incluindo « pássaros lindíssimos » (p. 143). A nova casa era relativamente boa, tinha água corrente e luz eléctrica das sete às vinte e três horas. O clima era benéfico. Na vila, havia um hospital, só com um enfermeiro e dois auxiliares, mas podia-se contar com o médico da tropa. Tinha ainda duas escolas primárias, uma oficial e outra duma missão. Do alto onde ficava a vila, via-se uma grande lagoa e uma densa floresta.

62Viveram quatro anos em Nova Gaia. Na escola, o filho mais novo era o único branco :

« Quando vinha da escola, trazia com ele dois colegas pretos com quem ele se dava muito bem. Fizeram fisgas e iam à caça dos pássaros por perto. Depois, os outros dois miúdos deixaram de andar na escola e foram trabalhar nos campos de arroz da família » (p. 153).

63O filho mais novo foi para Luanda, para o liceu. Os filhos só iam a Nova Gaia nas férias. A filha mais velha tinha ingressado na Faculdade de Medicina de Lisboa. Faziam sacrifícios para ter os filhos a estudar, revelando a insuficiência do salário estatal e a importância dada ao capital escolar no seio da família nuclear. Porém, Maria nunca sentiu necessidade de estudar mais do que o que tinha estudado, embora as filhas já se tivessem libertado duma certa discriminação de género existente até à sua geração, que levava uma grande parte das mulheres portuguesas (tanto na metrópole como no ultramar ou na diáspora) a terem capitais escolares muito inferiores aos dos homens.

64Maria acompanhava o marido quando ele ia fiscalizar os mercados de arroz. Procurava inteirar-se dos assuntos da administração e contactar com as populações, mas as constantes transferências do marido prejudicavam a sua adaptação :

« Pelas minhas andanças por Angola, conheci muitos brancos, mulatos e pretos. Com estes eram mais difícil o contacto, dado que eu não sabia a língua deles. Quando já estava a compreender alguma coisa, lá vinha uma transferência e logo eu ficava sem saber nada. Porque cada tribo tinha um dialecto diferente » (p. 158).

  • 9 Sobre o « luso-ecumemismo » como ideia estrutural do colonialismo português e a apropriação selecti (...)

65Ou seja, a racionalidade político-administrativa e a aproximação sócio-cultural entre distintas etnias e entre colonizador e colonizado então já tão apregoadas oficialmente são desmentidas pelo relato directo da narradora9. É que as constantes mudanças dos funcionários dos escalões inferiores e intermédios da administração colonial acabava por dificultar o seu conhecimento das comunidades locais.

66Além do mais, Maria diz que a maioria dos seus empregados queria ir com ela quando o marido era transferido para outro posto. Ensinava as empregadas a ler, escrever, a costurar e a fazer renda e malha (p. 158-159 e sq). Maria não se limitava a promover a chamada educação feminina, promovia premeditadamente o capital cultural dos que habitavam o seu espaço doméstico, demonstrando como este podia ser um espaço que permitia uma certa ascensão social dos membros das outras comunidades, ainda que a troco de muito serviço laboral prestado. Todavia, o seu relato dá a entender que a maioria dos colonos não agiria do mesmo modo, ou então que a narradora e o seu marido estabeleciam uma grande empatia pessoal com muitos colonizados com quem se relacionavam mais proximamente (p. 157 e sq).

Sobre os militares tecia novos comentários recriminatórios :

« Chegaram rumores de que havia terroristas na região. Era longe, mas as pessoas ficaram sobressaltadas. Uma companhia militar permanecia na vila para nos defender, mas não se podia confiar neles, porque muitas vezes os soldados provocavam os nativos. Acontecia que roubavam cabras e galinhas que levavam para o quartel. Comiam-nas e não as pagavam. Faziam as festanças deles ! Outras vezes, iam às sanzalas e abusavam das mulheres. Choviam queixas dos pretos na Administração. […] Algumas vezes, os soldados, em vez de manterem a ordem, faziam a desordem. […] Rara era a semana em que não aparecessem queixas ou denúncias dos nativos » (p. 163-164).

67O marido, farto de aturar tanta indisciplina, pediu licença graciosa. Embarcaram para a metrópole em Agosto de 1969.

68A recusa de certos abusos sobre os colonizados são indícios de que Maria e o marido, embora partilhando uma mesma cultura colona genérica, recusavam certas atitudes por acharem indignas e aviltantes das relações humanas e sociais.

69Entretanto, a filha acabara o curso de Medicina ; e o benjamim fora internado num colégio em Guimarães para poder frequentar o liceu, mas chorava porque não queria continuar ali (no início de 1970, transferiu-se para o Liceu Salvador Correia, em Luanda). Na sua saudade, o filho fazia o percurso inverso da mãe. Pouco depois, seguiram Maria e o marido. Voltaram de avião, pela primeira vez. « Não gostei muito mas era o Estado que mandava e pagava » (p. 165). Em Luanda ficaram em casa dos filhos, uma casa pequena que tinham arrendado para estes aí puderem estudar.

70O marido foi colocado em Nharea, distrito do Bié. Aquela terra era « bonita e boa », com um clima « agradável », não abrasador (idem). Os legumes e as hortaliças tinham um preço módico ; ainda assim, Maria fez uma horta com a ajuda dum homem a quem pagava um salário mensal de oitenta escudos. Tinha um apartamento grande que o Estado tinha arrendado para eles por dois mil e quinhentos por mês. O prédio era muito grande, com armazéns e lojas dos donos do prédio, que moravam nos outros apartamentos. Eram três irmãos muito ricos, de apelido Avelino, com negócios na África do Sul, na República do Zaire, na Rodésia, etc. :

« Eram angariadores de pessoal. Daquela área saía muito pessoal para ir trabalhar em empresas noutros distritos. Angariavam o pessoal e faziam-lhes o contrato na Administração. Depois de tudo legalizado, transportavam-nos em camionetas para as fazendas de café ou então para a Diamang. Ganhavam muito dinheiro neste tráfico » (p. 166).

71Também iam buscar os trabalhadores quando estes eram repatriados, passando novamente na Administração, onde recebiam o salário e o vestuário como era de lei : um casaco, um calção, uma camisa e um cobertor. Os sobados deles distavam muitos quilómetros. Entretanto, iam ficando em Vila de Nharea a gastar dinheiro nas lojas dos Avelinos (e noutras, que compravam a estes para revender), que arranjavam maneira de lhes ficar com o dinheiro todo. Era um círculo vicioso.

72Maria gostava de viver naquela terra, embora fosse isolada. Era muito calma e não se ouvia falar em « terroristas » (p. 169). Em 1971, foi nomeada secretária do MNF (Movimento Nacional Feminino). Não era cargo com que « simpatizasse », mas acedeu. No Natal desse ano, o MNF organizou aí uma Ceia do Soldado e ajudou a Cruz Vermelha a ofertar prendas e guloseimas aos soldados (p. 169-170).

73Reproduzindo relatos doutros colonos, Maria reiterava que a caça era reduzida nesse território devido à acção pretérita dos Boers, « uns selvagens brancos [sic], descendentes de holandeses, que a dizimaram » (p. 171). O preconceito abundava e não poupava comunidades, nem mesmo outras ditas « brancas ».

74Na derradeira transferência, o marido foi destacado para a Administração do concelho de Conda, na província do Cuanza Sul. Distava 50 quilómetros da Gabela e 522 de Luanda. A vila situava-se a novecentos metros de altitude e beneficiava dum clima ameno. Detinha um posto sanitário, uma igreja, quatro casas comerciais, doze fazendas agrícolas e outros pequenos agricultores europeus. Havia café, óleo de palma e cereais. Não dispunha de escola oficial, mas tinha missões religiosas e umas afamadas águas quentes termais. A estrada até à Gabela era perigosa, no tempo de chuva não se podia transitar.

75O marido gostava daquela terra. Começava a pensar na reforma, que pretendia passar ali, em vez de voltar para Portugal. Planeou arranjar uma chitaca » [exploração agrícola] para se entreter, e com o dinheiro da reforma talvez pudesse suportar os custos do curso superior para o benjamim. Porém, em Janeiro de 1973, teve uma trombose e não resistiu (a falta de socorro imediato também o prejudicou).

76Maria ficou a viver em Luanda, junto da Igreja da Sagrada Família, perto dos filhos (o mais novo, ainda estudante, os seguintes : engenheiro de minas e professora, casada com um bancário) e das netas. Nunca gostara da capital de Angola, mas reconhecia que, entretanto, se tornara uma cidade linda, com « belas construções » e jardins públicos « cheios de flores » e assentos à sombra de palmeiras, casuarinas e acácias (p. 184).

  • 10 Pires mostra-nos que, em geral, a integração dos « retornados » na sociedade portuguesa se fez com (...)

77No final de 1974, começaram a registar-se distúrbios à volta de Luanda e, logo depois, dentro da cidade. Lutas entre facções do movimento de libertação nacional angolano. A confusão era muita. Não havia segurança. O genro pediu-lhe que fosse para Portugal com as netas. Acedeu. Trinta anos depois, voltava a viver em Paços de Ferreira, recomeçando quase do nada e com muita pena de deixar Angola10. O itinerário da saudade invertera-se.

Recomeços e identidade reconstruída

78Maria chegou a Angola num ano « charneira », com o movimento de passageiros entre a metrópole e a colónia em alta. Em 1945 terão desembarcado em Angola 3 558 passageiros naturais da metrópole (Castelo 2005 : apêndice, quadro A7). Os anos seguintes seriam de acentuada e progressiva expansão da migração ultramarina, devido às altas cotações dos géneros coloniais e ao crescimento económico verificado durante a IIa Guerra Mundial.

79No trinténio em que Maria viveu em Angola, a população branca conheceu um acentuado aumento, devido ao saldo fisiológico e, sobretudo, à entrada de novos migrantes oriundos da metrópole (Castelo 2005: caps. IV e V). Dos 44 083 Brancos de 1940, passa-se para 78 826 em 1950, 172 529 em 1960 e 280 101 em 1970.

80A distribuição da população branca de Angola por sexos denotava uma preponderância masculina, ainda que a evolução tendesse para o equilíbrio : em 1940, aquela população era constituída maioritariamente por homens (26 694 para 17 389 mulheres, ou 60,55 % e 39,44 %) e entre os naturais da metrópole a taxa de masculinidade ainda era mais elevada : 16 023 homens (68,91 %) e apenas 7 229 mulheres (31,08 %) ; em 1950, dos 78 826 Brancos, 58,14 % eram do sexo masculino e 41,85 % do feminino, e, entre os 41 249 naturais da metrópole, havia 64,79 % varões e 35,20 % fêmeas ; em 1960, existiam 68 538 homens brancos naturais da metrópole (58,21 %) e 49 189 mulheres da mesma origem (41,78 %). Não dispomos de dados para 1970, mas olhando para a estrutura por sexos da população repatriada, constatamos que na recta final do colonialismo português o predomínio masculino se esbateu, ficando-se pelos 53 % (Pires 2003 : 208).

  • 11 Também nas colónias britânicas em África, as mulheres dos funcionários administrativos não eram sup (...)

81Maria possuiria apenas o ensino primário, à semelhança da maioria dos migrantes portugueses para Angola de meados do século. Tal como a generalidade das mulheres europeias casadas com funcionários administrativos colocados no interior de África, ocupava-se na direcção dos serviços domésticos e no cuidado dos filhos, embora também se dedicasse aos trabalhos de mãos e ao cultivo da sua horta11.

  • 12 A migração feminina para as colónias de povoamento branco foi vista como um meio de estabilizar e r (...)

82O seu discurso interioriza a ideologia oficial e reproduz a retórica sobre o papel da mulher branca nas colónias, submissa e atenta às necessidades do marido e da família, alheada da vida pública e concentrada no mundo doméstico, indispensável na procriação e reforço da presença branca, adversa à mistura inter-étnica, agente de civilização e exemplo para os indígenas12. Apresenta algumas variantes : a capacidade de criar laços afectivos com pessoas doutras culturas e comunidades étnicas, a importância dada ao estudo (sobretudo para os seus filhos, mas também um pouco para os seus empregados domésticos) e ao ensino de certas competências manuais (para os seus empregados domésticos).

83Ao longo de trinta anos, percorreu o interior de Angola « duma ponta à outra » (ao invés da maioria dos colonos portugueses, que se concentrava nos principais centros urbanos, quase todos litorais) : viveu em doze povoações e em duas cidades, espalhadas por diferentes distritos do litoral, do Sul, do Norte e do interior. Acompanhou o marido em duas licenças graciosas e numa deslocação por motivos de saúde à metrópole. A significativa itinerância (por transferência laboral do marido) possibilitou um aumento das experiências pessoais, ao mesmo tempo que dificultou o enraizamento comunitário. A cíclica errância seria apenas propiciadora de relações circunstanciais e superficiais ; contudo, Maria, através dos vínculos que estabelecia com pessoas doutras etnias no seu espaço doméstico, tentava um prolongamento e aprofundamento desses laços, não só a nível afectivo mas também de trocas simbólicas (capital escolar por serviço laboral e certos conhecimentos da Outra cultura).

84Embora rico, o universo de relações de Maria estava quase exclusivamente circunscrito ao espaço doméstico. Todavia, a centralidade do espaço doméstico na sua vida não se deve em exclusivo a uma dependência da ideologia sobre o papel da mulher branca na sociedade colonial, remete também para opções familiares e para constrangimentos vários : os modestos proventos financeiros do seu agregado familiar, o isolamento que dificultava a vida cívica e pública, etc.

85A frequente mudança de residência e de território sócio-cultural também potenciavam uma certa insegurança ontológica. Esta insegurança ontológica foi uma condição central da sua vivência e demonstrava até que ponto não era natural dessa terra, até que ponto a adaptação foi difícil e dificultada pelo imperativo de constantes readaptações.

86O isolamento, o desconhecimento do meio envolvente e das línguas nativas, faziam com que a insegurança e o desconforto aumentassem. Muitas vezes, a brutalidade dos colonos ou das autoridades administrativas, sobretudo dos oriundos das classes mais desfavorecidas, não seria mais do que uma reacção ao medo. Frequentemente, apoderava-se dos migrantes portugueses um sentimento de superioridade perante populações que consideravam inferiores, e em relação às quais sentiam que podiam compensar as frustrações, humilhações e injustiças sofridas na metrópole (Medeiros 1976 : 298).

  • 13 Barbara Bush refere que a relação das mulheres brancas com os seus criados negros estava eivada de (...)

87Maria apercebeu-se da exploração comercial dos indígenas, da expropriação de terras, da injustiça do contrato, da discriminação a que os indígenas estavam sujeitos no comboio, mas não questionou o uso da tipóia ou a tangata e relevou, nalguns momentos, um certo paternalismo (a título de exemplo, veja-se a forma como lidou com um cozinheiro negro que bebia, às escondidas, o vinho dos patrões. Gomes 1998 : 159)13.

88Embora a sua família tivesse um estatuto social relevante no contexto das comunidades por onde passou (conferido pelo cargo de administrativo colonial do marido), a sua maior distinção sobre os restantes colonos passava por um distinto relacionamento com o Outro, que era pontualmente correspondido, apesar da assimetria estrutural das relações inter-étnicas. A existência de diferentes tipos de colonos, de diferentes tipos de interacção entre colonos e populações indígenas remete para o « carácter multifacetado, negociado e caleidoscópico das relações entre africanos e europeus » na África colonial (Gengenbach 2002 : 20).

89Na imagem que nos dá dos nativos sobressai negativamente o alcoolismo (pois provocava situações que sentia ameaçadoras), e positivamente a segurança que lhe davam em certos contextos, o domínio duma medicina tradicional, a culinária local e a lealdade. As percepções negativas estavam eivadas de preconceitos e de medos relativamente aos negros, ao clima, às doenças, às feras e a usos e costumes indígenas que colidiam com a moral cristã. Positivamente percepcionava a exuberância da paisagem, a novidade da fauna e da flora, a eficácia dos « milongos », os cheiros e aromas de frutos e comidas, a dedicação dum criado, « pequenos nadas » que quebravam a monotonia dos dias.

90Da sua história apercebemo-nos das dificuldades e da falta de recursos dos funcionários administrativos do interior de Angola, ao nível da habitação, de comodidades, dos transportes, dos bens de consumo, do acesso à saúde e à educação para os filhos, até muito tarde no século xx (o surto de desenvolvimento só ocorreu, de facto, depois do início da guerra colonial, em 1961). Episódios e situações vividos pela autora ou que lhe foram transmitidos pelo marido revelam as limitações do domínio colonial português em Angola, sem, porém, que tal acarretasse um menor grau de exploração e opressão colonialista.

91A memória da sua história de vida valoriza mais o elemento feminino do que o masculino. Além de se centrar na sua experiência existencial e sensorial, deixa o marido quase na penumbra (especialmente quanto às afinidades, aos afectos, ao erotismo e à intimidade ; e do qual não sabemos o nome próprio), excepto nas referências profissionais e numa ou noutra situação doméstica. Os corpos são des-erotizados, são mesmo perigosos quando se trata do corpo do Outro supostamente alcoolizado (no contexto do convívio com uso de bebidas alcoólicas). Sensorialmente os corpos só existem na mediação com a vida animal, vegetal e com o clima e a paisagem. Em geral, o elemento masculino parece pertencer a um outro mundo, separado, tal como apartadas estão as classes sociais e as comunidades étnicas. Apenas o espaço doméstico parece conseguir aproximar o que a polis separa, mas aí a selecção dos interlocutores é um exclusivo da subjectividade da narradora.

92Sem particular mestria literária, Maria fornece-nos uma narrativa povoada de paisagens, bichos, árvores, perigos e medos, mas em que a experiência do recomeço se sobrepõe a qualquer cenário de aventura ou exótico. A cada transferência do marido, Maria arruma as malas como deve ser (só leva o estritamente útil). No momento da partida, ecoam as festas de despedida que os vizinhos organizavam. À chegada, as dificuldades iniciais de adaptação ; a necessidade de recriar um espaço de identificação pessoal, a horta, que era, simultaneamente, um espaço cultural, no sentido mais etimológico, mas também afectivo, de lazer e de recriação do mundo rural português.

93Importa reter que, inerentes à extrema mobilidade que caracteriza a sua vida, estão complexos processos de desintegração na comunidade de partida e inserção nos novos espaços sociais de chegada (sobre este assunto vd. Pires 2003 : 58-59).

94O relato de Maria é pontuado por alguns lugares-comuns e estereótipos sobre a vida dum europeu em África ; porém, também nele entrevemos como, através da experiência concreta da interacção com os outros e o meio envolvente, reconstruiu a sua identidade e uma nova visão da Angola colonial. Uma Angola para onde foi viver numa fase em que o impulso aventureiro e romântico da autora (e do seu marido) tinha que se subjugar ao modelo nacionalista e imperial do colono. Modelo este que o marido, enquanto quadro administrativo colonial (e a narradora enquanto sua esposa), se via compelido a reproduzir melhor do que os restantes membros da comunidade, por dever institucional e, em certos casos, por sentido ético ou cívico.

95Lisboa, 17 de Outubro de 2005

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Notes

1 Vd., nomeadamente, Clarence-Smith 1979, Penvenne 1993, Freudenthal 1995-1999, Isaacman 1996, Neto 1997, Henriques 1999, Covane 2001.

2 A estranheza, o isolamento, a insegurança relativa e a adversidade estão omnipresentes nos relatos dos colonos (além do presente caso, vd., por exemplo, Ivo 1991 : 5 e sq, Martins 1998 : 3-4 e sq, Raposo 1926 : [35]-38 e sq). A vulnerabilidade, em parte induzida por aqueles sentimentos (mas também pelo enquadramento colonialista e pela condição existencial) é um termo proposto originalmente por Ann Laura Stoler 2002 : 10) e desenvolvido por Roque 2004. Os próprios guias de colonos, surgidos na sequência do temor da perda do Império com o Ultimato inglês de 1890, são, em grande parte, uma resposta implícita a esses problemas, tentando funcionar como neutralizadores do desconhecido e do perigo (Castelo 2005 : cap. VI). Sobre a sublimação da estranheza por via associativa, vd. Melo 2005.

3 Quanto à questão da construção social do género vd. Almeida et al. 1996.

4 A noção de cultura adoptada é tributária da antropologia cultural : referimo-nos a atitudes, crenças, pensamentos, códigos de comportamento em constante reconfiguração, que não existem fora dos indivíduos e das suas relações. Não se trata de algo reificado, mas antes dinâmico e processual (Ginzburg 1987).

5 Vd. Gomes 1998. A perspectiva da autora sobre os factos que narra vale por si, enquanto exercício de recordação e de posição perante o vivido, e é com essa perspectiva que nos propomos trabalhar.

6 Vd. Medeiros 1976 : 500-504. Aquando da sua futura estadia em Cariango (Quibala), Maria falará dos comerciantes que compravam a produção agrícola dos nativos, entrevendo-se um relacionamento com vantagens recíprocas.

7 Corrente religiosa de pendor messiânico, fundada por Simão Gonçalves Toco no final dos anos 1940 do século xx. O « profeta » Toco seria preso pela PIDE em 1949, e encarcerado no campo de concentração de São Nicolau (Moçâmedes). Os bacongos, seus seguidores emigrados no Congo Belga criaram, em 1956, a Aliazo (Aliança do povo zombo), movimento que se converteria no PDA (Partido democrático de Angola), em 1962. Um messianismo similar esteve na origem da UPA (União dos povos de Angola).

8 Esta situação contrasta com a definida por Hunt (2005) para o Congo belga entre 1920-1959, onde uma crescente « medicalização da maternidade » reforçou a intromissão oficial na esfera privada das mulheres colonas e das « evoluídas » (indígenas assimiladas), contributo relevante para a « maternalização » do projecto colonial. Tal tendência surgiu como resposta a um contexto de declínio populacional (doenças, infertilidade, diminuição da natalidade ligada ao trabalho forçado, etc.) primo-novecentista, à recusa da mestiçagem e da poligamia e às necessidades laborais da indústria, quadro este inexistente em Angola. O contraste deriva também duma maior densidade da ocupação administrativa colonial no Congo belga (Young 2005). Ainda assim, e recuperando Hunt, em ambas as colónias, persistiram as terapêuticas locais e tentou impor-se a circunscrição do papel feminino ao espaço privado, doméstico.

9 Sobre o « luso-ecumemismo » como ideia estrutural do colonialismo português e a apropriação selectiva do luso-tropicalismo pelo Estado Novo português vd. Castelo 1999 e 2005.

10 Pires mostra-nos que, em geral, a integração dos « retornados » na sociedade portuguesa se fez com celeridade e êxito (2003).

11 Também nas colónias britânicas em África, as mulheres dos funcionários administrativos não eram suposto exercer uma actividade profissional remunerada. Permaneciam financeiramente dependentes dos maridos. Em oposição, as restantes mulheres colonas viam-se a elas próprias como pioneiras, partilhando o trabalho árduo com os maridos. Desenvolveram uma forte ligação aos lares que criaram e foram pró-activas defensoras da maneira de viver colona (Bush 2004 : 92).

12 A migração feminina para as colónias de povoamento branco foi vista como um meio de estabilizar e reforçar as sociedades colonas. As mulheres brancas eram consideradas um elemento crucial do prestígio branco, pois tornavam o império respeitável (através do casamento e da vigilância sobre a sexualidade masculina branca) e civilizado – eram as guardiãs da moral e da higiene e saúde físicas, garantiam a disciplina racial, a uniformidade de comportamentos, a normalidade e a ordem (Bush 2004 : 86-87 e 90-91).

13 Barbara Bush refere que a relação das mulheres brancas com os seus criados negros estava eivada de um racismo paternalista. A infantilização dos criados negros seria uma estratégia para os inferiorizar e neutralizar a sua masculinidade e sexualidade (2004 : 96).

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Table des illustrations

Titre Lugares citados e de residência da família do chefe de posto
Crédits Fonte : Gomes 1998 : [197].
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/docannexe/image/1476/img-1.png
Fichier image/png, 274k
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Pour citer cet article

Référence papier

Cláudia Castelo et Daniel Melo, « Autobiografia da Angola colonial »Lusotopie, XIII(1) | 2006, 95-115.

Référence électronique

Cláudia Castelo et Daniel Melo, « Autobiografia da Angola colonial »Lusotopie [En ligne], XIII(1) | 2006, mis en ligne le 10 avril 2016, consulté le 16 mai 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1476 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01301007

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Auteurs

Cláudia Castelo

Instituto de Ciências socais da Universidade de Lisboa (ICS-UL)

Daniel Melo

Instituto de Ciências socais da Universidade de Lisboa (ICS-UL)

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Droits d’auteur

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