1Até 2001, quando aconteceram os ataques em terras norte-americanas, a questão do Timor Leste foi um dos eventos mais importantes das relações internacionais no pós-Guerra Fria, em particular no que concerne à defesa dos direitos humanos. As missões de paz da ONU atuaram por quatro anos no país e se tornaram, reconhecidamente, um caso de sucesso de intervenção internacional em crises humanitárias. Para o Brasil, a resposta aos conflitos timorenses também teve significado especial, pois representou uma das formas de inserção internacional legítima do país.
2Os principais desdobramentos da questão timorense nos anos 1990, que culminaram no fim da dominação indonésia e abriram caminho para a independência do Timor Leste, coincidiram com uma fase da política externa brasileira de reforço dos laços com paises em desenvolvimento que enfatizou os países que compõem a Comunidade de CPLP. O objetivo brasileiro era aproximar-se de outros países fora do eixo EUA-União Européia, mostrando que o Brasil procurava diferentes formas de reinserção no cenário internacional, não mais moldado pelo conflito ideológico leste-oeste, característico da Guerra Fria.
3Tendo sempre em mente assumir um novo papel, o envolvimento brasileiro na questão timorense tomou diversas formas, entre as quais, a de mediador entre as partes litigantes (anos 1990) – o que significou abandonar o até então distanciamento brasileiro do caso, passando pelo comportamento pró-ativo nas as diversas operações de paz da ONU – e, em seguida, liderando a cooperação nas mais diversas esferas com o objetivo de contribuir para a viabilização da libertação e uma verdadeira construção da nação timorense.
4Para avaliar este processo, buscar-se-á neste artigo acompanhar a atuação do governo brasileiro no caso do Timor Leste, verificando quais interesses estavam em jogo e as implicações disso nas relações com outros atores de relevo para a chancelaria brasileira, como Portugal, os PALOPs e a Indonésia. Com isso, será possível identificar algumas das diretrizes básicas da política externa brasileira dos anos 1990 e do início de novo século. Igualmente, poder-se-á verificar a real importância do Timor Leste no cálculo externo brasileiro, se o crescimento em importância daquele foi fruto de assumir a causa humanitária de um país que possui fundamentalmente laços lingüísticos, complementado por culturais, com o nosso, ou se houve outras motivações, como a de estimular parcerias na Ásia. É preciso não olvidar que os países, mormente quando pegam em armas, defendem antes de mais nada, seus próprios interesses e, quando estes não são aparentes, é preciso desanuviar o quadro para proceder a uma análise produtiva.
Abreviações
Apodeti, Associação popular democrática de Timor
ASEAN, Association of Southeast Asian Nations (Associação de Nações do Sudeste Asiático)
CDH-ONU, Comissão de Direitos Humanos da ONU
CPLP, Comunidade de Países de Língua Portuguesa
Fretilin, Frente Revolucionária de Timor Leste Independente
Funasa, Fundação Nacional de Saúde
Interfet, International Force for East Timor (Força Internacional para Timor Leste)
Marminca, Misión de Asistencia para la Remoción de Minas en Centro América
Minugua, Misión de Verificación de las Naciones Unidas en Guatemala
Minustah, Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haïti (Missão das Nações Unidas para a estabilização em Haïti)
Momep, Misión de Observadores Militares en Ecuador – Perú
Monua, Missão de Observação das Nações Unidas em Angola
ONU, Organização das Nações Unidas
Onuca, Observadores de las Naciones Unidas en Centroamerica
Onumoz, Operação das Nações Unidas em Moçambique
Onusal, Observadores de las Naciones Unidas en El Salvador
PALOPs, Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
Sebrae, Serviço Brasileiro de Apoio às Empresas
Senai, Serviço Nacional da Indústria
UDT, União Democrática Timorense
Unamet, United Nations Mission in East Timor (Missão das Nações Unidas em Timor Leste)
Unavem, United Nations Angola Verification Mission (Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola)
Unmiset, United Nations Mission of Support in East Timor (Missão de Apoio das Nações Unidas em Timor Leste).
Untaet, United Nations Transitional Administration in East Timor (Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste)
5Na década de 1970, quando houve a dissolução do império português com as independências de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, o Timor Leste também buscou ter o mesmo destino. No processo de definição da situação política da colônia, em meio às incertezas na metrópole, três grupos políticos surgiram no Timor, a UDT, que defendia a manutenção dos laços com Portugal, a Apodeti, que buscava integrar-se à vizinha Indonésia, e a Fretilin, que desejava a independência completa do país. Este último grupo era o mais numeroso e o melhor organizado politicamente.
6A independência do Timor chegou em 1975, com uma convulsão social dirigida pela Fretilin, que com isto se impôs aos outros dois movimentos e declarou a independência do país. A Fretilin professava ideais marxistas, o que provocava receio na região.
7A Guerra Fria era o mote das relações internacionais e a vitória da Fretilin era vista como um foco de expansão comunista no sudeste asiático. Deve-se lembrar que o Timor é um território encravado no meio da Indonésia (e esta é o maior arquipélago do mundo, com 18 108 ilhas), e o país foi fonte de disputas entre Portugal e Holanda (colonizadora da Indonésia) por vários lustros. A Indonésia foi reconhecida como país independente logo após a IIa Guerra Mundial, enquanto o Timor permanecia sob bandeira portuguesa.
8Desde sua independência, a Indonésia buscava aumentar sua influência no Timor, o que foi alcançado com a independência deste em 1975. Naquele momento, o governo de Suharto já estava no poder há dez anos e seu poder tinha por principal pilar as Forças Armadas. Assim, não é de estranhar o temor provocado nas autoridades do país de que a independência do Timor Leste incentivasse movimentos emancipatórios em províncias da Indonésia, como Aceh, Kalimantan e Irian Jaya.
9A partir de então, obstruir a consolidação do Estado timorense passou a ser encarada como questão de segurança nacional. O objetivo era garantir a frágil unidade política da Indonésia (Vatikiotis 1994 : 185). Em vista disso, as tropas indonésias invadiram o Timor Leste, dando início a vinte e quatro anos de dominação sobre o país. Finalmente, se realizava o objetivo holandês de subordinar todo o território da região ao seu domínio. Agora a Indonésia assumia este papel, pais que havia conquistado sua própria independência pouco mais de 25 anos antes.
10O processo de anexação do Timor Leste pela Indonésia foi marcado pela violência, pois os interesses e a cultura de ambos os povos eram demasiado diferentes, para não dizer incompatíveis. Os timorenses, que lutaram durante anos por sua própria independência, viam seus objetivos frustrados antes mesmo da comemoração da vitória. Por outro lado, os indonésios, para consolidar sua presença no Timor, entendiam ser necessário destruir qualquer vestígio da antiga presença portuguesa. Assim, os timorenses sempre foram tratados com muita truculência e, ao contrário das expectativas do novo colonizador, isso contribuiu para inviabilizar a integração de fato dos timorenses à sociedade indonésia. As denúncias de abusos na área de direitos humanos foram feitas ao longo dos anos e levaram à sensibilização da opinião pública internacional em torno do que se constituía como « causa timorense ».
11Desse modo, começou a ressoar nos fora internacionais questões envolvendo os conflitos no Timor Leste. As duas principais eram uma reedição daquilo que compôs a discussão quando do processo de independência do país de Portugal. Primeiro, lembrou-se do direito de autodeterminação do povo timorense que fora cerceado com a invasão do país por seu vizinho insular – conflito que, segundo a ONU, definia-se como « guerra injusta ». A segunda questão foi provocada pela violência da nova ocupação, com as crescentes e comprovadas denúncias de violações dos direitos humanos praticadas por forças de segurança da Indonésia.
12A questão timorense sempre girou em torno destes dois temas. A princípio os partidários da independência levantaram a bandeira da autodeterminação. Porém, o mundo apenas se sensibilizou com o Timor Leste quando vieram à tona as notícias de abusos, desmandos e massacres que o povo timorense sofria. Foi por meio da necessária defesa dos direitos humanos que o caso foi popularizado e passou a exigir uma solução com participação da comunidade internacional.
13O governo português contribuiu muito para a internacionalização do problema timorense, mormente por denunciar os abusos contra os direitos humanos cometidos pela Indonésia no país vizinho. Lisboa passou a militar de forma cada vez mais incisiva sobre as violações humanitárias praticadas por autoridades indonésias, assim como de defender o direito de autodeterminação do povo timorense. Fator importante para a internacionalização da questão timorense foi a entrada de Portugal na Comunidade Econômica Européia, âmbito no qual Lisboa denunciava a situação insustentável do Timor Leste.
14Em todo este processo, o governo brasileiro acompanhou atentamente os desdobramentos que pudessem vir à luz. Porém, não se envolveu diretamente na questão. Na época, o país buscava aproximar-se de países do sudeste asiático, pois eles apresentavam altas taxas de crescimento econômico e auspiciosos mercados consumidores. A Indonésia estava entre estes, expunha ao público consideráveis taxas de crescimento econômico e de formação de mercado consumidor profícuo. Não por acaso, a Indonésia estava entre os chamados « novos tigres asiáticos ».
15Havia, assim, o receio de que uma posição peremptória por parte do Brasil a favor do Timor Leste pudesse azedar as relações com Jacarta. Receio este que esteve presente até o momento da efetivação da independência timorense. A primeira abordagem do governo brasileiro ao tema, segundo Cunha (2001 : 200) foi : « Desde a primeira hora […] a posição brasileira foi de fidelidade ao princípio da autodeterminação, entendido este como direito do povo do Timor-Leste a expressar-se livremente sobre seu futuro, sem prejulgar as aspirações timorenses. Mas não cabia ao país assumir nenhum protagonismo naquele tema específico ».
16O governo brasileiro não se encontrava, portanto, em situação confortável a respeito da questão timorense. Por um lado, o Brasil buscava, a partir dos anos 1980, incrementar seu comércio exterior e, por isso, promoveu uma aproximação maior com os países da ASEAN, na qual a Indonésia ocupa posição destacada. Nessa direção, « o Brasil, encorajado pelo peso de sua economia [da Indonésia] e por sua crescente inserção num mundo a caminho da globalização, sentia-se apto a disputar, ao lado das potências industriais, nichos de oportunidade naquela promissora região » (Cunha 2001 : 198). Brasília entendia, então, que apoiar explicitamente a causa timorense poderia minar seus objetivos de estreitar laços com a região asiática.
17No entanto, esse distanciamento estratégico da questão foi rompido já nos anos 1980. Após o fim do regime militar, o Brasil passou a ter papel de maior destaque na ONU. É nessa época que a questão dos direitos humanos entra com mais força na agenda internacional e passa a ter importância renovada também na política externa brasileira.
18Em meados dos anos 1980, com o fim do regime burocrático autoritário e a instalação de um novo governo civil, o Brasil adotou uma nova orientação no cenário internacional, coincidente apenas em suas linhas mestras com aquele que vigorou ao longo dos anos sob os militares. Tal atitude envolveu uma redefinição de postura no âmbito das Nações Unidas e demandou novo posicionamento frente à entrada dos chamados novos temas na agenda internacional. Um desses novos temas era a questão dos direitos humanos. As violações humanitárias passaram a receber maior atenção por parte da comunidade internacional, o que aumentou ainda mais nos últimos decênios do século xx, particulamente em razão do término da Guerra Fria (Bartolomé 1999).
19Com o fim do regime militar, as questões humanitárias ascenderam na agenda política nacional : « abandonando posições conservadoras e defensivas que vinham caracterizando sua atuação na CDH-ONU, o Brasil inaugurou, em 1985, uma fase de progressivo engajamento nas atividades daquele foro. » (Cunha 2001 : 202). Exemplos desta nova postura brasileira estão no voto a favor das oito resoluções condenatórias à Indonésia pela Assembléia Geral da ONU e no crescente papel assumido na CDH-ONU.
20Naquele momento, o Brasil seguiu a posição dominante do sistema internacional. O fim da Guerra Fria, com a superação do conflito ideológico leste-oeste, levou a uma postura dos Estados, especialmente dos europeus, de não mais ignorar as arbitrariedades de governantes contra cidadãos de seu próprio país não, que passaram a não ser mais acobertadas. Também contribuiu para isso o aumento de guerras étnicas que assolaram diversas regiões do globo e que chocaram o mundo, aumento este diretamente relacionado ao fim do « conflito improvável, paz impossível » que, segundo Raymond Aron, marcou o período do conflito a frio entre EUA e URSS, fase em que os países centrais estimulavam com menor dissimulação sua interferência nas regiões em conflito. A própria ONU teve a sua atuação renovada no cenário político internacional, conforme aponta uma análise :
« A partir de 1988, teve início o período atual de operações multidimensionais. Tanto o fim da Guerra Fria quanto o reconhecimento da necessidade de dar conta de conflitos dentro dos Estados e de emergências humanitárias, reconfiguraram as missões de paz em praticamente todos os seus aspectos. As missões de paz passaram de missões de interposição e segurança para a gestão da segurança e da ordem pública, e de arranjos genéricos para estruturas multi-agências » (Brigagão & Proença 2002 : 119-20)
21Entretanto, mesmo condenando a Indonésia nos organismos internacionais, rechaçando sua postura colonialista e violenta diante do Timor Leste, Noam Chomsky (1997:125) acredita que países como Estados Unidos, Grã-Bretanha e França apoiaram discretamente Jacarta ao venderem armas ao país.
22Na prática, a ONU passou a se envolver em um número maior de conflitos, pois, com o fim da Guerra Fria, diminuíram, consideravelmente, os vetos dos membros permanentes do Conselho de Segurança, que tanto emperravam os trabalhos relativos à aplicação de sanções por violação dos direitos humanos, o que redundou não apenas no aumento quantitativos, mas também no próprio número de tarefas realizadas pelas tropas da ONU, como bem sintetiza Simone Pinto (2004 : 295) :
« A partir do fim da Guerra Fria, novas operações de manutenção da paz foram sendo empreendidas, com mandatos mais amplos e complexos, como monitoria de eleições, remoção de minas, verificação de respeito aos direitos humanos, distribuição de ajuda humanitária, reconstrução de Estados falidos, desarme e desmobilização de combatentes e muitas outras tarefas antes consideradas assunto puramente doméstico dos Estados ».
23Desejando assumir uma posição de destaque no sistema internacional, era inevitável que a chancelaria brasileira desse espaço crescente ao tema dos Direitos Humanos em sua agenda externa. Isso ajuda a explicar, em parte, a inclinação brasileira para a causa timorense e a busca por uma solução pacífica para o problema. Destaque-se ainda que a importância renovada que adquiriu a temática de direitos humanos na agenda política brasileira, acompanhou as próprias mudanças na sua política interna. O fim do regime autoritário no país exigia uma postura diferente da adotada entre 1964 e 1985. Um posicionamento firme na defesa dos direitos humanos era deveras importante para que ficasse evidente não apenas o interesse do Brasil em construir sua democracia, mas também que a sua política externa estava em sintonia com a ascensão de novos temas na agenda internacional, entre eles, exatamente, os direitos humanos.
24Pode-se sintetizar a trajetória da temática humanitária na política externa brasileira da seguinte maneira :
« A política exterior do Brasil envolveu-se com os direitos humanos de modo distinto, em três fases : ao ensejo e logo após a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, foi assertiva na promoção desses direitos adquirindo experiência no plano regional (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e global (Comissão de Direitos Humanos da ONU) ; a partir de 1960, em nome do constitucionalismo, mas em razão do regime autoritário, abandonou tal esforço, tomando posições defensivas e isolacionistas nos foros multilaterais ; com o fim do ciclo autoritário, remediou-se e recuperou-se, desde 1985, aquela assertiva original » (Cervo & Bueno 2002 : 466).
25Tomando outra direção, Celso Lafer (1990) defende que no processo de globalização, as regiões menos favorecidas foram a América latina e a África. Isto porque, por um lado, a prosperidade econômica da Ásia não se repetiu nas citadas regiões, especialmente devido aos graves problemas da dívida externa que ali se apresentavam. Por outro lado, diferente da redemocratização dos países do Leste Europeu, que foi acompanhada da possibilidade de aproximação com a Europa ocidental e lhes abriu caminho para sua entrada na União Européia, na África e América Latina, sobretudo no Brasil, não havia a mesma conjuntura favorável e, portanto, não se traduziram em oportunidades no campo da política internacional. Ao contrário, a interferência dos países mais ricos, notadamente dos EUA, ensejou um afastamento maior das regiões das decisões internacionais.
26Sendo assim, de certa forma à margem do processo de globalização, o Brasil procurou se inserir no mundo pós-conflito ideológico leste-oeste através de uma atuação mais ativa no seio da ONU. Ganhou força, nesse processo, a idéia de obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O Brasil, há tempos defende uma reforma no Conselho, que inclua novos membros permanentes, entre eles, países do mundo em desenvolvimento. O governo brasileiro acredita que o país possua as credenciais para ocupar uma das novas vagas e se tornar o representante da América latina na instância decisória máxima da ONU.
27Se o desejo era exercer papel destacado na ONU, o Brasil teria que adotar uma ação pró-ativa no apoio à agenda mundial, o que foi parcialmente obtido por meio da volta do Brasil, em 1988, ao Conselho de Segurança da ONU como membro não-permanente, depois de mais de vinte anos do país ter-se afastado dessa função (Aguillar 2002 : 47). Envolveu, igualmente, um engajamento maior do país em operações de paz das Nações Unidas. Assim, nos últimos 20 anos, o país apresentou-se nas seguintes missões : Europa : Croácia ; África : Angola, Moçambique, Ruanda/Uganda, Guiné-Bissau, Costa do Marfim ; Ásia : Camboja, Timor Leste ; América latina : Peru/Equador, Guatemala, El Salvador e Haiti.
28Nota-se, pois que o Brasil atuou em todos os continentes, mas, como já foi dito anteriormente, procurou papel mais ativo naquelas operações realizadas em regiões consideradas importantes para o governo brasileiro – América latina e países de língua portuguesa.
- 1 « Desmilhagem » significa a retirada e/ou desmontagem das minas terrestres que mutilaram e ainda mu (...)
29A importância dada pelo Brasil às ex-colônias portuguesas revelou-se, por exemplo, no conflito angolano, tendo o governo brasileiro enviado 1 200 homens divididos em três missões coordenadas pela ONU : Unavem I, II e III e Monua para o país. Entre os objetivos destas missões figuravam a saída pacífica das tropas cubanas do país, a negociação de um cessar-fogo entre as facções beligerantes, a organização de eleições e implantação de um programa de « desminagem ».1 Em Moçambique, o Brasil colaborou para a pacificação do país participando na Onumoz, que esteve no país entre 1992 e 1994 e que teve por comandante, durante 12 meses, o general brasileiro Lélio Gonçalves Rodrigues da Silva.
30Na América latina, o Brasil atuou, no pós-Guerra Fria, nas seguintes missões de paz : Onuca (Nicarágua), Onusal (El Salvador), Minugua (Guatemala), Marminca (América Central), Momep (Peru/Equador) e Minustah (Haiti) e, atualmente, está com soldados também na Guiné-Bissau, mostrando maior preocupação para com aqueles países ligados indelevelmente ao país, como seus vizinhos latinos e seus irmãos da CPLP.
31Conforme vimos discutindo, ao longo dos anos 1990, o país teve um papel mais ativo na causa timorense. Além dos votos em favor da ex-colônia portuguesa nos organismos internacionais, procurou atuar como mediador entre resistência timorense e governo indonésio, sendo diligente no processo que culminou com a independência do Timor. Embora vivendo sérios problemas orçamentários, o Brasil associou-se à ONU nas missões no Timor, tais como Unamet, Interfet, Untaet e Unmiset. Atualmente, vários projetos brasileiros desenvolvem-se no Timor Leste, como, por exemplo, a implantação e ensino da língua portuguesa.
32Em outubro de 1999, foi organizada a Untaet, com a missão de organizar a entrega do poder ao povo timorense. Para administrá-la, a ONU convocou o brasileiro Sérgio Vieira de Mello – falecido em missão do próprio organismo, no Iraque em 2003 –, cujo papel foi coordenar os trabalhos de reconstrução do país, falido pelo conflito com a Indonésia, e de estruturação do governo e do sistema produtivo no Timor Leste, garantindo um futuro democrático e economicamente inclusivo. Ainda hoje, o Brasil colabora em projetos educacionais e de capacitação profissional em território timorense.
33Evidencia-se, assim, que a questão da ex-colônia portuguesa na Ásia, passou a estar cada vez mais presente nas relações do Brasil com a Indonésia e também estreitou os laços com a Europa por meio de sua relação especial com Portugal. Vale dizer também que uma omissão por parte do Brasil poderia ser mal vista pelos países lusófonos, ardorosos defensores da causa timorense com quem o país procurava manter bom relacionamento. Como procuramos apontar citando as missões nos países africanos das quais o Brasil participou, o interesse brasileiro foi crescente em estreitar seus laços com os países de língua portuguesa, tendo o idioma por principal mediador na promoção de políticas de relacionamento do Brasil junto às nações da CPLP. O posicionamento brasileiro sobre a causa timorense tinha importância nesse processo, uma vez que os PALOPs eram amplamente favoráveis ao direito de autodeterminação do povo timorense. A Fretilin, diga-se de passagem, mantinha escritórios nas cidades de Luanda e Maputo para ajudar a divulgar a sua causa no exterior (Cunha 2001 : 186).
34Outra razão que levou o governo brasileiro a atuar no Timor foi a oportunidade de participar de uma operação de paz da ONU que esteja em franca sintonia com os interesses nacionais, entre os quais está o de ser alçado a membro permanente do Conselho de Segurança considerando a ampliação deste com a possível reforma daquela. Contudo, talvez o fator determinante tenha sido a própria forma como o Brasil encara seu relacionamento com as demais nações, que se baseia nos princípios do respeito às diferenças e da solução pacífica dos conflitos :
« A atuação brasileira em termos de missões internacionais é consistente quando considerada à luz dos princípios de igualdade das nações e apoio a soluções pacíficas que pautam a política externa. Há uma distinção brasileira nessa participação : ao contrário de outros países, o Brasil claramente privilegia as regiões que sua política externa considera prioritárias, como as Américas e a África, emprestando substância da ação ao conceito do entorno pacífico e sua vizinhança » (Brigagão & Proença 2002: 124-125).
35A questão timorense ganhou importância na percepção brasileira na medida em que o envio de tropas para o Timor representou uma ruptura com o que era feito até então em termos de participação brasileira em operações de paz. Historicamente, o Brasil considera a autodeterminação dos povos como um dos valores maiores nas relações entre os Estados. Dessa forma, o governo brasileiro nunca apoiou explicitamente as chamadas operações de interposição, ou seja, aquelas em que não há anuência das partes envolvidas para a intervenção.
36Essa mudança de posicionamento apresentou-se nos últimos anos, uma vez que no Brasil sempre buscou respeitar a autodeterminação dos povos, o que lhe obrigava a intervir apenas quando as partes consentiam. Entretanto, no caso do Timor, o país atuou na Interfet, uma missão coercitiva, o que evidencia a importância da questão timorense na pauta externa brasileira, pois representou uma ruptura em relação às justificativas empregadas para atuar em operações de paz. Também revelou uma nova forma de Brasília encarar a política exterior em matéria de segurança internacional.
37Em síntese, o Brasil contribuiu significativamente no processo de transição política do Timor, tanto ao enviar técnicos eleitorais quanto militares para as operações de paz da ONU. Desde o início dos anos 1990, é consenso que a participação brasileira em operações de paz é importante tanto para os países nos quais atua quanto para atingir seus interesses, mormente o de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ainda que a escassez de recursos financeiros seja um obstáculo considerável, o Brasil se envolveu em missões de paz em Angola, Moçambique e Haiti, entre outros. A mesma motivação impulsionou as tropas brasileiras para o Timor.
38Reforce-se que o Brasil ainda coopera com o Timor Leste em diversas áreas, mesmo após a independência oficial em 2002, através da Agência Brasileira de Cooperação (ligada ao Ministério das Relações Exteriores), que desenvolve projetos de cooperação bilateral nas áreas de educação (ensino da língua portuguesa), saúde (apoio da Funasa), capacitação profissional (apoios do Sebrae e do Senai) e administração pública. O governo brasileiro, portanto, tem contribuído significativamente para a implantação e consolidação do português como um dos idiomas oficiais do Timor Leste, ao lado da língua nativa, o tétum (Cunha 2001 : 238-240). Além disso, mantém projetos de fomento ao desenvolvimento local com o objetivo de ajudar o país em seu longo caminho rumo à consolidação política e econômica.
* * *
39Buscamos mostrar ao longo deste texto que a questão do Timor Leste teve papel de destaque na política externa brasileira dos anos 1990. É possível perceber que o envolvimento do Brasil na temática contou como uma série de condicionantes e objetivou diferentes propósitos.
40Primeiro, temia-se que um posicionamento pendente para um dos lados pudesse prejudicar as relações brasileiras com o outro litigante, temor este que sinalizava a importância que têm a Indonésia e os países de língua portuguesa para o cálculo externo do Brasil. Isso explica o esforço brasileiro para ser um honest broker entre as autoridades indonésias e as lideranças mauberes.
41Segundo, destacou-se que a causa timorense ganhou força na época em que o Brasil passava pelo período de transição do regime autoritário para o democrático. Essa mudança de regime demandou uma postura diferente do Brasil no concerto de nações, sobretudo na ONU. Foi nesse período, igualmente, que o tema dos direitos humanos entrou com força na agenda internacional e, de certa forma, motivou os formuladores de política externa do Brasil a repensar o tema. Com isso, o governo brasileiro passou a defender com maior ênfase os direitos humanos e, conseqüentemente, uma solução pacífica ao impasse no Timor.
42Por último, mencionou-se que as operações de paz da ONU no Timor Leste foram uma nova oportunidade de participação do Brasil em empreendimentos internacionais, e que se revelaram de grande importância para a diplomacia brasileira, pois constituem parte da tentativa brasileira no seu pleito uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, caso haja uma reforma.
43Tudo isso faz parte do objetivo de redefinir o papel do Brasil no mundo pós-Guerra Fria. O envio de militares brasileiros ao Timor – e também a outros países –, bem como estreitar relacionamento com países fora do eixo Europa – Estados Unidos, ampliando sua participação na América latina, na África e na Ásia são desafios importantes para o Brasil do século xxi, que pretende ter papel de maior relevância nas relações internacionais e garantir o seu status de global player.
44Novembro de 2005