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Accent : Le politique par le bas

Os sentidos da violência e a educação dos sentidos

Gênero, corpo e violência em Timor-Leste independente
Senses of Violence and the Education of Senses:
Gender, Body and Violence in the Independent East Timor
Sens de la violence et éducation des sens :
Genre, corps et violence à Timor-Leste indépendant
Daniel Schroeter Simião
p. 155-172

Résumés

La lutte contre  la violence domestique à Timor-Leste a chaque fois plus été l’objet d’initiatives du gouvernement, de la coopération internationale et des organisations locales de la société civile. Ce texte analyse leur impact sur les représentations locales de la violence, en mettant en évidence quelques dilemmes de la modernisation du pays, manifestes dans les conflits entre différentes significations de la violence, du corps et du genre. En même temps que l’on parle de conflits privés, incarnés dans les corps et les relations entre particuliers, les contradictions du processus de lutte contre la violence domestique parlent, elles, de changements en cours dans la société timoraise en général, dans les notions du droit, de la justice et de l’individu.

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Texte intégral

  • Este texto é resultado de parte de minha pesquisa de doutoramento, para a qual contei com bolsa de (...)
  • 1 Sobre os massacres de Bali e sua relação com os jogos políticos da época ver Robinson 1995. Sobre o (...)

1Quando se fala em violência em Timor-Leste, pensa-se de imediato na violência política que marcou os vinte e quatro anos de ocupação indonésia e no banho de sangue que encerrou este período em 1999. A história política recente do sudeste asiático insular está marcada por exemplos deste tipo de violência. Na Indonésia ainda se tenta entender os massacres de Bali em 1965 e 1966 e a violência entre aldeias de Celebes, de 1998 a 20001. Estes casos contribuem para a pintura de um cenário em que violência, política e religião parecem se articular intimamente, fazendo da violência uma forma de linguagem comum entre as culturas locais. É este cenário que alimenta o imaginário de muitos expatriados em Dili, por exemplo, que costumam comentar, nas mesas dos bares e restaurantes, o quanto os timorenses, mesmo sendo um povo ordeiro, podem, de um momento a outro, perder totalmente a razão e comportarem-se como bárbaros violentos e cruéis.

  • 2 Recentemente um colega que regressava de sua pesquisa de campo em Java Ocidental contou-me que um f (...)

2De fato aquilo que tendemos a chamar de violência e adjetivar negativamente no imaginário moderno ocidental ganha um outro estatuto em algumas situações do sudeste asiático2. O uso de comportamentos agressivos e a prática da punição corporal são, de várias maneiras, encorajados como formas de socialização. Estas marcas positivas da violência, menos do que sinais de um povo « bárbaro e imprevisível », devem ser entendidas como expressões de diferentes formas de compreensão do corpo e de sua função socializadora. Esta relação pode não estar muito clara nas explosões ocasionais de violência, como os acontecimentos de 1999, mas fica bastante evidente em um tipo de violência que se reproduz quotidianamente nas relações interpessoais : a chamada « violência doméstica ».

3A violência entre pais e filhos e, especialmente, entre cônjuges inscreve-se em corpos marcados por gênero e por geração. Estudar a violência doméstica em Timor-Leste nos leva a ver com mais detalhes os conflitos entre diferentes sentidos de violência, de corporalidade e mesmo de gênero. É também este tipo de violência, ligada de modo menos evidente à história recente de Timor, que vem ganhando espaço na cena política contemporânea daquele país. À medida que os conflitos políticos se estabilizam e institucionalizam-se, os surtos de violência deixam de ser o tema das preocupações públicas e a violência doméstica ganha espaço nas campanhas e programas do governo, da cooperação internacional e das organizações da sociedade civil em Timor-Leste.

4Neste texto, resultado de material produzido ao longo de um ano de pesquisa de campo em Timor-Leste, exploro o encontro entre um conjunto de ações do poder público e da sociedade civil, preocupados em combater aquilo que chamam de « violência doméstica » em Timor-Leste, com algumas formas locais de viver e pensar sobre o corpo e a violência. Começo por indicar o que já se sabe sobre a violência doméstica em Timor-Leste e suas relações com modos de ver e pensar sobre corpo, família e educação. Em seguida enfoco algumas das políticas públicas que o Estado timorense e organizações da sociedade civil vêm implementando no sentido de criar uma sensibilidade contrária à violência doméstica no país. Ao chocar-se com muitos dos saberes locais sobre corpo e gênero, estas políticas criam reações curiosas, de oposição e síntese, expressivas da dialética da modernização naquele país. Entender melhor como estes choques operam é uma forma de lançar luzes sobre dilemas mais gerais da recriação do Estado em Timor-Leste.

Abreviações
Apec, Asian Pacific Economic Cooperation, Cooperação econômica Ásia-Pacífico
Asean, Association of Southeast Asian Nations, Associação das Nações do Sudeste asiático
Cedaw, Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres
Fnuap, Fundo das Nações Unidas para a População
GPI,
Gabinete para a Promoção da Igualdade
IRC, International Rescue Committee, Comité internacional de socorro
OCAA, Oxfam Comunity Aid Abroad (Oxfam Australia)
OMT, Organização da mulher timorense

ONGs, Organizações não-governamentais
ONU, Organização das Nações Unidas
OPMT, Organização popular da mulher timorense
Oxfam, Oxford Committee for Famine Relief, Comité de Oxford contra a Fome
PNTL, Polícia Nacional de Timor-Leste

Unicef, United Nations Children's Fund, Fundo das Nações Unidas para a infância
UNPOL, United Nations Police, Polícia das Nações Unidas
Untaet, United Nations Transitional Administration in East Timor, Administração de transição das Nações Unidas em Timor-Leste
UPV, Unidade de Pessoas Vulneráveis (da PNTL)
Yayasan HAK, Yayasan Hukum, hak Asasi, dan Keadilan, Associação Lei, Direito e Justiça

Uma perspectiva histórica : a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

5A atenção às diferenças de gênero no território timorense é um fenómeno bastante recente. Entre os documentos produzidos no período português (relatórios da administração colonial, conferências e estudos) poucas são as referências às desigualdades de gênero. Em um estudo de 1942 sobre o trabalho dos indígenas de Timor, Álvaro da Fontoura (1942), ao se referir às « várias modalidades do trabalho dos indígenas », faz apenas uma breve menção a um recorte de gênero quando diz :

« As mulheres indígenas muitas vezes acompanham os maridos e pais nos trabalhos agrícolas, mas também os acompanham na sua imprevidência, arrastando vida miserável. Habilidosas como os homens, são elas que mais trabalham na tecelagem, principalmente na zona Oeste da colónia, e quando educadas nas escolas missionárias, aprendem fàcilmente trabalhos de costura e bordados e principalmente os artísticos trabalhos de "desfiados", que são apreciadíssimos. » (Fontoura : 31).

6Dois anos mais tarde, em um estudo sobre os aldeamentos indígenas, José Martinho (1945) acentua as cores de uma certa divisão sexual do trabalho. Referindo-se à efemeridade de suas plantações :

« A horta não se faz, ou dela não se colhe o produto suficiente. Não possuem um pé de café, um coqueiro ou um animal doméstico de valor. […] Enquanto o pai busca a sombra da palmeira que lhe dará, com o mínimo de trabalho, alguns copos de "Tua Akal" [o vinho de palma], a mulher andrajosa e os pequenos nus colhem, pelo mato, algumas raízes e, na horta, degenerada batata doce que engana o estômago vazio » (Martinho : 17).

7São, pois, referências à uma divisão de trabalhos que indicam as mulheres em posições de produção, mas não constituem isso em denúncia ou objeto de crítica, a não ser dentro dos limites dos preconceitos próprios da época.

8Um olhar mais atento para tais diferenças surge, a partir da segunda metade do século xx, quando Portugal envia sua « missão antropológica a Timor ». Os estudos, então capitaneados por Antônio de Almeida, mudam o foco da antropologia feita até então em Timor – da medição de crânios e classificação de raças para a ênfase em questões como a onomástica tabu, cultura material, etnozoologia e etnobotânica.

9É nas últimas três décadas do século xx, contudo, que as etnografias dos grupos étnicos do então Timor Português se inscrevem em um conjunto regional mais amplo, organizado em dois tipos de sociedade : um mais igualitário em termos de gênero e outro marcado por dualismos estruturais. No primeiro tipo, característico do chamado « arquipélago centrista » (península malaia, Kalimantan, Java, Celebes, Mindanao, as Visayas, Luzon e outras ilhas das Filipinas), o acesso a espaços de poder tende a estar localizado, na teoria local, não no nível das características marcadas por gênero intrínsecas à « pessoa », mas nas práticas sociais (Atkinson 1990 : 88). Este princípio parece se inverter na região que Errington (1990) chama de « arquipélago da troca » (a Indonésia Oriental e partes de Sumatra). Nesta região, todo o sistema de trocas matrimoniais está fortemente ancorado em distinções entre masculino e feminino e na prescrição para que a mulher deixe sua casa natal de modo a casar com homens que não sejam seus irmãos. Aqui, a construção dos sistemas simbólicos por pares de oposição deixa sua marca na elaboração cultural das diferenças de gênero.

10Assim, ao contrário da aparente igualdade de gênero entre muitos povos da região, nos grupos étnicos timorenses as diferenças de gênero prestam-se a um sistema dualista de organização social, fato observado por etnografias como as de Clamagirand (1980) sobre os Kemak, de Shepard Forman (1980) sobre os Makassae, de Claudine Friedberg (1980) sobre os Bunak ou de Elizabeth Traube (1986) sobre os Mambai.

11A atenção à violência interpessoal como um fenómeno marcado por gênero – e traduzido pelo conceito de « violência doméstica » – contudo, é algo muito mais recente. Embora organizações locais já venham, desde os anos 1990, atuando no sentido de evidenciar situações de violência às quais as mulheres timorenses estavam sujeitas, especialmente em função da resistência à ocupação indonésia, é com o processo de transição para a independência e com a presença das missões das Nações Unidas, que um universo de valores e instituições pautadas pela igualdade de gênero entra na vida política timorense.

12Com as recentes missões das Nações Unidas, uma parcela da elite local foi chamada a mobilizar e coordenar outros atores de um campo em formação. Jovens educadas em universidades em Bali ou Java aglutinaram-se, na última década, em torno de organizações locais voltadas à defesa e promoção dos direitos humanos, como Fokupers e Yayasan HAK (Associação Lei Direito e Justiça). Outras, apoiadas por projetos específicos de institutos e ONGs internacionais, organizaram-se em torno de temas pontuais, como a Caucus (Women's Caucus in Politics), em torno da participação das mulheres na política, e a Feto Foin Sa'e, em torno da participação juvenil). Mulheres que desempenhavam nas aldeias papéis de liderança local, em função de seu pertencimento a casas de chefia, organizaram-se, durante o período de resistência à ocupação indonésia, em torno de organizações altamente capilarizadas, mas sem nenhuma profissionalização, como a OPMT e a OMT. Ao lado destas organizações, ONGs internacionais como a Oxfam-GB, OCAA e IRC desenvolviam, com equipes mistas de funcionários locais e estrangeiros, projetos pontuais na área de gênero e desenvolvimento.

13Por este processo, uma geração de timorenses que se envolveram com um projeto nacional desde o fim do período português e agregaram, a partir daí, discursos fundados nos valores da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, passa a dialogar com atores transnacionais como a ONU e grandes ONGs e com parcelas de uma juventude urbana engajada em um projeto modernizante. É por meio deste diálogo que se vem construindo um discurso específico sobre as categorias de gênero, igualdade e justiça, organizado em torno do combate de um fenómeno categorizado como « violência doméstica ».

Violência doméstica em Timor-Leste : o que pensamos saber

  • 3 A Polícia Nacional de Timor-Leste foi formalmente instituída em maio de 2002, com a restauração da (...)
  • 4 Em 2001, segundo relatório da PNTL, de um total de 4 917 ocorrências, 382 foram de violência domést (...)

14Entre os atendimentos feitos pela PNTL, os casos de violência doméstica ocupavam o quinto lugar em 20013, representando 8 % das ocorrências em todo o país. No ano seguinte esta participação praticamente dobrou, chegando a 15 % e empatando com « furto » no segundo lugar do ranking de ocorrências policiais4.

  • 5 Timor-Leste possui apenas quatro tribunais de justiça em todo o país, o que torna difícil o acesso (...)

15Tanto a polícia quanto as organizações de mulheres em Timor reconhecem, porém, que as queixas que chegam a ser registradas são apenas uma pequena parte dos casos que poderiam ser classificados como « violência doméstica » (Untaet 2002 ; GPI 2003). Isto ocorre tanto porque a maior parte dos conflitos tende a ser resolvida por mecanismos tradicionais de mediação e justiça5 quanto pelo fato de que muitas mulheres não vêem a agressão física como ofensa a algum direito (por exemplo, à integridade física) e, portanto, como motivo de queixa.

16Conhecer a situação da violência doméstica em Timor-Leste exige, portanto, dar um passo atrás em relação às estatísticas. Antes de buscar a incidência deste tipo de violência é preciso observar o que se define, localmente, como tal : que percepções existem sobre o ato de agressão interpessoal e como isto se relaciona com os sentidos de justiça. Algumas pesquisas conduzidas por organizações não governamentais (ONGs) nos últimos quatro anos trazem dados importantes sobre este aspecto.

A violência em si não é um problema

  • 6 Um lia na’in de Dili relatou-me um exemplo deste tipo de atitude em relação a um caso de conflito e (...)

17No relatório final de uma pesquisa qualitativa sobre justiça tradicional que ouviu em profundidade relatos de 25 mulheres que passaram por experiências variadas de violência doméstica, o IRC aponta uma particularidade das formas tradicionais de adjudicação. Segundo o texto, « um administrador de justiça resolve os casos focando nos eventos que ocorreram antes do ato de violência. Seja quem for que seja visto como culpado durante aquele período será então culpado pela violência […] poderá ser o acusado, a vítima ou ambos » (IRC 2003b : 3). A preocupação de um lia na’in, o operador da justiça tradicional, ao ouvir os relatos das partes é a de recuperar as atitudes anteriores à agressão e colocá-las em seu contexto original, buscando entender quem provocou o quê até chegar ao ato de agressão em si6. Assim, o agressor não é, de antemão, culpado pelo gesto de violência.

  • 7 Sobre a noção de sensibilidade jurídica e de como ela constitui diferentes sentidos de justiça em d (...)

18Tal atitude das formas locais de justiça é criticada no relatório do IRC por nelas não se utilizar o princípio, orientador da justiça de Estado, de que a violência doméstica é crime independentemente de seu motivo. Assim, enquanto para o direito positivo uma determinada atitude de violência é sempre condenável, para a sensibilidade jurídica de grande parte das aldeias timorenses uma atitude violenta não é em si motivo para condenar alguém7. Se para a justiça de Estado « vítima » e « agressor » são duas categorias fixas e opostas, isso não acontece necessariamente nos processos alternativos de resolução de disputas. Em lugar de um sistema classificatório dual (vítima X agressor), os operadores destas formas locais de justiça utilizam um sistema de ao menos quatro categorias (agredido X agressor – vítima X culpado) em que, a depender do histórico do relacionamento entre as partes, o culpado pode ser o agredido.

  • 8 A questão de como um gesto pode ser tornado como ofensa diz muito a respeito das sensibilidades jur (...)
  • 9 Vários autores recuperam o sentido da justiça tradicional timorense como um ritual de reposição da (...)

19Entre outras coisas, isto nos diz que, para muitas aldeias, o ato de violência não tem em si uma conotação negativa, não se constituindo em problema para o grupo. Agredir não é uma ofensa por si só, mas pode, se colocada no contexto adequado, ser até mesmo um dever de quem agride8. Na recuperação do contexto da agressão, o que é visto como problema passa a ser a ruptura de uma ordem anterior9. Aquele que for responsável pelo rompimento desta ordem (e que pode ter, com isso, levado alguém a uma reação violenta) é quem será considerado culpado.

20A violência passa assim a ser vista como mecanismo de reposição da ordem no domínio das relações interpessoais. Pode ser, portanto, uma ferramenta legitimada socialmente para regular relações na comunidade e seu uso legítimo está longe de ser visto como monopólio do Estado.

Violência e gênero : visões do corpo

21Outra pesquisa, conduzida por uma ONG australiana com grupos focais em todos os subdistritos do Distrito de Covalima e da qual tive a oportunidade de participar, traz informações importantes sobre como a lógica da violência justificada opera em conjunto com algumas representações de gênero naquele distrito (OCAA, 2003).

22Em dois dos subdistritos os grupos focais foram unânimes em concordar que « um homem pode bater em sua mulher para ensiná-la » (mane bele baku nia fe’en atu hanorin nia fe’en). Na média geral do Distrito esta frase chegou a 50 % de aceitação, tanto entre homens quanto entre mulheres. Esta tendência é confirmada por outra pesquisa, um survey estatístico realizado entre outubro de 2002 e fevereiro de 2003 com mulheres de todo o país (IRC 2003a). Segundo o survey, 84 % das mulheres concordam que casos de violência doméstica são assunto para ser resolvido dentro da família, e 51 % consideram que um marido tem o direito de bater em sua esposa se esta o desobedecer.

  • 10 Exemplos de malcomportamento das mulheres estão geralmente relacionados ao não cumprimento das tare (...)

23O relatório da pesquisa em Covalima afirma ainda que « em geral, tanto homens quanto mulheres tendem a considerar certas formas de agressão como normais e, por conseqüência, não vêem tais formas de agressão como situação de risco, mas como parte normal de um relacionamento. » (OCAA, 2003: 12). As formas geralmente aceitas de agressão estão relacionadas à punição (física ou não) como forma de castigar um malcomportamento anterior, visto como inadequado10. As mulheres participantes da pesquisa enfatizaram que não aceitam uma agressão gratuita, mas a análise do contexto que gerou a agressão pode resultar na validação do gesto. Neste sentido, também as mulheres costumam castigar seus maridos, rasgando suas roupas ao lavá-las ou propositadamente errando a mão na hora de preparar uma refeição.

  • 11 Uma senhora que entrevistei no tribunal distrital de Dili e que havia sofrido agressão física forte (...)

24O grau de tolerância para com o que seria uma agressão justificada costuma estar relacionada a excessos visíveis no corpo. Agressões que resultem em sangramento ou seqüelas físicas visíveis tendem a ser menos toleradas11. A agressão ao corpo, de certa forma, só é percebida como violência injustificável caso materialize-se em marcas sensíveis que extrapolam certos limites. Esta sensibilidade relativa para com a integridade do corpo também é evidenciada na pesquisa de Covalima. Ao indagar sobre os riscos de sucessivas gestações para as mulheres – estas costumam ter em média 7,5 filhos (Unicef 2002 : xi), mas é comum encontrarmos famílias de até 12 irmãos – a pesquisa revela que os participantes não fazem necessariamente a ligação entre a atividade reprodutiva e a saúde do corpo. O risco de uma mulher ter muitos filhos está em não conseguir completar o serviço doméstico por ter que cuidar das crianças, o que justificaria uma agressão por parte do marido.

  • 12 Algumas professoras portuguesas que, a serviço da missão portuguesa em Timor, atuaram durante vário (...)

25O saber médico que na modernidade ocidental construiu uma sensibilização para os cuidados com o corpo como condição para o bem-estar físico e mental parece não operar em muitas aldeias de Timor. O corpo e seus sentidos parecem ter, mais do que um papel para o bem-estar individual, uma função na socialização da pessoa. É pelo castigo corporal que se educa. Isto é evidente nos relatos acerca da notória utilização de violência física nas escolas timorenses12. O que chamaríamos de violência doméstica não está, portanto, apenas relacionado à posição das mulheres na estrutura familiar, mas a certas concepções sobre a punição corporal como forma de educação e à educação do corpo como um instrumento a serviço da produção de subjetividades.

Gênero e diversidade étnica

26Se é verdade que a violência contra mulheres não se orienta apenas por uma questão de gênero, por outro lado a posição das mulheres na estrutura familiar e a referência a uma « cultura patriarcal » são argumentos constantemente evocados nos discursos e práticas de ONGs e governo acerca da violência doméstica (Untaet 2002). Algumas observações devem ser feitas com relação a estes argumentos. Falar da posição das mulheres na estrutura familiar é complicado por vários motivos. Do ponto de vista analítico, várias autoras já indicaram que não há muita utilidade em falar em uma posição de sujeito fixada por uma identidade de gênero, uma vez que na dinâmica das relações sociais os sujeitos não estão congelados em identidades fixas (de gênero ou outras), mas articulam identidades variadas, evocadas situacional e relacionalmente (Butler 1990 ; Costa 1994). No caso timorense, em função da diversidade étnica da ilha, criar uma abstração aplicável a todo o país é tão ilusório quanto inútil. Mesmo em Covalima, um Distrito relativamente pequeno, as situações em que gênero faz alguma diferença nas relações sociais variavam bastante entre os subdistritos conforme predominassem grupos Bunak, matrilineares, ou Tétum e Kemak, patrilineares. Ainda assim, alguns traços gerais da organização social dos grupos timorenses podem ser reconhecidos e relacionados às formas como diferenças de gênero são evocadas para justificar tratamentos diferenciados a homens e mulheres.

  • 13 O número exato de línguas e grupos étnicos em Timor-Leste é motivo de alguma polémica. Sobre isso v (...)

27Timor-Leste possui cerca de 30 grupos étnicos diferentes13. Todos adotam um sistema de descendência unilinear, majoritariamente patrilinear e virilocal – apenas dois são matrilineares (em alguns lugares utilizando-se virilocalidade, em outros a matrilocalidade). O dote (barlaque) existe entre todos estes grupos, mas é especialmente importante entre os grupos patrilineares. Entre estes, o pagamento do barlaque permite ao casal fixar residência entre o grupo do homem. O barlaque, porém, não é condição para que haja o casamento. É comum que jovens casais morem juntos por algum tempo sem o pagamento do barlaque. Mas neste caso, chamado de kaben tama (literalmente « cônjuge entra »), devem morar junto à família da mulher, somente podendo fixar residência própria, junto ao grupo de origem do homem, depois de acertado o pagamento do dote. Isto implica que a jovem esposa é geralmente « estrangeira », recém-chegada em sua nova casa, devendo prestar obediência às mulheres mais velhas do grupo familiar. Alguns vêem nisso um fator de vulnerabilidade da mulher frente ao cônjuge, que, por ter « pago » o dote, sentir-se-ia « dono » da esposa e, portanto, no direito de tratá-la como bem entendesse. Podemos, porém, fazer a interpretação inversa, e dizer que o pagamento do barlaque cria uma rede de proteção à esposa. Por ser um compromisso entre famílias (o dote é pago pela família do noivo à família da noiva), o barlaque enquadra o relacionamento entre cônjuges em um contexto que vai além da díade formada pelo casal, obrigando os cônjuges a reponderem por seu comportamento perante as famílias. A vontade do marido estaria assim limitada por uma obrigação social. O que algumas organizações de mulheres afirmam é que esta seria a intenção original do barlaque, que hoje teria sido corrompida pela primeira interpretação. (GPI 2003a : 15).

28A hierarquia entre gerações é um princípio altamente observado e, certamente, mais importante que as diferenças de gênero no nível doméstico das aldeias. Assim, a mulher mais velha da casa tem um poder considerável sobre homens e mulheres das novas gerações. Em um grupo de mesma geração a mulher mais velha pode usar os serviços de suas irmãs mais jovens para execução das tarefas domésticas enquanto estas não se casarem. Deste modo, embora a jovem esposa tenha, a princípio, um baixo prestígio na casa, à medida que o tempo passa e ela envelhece novas mulheres entram na casa (incluindo as filhas do casal) e assumem a manutenção da rotina doméstica. Não é por acaso que os mercados timorenses costumam estar repletos de mulheres idosas negociando principalmente produtos agrícolas – são elas aquelas que não precisam passar todo o dia envolvidas com as atividades domésticas ou de colheita.

29É neste sentido que nas relações de poder por trás de gestos de violência doméstica, gênero não opera sozinho e, talvez, seja um fator menor diante de outros marcadores, como o geracional. Além disso, embora gênero faça diferença em muitos aspectos da vida social, as diferenças étnicas são muito mais marcantes nas relações quotidianas. A grande diversidade étnica desta metade de ilha produziu uma história de pequenas e grande batalhas e uma tradição de piadas e provérbios que evocam conflitos ente as identidades locais. Assim, não penso que possamos dizer que gênero estabeleça uma diferenciação crucial nos discursos e práticas sociais em Timor-Leste. Isto depende de que aspecto da vida social se está focando.

  • 14 Homens e mulheres participam dos mercados quase que em mesmo número, mas comercializando produtos d (...)

30Nas representações sobre a constituição do corpo, porém, vê-se que gênero é um marcador operante e em alguns casos pode ser base para discriminação e violência. O comércio local, por exemplo, costuma ser visto como uma atividade na qual as mulheres são bem-vindas, desde que não implique grandes deslocamentos14. A preocupação com o deslocamento indica já uma percepção diferenciada sobre a constituição corporal de homens e mulheres. Neste sentido, as mulheres são vistas como não tendo força suficiente para carregar e utilizar armas (a katana) e são, por isso, tidas como vulneráveis nos deslocamentos, não sendo autorizadas a se distanciar de suas aldeias natais.

31Ainda no campo das representações sobre o corpo e a atividade reprodutiva é importante notar que a reprodução é vista como responsabilidade das mulheres – mais do que simples responsabilidade, costuma ser tida como dever. Apesar dos protestos da Igreja, ainda é comum a idéia de que se uma mulher não der filhos ao marido, este está socialmente autorizado a buscar outra esposa. A infertilidade é, assim, sempre um problema da e para a mulher.

As coisas começam a mudar

32O cenário acima é bastante característico das regiões rurais do país, onde vive 76 % da população timorense (Unicef 2002 : vii). O ambiente urbano de Dili, porém, tem trazido constantes desafios para muitas das características descritas acima. Uma história que chegou a meu conhecimento em Dili, em finais de 2002, é bastante expressiva disto. Um timorense, técnico de impressão em uma gráfica local, estava casado havia onze anos e sempre batera em sua mulher. Ela sempre sentira a dor física, mas nunca se incomodara com isso. Até o momento em que pediu a separação. O marido não compreendeu. Não via motivos, afinal aquele vinha sendo o padrão de conduta do seu relacionamento há mais de uma década, e nunca a incomodara. A novidade era que agora a sua mulher trabalhava no escritório local da Cruz Vermelha, junto com vários funcionários estrangeiros. O marido convenceu-se de que os estrangeiros estavam « colocando coisas » na cabeça de sua mulher. Certamente, de algum modo, é isso que aconteceu. A dor física que ela sentiu durante anos agora se somava a uma dor moral. De alguma forma aquela mulher agora se sentia envergonhada por apanhar do marido, e esse novo tipo de dor ela não suportava. Em grande parte por força do convívio com os expatriados, a violência doméstica ganhou um novo significado, motivo de vergonha e humilhação.

  • 15 O movimento de mulheres em Dili conta com dezasseis organizações. Duas ONGs se destacam no atendime (...)

33Mas estas idéias não vêm apenas de funcionários internacionais ou do sistema ONU. Há importantes atores locais agindo para colocar a igualdade de gênero na agenda nacional e dar um novo sentido à violência contra mulheres. Além de diversas ONGs timorenses de defesa dos direitos das mulheres15, o governo possuiu um gabinete de assessoria ao primeiro-ministro para promoção da igualdade de gênero (GPI), posição ocupada por uma ativista do movimento de mulheres timorense, envolvida com esta causa desde 1975.

34O GPI, em projeto conjunto com o Fundo das Nações Unidas para a População (Fnuap) vem, desde 2002, capitaneando uma série de eventos – campanhas, consultas, elaboração de legislação, programas de rádio e televisão – que vão aos poucos consolidando, especialmente no ambiente urbano de Dili, a expressão « violência doméstica » como definidora de uma nova moralidade que torna inaceitável a agressão física dentro da família, especialmente às mulheres. Esta nova moralidade vai também mudando a forma como as pessoas procuram resolver o que passam a considerar uma disputa – ou um conflito a ser resolvido. Esta nova categoria engloba diferentes atitudes que antes tinham também diferentes estatutos localmente. Um exemplo disso é a agressão física entre cônjuges. Em tétum, ela é definida por um verbo reflexivo : baku malu (bater-se, confrontar-se). Isto indica uma percepção da violência em que esta não é praticada por um agressor e sofrida por uma vítima, mas é um ato de desentendimento recíproco, o que faz com que os esforços do mediador tradicional sejam para remediar este desentendimento, mais do que para punir um agressor. Enquanto « baku malu » não caracteriza uma disputa, « violência doméstica » sim. A primeira é desarmonia que precisa ser harmonizada. A segunda, é conflito em que há um lado certo e um errado, e o errado deve ser punido.

35A preocupação em consolidar a ideia de que violência doméstica é crime, independente das motivações do agressor, levou o Gabinete para a Promoção da Igualdade (GPI) a propor uma legislação específica sobre o tema, instituindo o crime de violência doméstica e dando amparo legal para os operadores do direito de Estado. Assim, entre 2002 e 2003 um projeto de lei foi elaborado por um grupo de consultores e ativistas de direitos humanos e uma consulta a nível nacional foi realizada para discutir o projeto com as comunidades locais (GPI 2003b). A proposta de lei resultante deste processo é totalmente orientada por padrões internacionais de direitos humanos e de respeito à igualdade de gênero, preocupando-se em criar mecanismos de suporte à vítima e reeducação dos agressores. Além da nova legislação, GPI e Fnuap desenvolveram, em conjunto com a Procuradoria Geral de Timor-Leste, um manual de procedimentos para a ação dos procuradores públicos nos casos de violência doméstica (Guia… 2003).

36Se estas ações visavam fortalecer a ação dos operadores de direito nos tribunais timorenses, por outro lado o Fnuap e o Gabinete para promoção da Igualdade trataram de fortalecer também a outra ponta do sistema legal : a polícia. Neste sentido um módulo sobre violência doméstica foi incluído no treinamento de cadetes na academia de polícia de Dili, fazendo com que todos os policiais formados para os quadros da PNTL tenham tanto noções básicas de atendimento às vítimas quanto alguma familiaridade com termos como « direitos humanos », « direitos das mulheres », « igualdade de gênero », etc. Além disso, um trabalho conjunto com o gabinete nacional da UPV da PNTL tratou de realizar sessões de treinamento em todos os distritos para as unidades locais da UPV, capacitando policiais para atendimento a casos de violência sexual e doméstica.

  • 16 É interessante notar, porém, que organizações de mulheres como OPMT e OMT, históricas e de massa, t (...)

37Em paralelo ao governo, projetos de ONGs e grupos com maior capilaridade no interior do país também têm tratado da violência contra mulheres. Oficinas de formação de treinadores sobre violência sexual foram realizadas pela Caritas australiana em vários distritos. Em outros Distritos, ONGs de defesa dos direitos das mulheres, como a Fokupers, conduziram oficinas de mobilização comunitária para grupos locais16.

38Este conjunto de ações tem impactado sobre a forma como as mulheres dão sentido às agressões que sofrem. Com isso podemos entender o incrível aumento das queixas de violência doméstica à polícia (de 8 % em 2001 para 15 % das queixas em 2002) como uma expressão de que algo está mudando de fato na forma como corpo, gênero e violência são significados em Timor-Leste. Neste processo, conceitos locais encontram-se com idéias e valores emprestados da modernidade ocidental, produzindo sínteses curiosas. Um exemplo disso foi uma campanha, iniciada em 25 de Novembro de 2002 (não por acaso o dia internacional de combate à violência contra as mulheres), cujo slogan, em tétum-praça, era : « violensia basea ba gender la’os kultura Timor-Leste nian ». Mais do que o significado da frase (« violência de gênero não é parte da cultura de Timor-Leste ») – um esforço para responder às críticas de que a instituição de uma nova moralidade poderia ameaçar a cultura local – chama a atenção o empréstimo de palavras de outras línguas – violensia, do português, e gender, do inglês. O empréstimo lingüístico é prática comum no tétum falado em Dili e utilizado como língua veicular em todo o país. Neste caso em particular, o emprego de palavras como violência e gender expressa a referência a conceitos que, mesmo podendo ter alguma forma em tétum que se aproxime do sentido internacional, vem claramente de um outro universo conceitual. Durante a cerimônia de lançamento da campanha o uso da palavra inglesa gender provocou algumas críticas, obrigando o GPI a defender este uso em dois momentos do evento sob o argumento de que, mesmo estando em inglês, o termo se referia a uma problemática existente em Timor-Leste.

Conflitos

39Obviamente este encontro entre diferentes universos conceituais e suas diferentes sensibilidades para a violência não se dá de maneira tranqüila. Durante o processo de consulta para a elaboração da lei sobre violência doméstica, por exemplo, era comum que os grupos (especialmente lideranças tradicionais) não aceitassem a idéia de que toda violência é um crime. Os grupos tendiam a estabelecer diferentes níveis de violência, considerando a agressão leve, ou feita com a intenção de educar, como parte normal do relacionamento.

40Em Oecussi, enclave no lado indonésio da ilha e um dos distritos mais isolados do país, este descompasso entre expectativas era mais evidente. Na discussão sobre a criminalização da violência doméstica, o grupo começou a estabelecer diferentes níveis de violência, como ocorrera nos outros distritos. A presença de um advogado de Dili impôs uma lógica jurídica que não permitia tais nuances. « É crime ou não ? ». Os policiais presentes à consulta foram os que mais enfaticamente responderam « sim ». Os lia na’in claramente discordavam.

41Dois casos observados por mim em Oecussi exprimem bem o tipo de dificuldade que o saber técnico-ocidental por trás da lei encontra para mobilizar as sensibilidades locais. Durante as discussões em grupo focal, um caso interessante foi levantado por um chefe de aldeia. Ao mediar um caso de estupro, um chefe local estabeleceu uma multa de cinco búfalos a ser paga pela família do agressor à família da vítima dentro de um determinado prazo. Findo o prazo, contudo, a multa não havia sido paga e o chefe de aldeia chamou o agressor para um encontro. Como ele não compareceu, o chefe de aldeia foi à polícia e prestou queixa contra o agressor por não pagamento do débito. O caso foi apresentado como uma forma possível de conexão entre a justiça tradicional e a justiça de Estado. A polícia seria, neste caso, uma espécie de « plano B » para os momentos em que a autoridade dos líderes locais não fosse suficiente para impor a justiça. A discussão no grupo prosseguiu acerca dos limites das autoridades locais, mas o que me chamou a atenção neste relato foi o fato impressionante (para mim, por certo) de que fora o débito, e não o estupro, o motivo relevante para a queixa do chefe de aldeia à polícia.

42Em outro momento o grupo foi convidado a discutir o suporte econômico às vítimas de violência e uma discussão sobre herança surgiu. Estavam discutindo sobre quem deveria ter os direitos sobre as propriedades do casal se o marido fosse preso. Uma senhora, já viúva, sugeriu que a propriedade fosse dada aos filhos do casal. Um jovem funcionário de uma ONG acrescentou que, se as crianças fossem ainda muito jovens, a propriedade poderia ficar nas mãos da família da mulher. Nisso, um velho lia na’in que falava apenas baikeno, a língua local, opôs-se furiosamente. « A propriedade não pode ir para a família da mulher, pois o homem já pagou o barlaque (o preço da noiva) ». Para complicar as coisas ainda mais a senhora viúva acrescentou : « Acho que a propriedade deve ir diretamente para os filhos, mas, claro, não para as filhas. »

  • 17 A instrução dada pelos treinadores, adequada aos procedimentos formais, era para que o policial não (...)

43De qualquer forma, por mais resistências locais que os valores por trás da legislação proposta encontrem no interior do país, a lei vem se impondo em muitos lugares e os saberes locais vão encontrando maneiras de juntar estas diferentes sensibilidades e seus conceitos no quotidano das aldeias. Em um dos treinamentos à UPV, no distrito de Manufahi, um dos policiais apresentou uma situação curiosa, à qual estavam sendo cada vez mais expostos. Segundo o policial, em muitos dos casos de violência sexual contra jovens, após prender o jovem acusado e prosseguir com as investigações, a policia descobria que a situação era um tanto quanto diferente. Em muitos destes casos o jovem casal decidia morar junto sem que a família do rapaz tivesse pagado o barlaque. Assim, para forçar o pagamento, a família da jovem ia à polícia e apresentava uma queixa de violação sexual contra o rapaz. O policial não sabia como agir17.

44A primeira impressão que tive foi a de que a população parecia ainda não ter clareza de qual era o papel da polícia. Quando e para quê se deve acioná-la ? Esta pergunta ainda não era feita, ou não se tinha clareza da resposta. Discutindo a situação em campo, porém, pareceu-me mais interessante interpretar o caso de outra maneira. Muitas pessoas sabem, sim, que neste tipo de situação não há crime algum à luz da lei. Vão, contudo, à polícia por ser este mais um expediente que pode resultar em pressão junto à família do rapaz para forçar o pagamento do barlaque. Neste caso, teríamos as pessoas manipulando um instrumento da modernidade ocidental (a polícia, instituição do Estado moderno) para assegurar um direito tradicional – ou melhor, visto como legítimo à luz da tradição local, mas sem nenhum amparo legal na moderna estrutura de Estado ou no sistema de justiça formal. Mais ainda, teríamos a população local manipulando um conceito novo e próprio da modernidade ocidental (« violação ou violência sexual ») com a finalidade de equacionar uma disputa relacionada a costumes locais.

* * *

45Recentemente vários autores têm analisado a maneira pela qual imagens e discursos marcados por gênero desempenharam e desempenham um papel importante na construção nacional de países do sudeste asiático de independência recente. Ong & Peletz (1995), por exemplo, analisam discursos em competição pela instituição de narrativas de gênero na construção nacional da Malásia e da Indonésia. Jayawardena (1994), analisando o movimento de mulheres na Indonésia, mostra a centralidade de uma narrativa que identifica a nação à uma certa imagem de mãe. Roces & Edwards (2000), por outro lado, problematizam a maneira como as mulheres têm mobilizado desenvolvimento e globalização para suas próprias causas feministas nacionais. Buscando ferramentas em discussões sobre os dilemas da relação entre globalização e saber local, as autoras constroem perguntas do tipo : « Como essas mulheres têm negociado pela diversificação nos traços do ícone da mulher moderna, tão evocado no discurso nacionalista ? Como as mulheres na Ásia usam as narrativas da globalização – desenvolvimento e modernidade – para criar novas possibilidades e expandir suas oportunidades ? ». São tais questões que as levam a afirmar que, de « tão diversas que são as imagens e experiências da modernidade é mais frutífero explorar as múltiplas modernidades das mulheres asiáticas, ou, nos termos de Maila Stivens, suas ‘modernidades divergentes’ » (Roces & Edwards 2000: 1).

46Esta bibliografia analisa processos que levam à criação de várias narrativas de gênero possíveis, competindo por ganhar hegemonia em determiados campos. Processos cujas complexidades, contradições e ambivalências acabam muitas vezes materializadas em figuras como Wan Ismail, a ativista malaia, líder do movimento reformasi, considerada o alter-ego de seu marido, principal líder oposicionista ao primeiro-ministro nos anos 1990, mas também uma médica que abandonou sua profissão para assumir seu papel de mãe e esposa e, como tantas outras, usa o véu como símbolo de oposição à modernidade ocidental. Para Roces e Edwards, « a tensão entre uma narrativa de gênero oficial e as outras múltiplas narrativas de gênero é um tema central que permeia a experiência das mulheres entre 1970-2000 » na região. Assim, o paradigma dos discursos oficiais é dado por idéias-valores que vêm de fora, « como parte das idéias globalizadas do feminismo liberal e dos direitos humanos », fortemente incentivados por organizações como as Nações Unidas – com declarações como a da Cedaw, e as conferências sobre mulheres e populações – e os fóruns regionais asiáticos – Apec e Asean. Contudo, em uma estratégia semelhante ao que parece acontecer em Timor-Leste, as ativistas asiáticas « têm sido bastante proativas em ajustar o foco dos argumentos para longe da percepção de um caráter alienígeno ou desestabilizador do feminismo liberal ocidental, enfatizando o aspecto "nacionalista" de tais princípios ao liberar as mulheres para o "desenvolvimento" ». Desta estratégia surgem composições locais epitomizadas por discursos pelos quais não pode haver desenvolvimento sem a igualdade de gênero – « a igualdade nos direitos de divórcio, de mulheres refugiadas, de legislações de combate à violência contra as mulheres e de pagamentos iguais ». Assim, « quando enquadrado dentro de uma rubrica nacionalista, o desenvolvimento das mulheres torna-se um ato patriótico, mais do que contra os homens » (Ibid. : 4).

47A incorporação, porém, de tais ou quais aspectos dos princípios de igualdade de gênero não se faz sem um sem-número de efeitos colaterais imprevisíveis. Na Coréia, por exemplo, muitas « mulheres, ao buscar a educação superior, o fazem com o intuito principal de adquirir melhores maridos » (Ibid. : 8). Gestos ou atitudes que nos padrões internacionalizados da modernidade ocidental têm um significado derivado do ideal da igualdade de gênero podem ganhar, nas modernidades locais, um significado por vezes contrário àquele espírito original. Da mesma forma, o gesto dos pais que procuravam a polícia em Manufahi para prestar queixas de violência sexual contra suas filhas não significava exatamente uma adesão aos valores apregoados pelas campanhas de combate à violência doméstica no país. Padrões da modernidade ocidental são, nestes processos, constantemente subvertidos pelos saberes locais.

  • 18 Quanto a isso, dizem ainda que, em relação ao sudeste asiático, « os processos de formação do Estad (...)

48Mais do que um embate entre moderno e tradicional, estas situações representam o resultado da interação de sujeitos sociais com um repertório ampliado de narrativas de gênero que pode ser evocado de maneiras mais ou menos limitadas, conforme a arena em que ocorra e as redes de pertencimento em que os sujeitos estejam envolvidos. Assim, se por um lado Ong & Peletz acertam ao dizer que no final do século xx « identidades de gênero são construídas não apenas de acordo com conhecimentos locais, mas em geografias de produção, comércio e comunicação cada vez mais abrangentes »18, é também verdade que, no caso timorense, as aldeias representam redes fortes o bastante para limitar e subverter os usos possíveis dos discursos produzidos pela geografia globalizada.

49Neste sentido, as disputas por esferas legítimas para resolução de conflitos e construção da justiça têm sido, em Timor-Leste, um espaço privilegiado para compreender os dilemas envolvidos na negociação de diferentes narrativas de gênero. Em sua dimensão mais visível, aquela dada em torno de um discurso sobre a « violência doméstica », estas disputas envolvem, com a mesma centralidade, princípios e categorias vindas tanto de geografias de produção bastante restritas quanto amplamente globalizadas. Por razões históricas, formas locais de organização social mantém-se tão operativas quanto as mais globalizadas estruturas do Estado. Temos assim que Timor-Leste abriga, a um só tempo e com a mesma centralidade, os Mambai de tal ou qual aldeia, os Bunak de tal ou qual distrito, e os princípios de tal ou qual projeto patrocinado pelas Nações Unidas na construção da estrutura de um Estado moderno.

50Timor-Leste tem sido há séculos um espaço de encontros de diferentes povos, diferentes formas de organização social e de valores culturais. Esta tradição de espaço fronteiriço parece se repetir neste momento no processo de combate a violência doméstica, em que se encontram diferentes sensibilidades não só para o tema da violência doméstica mas para o próprio sentido deste conceito. Neste encontro, os desencontros são o mote. Ora o que a lei define como crime não é assim percebido no imaginário das comunidades locais, ora o que se percebe localmente como crime não é assim definido pela lei.

51Mais do que um conflito entre diferentes concepções sobre violência doméstica (uma visão moderna versus outra tradicional), o material observado parece indicar conflitos entre saberes locais (também eles múltiplos e contraditórios) e um saber técnico e político próprio da modernidade ocidental. Este encontro de saberes sobre corpo, família, gênero e violência, mediado pelas intencionalidades de um jogo político e manipulado localmente por homens e mulheres, é o que caracteriza grande parte do processo dialético de modernização timorense, um processo produtor de situações nas quais diferentes sensibilidades para o corpo, a justiça e as relações de gênero interagem, produzindo respostas diferentes a cada momento.

  • 19 Para uma compreensão detalhada dos diferentes projetos em disputa na construção de um Estado modern (...)

52Além disso, por articular tanto representações mais gerais sobre corpo, violência e educação quanto vivências localizadas de uma dor quotidiana em corpos marcados por gênero e geração, a violência doméstica pode ser vista como um tema particularmente importante para se compreender alguns dilemas da modernização timorense. Ao mesmo tempo em que falam de conflitos privados, encarnados em corpos e relações particulares, as contradições do processo de combate à violência doméstica falam de mudanças em curso na sociedade timorense em nível mais geral, articulando diferentes noções de direito, justiça e indivíduo19.

53Este artigo procurou destacar a riqueza deste momento de transformações a partir de alguns dos conflitos que emergem hoje no processo de combate à violência doméstica em Timor-Leste. Não creio que seja possível prever que rumo tomará este processo no futuro. As bem articuladas iniciativas do poder público e da sociedade civil organizada têm alterado significativamente os sentidos da violência em certas áreas do país. Dirigidas a reeducar as sensibilidades locais para o corpo e o direito, estas iniciativas tem provocado efeitos. As formas locais de expressão destes efeitos, porém, resultam sempre de uma equação imprevisível em que elementos tradicionais e novos se sobrepõem na configuração de casos concretos. O final desta história, se há algum, somente se conhecerá com o tempo.

547 de Setembro de 2005

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Notes

Este texto é resultado de parte de minha pesquisa de doutoramento, para a qual contei com bolsa de estudos da CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Profissionais de Ensino Superior) e CNPq (Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Agradeço ainda a meu orientador, Prof. Dr. Luís Roberto Cardoso de Oliveira e a minha colega Kelly Cristiane da Silva pela constante interlocução de que resulta o material aqui apresentado.

1 Sobre os massacres de Bali e sua relação com os jogos políticos da época ver Robinson 1995. Sobre os conflitos recentes entre cristãos e muçulmanos em Celebes, ver Aragon 2001. Ver também, no mesmo volume Acciaioli 2001.

2 Recentemente um colega que regressava de sua pesquisa de campo em Java Ocidental contou-me que um filme de luta norte-americano que, nos Estados Unidos, retratava a batalha entre um herói e um bandido, recebera em Java a tradução de « Os dois heróis ».

3 A Polícia Nacional de Timor-Leste foi formalmente instituída em maio de 2002, com a restauração da independência. Antes disso, porém, o atendimento policial e registro de ocorrências já era feito pela polícia das Nações Unidas (UNPOL) em conjunto com timorenses. Os dados de 2001 referem-se, pois, aos atendimentos feito pela UNPOL, mas que constam do histórico de estatísticas da atual PNTL.

4 Em 2001, segundo relatório da PNTL, de um total de 4 917 ocorrências, 382 foram de violência doméstica. Em 2002, as queixas de violência doméstica chegaram a 853 de 5 576 ocorrências.

5 Timor-Leste possui apenas quatro tribunais de justiça em todo o país, o que torna difícil o acesso físico à justiça de Estado. Embora a polícia tenha uma penetração maior no país, a população tem receio de levar casos familiares às delegacias uma vez que durante os vinte e quatro anos de ocupação indonésia a polícia esteve majoritariamente na mão de indonésios.

6 Um lia na’in de Dili relatou-me um exemplo deste tipo de atitude em relação a um caso de conflito entre vizinhos. Um morador levara o caso à sua presença acusando o vizinho de ter matado um porco seu. O vizinho explicou que o porco estava destruindo sua roça e que advertira anteriormente o acusador para que este prendesse seu porco. Como o porco não fora preso e continuou a destruir sua roça, o vizinho matou o porco. No julgamento feito pelo lia na’in, a reação do vizinho fora justa e, portanto, não lhe cabia culpa pela morte do porco. O porco fora morto pela negligência de seu dono, e não cabia neste caso multa ou reparação.

7 Sobre a noção de sensibilidade jurídica e de como ela constitui diferentes sentidos de justiça em diferentes culturas, ver Geertz 1998.

8 A questão de como um gesto pode ser tornado como ofensa diz muito a respeito das sensibilidades jurídicas em causa. Se nos casos vistos aqui a agressão física nem sempre ofende, Cardoso de Oliveira aponta para situações que poderíamos definir com o reverso desta medalha, ao analisar casos de ofensa moral em que atitudes que não deixam sequelas físicas podem ser tomadas pelas partes como formas de ofensa. Sobre isso ver Oliveira 2002.

9 Vários autores recuperam o sentido da justiça tradicional timorense como um ritual de reposição da ordem social e de uma harmonia quebrada que precisa ser restaurada (Soares 2002 ; Hohe & Ospina 2003). Para Soares, por exemplo, os rituais para resolução de conflitos são « apenas parte de um grande processo que busca ligar passado e futuro, trazendo a sociedade para um estado último de estabilidade social no qual a paz, tranqüilidade e honestidade prevaleçam ».

10 Exemplos de malcomportamento das mulheres estão geralmente relacionados ao não cumprimento das tarefas domésticas, enquanto que malcomportamentos masculinos são associados à perda de dinheiro com apostas e embriaguez.

11 Uma senhora que entrevistei no tribunal distrital de Dili e que havia sofrido agressão física forte por parte de seu marido disse-me literalmente : « bater para ensinar é uma coisa, isto aqui (apontando para a cabeça enfaixada) é outra ».

12 Algumas professoras portuguesas que, a serviço da missão portuguesa em Timor, atuaram durante vários meses em escolas timorenses, costumavam expressar grande constrangimento com o que consideravam castigos despropositados que seus colegas locais aplicavam aos alunos. Eram comum relatos de meninos obrigados a manter-se em pé debaixo do sol durante horas, ajoelhados sobre grãos de milho ou simplesmente tratados a tapas por pequenas desordens em sala de aula.

13 O número exato de línguas e grupos étnicos em Timor-Leste é motivo de alguma polémica. Sobre isso ver Schouten 2001.

14 Homens e mulheres participam dos mercados quase que em mesmo número, mas comercializando produtos diferentes. Normalmente as mulheres vendem vegetais, ovos e produtos industrializados, importados (ou contrabandeados) da Indonésia, enquanto os homens lidam com carne (búfalos, gado, frangos, porcos e cabritos) e bebidas alcoólicas (o vinho de palma, tua mutin, e seu destilado, tua sabu).

15 O movimento de mulheres em Dili conta com dezasseis organizações. Duas ONGs se destacam no atendimento a mulheres vítimas de violência : Fokupers, conduzida atualmente por jovens ativistas educadas em universidades indonésias e Etwave, fundada e dirigida por uma militante dos direitos das mulheres.

16 É interessante notar, porém, que organizações de mulheres como OPMT e OMT, históricas e de massa, têm estado relativamente distantes do tema da violência doméstica, desenvolvendo predominantemente atividades relativas a geração de emprego e renda.

17 A instrução dada pelos treinadores, adequada aos procedimentos formais, era para que o policial não recebesse este tipo de caso, uma vez que se a relação sexual fora consentida, não havia crime nenhum em causa. O que ele poderia fazer era sugerir que a família entrasse com um processo civil no tribunal distrital.

18 Quanto a isso, dizem ainda que, em relação ao sudeste asiático, « os processos de formação do Estado e da Nação, a reestruturação econômica global e migrações de mão-de-obra para além-mar criaram geografias fluidas de gênero, raça e classe que cruzam fronteiras nacionais. Como conseqüência, do mesmo modo que os sujeitos pós-coloniais dificilmente conseguem equilibrar as forças descentradoras e recentradoras das reviravoltas cultural e nacional, assim também os entendimentos culturais do que seja ser masculino e feminino estão se tornando cada vez mais borrados, variados e problemáticos » (edwards & Roces 2000).

19 Para uma compreensão detalhada dos diferentes projetos em disputa na construção de um Estado moderno em Timor-Leste, ver Silva 2004.

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Pour citer cet article

Référence papier

Daniel Schroeter Simião, « Os sentidos da violência e a educação dos sentidos »Lusotopie, XIII(2) | 2006, 155-172.

Référence électronique

Daniel Schroeter Simião, « Os sentidos da violência e a educação dos sentidos »Lusotopie [En ligne], XIII(2) | 2006, mis en ligne le 10 avril 2016, consulté le 07 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1427 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01302009

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Auteur

Daniel Schroeter Simião

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Departamento de Sociologia e Antropologia

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Droits d’auteur

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