- 1 … que sobrevalorizam como causas das guerras actuais a competição pelos recursos naturais não renov (...)
- 2 Estes autores defendem que se tratou de um movimento de defesa « de la paysannerie balante et de se (...)
1A guerra civil que ocorreu em 1998-99 na Guiné-Bissau foi maioritariamente uma guerra entre militares e manteve-se relativamente circunscrita à capital do país. O apoio dos exércitos dos dois países vizinhos (Guiné-Conakry e Senegal) foi também determinante na transformação de um levantamento militar numa guerra civil prolongada. Dificilmente poderá assim ser explicada quer à luz das correntes que dominam os debates sobre as chamadas « Novas Guerras » – que Richards (2005 : 6-11) agrega sob os títulos de « Malthus with guns », « New barbarism » e « Greed, not grievance »1 –, quer em função de argumentos de autoctonia defendidos por Bayart, Geschiere & Nyamnjoh (2001)2. No caso de um país vizinho da costa ocidental africana – a Serra Leoa, cuja guerra adquiriu proporções alarmantes e cujas implicações regionais se fazem ainda sentir –, as motivações dos conflitos enraízam, segundo autores como William Reno (1995, 1998), num conjunto de factores que agregam variáveis macro-económicas (existência de recursos naturais valiosos) e outras variáveis identificadas nomeadamente por Paul Richards (1996, 2004). Adoptando uma abordagem etnográfica e uma análise da guerra como processo, Richards fala de uma « crise do Estado patrimonial » (2004 : 34-37), que por sua vez dá origem a uma « crise da juventude » (2004 : 1) – nas zonas rurais maioritariamente resultado de um conflito inter-geracional, no qual o acesso à terra e a mulheres é a variável central numa oposição entre linhagens donas da terra (landlords) e linhagens dependentes (newcomers e ex-escravos domésticos). É assim que a defesa de uma « revolução agrária » se torna um dos factores de mobilização dos jovens rurais pela Revolutionary United Front (RUF) ou, dito de outra forma, « food security, not diamonds, was the motivation claimed by the RUF » (Richards 2004 : 3).
2Agricultura, política e cultura são dimensões sociais que têm sido, no geral, objecto de estudos realizados por especialistas de cada uma das matérias. A relevância da questão agrária em geral e da segurança alimentar em particular foi trazida por Richards para o debate sobre as motivações subjacentes aos conflitos violentos em África após o fim da Guerra Fria, que sublinha também a sua centralidade na fase de consolidação da paz e reconstrução (Richards 1996 e 2004 ; Richards & Ruivenkamp, 1997 ; Richards, Bah & Vincent 2004). Para compreender a crise que atravessam muitos dos países africanos torna-se assim necessário ultrapassar as barreiras disciplinares e olhar holisticamente para as sociedades, sobretudo para as sociedades rurais que se podem tornar verdadeiros reféns de conflitos manipulados por actores a elas externos ou, se bem que em casos raros, manter-se neutras ou numa atitude de colaboração ambígua e criar « ilhas » em que a reprodução social, económica e política continua a ser assegurada (Geffray 1991 ; Temudo & Schiefer 2003 ; Temudo 2004).
3É a agencialidade (do inglês agency) das sociedades rurais que vamos apresentar num estudo de cariz etnográfico sobre a forma como a guerra de 1998-99 e a instabilidade político-militar subsequentes foram vividas e os conflitos negociados pela população multi-étnica de Cubucaré. Os pressupostos de que partimos são seis :
- 3 Situações opostas podem ser encontradas entre outros grupos étnicos da Guiné-Bissau (Ribeiro 1987a (...)
4(i) a cultura política local dos « donos da terra » (landlords) faculta iguais direitos a « autóctones » e « alóctones », criando um contexto coeso e estável de longa duração3 ;
(ii) após a independência, os mais velhos souberam conceder uma crescente liberdade e independência económica aos jovens e como tal, na ausência de uma tensão intergeracional forte, os cadetes não se sentiram incentivados a aderir à guerra ;
(iii) os balantas foram talvez o grupo étnico mais marginalizado e explorado pelas políticas e práticas de dominação coloniais, tendo continuado a sentir-se excluídos após a independência, o que explica a sua forte adesão às guerras de libertação e de 1998-99 ;
(iv) a mensagem política de Amílcar Cabral constitui ainda hoje um factor de coesão nacional e de estabilidade, que se reflecte especialmente em situações de conflito como a que se vive desde a guerra de 1998-99, muito embora este legado represente já uma tensão entre os mais velhos e os jovens ;
(v) esta tensão foi revelada pelo multi-partidarismo, passando os partidos a ser analisados não como um referente ideológico (caso dos « velhos » do PAIGC), mas como « comércio » (caso dos jovens) ;
(vi) num ambiente multi-étnico e multi-cultural, a complementaridade funcional dos sistemas de produção agrícola e a capacidade de diversificação de estratégias produtivas – garantia de segurança alimentar –, bem como a cultura de solidariedade e reciprocidade têm constituído factores de estabilidade política a nível local e nacional. Pelo contrário, a crise agrícola actual está a conduzir a um maior individualismo e a uma perda de coesão social que se poderá repercutir de forma dramática, caso um conflito político de grandes dimensões venha a surgir na sequência das próximas eleições presidenciais.
5A península de Cubucaré, bem como toda a região de Tombali do Sul da Guiné-Bissau, é vulgarmente conhecida por "Chão Nalú". Segundo a tradição oral de todas as etnias da região, os primeiros habitantes foram caçadores nalú, que possuíam capacidades (pauta) de ver e comunicar com os espíritos. Considera-se que Cubucaré se encontra dividido em diferentes territórios (chãos ; n'fóth em nalú) e o acesso à terra e aos restantes recursos naturais é controlado, em cada um deles, pelo chefe da linhagem (djagra) que primeiro o povoou. O poder destes, como gestores reais do território, advém do contrato que estabeleceram com entidades sobrenaturais (irãs donos do chão), consideradas os verdadeiros proprietários desses « chãos ». Os grupos domésticos nalús, bem como os de outras etnias que subsequentemente se instalaram em cada território, solicitaram a concessão de terrenos para habitação (cáu de sinta) e de terrenos de trabalho (cáu de tarbalho) aos chefes da linhagem fundadora, que por sua vez realizaram rituais que pretendiam averiguar a aceitação dos novos « hóspedes » pelo espírito « dono do chão ». Sempre que solicitado, e enquanto a pressão fundiária não se fez sentir, era concedido terreno suficiente para fundar uma nova aldeia (tabanca), cujos limites eram definidos de forma precisa. Ao chefe da linhagem fundadora era transmitido o poder de distribuir terra pelos grupos domésticos que posteriormente se viessem instalar na nova aldeia. De acordo com a tradição, qualquer grupo doméstico que se instale na região tem o direito a aceder a uma parcela de terreno suficientemente grande para assegurar o seu sustento. O investimento em trabalho do primeiro que desmatou garante o usufruto e a transmissão por herança, enquanto que as benfeitorias permanentes permitem a transmissão por venda. Contudo, a terra não é considerada uma mercadoria e o preço de venda é calculado em função das benfeitorias (como pomares e diques) realizadas (Temudo 1998, I).
- 4 R. Shaw (2003) analisa ao longo da história o papel desempenhado por aquilo que apelida de « ritual (...)
- 5 Lan (1987) apresenta um trabalho pioneiro sobre o papel das cosmologias tradicionais no apoio às gu (...)
6A hegemonia política estabelecida através do poder de gerir os recursos naturais do território é uma das determinantes da identidade social étnica, dividindo os habitantes entre « donos do chão » – os nalú – e « hóspedes ». No « paradigma cosmológico regional » da população de Cubucaré, a própria criação do Estado guineense radica de contratos que os principais comandantes do exército estabeleceram com os irãs « donos do chão » (intermediados pelos chefes das linhagens fundadoras), contratos esses que lhes « fechavam o corpo » contra as armas inimigas4 e que permitiram a criação das «zonas libertadas » e mais tarde a própria independência do país5. Repare-se que, quando Amilcar Cabral (1974a : 70,71) – na sua estratégia pragmática de mobilização política e de legitimação da guerra de libertação – afirmava que « o irã é nacionalista », por forma a convencer a população a refugiar-se nas florestas sagradas, não tinha em conta a importância vital do apoio que viria a ser facultado à guerrilha pela população rural através da esfera cosmológica.
- 6 A chefia não se herda numa base puramente biológica, i.e., mecanicamente em favor do mais velho com (...)
7Com uma organização político-social segmentária, os nalús da actual Guiné-Bissau vieram, à semelhança do ocorrido entre a sub-divisão étnica instalada no então território da Guiné Francesa (Camara 1999 ; Frazão-Moreira 1999), a adoptar a estrutura de regulado em finais de 1800. Porém, segundo os nossos interlocutores, o régulo não é mais do que um entre os « homens grandes » das linhagens fundadoras, sendo proposto por estes e empossado pelo espírito (irã : c) « dono do chão » – que tem o poder de vetar essa nomeação – através de determinados rituais. Na indicação feita pelos « donos do chão » é também tomada em conta a aceitação pelas restantes etnias6, visto que o papel atribuído ao régulo é o de intermediário entre a sociedade que representa (neste caso multi-étnica) e o mundo exterior (Temudo 1998, I).
- 7 Ver Carvalho 1949 e Frazão-Moreira 1999.
- 8 Tornando-se maioritária a partir de 1949 (Carvalho 1949 : 311).
- 9 Cultivo em solos, conquistados à influência da água salgada de rios e braços de mar, através da con (...)
8Pouco antes do fim das chamadas « campanhas de pacificação », os « donos de chão » nalús – preocupados com a crescente ameaça que representava a etnia fula, a quem mais tarde os portugueses agradecidos pelo apoio militar prestado, irão mesmo entregar parte do território nalú7 – realizam cerimónias a pedir a vinda de « hóspedes ». Nas primeiras décadas de 1900, vão ocorrer vagas sucessivas de emigração de outras etnias, das quais a primeira terá sido a sosso, oriunda da então Guiné Francesa, que irá contribuir de forma decisiva para a islamização dos nalús e o desenvolvimento da fruticultura. A etnia balanta – proveniente da região de Mansoa à procura de terrenos de cultivo de arroz – começou a invadir Cubucaré no início dos anos vinte do século passado8, seguida depois por pequenos grupos de manjacos, pepeis e bijagós, atraídos pela abundância de palmares (Carvalho 1949 : 312). A transformação de toda a região de Tombali no celeiro de arroz da Guiné-Bissau está associada à migração da etnia balanta para esta região, a qual introduziu o sistema de cultivo em mangal (bolanha salgada)9. Até essa altura, o arroz era cultivado em sequeiro (sistema itinerante de derruba e queimada) e em regime de alagamento nas zonas baixas interiores (bolanha doce). Na progressão da etnia balanta para o Sul foi relevante o papel desempenhado pelos ponteiros (concessionários de terras, nomeadamente mestiços e cabo-verdianos), que noutras regiões da Guiné foram responsáveis pela difusão da cultura do amendoim e da cana do açúcar (Mota 1954, II : 160 ; Drift 2000a : 158-160).
9Os sistemas de produção de arroz estão intimamente associados à matriz étnica. Se a etnia balanta concentra tradicionalmente a sua actividade no cultivo de arroz em bolanha salgada e na criação de gado bovino, as restantes etnias, pelo contrário, cultivam sobretudo arroz de sequeiro e desenvolvem uma produção diversificada, e as suas mulheres dedicam-se à produção e transformação de um grande número de produtos agrícolas e a actividades de comércio que desenvolvem através de uma rede local de troca directa. Após a independência, as políticas agrícolas e de preços e mercados adoptadas deram origem a uma re-orientação da etnia balanta para a produção de cajú, em detrimento da produção de arroz, a qual está dependente não das zonas de mangal que solicitaram aquando da sua vinda para o Sul, mas dos solos de savana e de floresta.
- 10 Nos balantas, pelo contrário, o fornecimento do arroz para a alimentação da morança/fogão é inteira (...)
10Ao contrário do sistema de produção orizícola de bolanha salgada – único capaz de criar excedentes comercializáveis –, o sistema de sequeiro é hoje deficitário em cereais. Actualmente, se a região de Cubucaré, analisada segundo uma perspectiva nacional, é considerada excedentária em arroz, a um nível de análise local verificamos que, embora ainda existam muitos produtores cujos excedentes são vendidos para fora da região, grande parte dos grupos domésticos debate-se anualmente com um período de escassez alimentar daquele cereal. Este período é, contudo, reduzido no tempo e atenuado na intensidade através de um complicado sistema inter-étnico de troca directa de produtos e de trabalho por arroz e ainda de empréstimo de alimentos, que assenta numa relativa especialização e complementaridade étnicas ao nível do sistema produtivo. As mulheres são os principais actores sociais no mercado local de troca directa, contribuindo através do arroz que adquirem desta forma para a auto-suficiência da maioria dos grupos domésticos nas etnias islamizadas10 (Temudo 1998, I).
11Algumas trocas são diferidas no tempo – assentando em relações de confiança –, traduzindo o desfazamento entre as colheitas do arroz de sequeiro e de mangal. O amendoim é o produto mais importante da troca e é o caso mais típico, pois é entregue aos produtores balantas em Outubro, os quais só devolvem o arroz em Abril/Maio, depois da debulha. O empréstimo está envolvido numa teia de relações de solidariedade e reciprocidade, tornando-se muito difícil cobrar um bem que se emprestou a familiares e amigos, sobretudo quando se trata de pequenas quantidades (que atingem, no entanto, um montante elevado quando multiplicadas por inúmeras pessoas).
- 11 As grandes moranças constituídas por um único fogão são hoje quase inexistentes.
12A base da estrutura social de todas as etnias é a morança, conceito local que significa área residencial (com uma ou várias casas, no geral, rodeadas por uma cerca), mas também grupo doméstico extenso, constituído por um ou mais agregados nucleares. Neste trabalho, por agregado nuclear deve entender-se o grupo doméstico restrito formado por um homem casado com uma ou várias esposas e respectivos filhos. Cada morança, independentemente do número de agregados nucleares que a integram, é constituída por um ou vários fogões, que são as principais unidades de organização da produção, da transformação, do consumo e da distribuição11. Os membros de uma morança participam em actividades colectivas que asseguram a reprodução económica e social do sub-grupo principal (grupos de filiação paterna e materna), dos grupos elementar (morança ou fogão) e alargado (linhagem, povoação) e em actividades individuais, que executam com vista ao alcance dos seus próprios objectivos. As moranças estão a perder a sua coesão em relação à capacidade de mobilização de mão-de-obra e de criação de rendimentos destinados a investimentos produtivos de apropriação colectiva. Consoante o seu prestígio e a sua capacidade de negociação, o chefe de morança/fogão consegue mobilizar em maior ou menor grau o trabalho e os diferentes rendimentos individuais (e de sub-grupos) para os objectivos colectivos.
13Os chefes de morança/fogão têm vindo a adoptar estratégias tendentes a captar os jovens e a desincentivar a sua emigração sazonal ou definitiva. No caso das etnias muçulmanas, estas estratégias têm consistido maoritariammente na concessão de uma crescente autonomia económica, na extensão do período sazonal em que essa autonomia funciona e das áreas em que se exerce e ainda no pagamento do dote da primeira e por vezes mesmo da segunda esposa. A diminuição da autoridade dos mais velhos sobre os jovens manifesta-se também no desaparecimento de certas formas de aplicação da justiça em relação à prática do roubo, o que tem permitido o seu incremento.
- 12 A partir do sumo do falso fruto do cajueiro é confecionada uma bebida alcoólica.
- * « La Guiné » : os guineenes de Guiné (Bissau) chaman « La Guiné » à Guiné (Conakry).
14Tradicionalmente, na etnia balanta a organização em classes de idade (madjuandades) conferia uma rigidez intrínseca na capacidade de mobilização da mão-de-obra intra-morança : um homem adulto só podia casar-se e fundar o seu fogão depois de passar por um ritual de iniciação (fanado), cuja data dependia essencialmente das condições sócio-económicas da morança a que pertencia. A guerra anti-colonial e a emigração abalaram profundamente as regras sociais e o poder dos mais velhos, e hoje muitos jovens não iniciados casam-se e possuem o seu próprio fogão. Os rituais de iniciação são hoje também menos traumáticos. Um outro aspecto prende-se com a alteração nos hábitos de consumo de álcool – outrora privilégio dos mais velhos e limitado a ocasiões especiais (Drift 1990 : 102) –, favorecida pelo incremento da cultura do cajú12. Contrariando a tradição – que interditava a dedicação a outras actividades para além da produção de arroz e da criação de gado – nos balantas é hoje aceite que alguns filhos emigrem ou se dediquem ao comércio e, como tal, os pais apoiam a sua escolarização. São frequentes comentários do tipo : « Dantes, as vacas e as bolanhas é que eram o banco dos balantas, mas agora o desenvolvimento chegou e nós já abrimos os olhos » ou « Os meninos de agora não se podem obrigar a trabalhar, porque fogem e vão para Bissau ou para a La Guiné* ».
- 13 Num artigo de referência nos estudos sobre conflito, o pensador alemão Simmel (1950 : 15) sugere qu (...)
15Apesar das relações de solidariedade e reciprocidade atravessarem transversalmente o tecido social inter-étnico, as comunidades estudadas não são consensuais, existindo numerosos pontos de tensão13. Os principais conflitos ocorrem em relação ao maneio do gado bovino, opondo balantas às restantes etnias e no plano da gestão dos recursos naturais, opondo nalús (donos do chão) aos restantes grupos (Temudo 2005). Os balantas são a única etnia em Cubucaré que possui gado bovino e após a independência deixaram de o pastorear. Este facto dá origem a constantes litígios, pois o gado andando em pastoreio livre destrói as culturas e, segundo os costumes locais, se uma cabeça de gado for apanhada a comer uma produção, o prejudicado tem o direito de matar o animal e de ficar com metade ou a totalidade da carne, consoante a dimensão dos danos. Outro motivo recorrente de conflitos enraíza na tentativa balanta de violar as regras de gestão dos recursos naturais, o que se exerce a dois níveis. Segundo a tradição, os balantas só teriam direito a terrenos de mangal, porque exclusivamente sobre eles incidiram os pedidos dos seus antepassados, quando emigraram para Cubucaré. Porém, hoje muitos balantas desejam terrenos de floresta para o cultivo de arroz de sequeiro e de cajueiros e frequentemente ocupam-nos sem cumprirem os rituais de acesso ao fundiário. A destruição dos povoamentos de palmeira de leque, pela extracção da sua seiva para o fabrico de uma bebida alcoólica, é ainda outra fonte permanente de problemas entre balantas e nalús. A tensão entre nalús e etnias não balantas (sobretudo as mais islamizadas) no que respeita a um mais livre acesso aos recursos naturais, sobretudo à terra, poderá traduzir-se pelo seguinte testemunho de um « homem grande » (ancião) djacanca :
« Essa coisa dos donos do chão é nada, porque chegar primeiro é nada. Nós damos-lhes o respeito, mas os nalús quando cá chegaram eram muito poucos e se não fossem as outras raças [etnias] eles não eram nada ! ».
16São precisamente estas tensões inter-étnicas, não só em termos de hegemonia político-social, mas também em termos de fundiário que vão ser amplificadas pelos acontecimentos a que deu origem a guerra de 1998-99.
17« Guerra ka bali » (a guerra não presta) é uma expressão continuamente repetida pela população de Cubucaré, revivendo as memórias traumáticas de perda e de violência durante a guerra anti-colonial, ainda presentes fisicamente nos seus corpos e na paisagem – fragmentos de bombas napalm, obuses e granadas, trincheiras, entre outros – e que adquiriu um novo lugar no discurso quotidiano após o conflito armado de 1998-99.
18Em Cubucaré, a população começou a « entrar no mato » a partir de 1963 e esta foi uma das primeiras regiões libertadas, sendo ainda hoje um dos baluartes da implantação do PAIGC. Os balantas foram o grupo que a nível nacional mais contribuíu com combatentes. Para Amílcar Cabral (1974b : 86), este facto estaria relacionado com a sua forma de organização sócio-política mais igualitária e descentralizada e com a sua longa resistência ao poder colonial, enquanto Cunningham (cit. in Chabal 1983 : 69, 70) – a partir dos resultados de uma pesquisa realizada nas regiões de Quínara e Tombali – refere a exploração a que os balantas eram sujeitos nas pontas e ainda que as suas estruturas sócio-políticas « were conducive to the envolvement of young men in modern political action ». O antropólogo Roy van der Drift (2000a : 153, 161-163), a partir da análise da estrutura social, apresenta uma tese original argumentando que a forte adesão de jovens balantas logo na primeira fase da guerra anti-colonial (tal como a anterior emigração desta etnia para Quínara e Tombali) teve origem na conjugação de dois factores : as tensões entre jovens e anciãos e o surgimento de novas possibilidades facultadas pelo mundo exterior. Nos testemunhos recolhidos entre balantas, a violência do trabalho forçado na construção de estradas ressalta porém como a pior lembrança do colonialismo português. Interlocutores de outras etnias apresentam uma explicação multi-facetada da forte adesão à « luta » pela etnia balanta, que pode ser sintetizada pelo seguinte testemunho de um « homem grande » nalú :
- 14 Mota (1954, II : 159) critica o facto dos concessionários de terras (ponteiros) tentarem reproduzir (...)
« No tempo colonial os balantas é que sofreram mais com as bofetadas e a palmatória, porque não queriam vestir-se, nem lavar-se, nem fazer o trabalho forçado nas estradas. Os cipaios batiam-lhes e dormiam com as suas mulheres, mas não faziam o mesmo aos muçulmanos. Nas pontas ficavam como cativos14 e os comerciantes também os enganavam porque eles não conheciam o dinheiro ».
- 15 Ora este facto era talvez a maior afronta que se poderia fazer à sociedade balanta. Repare-se que o (...)
19Um aspecto relevante mencionado por outro interlocutor também nalú prende-se com a obrigatoriedade de venda semanal de gado bovino e suíno destinado ao abastecimento dos talhos das povoações onde existia administração portuguesa15. Assim e citando Chabal (1983 : 194) :
« There is no simple explanation of why the Balante […] were […] favourably disposed towards nationalist opposition to colonial rule […] It is clearer why the Fula opposed the nationalists in Guinea : they had done so elsewhere in West Africa ».
20Num Estado colonial « bifurcado » (Mamdani 1996), a população da região estudada conseguiu, no entanto, exercer direitos de cidadania, através da agencialidade das chamadas autoridades tradicionais. Tal como Bayart (1999 : 43) argumenta, as sociedades africanas não foram nunca objectos passivos da sua sujeição, muito embora a aptidão para retirar proveito das consequências da ocupação estrangeira tenha sido variável. Tendo observado o impacte social, económico e em termos de autonomia política a que tinha conduzido a introdução de pontas (concessões de terra) em outras zonas do « chão nalú », as autoridades tradicionais contestaram o poder colonial. O actual régulo de Cadique relatou da seguinte forma a avaliação que « os grandes » nalús então fizeram e a forma como agiram :
- 16 Galli & Jones (1987 : 44) reportam um testemunho de Luís Cabral, segundo o qual « the brutal relati (...)
« Nem todos os ponteiros eram maus como Brandão16, mas nas pontas a população ficava cativa. Os ponteiros pagavam a taxa [imposto] pela população, mas depois a população era obrigada a vender-lhes toda a produção. Eles também emprestavam arroz, mas depois quando colhias tu pagavas o dobro ou até mais e às vezes nunca mais conseguias pagar a dívida. O régulo Aliu Camará, meu irmão, foi pedir ao chefe de posto de Cacine – naquele tempo era Jordão – para não ter pontas aqui, que ia dar guerra, que Cubucaré ia ficar dividido. Lojas a população queria, porque era desenvolvimento, mas pontas não ! Os tugas [portugueses] aceitaram e não tivemos pontas aqui em Cubucaré ! ».
21Após a independência, a desilusão dos balantas com o PAIGC prendeu-se com o afastamento dos seus principais quadros da luta, mas terá atingido um climax com a acusação de uma alegada tentativa de golpe que conduziu à morte de Viriato Pã e de Paulo Correia (Forrest 1992 : 59-60). Por outro lado, a política económica seguida até 1986 de fixação do preço do arroz e de obrigatoriedade de troca nos armazéns estatais afectou de maneira extrema a capacidade de reprodução social e económica balanta (Temudo 1996), muito mais do que a qualquer outra etnia. Nas primeiras eleições, realizadas em 1994, emerge um novo partido de raíz étnica – o Partido da Renovação Social (PRS) –, no qual a etnia balanta votou em bloco. O PRS e o seu presidente Kumba Yalá surgem nestas eleições como os principais opositores a Nino Vieira e ao PAIGC. O facto de ter havido suspeitas de fraude eleitoral gerou na etnia balanta uma revolta acrescida, que em Cubucaré se traduziu por uma guerra surda do poder contra os apoiantes do partido vitorioso, através de um bloqueio temporário das trocas directas de produtos agrícolas e de uma subida do preço do arroz.
- 17 Nas « regiões libertadas » durante a guerra anti-colonial foram criados pelo PAIGC os chamados « Co (...)
- 18 Mais de duas dezenas de partidos registados antes das eleições de 2004.
22Estas eleições vieram ainda a revelar uma nova atitude política nos cadetes não balantas com maiores conexões a Bissau, que se inscrevem nos partidos políticos de oposição (exceptuando o PRS) manifestando abertamente o seu descontentamento face à falta de investimentos sociais e em infra-estruturas a que o PAIGC votou uma das regiões que mais contribuiu para a luta armada. Esta demarcação crítica do partido que conduziu o país à independência não se faz sem tensões, por vezes fortes, entre jovens e mais velhos militantes do PAIGC. A adesão aos partidos da oposição de alguns mais velhos, que durante a luta armada estiveram do lado do poder colonial, é realizada em segredo. Assiste-se assim ao início de uma cristalização partidária em dois grandes grupos : por um lado os velhos do « PAI », que continua a constituir um aglutinador étnico de cariz nacionalista, e por outro os balantas, que aderem em massa ao PRS, muito embora os antigos « Comités »17 de aldeia continuem a afirmar-se representantes locais do PAIGC, por forma a não perderem as prerrogativas materiais inerentes ao cargo e o próprio acesso a informação política. Pelo contrário, a base eleitoral dos restantes partidos, cujo número vai sucessivamente aumentando após a liberalização política18, mostra-se de uma grande mobilidade.
- 19 Ou mesmo de um golpe de Estado, na medida em que uma das exigências iniciais da Junta consistia na (...)
- 20 Os rebeldes do Movimento das Forças Democráticas de Casamança (MFDC) vão dar apoio militar à Junta, (...)
- 21 Richards et al. (2003 : 4) referem, exemplificando com o caso do Zimbabwe, que « the alienated "vet (...)
23Em Junho de 1998 eclodiu na Guiné-Bissau um conflito político-militar, que, na origem, se tratou de um levantamento militar19 na sequência do contencioso entre duas figuras políticas – o brigadeiro Ansumane Mané e o Presidente Nino Vieira –, acerca da venda de armas aos rebeldes do Casamança20. A entrada quase imediata no país, de mil e setecentos soldados do Senegal e da Guiné-Conacry provocou a adesão da grande maioria de militares e civis à causa da Junta Militar recém formada, pondo a nú um profundo descontentamento social com a política seguida pelo então Presidente da República – em especial dos antigos combatentes21 – e lutas intestinas no seio do próprio PAIGC. Nino Vieira ficou assim isolado politicamente e sem o apoio da quase totalidade dos militares do seu próprio país (Rudebeck 1998 : 26). A guerra assumiu um cariz marcadamente urbano, muito embora esporadicamente os confrontos se tenham alastrado a algumas áreas rurais.
24Durante a guerra o território nalú (não só Cubucaré, mas também Quínara e Tombali) foi protegido ritualmente para evitar que o conflito o atingisse (mangido para « fechar o chão »). Mais uma vez os espíritos (irãs) foram convocados a participar numa guerra em defesa do território nalú, mas também contra um exército estrangeiro que se considerou pôr em risco a soberania nacional. As protecções rituais só foram retiradas pouco antes das eleições, o que demonstra que este mecanismo democrático ocidental foi percebido como um sinal de que a paz tinha sido finalmente instaurada.
25Como defende Richards (2005 : 4), uma guerra tem que ser organizada e não acontece simplesmente porque existem as condições « certas ». Segundo alguns dos nossos interlocutores, cerca de dois meses antes do início do conflito, Ansumane Mané chamou muitos dos antigos combatentes desmobilizados que lhe eram mais próximos, preparando-os para um possível levantamento caso Nino Vieira o tentasse prender ou matar e avisando-os de que se deviam apresentar quando recebessem uma carta sua. A mobilização dos antigos combatentes para um levantamento militar foi feita com base no esquecimento a que Nino os tinha relegado. Um antigo combatente da tabanca de C. – onde Ansumane foi acolhido na altura em que, depois de tentar encontrar um tio que tinha vindo da Gâmbia para a Guiné, descobre que este tinha sido morto pelas tropas portuguesas e por essa razão pede aos « grandes » para entrar na luta de libertação – descreve assim a forma como tentou aconselhar Ansumane :
« Ansumane não queria aceitar a demissão de Chefe das Forças Armadas e dizia que Nino o queria prender e por isso chamava todos os antigos combatentes para lutar contra Nino. Eu disse-lhe para desistir, porque ele tinha sido sempre sua escolta desde o tempo da luta, que já tinha sido chefe das Forças Armadas e agora devia dar lugar a outro. Disse-lhe que ele não tinha nascido na Guiné, embora no bilhete [B.I.] estivesse que tinha nascido em Cadique e que muita gente não gostava que Nino lhe tivesse dado couro [posto alto] ».
26Relatos semelhantes foram feitos por outros antigos combatentes não balantas, que da mesma forma foram chamados por Ansumane. Pelo contrário, a adesão dos antigos combatentes balantas ao chamamento para se apresentarem nos quartéis quando a guerra começou foi muito grande. A percepção local é de que nesta guerra participaram essencialmente voluntários balantas e felupes, muito embora se tenha também observado a adesão (sem consentimento dos familiares) de alguns jovens de outras etnias. Ao contrário da etnia balanta, a restante população manteve-se no geral numa atitude de « não alinhamento », acusando Ansumane de ter iniciado uma guerra e criticando Nino por pôr em causa a soberania nacional ao chamar tropas estrangeiras.
- 22 Como Chabal (1983 : 66, 67-68) nota : « The emphasis was on the men, not on the machine. He sought (...)
27De salientar que localmente é feita uma distinção entre a guerra anti-colonial, designada sempre « luta » e « esta guerra de agora », como se através da designação se atribuisse uma legitimidade diferente. Um comentário ilustrativo realizado por um « homem grande » djacanca : « Esta foi uma guerra entre duas pessoas, foi uma guerra de militares, não foi uma guerra da população ». Com efeito, se a mensagem de Amílcar Cabral foi votada ao esquecimento pela então vanguarda que hoje constitui grande parte da elite política do país, ela permanece intacta na mente de muitos elementos da população rural. Não se trata de uma repetição mecânica de um discurso ideológico, mas da memória de uma ética e de uma visão política que os marcou para o resto das suas vidas22. Nas palavras de um antigo combatente nalú :
« Agora todos querem gratificação de antigo combatente, mas Cabral dizia que a gratificação não era o dinheiro, mas o melhor futuro dos filhos. A guerra de libertação foi uma guerra pela indepêndencia […], mas agora temos vergonha dos brancos, porque estas guerras de agora em África são guerras de ódio de etnias contra etnias. Cabral dizia : « não é o gatilho que nos vai trazer a independência, é o tribunal ! Por isso, ponham os vossos filhos na escola ! » Ai Cabral, nós perdemos um Homem ! ».
28Um outro « homem grande » nalú comentou ainda durante esta conversa :
- 23 Confrontar com os textos de A. Cabral (Cabral 1979 : 23).
« Cabral um dia perguntou-nos : "O que é que vamos fazer quando a guerra acabar aos que estão do lado dos tugas [portugueses] ?" E nós todos dissemos : Vamos matá-los ! Então Cabral perguntou-nos : "Qual de vocês não tem parentes do lado dos tugas ?" Nós calámo-nos completamente ! Nós envergonhámo-nos muito ! »23.
29Na opinião dos restantes antigos combatentes, os balantas são considerados « ingratos », porque « foi Cabral que os tirou do escuro [atraso, ignorância] » e esta mesma memória parece não existir.
30Durante a guerra de 1998-99, a elite urbana refugiou-se no estrangeiro, mas a maioria da população dirigiu-se para as zonas mais afastadas da capital. Em Cubucaré a maior parte das moranças/fogões inquiridos (70 %) recebeu deslocados, muitos dos quais eram simples vizinhos dos seus familiares, que habitavam em Bissau e que correram para o campo. A economia das moranças/fogões é assim extremamente afectada, tendo ainda em conta os dois anos anteriores de más colheitas e a ineficiência da ajuda externa (Temudo & Schiefer 2003).
- 24 O PRS ganha as eleições também com o voto da etnia fula que pretende afastar o PAIGC do governo e d (...)
- 25 Com efeito, tal viria a suceder repetidas vezes, a última das quais em Outubro de 2004, da qual res (...)
31No final da guerra e das eleições que levariam ao poder o Partido da Renovação Social (PRS) de caríz étnico (balanta)24, todas as etnias mostravam apreensão sobre o facto de a Junta Militar ter prometido grandes aumentos de salários aos militares e de durante e após a guerra o contingente militar ter aumentado substancialmente, tendo em conta que o país não tinha capacidade económica para assumir esses encargos – sobretudo numa situação de reconstrução nacional – e que o incumprimento da promessa poderia gerar revolta25. A apreensão e mesmo a noção de « perigo » estendia-se ainda ao facto de a Junta ter aceite a incorporação de alguns rapazes demasiado jovens e sem maturidade (sentidu ka kumpleta), que sairam de casa fugindo às obrigações domésticas, desconhecendo que o exército tem uma disciplina mais rígida e uma alimentação muito pior (kuntão limpu puss) e que agora poderiam causar grandes problemas. Outros pontos de apreensão enraizavam no facto de os balantas – agora ocupando os mais altos cargos ao nível do aparelho político-militar – serem considerados muito violentos. Referindo-se aos acontecimentos que deram origem ao Congresso de Cassacá em 1963 (Chabal 1983 : 72, 73, 78, 79) era frequente ouvir comentários do tipo :
« Eles [os balantas] são ruins uns para os outros. Se tu vês que eles têm má reinança [governação] é isso. No tempo da luta fizeram muito dano, mataram muitos que eram bons e quando o partido deu conta já era tarde ! » ;
« Aqueles nossos parentes [balantas] começaram a matar régulos e chefes de tabanca [aldeia], mas não era nada, era só inveja, porque tinham mais vacas ou mais família ou porque prendiam os que roubavam. Tinham raparigas nas barracas e depois apontavam nomes. Nino estava contra e levou isso a Cabral e por isso se fez o Congresso de Cassacá ».
32Contrapondo-os aos fulas, que no início da « luta » se foram oferecer como voluntários para o exército português (integrando os chamados Comandos Africanos) e que cometeram as maiores atrocidades em aldeias vizinhas de outras etnias, utilizam este caso para afirmar que os balantas foram o único grupo que se virou contra a sua própria etnia durante a luta e que agora se « vão matar uns aos outros [nas lutas pelo poder na cidade] ». A afirmação de Nino Vieira – « Se eu sair [do poder] vocês vão-se comer uns aos outros » –, proferida numa época em que não suspeitava que isso iria acontecer, é muitas vezes lembrada após os sucessivos assassinatos. Outros comentários realizados por interlocutores de diferentes etnias e estratos etários referiam-se explicitamente ao grau de corrupção esperado, considerando que os balantas praticam o roubo ritual e ainda à sua falta de experiência de governação, mas também ao comportamento e discursos desconexos de Kumba Yalá :
- 26 Esta analogia com duas pragas das culturas é elucidativa da centralidade da agricultura a designaçã (...)
« Nino podia não ser doutor, mas este [Kumba] não tem água na cabeça [bom senso] e a sua conversa varia »
« Agora a etnia que tem a regulandade [poder, chefia] é uma etnia de furtadores [ladrões] de verdade »
« A Junta tirou um santcho [Nino], para pôr um con [Kumba Yalá] ! »26.
33De notar a opinião de interlocutores da população fula, etnia de estrutura política centralizada : « Os balantas são cativos e uma etnia de cativos não pode ter a regulandade ». Afirmam ainda que os balantas nunca tiveram régulos e que portanto não possuem conhecimentos e experiência para governar um país.
- 27 Nas palavras de alguns dos nossos interlocutores nalús, « No tempo dos portugueses, os donos do chã (...)
- 28 Repare-se que os balantas são especialistas no cultivo em bolanha salgada, sendo frequente a sua co (...)
34A nível de Cubucaré, os principais conflitos surgidos na sequência da guerra exercem-se no plano da gestão dos recursos naturais, que pressupõe o respeito pela estrutura política local, opondo balantas a nalús (sendo afirmado que « o chão não tem dono » e que « os régulos era coisa do PAI e agora o PRS acabou com eles27 ») e no plano do maneio do gado bovino, opondo balantas às restantes etnias. Por imposição dos mais velhos, os mecanismos costumeiros de compensação dos estragos provocados pelos bovinos foram desactivados – tendo decidido « sufri » (sofrer, resignar-se) e « entregar os balantas a Deus » –, sendo referido que os balantas interpretavam essa atitude como um sinal de medo, passando mesmo alguns a instigar os seus animais para os campos dos outros produtores. Os balantas tentam também recusar-se a realizar as trocas directas e alterar em seu favor as relações de troca entre produtos estabelecidas, bem como a trabalhar para as outras etnias28. A palavra « greve » passou a fazer parte do vocabulário local para expressar esta nova atitude balanta. Por outro lado, mercê das más colheitas que sucederam à guerra, as dívidas em amendoim contraídas nesse período não foram e nem irão ser pagas – « as dívidas não envelhecem », é dito por aqueles que emprestaram –, mas os devedores balantas não poderão voltar a ter a confiança e portanto a pedir empréstimos aos mesmos produtores das outras etnias.
35Após a vitória nas eleições, o PRS começa a organizar-se fortemente no campo. Em cada aldeia são eleitos os « Comités de Tabanca » entre os membros mais antigos e activos do partido, alguns dos quais mulheres. De notar que em muitos casos observados as pessoas nomeadas são parentes próximos (sobrinhos ou irmãos) do anterior representante balanta do PAIGC, numa lógica que reproduz a da hegemonia associada à antiguidade no povoamento. Nas aldeias mais « modernizantes », os representantes do partido são eleitos entre os jovens mais escolarizados e com maior capacidade de mobilização, grandes trabalhadores agrícolas com fogões bem organizados, que podem portanto constituir um motor de desenvolvimento social. Repare-se que os balantas foram desde o tempo colonial considerados uma das etnias mais « atrasadas » e daí a grande importância que assume hoje o facto de terem alcançado os postos mais altos da hierarquia do Estado. Observa-se actualmente um orgulho em ser balanta, cuja maior manifestação se traduz num esforço de « modernização ». Começam a aparecer escolas privadas em aldeias balantas, fala-se de conversões às religiões católica e muçulmana (segundo alguns interlocutores, a conversão foi mesmo sugerida por Kumba Yálá) e as tradicionais interdições de dedicação ao comércio e de venda de gado bovino para investimento noutras actividades entram em processo acelerado de extinção. Foi mencionada a permissão de matar bovinos com o objectivo de criar um negócio, pôr os filhos a estudar na cidade ou até de cobrir as casas com folhas de zinco. Nota-se, porém, uma mudança no sentido de um maior individualismo e de uma maior monetarização das relações sociais.
36Muito embora a coesão entre os balantas seja reconhecida localmente como grande e superior à das restantes etnias – com comentários do tipo : « os balantas, quando tocam o bombolon [tambor], têm uma única fala, mas nós os muçulmanos estamos divididos » –, alguns dentre eles quando não concordam com decisões tomadas pelo seu grupo vêm contar àqueles com quem construíram relações de amizade, confiança e respeito ao longo de muitas décadas. Da mesma forma, nos períodos em que foi « decretada » uma interrupção das trocas directas de arroz, observou-se que alguns balantas continuavam a fazê-lo de noite às escondidas.
- 29 A performance dramatúrgica – no sentido em que pode ser interpretada como uma representação teatral (...)
- 30 Como anotou em 2000 Eduardo Costa Dias, em artigo publicado no jornal Público (5 de dezembro de 200 (...)
37Progressivamente, muitos jovens de outras etnias oferecem-se aos delegados do PRS para ficar como representantes do partido nas suas povoações, passando a afirmar-se em público como militantes29. Quando inquiridos em privado, justificam esta atitude com o seguinte argumento : « votar é uma coisa, outra é ser o representante do Estado na tabanca e nós precisamos de ter um, senão vamos ter um blufu [não iniciado] balanta a mandar em nós ». A transição da fase de partido único para o multi-partidarismo não destrói a sobreposição existente entre estrutura partidária e administrativa estatal. Os representantes do partido no poder, eleitos a nível de aldeia, são considerados os representantes locais do Estado, sendo inclusivamente conservada a designação de « Comité de Tabanca », criada durante a luta armada. Este facto conduz ao desenvolvimento de estratégias nos aderentes de outros partidos, que tentam encontrar um meio de não perder a sua ligação ao Estado e aos seus recursos, o que se tornou de extrema importância numa situação em que ocorreu uma etnicização do partido que ganhou o poder. A nova conjuntura política criada após a guerra introduz dois fenómenos : a « balantização do aparelho de Estado »30 e uma imiscuição crescente do poder militar no político.
- 31 Com efeito, a Junta Militar não é dissolvida após as eleições e Ansumane Mané mantém o seu gabinete (...)
38Os conflitos de poder entre Kumba Yalá e Ansumane Mané, que se manteve como figura incontornável na qualidade de comandante da Junta Militar, foram progredindo em crescendo31 e vão culminar com a morte do segundo em Novembro de 2000, por alegada tentativa de golpe militar (um mecanismo igualmente usado no tempo de Nino Vieira para afastar possíveis opositores).
- 32 Segundo alguns dos nossos interlocutores, que pertencem ao grupo dos familiares e amigos próximos q (...)
39A morte violenta32 sofrida por Ansumane Mané causou a nível local mais consternação e medo do que espírito de vingança. No entanto, parecia que se tinha tratado de uma morte anunciada, dado que Ansumane tinha chamado a Bissau um marabout seu amigo desde a luta e tinha-lhe confidenciado que o iam matar, mas que ele não queria mais guerra, que « ia entregar a sua vida como esmola [no sentido muçulmano] ». Esta mesma mensagem foi relatada por militares e familiares de militares que lhe eram fiéis, a quem Ansumane pediu que, se fosse morto, não pegassem em armas para o vingar, porque não queria outra guerra na Guiné-Bissau.
40A « Paz negativa » (ausência de conflito) após o assassinato de Ansumane Mané e seus guarda-costas (um dos quais filho classificatório do régulo de C.) e a prisão dos mais altos cargos militares de etnia não balanta podem traduzir-se numa expressão crioula – « Nô sinta, nô cala, nô péra son ! » (nós sentamo-nos, nós calamo-nos, nós só esperamos) –, que segundo a entoação dada pode expressar uma atitude passiva de observação ou uma ameaça velada. Neste caso, a expressão representava a atitude de esperança dos mais velhos numa alteração das relações de poder com as próximas eleições : « uma camisa, por mais nova que seja, [um dia] vai-se romper ! Ou não é assim ? Ninguém pensava que Nino iria ser tirado, mas foi ! O PRS também pode ser tirado nas eleições ! ». Um outro aspecto desta atitude em relação à morte de Ansumane Mané tem a ver com a dimensão espiritual da aplicação da justiça, expressa na afirmação : « Nós entregamos os balantas a Deus ». Na fase anterior à islamização ou ainda hoje em situações graves em que os tribunais costumeiros não conseguem chegar a uma conclusão (sobretudo nos casos de roubos em que há dúvidas sobre o autor), a aplicação da justiça era solicitada aos espíritos « donos do chão » ou « donos dos matos » e nos casos extremos (mangiduras) acredita-se que pode dizimar linhagens inteiras.
- 33 Pelo contrário, a aplicação de justiça costumeira (chicotadas em pessoa amarrada com cordas) no cas (...)
41Pelo contrário, os jovens de etnia nalú menos islamizados, aliando-se às mulheres (guardiãs da prática religiosa desta etnia, pela sua menor islamização), tentam exigir um regresso às cerimónias tradicionais – i.e., ao poder e instrumentos de dominação do mundo invisível –, contestando a « falta de respeito » dos balantas, que se manifestava no incumprimento das regras tradicionais de acesso ao fundiário e de gestão dos recursos naturais, mas sobretudo no aumento dos roubos e na impossibilidade de exercer as sanções costumeiras33 em relação aos danos nas culturas causados pela divagação do gado bovino balanta, que estava a causar graves problemas de segurança alimentar em algumas tabancas. Os mais velhos contestam esta exigência respondendo : « Fomos nós que fomos à baloba [altares dos espíritos donos do chão] pedir hóspedes e agora não os podemos cercar [correr com eles]. O desenvolvimento é assim : tem sempre coisas boas e más ! ».
- 34 A maioria das trocas não são imediatas e grandes quantidades de produtos (amendoim, sabão, malaguet (...)
- 35 Porém, quando pretendi confirmar com outros interlocutores, a atitude era de negação ou de question (...)
- 36 Ver Almada (1964 [1594] : 113).
42As mulheres, muito embora no geral sejam consideradas actores passivos devido à fraca politização, participaram na arena política local a dois níveis de grande importância : através das trocas directas em que de forma ambulante colocam (culcam) os seus produtos estabelecendo uma rede de relações de solidariedade, reciprocidade e confiança34; no caso específico das mulheres nalús, através da sua maior ligação às práticas religiosas tradicionais (facto reconhecido por todas as restantes etnias). No quadro de conversas informais, em que a relação com a/o entrevistada/o era de grande confiança35, foi referido que após a morte de Ansumane Mané, numa altura em que o discurso da « força balanta » tinha atingido um clímax, que se repercutia a nível das relações locais, foi realizada uma cerimónia para « o mal se virar contra quem o desejou [a outros] » e para que em caso de nova guerra ou conflito local os nalús pudessem de novo « virar onça ou cobra ou leão ou […] todas aquelas limárias [alimárias] com que dantes os nalús brabos [bravios] lutavam »36. Porém, a ausência de uma atitude de força por parte dos « donos do chão » em relação àquilo que é considerado « falta de respeito » dos balanta, nomeadamente os conflitos em torno dos estragos provocados pelo gado bovino, é utilizada estrategicamente pelas outras etnias para minimizarem o seu poder e em consequência melhorarem em seu favor a relação de forças local.
43Segundo os nossos interlocutores não balantas, ao longo dos anos, estes vão ficando « envergonhados » com o comportamento do seu partido, nomeadamente com as constantes mudanças de ministros que impedem a execução de qualquer plano, mas também com o facto do Sul continuar no esquecimento e não ser alvo dos investimentos prometidos. A demissão do Primeiro Ministro Alamara e o posterior afastamento do Presidente da República Kumba Yalá faz com que muitos balantas afirmem que perderam a confiança no partido. O descontentamento reside também no facto de os balantas do Norte e da cidade continuarem a afirmar que os do Sul não são espertos (djiros), tentando marginalizá-los. Um último aspecto interessante prende-se com a interrupção de uma prática política de fortalecimento das relações interpessoais clientelares – usual no tempo de Nino, que recebia no « palácio » todos os antigos combatentes e membros da população com quem tinha convivido no tempo da luta –, tendo sido referidos casos em que ministros ou secretários de Estado não concederam audiência a agricultores balantas seus conhecidos, que pretendiam apresentar os « problemas do Sul ».
44Quando Kumba Yálá é afastado do poder e colocado em prisão domiciliária por uma facção de dentro do seu próprio partido (Setembro de 2003), os balantas de Cubucaré defendem que ele não era corrupto – dado que quando vinha do estrangeiro mostrava na televisão o dinheiro que os governos dos países lhe tinham oferecido e o distribuía pelos ministros – e afirmam ter perdido a confiança no partido. De igual forma, para os velhos do « PAI », Nino Vieira desconhecia que os seus colaboradores e ministros eram corruptos e os bens que possui fora do país foram fruto de ofertas que os governos estrangeiros lhe fizeram durante visitas oficiais. O anterior afastamento, por alegada corrupção, do Primeiro Ministro Alamara – um balanta do Sul que iniciou os seus estudos na escola do mato de Cadique durante a luta armada e que tem a estima de todas as etnias –, a que se seguiu o afastamento de todos os balantas do Sul da sua confiança, como foi o caso do Presidente da Região de Tombali – é entendido de igual forma como um golpe dos « balantas do Norte » e dos « balantas da praça [Bissau] » para afastar os do Sul do poder. Interessante notar que a percepção sobre a intensidade da corrupção tem uma dimensão temporal associada à permanência no poder, sendo dito por não balantas que a elite do « PAI » já tinha a barriga cheia e portanto a sua greed seria menor do que a da elite dos outros partidos que estão ávidos (ôcos), atribuindo-se a uma mudança de partido no governo um correspondente aumento da corrupção.
45Um outro factor importante no atenuar de tensões inter-étnicas relaciona-se com os mecanismos de empréstimo e de troca directa diferida no tempo a que os balantas foram de novo obrigados a recorrer na sequência de vários anos de más colheitas. Em paralelo, o cumprimento das regras costumeiras de compensação dos estragos provocados pelo gado bovino foi de novo imposto pelo Presidente da Região de Tombali atrás referido. Porém, quando a data das eleições se começou a aproximar era comum ouvir jovens balantas comentarem a amigos muçulmanos : « Meu irmão, nós ganhámos a regulandade [chefia] com a guerra, se a perdermos, é com as armas que a vamos voltar a tomar ». O medo das restantes etnias justificava-se tendo em conta que, se depois da independência, os antigos combatentes que saíram do exército foram obrigados a entregar as armas – mesmo quando as solicitavam para poder proteger as culturas contra as grandes pragas (javalis e babuínos) –, aquelas que foram distribuídas no meio rural durante o conflito de 1998-99 por antigos combatentes balantas não voltaram a ser devolvidas aos quartéis. Se, por um lado, parecia possível que aquilo que tinha começado como uma guerra urbana entre militares se pudesse vir a reproduzir agora através de múltiplos conflitos inter-étnicos no campo protagonizados pelos jovens, por outro, entre alguns « homens grandes » balantas o discurso podia ser bem diferente. Dois exemplos :
- 37 Numa alusão à generalização aos próprios militares daquilo a que Bayart (1999) chamou a « política (...)
« Se voltar a haver guerra eu já não vou pegar em armas outra vez, porque não vou defender ricos. Sabes, agora não se diz "Comité Militar", mas "Cumê té na Militar" [comer até ao nível dos militares] »37;
« Porque é que os grandes [mais velhos] na praça [Bissau] de todos os partidos não se juntam e fazem um governo para compôr o chão ? ».
- 38 Em Janeiro de 2001 ocorreu um confronto físico entre mulheres nalús e balantas que se encontravam r (...)
46Este último comentário revela a cultura política local (decisão colegial em conselho de anciãos)38 e a ideia de que é possível (e desejável) a sua transposição para o governo do próprio país.
- 39 Que incluem colchões de espuma (e promessa de camas) para todos os membros da morança, sacos de arr (...)
- 40 Expressa pelas promessas : « se o nosso partido ganhar, tal… e tal… vão ser ministros de… e de… e p (...)
47Um ano antes das eleições, a prática de uma ONG que entra na campanha por um novo partido – o Partido Unido Social Democrata (PUSD) – de forte implantação urbana, vem alterar as relações entre balantas (partidários do PRS) e membros das restantes etnias (considerados globalmente partidários do PAIGC pelos balantas), visto que agora o adversário é este novo partido que beneficia dos recursos da ONG (incluindo uma rádio comunitária que continua a ser manipulada pela ONG e se dedica exclusivamente à campanha eleitoral) e da clientela desta – os « courtiers du développement » (Sardan & Biershenk 1993), localmente designados djidios (griots em francês). As ofertas que são feitas aos régulos pela ONG39 e o facto de eles terem aceite é interpretado, até por membros da sua propria etnia, como atitude geradora de « falta de respeito », porque « os régulos representam todos e as pessoas vão falar ». São feitas também acusações de que os alimentos do Programa Alimentar Mundial (PAM), destinados a acções de desenvolvimento, estão a ser utilizados na campanha eleitoral. A agressividade com que a campanha é conduzida, centrando-se segundo os nossos interlocutores mais em ataques aos dois partidos maioritários (PRS e PAIGC) do que na apresentação de um programa político e proclamando o « bridging capital » que a osmose ONG-Estado poderia criar40, gerou uma revolta acrescida.
48Esta nova campanha eleitoral vai ainda revelar que o multi-partidarismo é visto pelos jovens não balantas como um sistema de recursos e oportunidades desligado de qualquer ideologia ou vinculação étnica – « política é comércio » – e correspondendo a uma imposição do ocidente : « Os brancos é que têm a culpa, porque trouxeram a democracia para aqui, mas nós só nos damos bem com um partido ! » Pelo contrário, os mais velhos, embora comprometidos com o PAIGC – « o primeiro filho, mesmo que erre, nunca o negamos » –, passam a aceitar as « estratégias de extraversão » (Bayart 1999) dos jovens, da mesma forma que em outros tempos colocavam um filho na escola « de branco » (oficial) e outro na de marabout (corânica). É assim que numa mesma família podemos encontrar os homens adultos divididos entre os três partidos mais importantes (PAIGC, PRS e PUSD), o que é defendido com argumentos do tipo : « Se vier caneta ou camisola ou rádio ou bicicleta ou... nós recebemos ! Mas o voto é secreto ! Nas urnas cada um sabe em quem é que confia ! ». Uma atitude inovadora prende-se com a vontade de intervir directamente para mudar o destino, afirmando alguns jovens escolarizados que irão candidatar-se a deputados nas próximas eleições. Quando inquiridos sobre por qual partido concorrerão, respondem prontamente : « aquele que eu vir que vai ganhar ! ». Trata-se no fundo da aplicação da estratégia de minimização de riscos e multiplicação de oportunidades excepcionalmente desenvolvida no plano agrícola (Temudo 1998, I), aquele que põe em risco a segurança alimentar e portanto a sobrevivência física do grupo.
49Os actores sociais no campo mostram assim uma grande agencialidade, quer face às estratégias de manipulação política pelas elites urbanas nacionais, quer face ao projecto hegemónico do Norte de imposição de uma democracia multi-partidária e de um modelo único de desenvolvimento (Temudo 2005).
50Desde 1994, tornando-se mais visível após a guerra, a oposição a nível local não é feita entre « donos do chão » e restantes etnias, mas entre balantas e os outros grupos. Pelo contrário, a nível nacional, os balantas são considerados como não sendo uma única etnia, mas três, como atrás referido : « balantas da praça [Bissau] », « balantas do Norte » e « balantas do Sul ». O que se torna interessante nesta classificação geográfica, que atravessa transversalmente as próprias sub-divisões tradicionalmente aceites da etnia balanta – baseadas na língua e em aspectos culturais e até agrícolas (Handem 1986 : 10-18) –, é que ela expressa a percepção, por dentro, de diferentes níveis de desenvolvimento (escolarização, domínio da língua crioula) e de acesso ao poder do Estado. Os balantas do Sul são os que mais contribuíram para a luta de libertação nacional e que mais contribuem também para a produção nacional de arroz (a base da alimentação), mas são contudo considerados os menos desenvolvidos e até alvo de troça pela sua vaidade (ronco) no vestuário. Porém, são exactamente os balantas do Sul, em paralelo com os da capital, os que nas suas palavras « menos aguentam a tradição » (aspectos mais duros dos rituais de iniciação).
51Os argumentos de autoctonia são utilizados dentro de um mesmo « grupo » de solidariedade : pelos próprios muçulmanos contra as pretensões de Ansumane Mané (caso da guerra e da oposição posterior a Kumba Yálá) ; em relação a candidatos a deputados, num caso, pelos muçulmanos contra um técnico de uma ONG não nascido em Cubucaré (PUSD), noutro, pelos balantas contra um professor nascido em Quínara (PRS). Porém, a nível da sociedade central e da sua elite política, se, como dissemos de início, a oposição entre « autóctones » e « alóctones » não constituíu a nosso ver uma causa da guerra, a luta pelo poder quando a paz se instala vai explorar este argumento (Silva 2000 : 116).
52Citando Patrick Chabal (1983 : 194),
« It is not ethnic diversity per se which causes divisions at the political level but the political use of ethnic allegiance […] Ethnicity is not a natural phenomenon which under similar circumstances leads to similar outcomes ».
53As guerras envolvem dinâmicas sociais que encobrem múltiplas interfaces de poder, de conflito, mas também de negociação e de consenso. Face a explicações reducionistas (e.g. Kaplan 1994 ; Collier & Hoeffler, 1998), a complexidade dos processos sociais torna-se evidente com esta « etnografia da guerra e da paz » (Richards 2005). A guerra da Guiné-Bissau durou quase um ano e foi no essencial uma guerra urbana entre militares, na qual a população rural assegurou a recepção dos deslocados, o que a torna única no contexto actual dos conflitos existentes no continente e na sub-região. Tratou-se de uma guerra em que os factores políticos (nomeadamente o descontentamento dos antigos combatentes, o conflito do Casamança e lutas internas no PAIGC) tiveram um papel preponderante e em que a intervenção de outros Estados foi vital.
54Ao longo do trabalho demonstrou-se que, muito embora coexistam numerosos conflitos inter-étnicos, intra-étnicos e inter-geracionais – que as elites urbanas tentam manipular em seu favor –, o tecido social local manifesta uma considerável coesão e resiliência. Através da agricultura é estabelecida uma teia de relações de reciprocidade e inter-dependência que unifica os diferentes grupos étnicos. A flexibilidade dos sistemas de sustento (do inglês livelihood systems) das sociedades em estudo confere-lhes a possibilidade de recriar modelos autárcicos em que a segurança alimentar é garantida em caso de guerra, gerando bolsas de estabilidade a nível rural – aquilo a que Kaldor (1999) chama « islands of civility ». A segurança alimentar e a cultura de solidariedade e reciprocidade configuram-se como vitais na manutenção da estabilidade política local e como um travão a qualquer tipo de mobilização político-partidária de cariz étnico pelas elites urbanas. Pelo contrário, uma crise agrícola prolongada transforma-se numa causa de erosão do capital social e num catalizador de conflitos.
55Este estudo de caso conduz-nos assim a discordar das conclusões apontadas por Silva (2000 : 121), que defende que o povo guineense está em « crise d’identité » e por isso se refugia « dans des constructions de type ethniciste que les élites lui ont inculquées ». A forma como a população aderiu (activa ou passivamente) à Junta Militar na guerra de 1998-99 demonstra que existe uma identidade nacional, que não aceitaria qualquer tipo de integração pelos Estados vizinhos. Por outro lado, se a manipulação étnica pelas elites foi possível no caso dos balantas devido a raízes históricas, a nível local a capacidade de negociação dos conflitos inter-étnicos manifestou grande resiliência.
56O legado de Amílcar Cabral em termos dos valores humanistas que defendeu e da unidade nacional que criou ao longo da guerra anti-colonial continua vivo na memória dos mais velhos e representa ainda um factor de estabilidade social. Não devemos contudo sacralizar um homem cuja vida foi subitamente truncada sem ter podido realizar o sonho por que tanto lutou. Cabral era um agrónomo e um político nacionalista do seu tempo e de origem urbana. Como agrónomo, numa época em que não se valorizavam os saberes locais, nem se tinham em conta preocupações de ordem ecológica, defendia a « modernização » da agricultura dita de « subsistência » através da mecanização, da utilização de agro-químicos e também da produção colectiva. Como político apoiou-se, durante a fase de mobilização da população rural, nas autoridades tradicionais e não combateu de forma frontal aspectos da cultura que considerava retrógrados, aliando-se mesmo aos espíritos (irãs) em que não acreditava na luta contra contra o colonizador. Mas será que se tivesse sobrevivido teria sido capaz de conduzir a elite política do seu partido a cometer o « suicídio » enquanto classe (Cabral 1978 : 212-213) e simultaneamente compreenderia a tempo o poder desestruturante das políticas estatais de socialização do campo, que geraram crises sociais profundas em países como Angola, Moçambique ou mesmo a vizinha Guiné-Conakry ?
57A guerra de 1998-99 veio revelar de forma mais aguda o descontentamento da etnia balanta – traduzido já nos resultados eleitorais de 1994 – e mobilizá-lo em torno de um partido de raíz étnica, através do qual esta etnia se vai apropriar do aparelho de Estado, até então nas mãos do partido que conduziu o país à independência. A esfera militar vai também etnicizar-se e a fidelidade política deste corpo transitará do PAIGC para o PRS. No campo, as relações inter-étnicas são visivelmente afectadas, mas ao longo dos anos de « governação balanta » as tensões vão progressivamente atenuar-se e dar origem a um novo equilíbrio na relação de forças entre os diferentes grupos estratégicos da arena política local. Para a população rural, feitas as contas, a elite política de todos os partidos quando atinge o poder « só pensa em compôr a sua família » e, se os governos do PAIGC foram acusados de corrupção e Nino Vieira de ter sujado as mãos com sangue ao eliminar opositores, agora foi a vez do PRS e de Kumba Yalá. Os grandes esquecidos são sempre os pequenos agricultores das zonas rurais mais periféricas. Assim sendo, a sua margem de manobra consiste em manter as formas de organização social que lhes são próprias e os seus sistemas de sustento – adaptando-os como um camaleão às mudanças de contexto – e desenvolver estratégias que lhes permitam tirar o máximo partido das disputas entre os diferentes actores externos, sejam eles os partidos políticos, as ONGs, o Estado ou mesmo os representantes dos doadores nas suas erráticas visitas ao campo.
- 41 Ver também os relatórios do International Crisis Group (e.g. 2004) sobre a Libéria e a Serra Leoa.
58O resultado das eleições legislativas de 2004 devolveu o poder ao PAIGC. Porém, a ingerência dos militares na vida pública e o domínio balanta neste sector do Estado persistem e constituem uma ameaça tendo em vista as próximas eleições presidenciais. A guerra poderá surgir de novo e, nesse caso, temos esperança que se reproduza uma outra vez como uma guerra urbana entre militares. Porém a segurança alimentar no campo foi fortemente abalada pela recepção de refugiados, pela quase ausência de ajuda alimentar e por uma sucessão de maus anos agrícolas motivados pela irregularidade das chuvas e por graves ataques de pragas cujo combate não recebeu ajuda eficaz de qualquer organização externa. Fica assim comprometido um novo apoio a deslocados de guerra, mas sobretudo a própria entre-ajuda local baseada em relações de confiança, que foram fragilizadas não só pelas tensões político-partidárias e pela tentativa (escondida) de manipulação de rivalidades étnicas por parte dos principais líderes do PRS e cúpulas militares, mas também pelas dívidas crescentes dos balantas em relação às outras etnias e pelos conflitos em torno do gado bovino e da gestão dos recursos naturais. Os tão em moda programas de desmobilização, reinserção e reintegração de combatentes – altamente financiados pela ajuda internacional – são teoricamente uma peça central para a consolidação da paz, mas a eficácia da sua aplicação tem sido fraca (e.g. Richards 2004 ; Hanlon 200441). A (re) construção de infra-estruturas (nomeadamente estradas, mas também postos de saúde e escolas) através de programas de « alimentos ou ferramentas por trabalho », o fornecimento de medicamentos para as doenças endémicas e um apoio no combate às pragas das culturas e na reposição dos stocks das variedades de arroz mais cultivadas surgem como medidas tão ou mais eficientes e são estas as reinvindicações da população de Cubucaré que o Estado, as ONGs e os doadores se recusam insistentemente a ouvir.
59A declaração de esperança que este trabalho tenta transmitir, a partir de uma análise da sociedade rural e de uma guerra que se manteve praticamente urbana, está no entanto ensombrada pela crescente instabilidade política, resultante das eleições presidenciais em curso. Na primeira volta da eleições, com as candidaturas de Kumba Yalá e Nino Vieira, as elites políticas e as próprias bases de apoio dos dois principais partidos (PRS e PAIGC) vão fragmentar-se. Se Kumba Yalá emergiu de novo como o candidato oficial do PRS, o vice presidente deste partido (Yaia Djaló) candidatou-se como independente. No PAIGC as fidelidades vão também dividir-se entre o candidato oficial Malan Bacai Sanhá e Nino Vieira.
60Se razões históricas, a recente descoberta de reservas petrolíferas em regiões contíguas da Guiné-Bissau e Guiné-Conakry (para além das existentes na fronteira com o Senegal) e a própria instabilidade política do regime de Lansana Contê podem explicar o apoio deste a Nino Vieira (que chega ao país para se candidatar às eleições em helicóptero militar do país vizinho), a questão do Casamança é determinante no posicionamento do Presidente do Senegal. Se Abdou Diouf outrora apoiou Nino Vieira a entrar na União Monetária da África Ocidental e lhe facultou também apoio militar na guerra de 1998-99, o actual presidente Abdoulaye Wade parece agora colocar-se do lado de Kumba Yalá que durante o seu mandato o ajudou a controlar os rebeldes do Casamança expulsando-os do país.
- 42 Que inclui o papel que podem vir a desempenhar empresas multi-nacionais (neste caso petrolíferas), (...)
61Os recursos económicos extremamente elevados de que Nino Vieira dispõe para a sua campanha eleitoral (e as alegadas pressões de alguns países doadores para que a sua candidatura fosse aceite pelo Supremo Tribunal da Justiça), bem como o referido papel dos presidentes dos dois países vizinhos torna explicito aquilo a que Ferguson (2004 : 392) chama « transnational apparatuses of governmentality »42, que « does not replace the older system of nation-states […], but overlays it and coexists with it ».
- 43 Em Tombali (região a que Cubucaré pertence), onde os balantas detêm a maioria, Kumba fica em primei (...)
- * Nota da redacção : na segunda volta, com uma participação de 78,55 % (menor que na primeira volta : (...)
62Os resultados da primeira volta das eleições (19 de Junho de 2005) mostram um eleitorado essencialmente dividido entre três candidatos : Malan Bacai Sanhá (35,45 %), Nino Vieira (28,87 %) e Kumba Yalá (25 %), que fica eliminado da segunda volta apesar do apoio do eleitorado balanta43. A maioria do eleitorado parece assim apostar na estabilidade, duma forma que reflecte duas perspectivas em confronto : a propiciada pela aliança entre Malan e o governo democraticamente eleito e a facultada por uma memória da governação de Nino e pela crença na sua capacidade de controlar a ingerência dos militares na vida pública, apesar da sua vitória implicar a queda do governo e portanto uma acrescida instabilidade política no imediato. Muito embora Kumba Yalá não aceite inicialmente os resultados eleitorais da primeira volta e o seu partido tenha mesmo organizado uma manifestação violenta em que morreram três jovens, ele passa subitamente a apoiar Nino na segunda volta – a ter lugar a 24 de Julho de 2005 – após conversações com o Presidente do Senegal. Assim, o resultado das eleições irá em muito depender da capacidade de Kumba Yalá mobilizar o eleitorado balanta em torno de um líder que eles próprios ajudaram a criar e que depois os abandonou*. São também os balantas o único grupo que, por razões já demonstradas, parece ser capaz de se organizar rapidamente para uma guerra.
63Em conclusão, as eleições presidenciais e a forma como os seus resultados irão ser manipulados pelas elites políticas e militares e percebidos pela população rural poderão desencadear uma nova guerra de contornos mais complexos, tendo em conta a introdução de variáveis macro-económicas, a avidez da elite política cada vez mais dividida e tentando instrumentalizar a etnicidade, a erosão do tecido social rural após a guerra de 1998-99 e a intervenção de outros Estados.
649 de Julho de 2005