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AccueilNumérosXII(1-2)La recherche : Genre et rapports ...Le genre à la maison, au travail ...Mutirões, empates e greves

La recherche : Genre et rapports sociaux dans les espaces lusophones
Le genre à la maison, au travail et dans la maison

Mutirões, empates e greves

Divisão sexual do trabalho guerreiro entre famílias de quebradeiras de coco babaçu, no Brasil
Mobilisations, hésitations et grèves : la division sexuelle de la guerre du travail entre des familles de casseuses de coco babassu, au Brésil
Mobilisation, Hesitation and Strikes: Sexual Division in Labour Warfare between “Babaçu” Coconut Workers in Brazil
Maristela de Paula Andrade
p. 175-189

Résumés

Cet article traite d’un mouvement de familles de travailleurs dans l’extraction agricole, dans l’État du Maranhão, Nordeste du Brésil, dirigé essentiellement par des femmes, dont l’objectif principal est dans l’extraction, la préparation et la commercialisation du coco babassu et des produits dérivés. Il met en lumière la lutte pour la réforme agraire et pour le libre accès aux ressources forestières ainsi que les stratégies empreintes de relations sexuées enregistrées lors des moments les plus aigus des conflits.

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Maranhão, Brésil
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Notes de l’auteur

Este artigo foi redigido em janeiro de 2005. O trabalho de campo por meio do qual levantaram-se as informações que lhe servem de base foi realizado nos meses de dezembro de 2003, janeiro e fevereiro de 2004, em conjunto com Luciene Dias Figueiredo, no âmbito da pesquisa Olhar Crítico – casos bons para pensar, coordenada pela Action Aid Brasil e da qual participaram também pesquisadores do IDS (Institute of Development Studies, da Universidade de Sussex). Josoaldo Lima Rêgo, geógrafo, assistente de pesquisa, também realizou entrevistas, em abril de 2004. Essa pesquisa originou uma primeira versão do texto intitulado « Na lei e na marra – a luta pelo livre acesso aos babaçuais », M. de Paula Andrade & L. de Dias, in Olhar crítico sobre participação e cidadania, Rio de Janeiro, Action Aid Brasil, 2005.

Texte intégral

1Este trabalho responde a um gênero de antropologia praticada no Brasil por vários pesquisadores e professores, chamada por alguns de antropologia engajada. Seria aquela desenvolvida por antropólogos que estão presentes tanto nas universidades públicas quanto junto aos movimentos sociais, seja assessorando-os diretamente, no âmbito de trabalhos de pesquisa ou de aplicação de conhecimentos, seja apoiando-os politicamente de distintas formas e em diferentes fóruns, oferecendo-lhes um saber especializado, sempre que solicitados.

2O acompanhamento direto ou indireto, durante um tempo estendido, do desenrolar de projetos econômicos, de educação e outros, tem permitido a esses antropólogos e a seus alunos, romper com a dicotomia teoria versus prática e possibilitado uma interlocução, com os intelectuais orgânicos desses grupos sociais, que despontaram ao longo de décadas de lutas. No caso em questão, com mulheres e homens que lideraram lutas pela reforma agrária, por condições para permanecer produzindo na terra e agregando valor a seus produtos, para colocar sua produção no mercado, para sentar-se às mesas de negociação com integrantes da burocracia estatal, fazendo-se enxergar e respeitar como sujeitos políticos.

3Este artigo trata de um movimento de famílias de trabalhadores agro-extrativistas liderado principalmente por mulheres, tendo na extração, beneficiamento e comercialização do coco babaçu, e dos produtos dele derivados, o seu foco principal. A palmeira de O babaçu (Orbignya phalerata) é uma palmeira, característica de uma cobertura florestal secundária, registrada em vários estados do Brasil como Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, Sudeste do Pará, Piauí, Tocantins e Maranhão, cuja incidência maior, porém, verifica-se nos quatro últimos, onde as chamadas quebradeiras de coco estão organizadas num movimento interestadual.

  • 1 . C.C. Martins, Os deslocamentos como categoria de análise, dissertação de mestrado, Universidade F (...)

4Estima-se que 300 mil pessoas estejam hoje envolvidas na extração do coco babaçu nos quatro estados citados, muito embora esse número seja, ainda, impreciso. O certo é que a economia do babaçu tem um peso importante nos sistemas de produção familiar de alimentos dessas regiões e, conforme as particularidades de cada uma delas, articula-se ao cultivo da terra, à pesca, à extração de vegetais, à caça, ao artesanato e, igualmente, à saída de homens em idade adulta para os garimpos – locais de extração aurífera1, assim como à venda temporária da força de trabalho masculina em atividades agrícolas ou à saída de membros jovens das famílias – homens e mulheres solteiros – para exercer trabalhos urbanos.

  • 2 . Massa que se encontra entre a casca e a entrecasca do coco babaçu e com a qual produzem uma espéc (...)
  • 3 . No final dos 1980 essas áreas foram desapropriadas para fins de reforma agrária, no contexto da c (...)
  • 4 . Os cocos são coletados nos palmeirais e, conforme a distância, trazidos no lombo de animais ou tr (...)

5Tanto no Maranhão quanto em outros estados, como o Tocantins, o Piauí e o Pará, as quebradeiras de coco – categoria de autodefinição que se consolida como categoria de relação política com o mundo externo, a partir de meados de 90, estão organizadas em associações, cooperativas, movimentos de articulação política, contando também com o apoio de entidades e organizações específicas, sejam de assessoria, dirigidas por técnicos, ou de trabalhadores, com a presença de técnicos, mas sob controle dos primeiros, como é o caso da ASSEMA (Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão), integrada por várias associações, localizadas em povoados do interior de distintos municípios. Nesses povoados, as quebradeiras de coco babaçu estão organizadas economicamente, seja produzindo sabonetes do óleo do babaçu, papel reciclado com fibras de distintos tipos, compotas e frutas cristalizadas, farinha do mesocarpo do babaçu2. Nessa organização, destacam-se a COOPALJ (Cooperativa de Pequenos Produtores Agro Extrativistas de Lago do Junco) e as chamadas cantinas a ela associadas, pequenos comércios controlados pelos sócios, entrepostos estes responsáveis pela compra das amêndoas de coco babaçu e pela venda de gêneros de primeira necessidade às famílias. Tal organização rompeu com a cadeia de atravessadores que a oprimia e explorava no antigo sistema, antes da conquista da terra, nos anos 19803. As entrevistadas recordam que, naquele momento, necessitavam quebrar4 10 kg de coco, resultado do trabalho de todo um dia, para comprar um kg de arroz – um dos alimentos básicos da dieta camponesa na região – nos comércios dos que tinham o monopólio da compra das amêndoas ou seja, dos comerciantes que eram, em muitos casos, também os proprietários da terra ou a eles estavam vinculados.

A região em estudo

6A região sobre a qual incide nossa reflexão, passa a conhecer um amplo processo de apropriação fraudulenta de terras públicas, chamadas no Brasil de grilagem, a partir dos anos setenta do século passado, como ocorre em todo o estado do Maranhão. Grande número de famílias camponesas ficou excluído do acesso à terra, exceto aquelas que mantiveram sob controle pequenas propriedades, recebidas como herança, com ou sem formalização legal da partilha.

  • 5 . Uma ilustração das contradições vividas por essas famílias nos anos 1960 encontra-se no filme de (...)

7Passa-se a assistir, portanto, a um agravamento da situação de fechamento do acesso aos recursos básicos, que já vinha se intensificando desde os anos 1950, quando da migração em massa, para essa região, de famílias camponesas de outros estados do Nordeste do Brasil, atingidos pela seca e por contradições na estrutura agrária, fazendo aumentar a demanda por terra e, assim, subir o preço do seu aluguel5.

8Há, portanto, uma situação de tensão latente atravessando as décadas de 1950 e 1960, que se agrava como resultado da política oficial de incentivo à pecuária e da substituição das áreas agricultáveis pelo capim nas décadas seguintes. Além dos problemas anteriores enfrentados pelas famílias camponesas – altos preços do aluguel da terra, invasão das áreas de cultivo pelo gado dos proprietários, obrigatoriedade de vender as amêndoas do coco babaçu e de comprar os produtos que não produziam somente nos comércios dos proprietários das terras – os trabalhadores se vêem às voltas, na década de setenta, com a proibição de adentrar nas pastagens dos chamados fazendeiros – as soltas – para daí extrair o babaçu.

9Fechada a possibilidade de implantar suas lavouras livremente ou mesmo pagando altos preços pelo aluguel da terra, restou às famílias, como alternativa de sobrevivência, somente a extração do babaçu. Embora o preço pago pelos atravessadores pelas amêndoas fosse aviltante, restava às famílias apenas esse recurso para prover sua manutenção.

10Por outro lado, a fertilidade dos solos caiu bastante, com o fechamento das terras e a impossibilidade de respeitar o período de pousio, historicamente praticado pelos camponeses que adotam a derrubada e a queima para preparo do solo, tornando mais vulnerável a situação dessas famílias de pequenos produtores de alimentos. Submetidos aos comerciantes, que pagavam preços aviltantes pela produção camponesa e, igualmente, praticavam altos preços para a venda dos produtos industrializados ou do próprio arroz, as famílias viviam uma situação limite.

11Frente ao comprometimento da sua reprodução física, o extrativismo – uma atividade econômica preponderantemente feminina – passou a ser praticado por todos os membros da unidade doméstica, inclusive homens e crianças e a extração, a quebra e a venda diária das amêndoas tornou-se crucial à manutenção dos grupos familiares. Ocorre que os comerciantes, em geral os próprios donos das terras, haviam instituído o sistema do chamado vale, pagando apenas nos finais de semana, de acordo com o que cada um quebrara. Em outros casos, impuseram a chamada quebra de meia, na qual as mulheres se viam obrigadas a entregar metade das amêndoas. Por fim, com o avanço da pecuarização e, portanto, das cercas de arame, e diante da insistência das famílias em penetrar essas áreas, agora privadas, os proprietários de terras passaram a arrendar a extração e a quebra do coco a terceiros, obrigando as mulheres a quebrar em galpões, chamados barracões, dentro das próprias fazendas.

12Da penetração às escondidas nas fazendas, para coletar e quebrar os cocos, passando por debaixo das cercas ; da recusa em vender as amêndoas para os pretensos proprietários das terras, as mulheres passaram a promover quebras em sistema que chamam de mutirão. Antes, as mulheres já quebravam no sistema que chamam de adjunto, em que se reuniam em grande número para entreajudar-se, como resultado de um sistema de reciprocidade positiva. No caso dos mutirões, já no contexto da resistência às interdições que vinham sofrendo para penetrar nos babaçuais, grandes grupos de pessoas – mulheres, homens e crianças – passaram a adentrar nas áreas das fazendas e a quebrar todo o coco que encontrassem coletado pelo arrendatário. Este último, em muitos casos, era um trabalhador abastado, com maior número de filhos e que arrendava a chamada solta para colocar terceiros para quebrar o coco. Em reação a essa nova forma de exploração de seu trabalho, em várias situações, esses grupos de mulheres, homens e crianças passaram a romper as cordas que sustentavam os chamados jacás, cestos carregados nos lombos dos animais, cheios de coco. Chegaram a queimar jacás e barracões. O clima de tensão se tornava cada dia mais agudo.

13Diante do avanço das famílias, em meados dos anos 1980, os proprietários, em represália, passaram a derrubar as palmeiras, inicialmente com machado e, depois, com máquinas. Nesse momento, a rebelião se espalhou, atingindo toda uma região. Estava instalada a luta não apenas pelo acesso aos palmeirais, mas pela terra. Instaurava-se uma verdadeira guerra envolvendo, de um lado, as famílias camponesas e seus aliados, principalmente a Igreja Católica e, de outro, proprietários de terra, pistoleiros, vaqueiros, delegados de polícia, políticos.

14Aconteceram ataques a povoados, prisões, mortes de ambos os lados. Homens e mulheres se movimentavam, elaborando estratégias de resistência, dividindo-se para enfrentar a luta pela sobrevivência e a guerra contra os proprietários. Há, nesse momento, uma divisão sexual do trabalho guerreiro, expressa muito claramente nos depoimentos. Surge a quebradeira de coco como sujeito coletivo, muito embora a luta tenha envolvido mulheres, homens, jovens e crianças, como resultado de estratégias de resistência postas em prática pelo conjunto das famílias.

15Nosso artigo trata de um dos aspectos dessa movimentação, qual seja o das estratégias desenvolvidas por essas famílias para enfrentar os antagonistas e conquistar a terra, mais exatamente da memória sobre os acontecimentos dos anos 1980, tal como relatados hoje por mulheres e homens que deles participaram e que hoje ocupam cargos e funções importantes na organização econômica e política das quebradeiras de coco.

Mutirões, empates e greves6

  • 6 . A categória mutirão é empregada em muitas regiões do Maranhão, pelos camponeses, para se referirm (...)

16As famílias foram enfrentando situações cada vez mais humilhantes para que as mulheres pudessem vender as amêndoas aos proprietários da terra. As possibilidades de acesso aos babaçuais tornavam-se cada vez mais difíceis e, simultaneamente agravava-se a situação de expoliação do produto do trabalho dessas famílias :

  • 7 . Dona Antónia, casada, mãe, avó, sócia da AMTR (Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais), pro (...)

Antónia — … O Adelino começou também botar a pessoa pra ir comprar coco lá dentro [da pastagem, chamada pelos trabalhadores de solta] aí, já pensou que sufoco ? Eu sei que tinha que ficar esperando, a chuva cai e não cai, aquele temporal e as palmeiras balançando, e você ficava, não podia ir embora porque era pra vender era de litro [o fazendeiro mandava um empregado vir pesar as amêndoas] […] foi uma conseqüência que foi fazendo a gente sentir que tava reprimida mesmo »7.

17Diante da situação limite em que estavam colocadas as famílias, sem terras para cultivar e tendo interditado o acesso aos babaçuais, as mulheres passaram a reagir fortemente aos constrangimentos a que vinham sendo submetidas. Humilhações como apreensão de instrumentos de trabalho, de cestos de coco já coletados, ofensas, ameaças diretas, com casos, inclusive, de agressões físicas, desencadearam a reação das famílias em vários municípios, com o apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e da Igreja Católica :

  • 8 . Diocina, conhecida como Dió, moradora de Ludovico, Lago do Junco, integrante do MIQCB.

Dió8 — Uma das coisa que chamou mais atenção da mobilização mais assim, mais conscientizado, foi a questão mesmo da gente se reunir no sindicato, né […] aí a gente começou se organizar, começou a discutir o evangelho também […] fazia leitura do evangelho, e refletia, puxar pela vida, pra vida de hoje a gente ia refletir a vida de Cristo, né, naquele tempo… […] aí eu ficava matutando : se eu vou sozinha pra solta, né, lá o vaqueiro me embrulha mesmo de taca [agride fisicamente], mas se eu for mais quatro ou cinco lá nos enfrenta ele e era isso que acontecia, aí se começou enfrentar vaqueiro, começou a trabalhar o babaçu mesmo […] aí começamos também a cortar jacá de fileira de animal que eles botava pra juntar coco, queimar depósito de jacá com coco, assim… ».

18As primeiras manifestações de resistência, além daquelas que já vinham sendo colocadas em prática cotidianamente pelas mulheres, como adentrar nas pastagens por baixo do arame, enfrentando a fúria dos vaqueiros, foram essas, dos chamados mutirões. Grupos grandes de mulheres e, em alguns lugares, de homens, mulheres e crianças, passaram a se reunir para quebrar o coco coletado pelos arrendatários, conforme conta seu Antonino, velha liderança do povoado São Manoel, município de Lago do Junco, líder das lutas pela terra e pelo acesso livre aos babaçuais, tendo sido preso e torturado na prisão.

  • 9 . Maria Alaydes, casada, mãe, avó, sócia da COPPALJ, sócia da AMTR, sócia da associação do Assentam (...)

19Dona Maria Alaydes9, atual vereadora de Lago do Junco, pelo PT (Partido dos Trabalhadores), assim resume o que considera as etapas das lutas :

M. Alaydes — A gente enfrentou o fazendeiro, enfrentou os pistoleiro, enfrentamos o próprio vaqueiro… isso se deu em três etapas : a primeira etapa da gente roubar o coco, que a gente dava esse nome… a segunda etapa da gente se dispor em mutirão e quebrar disposta a apanhar ou correr e a terceira etapa foi impedir a derrubada das palmeiras ».

20Seu Antonino assim se manifesta a respeito :

  • 10 . Antonino, casado, pai, avô, sócio da COPPALJ, diretor da EFALJ (Escola Família Agrícola de Lago d (...)

Antonino10 — … O proprietário que se dizia dono da região botou alguém pra comprar o babaçu […] começou a mandar juntar o babaçu na carga e dando de meia que nem a nossa companheira já falou. Era, quebrava a metade, ficava com a casca e vendia o outro, mas era comprador de tudo, não podia tirar pra ninguém, tinha que vender lá, além de quebrar de meia, que era cinqüenta por cento deles lá, esses cinqüenta por cento eles tinham que comprar… aí, depois, começou mandar juntar na casa e vender de carrada e a gente não resistia mais porque não tinha mais onde apanhar babaçu de jeito nenhum e a sobrevivência do pessoal era o babaçu e aí a gente resolveu formar um mutirão e quebrar […] e nós fomos pra lá, tinha umas trinta e cinco pessoas, quarenta, fomos quebrar coco […] homens e mulheres ».

  • 11 . Acerca dos princípios que regem os sistemas de classificação dos recursos naturais vide M. de P. (...)
  • 12 . E. Thompson, Tradición, revuelta y conciencia de clase, Barcelona, E. Critica, 1979.

21Os fundamentos da argumentação dos trabalhadores, nesse como em outros momentos, são a necessidade da sobrevivência e também o fato de que os proprietários não haviam comprado babaçu e sim a terra, o que denota representações em torno da apropriação desse vegetal regendo sistemas de classificação dos recursos naturais11. Tais fundamentos não excluem, também, princípios éticos, no âmbito do que poderia ser pensado como uma economia moral dos pobres12. O fato de ser considerado um bem da natureza, independentemente da ação humana, fundamenta as concepções em torno da impossibilidade de sua apropriação privada, da absoluta interdição de sua transformação em mercadoria, em objeto de negócio :

Antónia — E o babaçu também é uma coisa nativa, que ele tinha nascido e se criado e ninguém tinha aguado e tava hoje dentro da propriedade privada, porque eles não compraram o babaçu, eles negociaram terra, não o babaçu ».

22Por outro lado, em represália à ação das famílias, quando iniciaram os mutirões, inclusive com queima de jacás e dos depósitos dos que haviam arrendado o coco, os proprietários trataram, então, de derrubar os babaçuais, o que provocou a realização dos chamados empates :

  • 13 . Domingas Leite, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associaç (...)

Domingas13 — Porque os fazendeiros não deixavam a gente panhar coco nas soltas deles, eles é quem panhavam o coco botavam debaixo de uma casa grande […] fazia aqueles galpaozão e botava as mulheres pra quebrar o coco pra eles comprarem […] aí a gente viu que isso não tava certo… "nós vamos entrar e quebrar" e ajuntava aquele horror de mulher, vinte, trinta mulher, sentava e quebrava […], com medo e tudo… e aí o que eles fizeram ? Botaram gente pra vir derrubar as palmeiras, porque não tinha jeito pra nós sair de dentro da solta, botaram gente pra derrubar as palmeira, aí junto foi os homens mesmo, muito homem, chegava, empatou derrubar palmeira… por aí começou a gente se achar livre… ».

  • 14 . E. Wolf, Sociedades Camponesas, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, e do mesmo autor, Guerras camponesas (...)

23Os depoimentos denotam os momentos de uma situação de tensão que atingira o limite do suportável pelas famílias, exauridas e com a reprodução física comprometida. Nesse sentido, se poderia refletir sobre a capacidade de rebelar-se dos camponeses14. Neste caso, mobilizam-se, os mais afetados pela fome, em determinados momentos do ciclo de desenvolvimento das famílias, ou seja, quando existem poucos braços para o trabalho e grande número de crianças.

24A partir da realização dos mutirões para quebra de coco dentro das pastagens, os fazendeiros iniciaram a derrubada das palmeiras, como forma de reprimir a entrada das famílias no que consideravam como suas propriedades privadas. A reação dos trabalhadores foi muito forte :

  • 15 . João Valdecy, pai, casado, sócio da COPPALJ, da associação do assentamento Centrinho do Acrísio, (...)

João Valdecy15 — … eu me lembro que em 1984, no dia 30 de agosto, nós fizemos um mutirão, nós era trinta e quatro pessoas, nós fomos impedir uma derriba de palmeira na solta de doutor Manoel […]. Fomos pra lá, eu ia na frente, o pessoal todo com medo, se mandemos pra lá trinta e quatro pessoa… […] Mulher, homem, menino, um bucado de gente… eu sei que chegamos lá já tinha três cabras derrubando […] pedi o machado, ele me deu… nós ia queimar, tocar fogo no machado lá, aí como eles foram bem educado, aí nós demos… começamos uma conversa boa, eles eram mandados de Dr. Manoel, nesse tempo ele era prefeito… ».

25Os mutirões se alastraram por vários povoados, que passam a agir em conjunto, de acordo com estratégias e divisão do trabalho de luta.

  • 16 . Zezé, casada, mãe e avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do ass (...)

P. — E quem falava quando chegava lá, vocês já estavam tudo combinado quem ia falar ? :
Zezé — Era, a gente saía daqui já tinha as pessoas que ia passar lá […] quem falava mais assim na frente lá dos vaqueiros era Celé, as vezes eu, aí dos homens era o António Leite e o João Valdecy, era os que falavam mais na frente deles, quando não era eles era o Carlo, meu irmão […] a gente conversava primeiro em casa, se reunia um grupo aí, se sentava as vez aqui… ficava fora daquela estrada ali, sempre passa gente mais pouca aqui… nós se reunia ali na casa do forno aí ficava sempre uma pessoa olhando quem vinha quem não vinha pra gente decidir quem ia falar, como a gente ia dizer… era assim que era…
16.

P. — Como é que vocês se organizavam, tinha reunião, se combinava ? :
Antónia — Era assim… era tão bom da gente se reunir naquele tempo porque acho que o medo, sabe, fazia a gente se reunir. A vontade, a necessidade… Bastava uma pessoa passar aqui, dizer : "tem uma conversa hoje"… não dizia nem que era reunião… "tem uma conversa hoje em tal lugar"… ou era na casa de farinha
[local onde fabricam a farinha de mandioca] ou lá detrás da casa de uma pessoa que tinha um terreiro de cozinha bem bom… »

Divisão sexual do trabalho guerreiro

26Os depoimentos indicam estratégias, planejamento, cálculo das ações, uma divisão sexual do trabalho de guerra, na qual transparecem valores, representações acerca das relações entre homens e mulheres nesse tipo de sociedade, conforme se tentará demonstrar.

27Quando recrudesce a luta pelo acesso aos babaçuais, em que os proprietários de terra passam a destruir os palmeirais, os conflitos se somaram, sucedendo-se, alastrando-se por vários municípios. Pessoas de um povoado passaram a reforçar a luta de outros e a luta pelo coco transformou-se em luta pela terra, havendo uma passagem dos mutirões e empates para um estado denominado pelos informantes de greve, de greviar, categorias utilizadas para indicar que a luta se agravara, tornando-se, nos seus termos, mais pesada, podendo envolver confrontos diretos, com mortes, prisões, destruição de povoados pela polícia. Nesse momento, as famílias mobilizam-se em conjunto – mulheres, homens, jovens e crianças :

  • 17 . Leonildes, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do (...)

Leonildes — Rapaz, a gente tinha sempre reuniões e conversava daquilo que eles falava de fazer, aí a gente começava a se planejar o que a gente ia fazer […] nós se juntamos, fizemos reunião lá na comunidade e contou como era que o fazendeiro ia fazer com a propriedade, derrubar todo o babaçu (…) até que nós aqui não sofria tanto que nem as pessoas lá do Ludovico, mas eles não se achava com tanta coragem, precisava a gente tá junto com eles, pra dar força pra eles, aí nós começamos a entrar e pegar o coco […] aí já tinha gente indo embora de Ludovico porque não tinha coragem de greviar […] quando a coisa engrossou aí teve que ir, foi todo mundo, viu ? foi homens, mulher, menino e tudo […] quando foi com trator já, foi homem, mulher, já não foi mais só mulher pedir pra que eles não devorasse o babaçual. Aí ficaram naquela confusão toda, aí a gente passou a lutar mesmo pela terra, não foi mais nem pelas palmeira, já foi mesmo pela terra... »17.

  • 18 . Para maior aprofundamento das situações de conflito agrário, no período, no Maranhão, sobretudo n (...)
  • 19 Cf. MIRAD (Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário), Brasília, Conflitos de Terra 1985 (...)

28O que se passa a observar na região, nos anos 1980, é uma guerra não declarada, com lutas, tiroteios, prisões, mortes de ambos os lados – aquele dos camponeses e o dos pistoleiros de aluguel, dos capatazes, dos vaqueiros e encarregados de fazenda. Há ocorrência de emboscadas, de invasão e destruição de povoados com emprego de milícias privadas e da polícia, de derrubada de casas, escolas e igrejas, fatos que foram documentados em inúmeros trabalhos acadêmicos18 e relatórios de órgãos oficiais19. Existe, porém, uma memória camponesa acerca dos conflitos que ainda está por ser resgatada e analisada.

  • 20 . Para aprofundamento sobre economia camponesa e conceituação de camponês, ver A. Chayanov, The The (...)

29Essa guerra é enfrentada pelo conjunto das famílias atingidas, propiciando a criação de laços de solidariedade entre povoados e entre municípios. A repressão à coleta e quebra do babaçu contribuiu para unir famílias que praticavam a extração do babaçu. Como não poderia ser diferente, em se tratando de famílias camponesas20, ocorreu também uma divisão sexual do trabalho de enfrentamento dos antagonistas. Homens e mulheres, de diferentes maneiras, viram-se diante da tarefa de lutar pelo acesso aos babaçuais. Em diferentes momentos e, certamente, com particularidades conforme cada povoado, passam a agir ora separados ora em conjunto. Crianças e jovens viram-se também envolvidos, assumindo tarefas que lhes eram específicas no conjunto do trabalho de guerra.

30Há copiosos depoimentos sobre a participação de mulheres e homens nas lutas, em ações planejadas, coordenadas, conforme regras e códigos próprios a esse tipo de sociedade. Nas práticas desencadeadas por essas famílias, a relação de gênero esteve sempre presente, determinando o maior ou o menor envolvimento na luta, conforme os papéis desempenhados na divisão sexual do trabalho e de acordo com regras, valores, representações que regem as relações entre mulheres e homens camponeses.

31Evidentemente, as atividades econômicas com base na extração e quebra do coco babaçu ganham repercussão política, contribuindo para o surgimento de um sujeito coletivo – as quebradeiras de coco babaçu e ampliando a luta, não mais apenas pela terra e pelo coco, mas por uma cosmovisão, que hoje se manifesta em distintas organizações internas a esses grupos, inclusive uma escola para seus filhos, dirigida por membros dessas famílias, com calendário e estrutura curricular próprios, porém reconhecida oficialmente.

32No âmbito do que estamos denominando de trabalho de luta, trabalho de guerra ou trabalho guerreiro, a maior ou menor participação de homens ou de mulheres, o momento e as formas segundo as quais ocorreu, variou conforme a situação e de acordo com uma avaliação prévia acerca do que é considerado pelo grupo como a gravidade do enfrentamento com os antagonistas.

33Nos chamados mutirões para quebra do coco que havia sido recolhido para ser quebrado de meia, estiveram presentes, em muitos casos, homens, mulheres e crianças. Eram momentos em que todo o grupo era chamado a participar, dado o caráter desse tipo de enfrentamento, já que a atividade deveria ser feita rapidamente, antes que chegassem os vigias das fazendas.

34Algumas entrevistadas distinguem os atos voltados aos empates daqueles outros, próprios da luta pela terra, que denominam greve. Em alguns depoimentos aparece a presença do homem junto com as mulheres, nos empates enquanto em outros, a presença do homem se dava mais na chamada greve.

  • 21 . Moça, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do asse (...)

P. — Você falou que ia de cinco, dez, até vinte mulheres… tinha só mulheres ou tinha homens também, crianças, como era o empate, como é o empate ? :
Moça — … quando a gente sabia que eles tavam derrubando, aí a gente fazia
um grupo de dez mulheres e ia lá, aí não conseguia empatar… aí depois a gente voltava, juntava mais mulheres, crianças… homens não… eles nunca se meteram assim empatar não, eles não iam junto com a gente… eles iam quando a gente partia direto pra greve, já lutar pela terra, né, aí sim era com eles, mas na hora do empate da derruba é sempre as mulheres que vão »21.

P. — Tem diferença do empate e da greve ?
Moça — Tem, tem, porque eles lutar pela terra era uma coisa, né, você tá brigando pra adquirir aquela terra pra você, aí é a greve e empatar a derruba do coco não… porque você só tá querendo que eles parem de derrubar as palmeiras pra poder você ter onde coletar o coco ».

35Em vários depoimentos, porém, aparece um estado de alerta de parte dos homens, de modo que estariam presentes caso fosse necessário. Sendo assim, estavam presentes, mesmo que não o estivessem, fisicamente falando. Além disso, nota-se que os informantes falam, ao mesmo tempo, das lutas passadas nos anos 1980 e dos empates atuais, mesclando passado e presente. Isto ocorre porque, a luta pelo acesso aos babaçuais continua nos dias atuais, sendo que a tarefa de impedir as derrubadas está a cargo das mulheres.

  • 22 . Dora, casada, mãe, sócia da AMTR e gerente da fábrica de sabonetes da AMTR, sócia da COPPALJ, mor (...)

P. — Os homens eles não estão ali, mas se o negócio esquentar eles estão por perto, é isto ? :
Dora — Qualquer coisa, tem um toque, esse toque a gente tinha com foguete ou um tiro. Quando existia esses aviso, os homens já sabiam que era alguma coisa que tava acontecendo, então eles já começavam a chegar […] Nesse momento era a luta pela terra, que tinha esses aviso, quando tinha um tiro eles já sabiam o que era »
22.

  • 23 Zé Hermínio, casado, pai, cantineiro na COPPALJ, morador do povoado São Manoel.

P. – Vamos saber a opinião do Zé sobre esse momento que o homem entra no empate… :
Zé Hermínio
23 — Porque na hora da reforma agrária, o homem é mais procurado pelo pistoleiro, pelo vaqueiro, então as mulheres ficam mais assim pra dar o aviso aonde a gente tá. Porque como eu falei ainda agora, né, um com outro homem é mais fácil fazer alguma coisa de que com a mulher, né, então na hora da reforma agrária o homem é mais procurado, né, […]

P.  — Nessas ocasiões que as mulheres vão sozinhas impedir por exemplo, a derrubada, vocês ficam e elas vão…
Zé Hermínio — Não… as mulheres sempre vão só, né os homens ficam em casa, né, no trabalho, na parte de… empatar palmeiras ficam mais só as mulheres, né agora na terra mais os homens, né ? ».

36Em algumas situações, a maior ou menor utilização da violência de parte dos antagonistas – pistoleiros, empregados de fazenda, milícias privadas – é o que aparece nos depoimentos como o fato decisivo para a entrada ou não dos homens, junto com as mulheres, nos momentos dos confrontos.

  • 24 . Jocília, moradora do povoado Ludovico, Lago do Junco.

P. — Como é dona Jocília, qual o momento em que os homens iam pros empates, o que acontecia que era preciso eles irem ?
Jocília
24 — As vezes eles tavam derrubando as palmeira, né, derrubando as palmeira mesmo, tudinho mesmo, aí a gente viu que eles ia derrubar tudo, aí foi obrigado entrar os homens, né, pra ajudar… um dia até que nós reunimos aqui um grupo de mulher e fomo pra lá, pra empatar eles derrubar, mas não teve meio, até que eu saí até mais uma pra começar… saí só eu e outra… quando nós cheguemos lá perto aí tava a zoada de homens lá derrubando as palmeiras aí eles viram que a gente tava lá encostando lá eles de mandaram foi tiro pro rumo de nós e aqui nós botemos foi o pé na carreira pra trás e aí foi obrigado os homens entrar, né, ajudar… ».

37Em outras situações, a maior presença das mulheres nos chamados empates aparece em alguns depoimentos como resultado de um cálculo, de uma estratégia para evitar a violência, com perda de homens do grupo :

Antónia — … porque nesses empate sempre quem foi na frente foi mulher, nunca vai homem porque não é por uma questão dos homens não querer, as mulheres é que evita, por a questão da violência deles, né ? Porque eu acho até que eles temem, que teve em algum momento aí que eles disseram aqui na região : ´larga essas mulher de mão… elas tão confiada desse jeito porque os macho dela tá aí por perto, quer dizer, eles ficavam achando assim que as mulher tavam falando ali, mas os homens tavam por trás pra resolver, né, e aí nesse sentido também era a que gente que não queria que os homens fossem, pra não ter uma violência maior. [Quando] é derrubada de palmeira pra pedir pros caras não derrubar, quem vai mais é mulher, pra evitar o pior né… porque o cara mais a mulher não briga, o máximo que ele pode fazer com ela só se for dá uma pisa [agredir fisicamente, bater], porque aí… se bater os macho vem resolver […] Aí a mulher se prontificava pra ir […] em vez de eu mandar o meu marido que poderia o cara vir armado e dá logo um tiro nele… então é isso, que ele sabia que mulher não brigava… »

Valores relativos à masculinidade e os confrontos durante os empates

38Homens e mulheres avaliam suas ações no confronto com os antagonistas, portanto, de acordo com códigos de honra determinados por essas culturas, no âmbito dos quais o comportamento masculino é pensado. As mulheres, nesse sentido, inclusive ocultam os comentários dos vaqueiros, de modo a evitar reações dos maridos :

P. — Que tipo de coisa vocês evitavam dizer pro marido, o que eles falavam ? :
Antónia — … vamos supor, eles diziam : vocês não tem marido, os maridos de vocês não sustentam vocês, é um preguiçoso, eu duvido que ele não tem dinheiro pra fazer isto e aquilo com as outras, não teve dinheiro pra beber cachaça ? Sabe aquelas coisas de machucar assim, que é pra gente se zangar… ».

39As provocações buscam atingir os valores relativos à masculinidade, tal como pensada nessas sociedades, ou seja, ligada à capacidade de trabalhar a terra e de sustentar uma família.

40Se a presença dos homens não é desejável nos empates, pois algumas mulheres consideram que poderia provocar mais atos violentos, em outras situações é a presença da mulher que é estrategicamente evitada :

  • 25 . Em várias situações no Maranhão, nesses anos de recrudescimento dos conflitos agrários, 1970, 198 (...)

P. — Mas as mulheres participam… qual as funções que tem uma mulher no conflito ?
Antónia — Olha, tem várias… tem essa coisa de ver como é que tá, tomar chegado… as coisas que tem de levar uma coisa pra eles num lugar… o homem não pode ir, as mulheres sai disfarçando aqui aí faz que vai e entra já pra ir deixar uma coisa lá
25 […] agora, vamos supor, se eles tão preparando uma armadilha, uma tocaia, que nem toda mulher suportava isto não, porque se ouvir vai dizer : "ave Maria, meu filho, meu marido vai morrer", e é capaz de entrar e estragar a coisa assim… ».

A emergência das quebradeiras de coco como sujeito político

  • 26 . Por lei do papel referem-se àquelas que tramitaram, passaram por discussão e foram sancionadas na (...)
  • 27 . O termo marra, no português corrente, refere-se ao que é conseguido à força, fora dos mecanismos (...)
  • 28 . O termo raça, neste caso, refere-se à coragem, ao que é conseguido com luta, com enfrentamento.

41Concomitantemente à luta pela terra e pelo livre acesso aos babaçuais, essas famílias se organizaram em clubes de mães, associações e, mais tarde, em cooperativas, nas chamadas cantinas, fábricas de sabonete e outros empreendimentos econômicos. Lutaram por leis municipais, já aprovadas em vários municípios do Maranhão e encaminhadas em outros estados onde o movimento das quebradeiras atua, chamada lei do babaçu livre, a do papel26, como a ela se referem hoje as mulheres, após décadas de luta e de mobilização Por este motivo as mulheres distinguem a lei do papel e o que chamam de lei da marra27 ou lei da raça28, ou seja, enfatizando que antes de obterem a aprovação da lei nas câmaras de vereadores, em distintos municípios, já haviam instituído, na prática, a sua lei, a que resultou dos confrontos diretos. Enfatizam ainda que sem a mobilização permanente, produto do que entendem por raça e por marra, sem a capacidade de manterem-se vigilantes para que não haja derrubadas de palmeiras, para que o acesso das quebradeiras a esses recursos seja livre, a chamada lei do papel não teria nenhuma eficácia :

  • 29Dada, casada, mãe, avó, sócia da ASSEMA e da associação do Assentamento Riachuelo, coordenadora g (...)

Dada29 — … a gente precisava ter uma lei pra ter uma base, mas, na verdade, não tem validade nenhuma. Então, onde as mulheres fazem enfrentamento, a lei vigora, a lei vale, mas onde as mulheres não se envolvem, a lei também não tem significado nenhum ».

42Os povoados citados nos depoimentos foram justamente aqueles onde se deram os confrontos mais violentos pelo acesso aos babaçuais e pela posse da terra e onde se encontram, atualmente, várias organizações, como : associações de assentados, associação intermunicipal de mulheres trabalhadoras rurais, cooperativa regional agroextrativista, escola família agrícola de ensino fundamental, grupos de jovens, projetos produtivos e de comercialização, projetos educativos para crianças menores de sete anos, sindicatos e a ASSEMA (Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão).

43A tarefa de impedir as derrubadas perdura até os dias de hoje e passou a ser assumida pelas mulheres. Atualmente, os proprietários de terras, apesar da existência do instrumento jurídico, insistem em derrubar os babaçuais naquelas áreas onde a lei, embora existindo enquanto instrumento legal, não tem eficácia ou naquelas onde, mesmo ocorrendo a mobilização das mulheres, buscam novas formas de agredir os babaçuais, seja envenenando as palmeiras jovens, seja aradando próximo aos troncos.

44Nos chamados empates atuais, pelo que se pode depreender dos depoimentos, prevalece, inicialmente, a tentativa de negociação. As mulheres e crianças são aquelas que ainda continuam promovendo essas ações, numa estratégia baseada nas representações da mulher como mais hábeis para negociar. As mulheres exercem, a função de diplomatas, de embaixatrizes do grupo, funcionando como agentes fiscalizadoras da preservação dos babaçuais e negociadoras nos casos em que há transgressões ao código jurídico pertinente :

Dora — … na negociação às vezes os homens não vai mais. Nos empates é mais as mulheres, é difícil homem acompanhar… ».

45Em alguns casos a negociação é eficaz e entram em acordo com o proprietário. Quando falha, as mulheres buscam as instâncias apropriadas, como a delegacia e o promotor de justiça. Também nesses casos, são as mulheres que vêm desenvolvendo essas tarefas.

46Foi a partir, portanto, de formas nativas de participação, dadas pela divisão sexual do trabalho, como os chamados adjuntos para quebra do coco, que as mulheres envolvidas nessa luta lograram passar do espaço doméstico – da roça, da cozinha, do babaçual – à conquista dos mercados e à interlocução com o poder público.

47A luta foi mulheres, homens e crianas, envolvendo cada qual, em diferentes momentos, conforme as representações dos papéis de mulheres, homens e crianças, característicos desses grupos. A unidade de produção camponesa, atingida nas possibilidades de sua reprodução, reage em conjunto, a partir dos desafios e das contradições que lhes são colocadas a cada momento da luta. Ocorre, porém que, incidindo os conflitos, principalmente, sobre uma atividade preponderantemente feminina, que se tornara principal, levando homens, e até mesmo as crianças, em determinado momento, a exercê-la intensivamente, os enfrentamentos alçaram a mulher a uma posição de primeiro plano no âmbito da organização familiar e comunitária própria desses grupos. A proeminência da posição da mulher, na movimentação política desses grupos, nos dias de hoje, é reconhecida por seu Zé Mundico, atual gerente da Cooperativa de Lago do Junco e marido de uma das quebradeiras, que assim se manifesta :

Zé Mundico — A quebradeira de coco ela tem sido peça fundamental nessa organização, até na época dos conflitos, porque eles chegavam pra derrubar as palmeiras […] aí quem ia pedir pra não derrubar, nessa hora é as mulher […] e hoje as mulheres tem sido força maior na questão da preservação, porque quando os homens tão derrubando as palmeiras é elas que tão lá pedindo pra não derrubar, é elas que tão questionando o babaçu, do babaçu livre é elas que tão trabalhando pra que essa lei seja lei mesmo e proibir mesmo a derrubada… elas que tão na justiça, já ganharam a lei orgânica, tão lá em São Luis discutindo com o governador do Estado e futuramente é levar essa questão da lei do babaçu livre para o Brasil… essa é a intenção e o trabalho das mulheres quebradeiras de coco. E a outra parte que é fundamental também é voltada pra família, da economia familiar : as mulheres é a parte fundamental, porque elas é quem mais quebra coco, é elas quem faz a compra do café, do açúcar, do dia a dia é através daquele babaçu, porque os homens não tem emprego assim que todos os mês você recebe […] então o serviço é de roça e não fornece assim a produção que a gente venda todo mês, toda semana pra ter o comer, então o básico mesmo seria o babaçu e quem mais quebra o babaçu são as mulheres… os homens tão é cuidando da roça […] eu acho que hoje, a mulher é a estrela da cooperativa ».

  • 30 . Neste momento, Luciene Dias Figueiredo elabora uma dissertação de mestrado sobre o tema, na UFPA (...)

48Apesar do reconhecimento de boa parte dos maridos dessas mulheres que lideram a movimentação política e econômica atual, apesar da aceitação por alguns da preponderância do papel da mulher, nos dias atuais, no tocante à organização política e econômica desses grupos, certamente há transformações em nível das relações de poder internamente às famílias, relativas às relações de gênero e entre gerações, tema que ainda está para ser explorado30.

492005

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Notes

1 . C.C. Martins, Os deslocamentos como categoria de análise, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Maranhão, 2000.

2 . Massa que se encontra entre a casca e a entrecasca do coco babaçu e com a qual produzem uma espécie de farinha utilizada para a feitura de mingaus e bolos.

3 . No final dos 1980 essas áreas foram desapropriadas para fins de reforma agrária, no contexto da chamada Nova República. Apesar do caráter conservador desse processo de reforma agrária, no sentido de que o instrumento de desapropriação dos latifúndios praticamente caiu em desuso depois da Constituinte que votou a nova Constituição de 1988, prevalecendo o princípio da negociação entre o Estado e os latifundiários, que, em muitas situações, mais sugere uma negociata, várias áreas foram ainda desapropriadas e foram instituídos os chamados assentamentos de reforma agrária, livrando as famílias do jugo dos antigos proprietários de terra.

4 . Os cocos são coletados nos palmeirais e, conforme a distância, trazidos no lombo de animais ou transportados pelas mulheres, em cestos, na cabeça, para serem quebrados em casa. Em outros casos, são quebrados nos locais de extração. Em ambas as situações, em diferentes regiões do estado, as mulheres sentam-se em círculo para quebrá-los, com o auxílio de um machado e de um pedaço de pau, tirando deles as amêndoas, com as quais fabricam o chamado azeite de coco, utilizado na culinária e, atualmente, na fábrica de sabonetes. Quanto ao óleo, nos dias atuais, é extraído a frio na fábrica pertencente à COOPALJ (Cooperativa de Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco), para ser utilizado pela indústria. O óleo de babaçu hoje produzido por essas mulheres da COOPALJ, é exportado para os Estados Unidos e outros países, destinado à indústria de cosméticos.

5 . Uma ilustração das contradições vividas por essas famílias nos anos 1960 encontra-se no filme de Murilo Santos intitulado Bandeiras Verdes, em que o Sr. Domingos Bala relata a história de deslocamento de sua família dessa área do Maranhão para a região do Pindaré, no mesmo estado. Do mesmo autor veja-se Bandeiras Verdes, São Luís, Comissão Pastoral da Terra, 1981, e Fronteiras – a expansão camponesa no Vale do Rio Caru, relatório ao CNPQ, São Luís, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1985, mimeo.

6 . A categória mutirão é empregada em muitas regiões do Maranhão, pelos camponeses, para se referirme as tarefas realizadas por meio da ajuda mútua – seja a cobertura de casas, a limpeza de caminhos, de fontes e outros. Indica trabalho coletivo a partir de regras acatadas consensualmente pelo grupo. O termo empate não aparece com freqüência nos depoimentos, embora tenha se vulgarizado, principalmente após a morte de Chico Mendes e das lutas dos seringueiros, no estado do Acre. O verbo empatar, porém, no sentido de proibir, de impedir, aparece com muita freqüência nas falas dos informantes. O termo greve, neste contexto de lutas camponesas, é utilizado para indicar que a luta envolve também confrontos diretos, inclusive com mortes.

7 . Dona Antónia, casada, mãe, avó, sócia da AMTR (Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais), produtora de sabonetes, membro da associação do assentamento Centrinho do Acrísio, sócia da COPPALJ, coordenadora do MIQCB (Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu), moradora do povoado Centrinho do Acrísio, município de Lago do Junco. A transcrição dos trechos de depoimentos obedeceu à maneira de falar dos camponeses da região em estudo e correspondem ao uso que fazem da língua portuguesa, com a utilização de termos e expressões característicos. Em alguns casos, há uma tentativa, que aparece entre colchetes, de indicar ao leitor os possíveis significados de certos termos empregados pelos informantes. As interferências da autora nos depoimentos são indicadas por reticências entre parênteses.

8 . Diocina, conhecida como Dió, moradora de Ludovico, Lago do Junco, integrante do MIQCB.

9 . Maria Alaydes, casada, mãe, avó, sócia da COPPALJ, sócia da AMTR, sócia da associação do Assentamento Aparecida, vereadora, moradora do povoado Ludovico.

10 . Antonino, casado, pai, avô, sócio da COPPALJ, diretor da EFALJ (Escola Família Agrícola de Lago do Junco), membro da associação do assentamento São Manoel, morador do povoado São Manoel.

11 . Acerca dos princípios que regem os sistemas de classificação dos recursos naturais vide M. de P. Andrade, Os gaúchos descobrem o Brasil, dissertação de mestrado, USP, 1982. Da mesma autora, Terra de Índio – identidade étnica e conflito em terras de uso comum, São Luís, UFMA, 1999.

12 . E. Thompson, Tradición, revuelta y conciencia de clase, Barcelona, E. Critica, 1979.

13 . Domingas Leite, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do assentamento, sócia da COPPALJ, diretora da EFALJ, integra o projeto roças orgânicas, moradora do povoado Centrinho do Acrísio, município de Lago do Junco.

14 . E. Wolf, Sociedades Camponesas, Rio de Janeiro, Zahar, 1976, e do mesmo autor, Guerras camponesas no século xx, São Paulo, Global, 1984 ; T. Shanin (ed.), Campesinos y sociedades campesinas, México, Fondo de Cultura Económica, 1979 ; La clase incómoda- sociología política del campesinado en una sociedad en desarrollo, Rusia 1910-1925, Madrid, Alianza Universidad, 1983 ; « A definição de camponês : conceituações e des-conceituações », Estudos Cebrap, 26, São Paulo, 1976 : 43-79 ; H. Alavi, « Revolução no Campo », in I. Deutscher et al., Problemas e perspectivas do socialismo, Rio de Janeiro, Zahar, 1969 : 299-351.

15 . João Valdecy, pai, casado, sócio da COPPALJ, da associação do assentamento Centrinho do Acrísio, secretário municipal de agricultura de Lago do Junco, morador do povoado Centrinho do Acrísio, no mesmo município.

16 . Zezé, casada, mãe e avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do assentamento Centrinho do Acrísio, sócia da COPPALJ, integra o projeto roças orgânicas, moradora do povoado Centrinho do Acrísio, município de Lago do Junco.

17 . Leonildes, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do assentamento Aparecida, sócia da COPPALJ, integra o projeto roças orgânicas, moradora do povoado Marajá, município de Lago do Junco .

18 . Para maior aprofundamento das situações de conflito agrário, no período, no Maranhão, sobretudo na região em questão, consultar M. Lima, Maranhão - terra em sangue - uma análise da ação oficial para o campo, durante o período da Nova República no Maranhão, monografia de conclusão de curso de Ciências Sociais, São Luís, UFMA (Universidade Federal do Maranhão), 1994, 70 p. mimeo; B. Souza Filho, Sábado de Aleluia tem carne - condições de reprodução social da família de trabalhador rural assassinado e emergência da viúva como liderança, monografia de conclusão de curso de Ciências Sociais, São Luís, UFMA, 1994, 80 p. mimeo; H. Araújo, Entre a cerca e o asfalto - a luta pela posse da terra em Buriticupu, monografia de conclusão de curso de Ciências Sociais, São Luís, UFMA, 70 p. 1996, mimeo 1996; J. Trovão, O conflito de Aldeia - Bacabal, MA - estudo de uma situação de conflito agrário por meio da análise de um processo judicial, monografia de conclusão de curso de Direito, São Luís, UFMA, 1996, 60 p mimeo; V. Barros, Conflitos no campo - o caso de Belém, Maranhão, monografia de conclusão de Curso de Direito, São Luís, UFMA, 1995, 50 p. mimeo ; H. Araújo, Memória, Mediação e Campesinato, dissertação de mestrado apresentada ao Mestrado em Políticas Públicas, São Luís, UFMA, 2000, 120 p. Ver também M. de Paula Andrade, Coleção Célia Maria Corrêa – Direito e Campesinato, Mestrado em Políticas Públicas/ NAV, São Luís 1997, 5 vol. e, ainda, A. Almeida, Conflitos de Terra no Maranhão, São Luís, Comissão Pastoral da Terra, 1981, 56 p. Do mesmo autor, veja-se também, Conflitos e Lutas dos camponeses no Maranhão, São Luís, Comissão Pastoral da Terra, 1984, 80 p.

19 Cf. MIRAD (Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário), Brasília, Conflitos de Terra 1985, vol. I e 1986, vol. II, mimeo.

20 . Para aprofundamento sobre economia camponesa e conceituação de camponês, ver A. Chayanov, The Theory of Peasant Economy, Homewoood, American Economic Association, 1966 e ainda « Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas », in J. Graziano (ed.), A Questão Agrária, São Paulo, Brasiliense, 1981. Para uma discussão do camponês no mundo globalizado, ver M. Kearney, Reconceptualizing the peasantry: anthropology in global perspective, Boulder, Col., Westview Press, 1996.

21 . Moça, casada, mãe, avó, sócia da AMTR, produtora de sabonetes babaçu livre, da associação do assentamento Aparecida, sócia da COPPALJ, integra o projeto roças orgânicas, moradora do povoado Marajá, município de Lago do Junco.

22 . Dora, casada, mãe, sócia da AMTR e gerente da fábrica de sabonetes da AMTR, sócia da COPPALJ, moradora do povoado São Manoel, município de Lago do Junco.

23 Zé Hermínio, casado, pai, cantineiro na COPPALJ, morador do povoado São Manoel.

24 . Jocília, moradora do povoado Ludovico, Lago do Junco.

25 . Em várias situações no Maranhão, nesses anos de recrudescimento dos conflitos agrários, 1970, 1980, as mulheres e as crianças são aquelas que levam recados, dão notícias da movimentação da polícia e dos pistoleiros e levam comida para os homens adultos e os rapazes, nos casos em que eles estão sendo perseguidos e se vêem obrigados a permanecer escondidos nos matos.

26 . Por lei do papel referem-se àquelas que tramitaram, passaram por discussão e foram sancionadas nas Câmaras dos Vereadores, nos municípios.

27 . O termo marra, no português corrente, refere-se ao que é conseguido à força, fora dos mecanismos institucionais, legais. No caso, com luta, com enfrentamento dos pistoleiros e donos de terra

28 . O termo raça, neste caso, refere-se à coragem, ao que é conseguido com luta, com enfrentamento.

29Dada, casada, mãe, avó, sócia da ASSEMA e da associação do Assentamento Riachuelo, coordenadora geral do MIQCB, moradora do povoado São José dos Mouras.

30 . Neste momento, Luciene Dias Figueiredo elabora uma dissertação de mestrado sobre o tema, na UFPA (Universidade Federal do Pará), no Brasil.

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Pour citer cet article

Référence papier

Maristela de Paula Andrade, « Mutirões, empates e greves »Lusotopie, XII(1-2) | 2005, 175-189.

Référence électronique

Maristela de Paula Andrade, « Mutirões, empates e greves »Lusotopie [En ligne], XII(1-2) | 2005, mis en ligne le 30 mars 2016, consulté le 22 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1234 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-0120102013

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Auteur

Maristela de Paula Andrade

Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão

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Droits d’auteur

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