- * Este texto resulta de um processo de reescrita de parte da minha dissertação de mestrado (Martins 2 (...)
1Bastará recuarmos algumas décadas no panorama literário português para surpreendermos a existência de um concurso de « literatura colonial », de instituições, de periódicos, de escritores e de críticos especializados na criação e na recepção de um rol vastíssimo de textos sobre as antigas « províncias ultramarinas » portuguesas. Essa produção literária começou a ser oficialmente estimulada em 1926 com a criação do referido concurso que, com uma periodicidade anual, se manteve em funcionamento até 1969. Embora o respectivo regulamento tenha sido objecto de várias reformulações ao longo dos anos, o espírito e o propósito da iniciativa da Agência Geral das Colónias (AGC) foram, no essencial, mantidos : o desenvolvimento de uma literatura em língua portuguesa vocacionada para a divulgação da história e da actualidade « ultramarinas » junto da população « metropolitana », em especial das classes letradas mais jovens (AGC 1926 : 153).
2A meu ver, a estimulação de uma actividade literária de temática colonial deve ser pensada à luz das múltiplas acções de propaganda e de divulgação do « império », muito comuns sobretudo nas décadas de 1930 e de 1940. Naqueles anos, instituições várias como a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), a AGC, ou a Academia de Ciências de Lisboa (ACL), promoveram eventos de natureza muito diversa, mas cujo propósito se prendeu com o desejo comum de enraizar no espírito da sociedade portuguesa uma « cultura imperial » – « pensamento » e « mentalidade » imperiais foram outros dois termos muito utilizados na época para expressar essa intenção. Efectivamente, sob o impulso de Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935 e o principal teorizador da renovada « mística imperial » (Castelo 1999 : 45-48), o regime do Estado Novo lançou « uma verdadeira ofensiva ideológica em torno do "império" » (Rosas 1992 : 286). Fizeram-se exposições, congressos e conferências, « semanas das colónias », feiras e pequenas mostras, viagens pedagógicas à « África Portuguesa », comemorações alusivas a episódios e a figuras da história da exploração e colonização portuguesas.
- 1 . As limitações de espaço não permitem referenciar toda a produção literária e jornalística da escr (...)
3Outros modos de divulgação e de propaganda das « colónias » poderiam ser evocados. No entanto, creio que estes exemplos são suficientes para fazer notar a existência de um contexto social propício à produção, circulação e recepção de textos, ficcionais e não-ficcionais, sobre o « Império Colonial Português ». Relativamente ao caso particular apresentado neste artigo – a produção literária de temática africana de Maria Archer (1899-1982) –, importa desde já mencionar que o regresso da escritora a Lisboa em meados da década de 1930 após uma experiência de vida de vários anos na « África Portuguesa » foi contemporâneo desse período de produção e circulação intensas de práticas culturais expressivas em torno das « colónias ». Penso que este detalhe da biografia de Maria Archer ajudará a explicar a sua vasta bibliografia de temática colonial, publicada quer em livro, quer na imprensa generalista, quer ainda em revistas da especialidade como foram os casos de O Mundo Português, Portugal Colonial e Ultramar1. Ao fim e ao cabo, a consolidação da sua actividade como escritora e jornalista de matérias coloniais foi fruto das preocupações e interesses de uma época que viu reunidas as condições necessárias à produção e ao consumo daquele género de literatura.
4O florescimento da « literatura colonial » portuguesa que as décadas de 1930 e 1940 testemunharam foi, portanto, grandemente motivado pelo ressurgimento do interesse nacional pelos domínios ultramarinos, ao qual o Acto Colonial de 1930 veio dar expressão constitucional. Quero com isto sugerir que a realização regular, mais ou menos espectacular, de acções de propaganda e de vulgarização das « colónias » incentivou e legitimou a publicação de obras com elas relacionadas. Numa entrevista, Henrique Galvão confirmava isso mesmo :
« A Exposição [de 1934], por sua iniciativa, promoveu a publicação de 120 obras, das quais a maioria dizia respeito a uma literatura científica. Quer esta somente, quer a poderosa sugestão dada pelo certame, influenciaram decerto o ambiente literário e provocaram um estímulo que, aliás, tem produzido os seus efeitos nos ulteriores concursos de Literatura Colonial » (Galvão 1936 : 4).
5Nessa entrevista, Henrique Galvão procedeu a uma avaliação da « literatura colonial » portuguesa. Esse é, aliás, um primeiro aspecto da entrevista que gostaria de destacar : a opinião de Galvão sobre a literatura de temática colonial, claramente denunciadora da falibilidade das intenções do regime em incutir na população portuguesa uma « mentalidade imperial ». Em parte, este é um assunto focado por António Medeiros num texto sobre a Ia Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934).
6Assinalando os escassos recursos técnicos, as débeis estruturas de modernização do país, bem como as assimetrias sociais existentes que impossibilitavam a generalidade da população portuguesa a visitar aquele tipo de eventos, Medeiros entendeu serem óbvias as incapacidades para um consumo apropriado dos discursos e imagens exotistas neles veiculados (Medeiros 2001: 510-511). Esta ideia surge ilustrada com uma apreciação algo desencantada de Henrique Galvão, o « director técnico » da exposição, a respeito do comportamento menos sério e compenetrado demonstrado por alguns visitantes : « […] vieram com ar de festa, com o mesmo espírito alegre e desenfadado com que vão ao arraial e ao teatro, aos touros e ao foot-ball. Diziam alguns : vamos ver os pretos… » (Medeiros 2001 : 511). Ora, também a avaliação de Galvão à « literatura colonial » que vinha sendo produzida evidenciou algum desalento, como o passo seguinte da entrevista torna claro :
« Não temos uma verdadeira Literatura Colonial, pela mesma razão porque não temos pintura, escultura ou música colonial – pela mesma razão ainda porque não temos, no mundo do espírito, o ideal, o pensamento e as ideias que deveriam corresponder à importância territorial do nosso mundo colonial. Assim, temos pessoas que sentem, pensam e dominam as grandes questões espirituais e morais do império – mas não temos uma sociedade integrada na verdade do seu destino histórico. Assim, temos homens que escrevem sobre as colónias – mas não temos uma Literatura Colonial. Temos apenas algumas obras publicadas, com melhor ou pior fortuna, mérito ou demérito, sobre as coisas e as gentes das colónias » (Galvão 1936 : 3).
- 2 . Veja-se o tratamento desta questão em relação à exposição de 1934 (Medeiros 2001: 510 e sq.)
7Galvão traçou aqui um retrato empobrecido da actividade literária de temática colonial (e, sobretudo, do país) e que, precisamente, surge relacionado com a desenraizada ideia de pertença a um « império » que na sua visão parecia caracterizar a sociedade « metropolitana » portuguesa. Conhecedor que era de outros « impérios coloniais » europeus, como a França e a Inglaterra, penso que as suas reservas em aceitar a existência de uma literatura, música ou pintura coloniais tiveram como referência aqueles outros contextos melhor modernizados na sua estrutura social e, portanto, culturalmente mais sensibilizados para a produção e o consumo de práticas expressivas em torno das « colónias »2.
8Um segundo aspecto da entrevista que gostaria de destacar é aquele em que é veiculada a ideia de que a consolidação de uma actividade literária em torno das « colónias » só poderia dar-se quando os escritores demonstrassem um conhecimento profundo da realidade colonial. Para tal, defendia-se ali a necessidade de « pôr os escritores e os materiais em contacto íntimo e directo. » (Galvão 1936 : 3). Ora, no ano seguinte à publicação desta entrevista, Seara Nova deu à estampa um artigo intitulado « Grandeza e humilhação da literatura colonial » que, de forma mais fervorosa, dava continuidade aos avisos e críticas de Galvão. Para Paulo Braga, o autor do artigo, a « literatura colonial » portuguesa assemelhava-se a « uma série de notas oficiosas e de tentativas literárias, [a] uma pequena literatura regional, às vezes, e nunca [a] um aspecto importante da Literatura de um povo com projecção em todos os continentes » (Braga 1937 : 304). Segundo ele, um dos seus principais problemas residia « na falta de génio e de sinceridade » dos escritores que sendo « incapazes de escrever um artigo de jornal ou uma crónica de revista literária » tornavam-se, « com uma facilidade inaudita », figuras respeitadas do meio literário e intelectual português. Interrogando-se sobre as razões dessa situação, Braga vislumbrou na época que se vivia, marcada pela « alta cotação das emoções exóticas », a causa principal para a meteórica ascensão e reconhecimento públicos de pessoas aparentemente insipientes nas questões do « ultramar ». Naqueles anos, escrever e publicar um livro sobre as « colónias » parecia não exigir dificuldades de maior grau : bastariam, tão somente, a realização de uma viagem de reconhecimento ao « terreno » e a aplicação de alguns conhecimentos bibliográficos :
« Quando um senhor qualquer visita duas ou três colónias numa viagem de quinze dias, o País fica a possuir mais um intelectual saturado de ciência para escrever tratados sobre as mais complexas questões da colonização, onde todos nós iremos, pouco depois, encontrar aquele estilo de sebenta e de cópia de coisas estrangeiras que as nossas Universidades cultivam carinhosamente… » (Braga 1937 : 304).
9Ainda que formulada de maneira diferente, esta ideia reaparece mais adiante no artigo. Braga insiste, pois, na denúncia de um certo amadorismo que parecia dominar a actividade literária em torno do « império » :
« Toda a gente que viu uma colónia e quer ser escritor pensa no facto de ter visto uma colónia e não pensa nunca se sabe sentir, pensar e escrever. Pega em duas ou três impressões ao acaso, mistura-as com duas ou três ideias que já foram há muito expressas por outros, arranja dinheiro ou um editor […] e publica um livro » (Braga 1937 : 304-305).
10Mas neste contexto de críticas e apreciações globalmente desfavoráveis à actividade literária de temática colonial foram destacados alguns escritores que constituíam honrosas excepções no panorama apresentado. Maria Archer foi um dos nomes mencionados. A única mulher, registe-se.
11Em meados de 1937, altura em que aquele artigo foi publicado, Maria Archer era já uma escritora com posição firmada no meio literário e jornalístico « metropolitanos ». Pouco tempo após ter chegado à « metrópole », vinda de Luanda, logo começou a participar em conferências e palestras de temática ultramarina : nas salas da SGL, aos microfones da Emissora Nacional, em liceus da capital e estabelecimentos militares. Apresentava também colaborações regulares em diversos jornais e revistas da época ; aliás, muitos dos seus textos de temática africana surgiram primeiramente na imprensa periódica portuguesa. Ademais, tinha já publicado África Selvagem (1935) e, em 1936, três volumes na colecção « Cadernos Coloniais » : Sertanejos, Singularidades dum País Distante e Ninho de Bárbaros. A recepção crítica a África Selvagem, o livro de estreia de Archer no domínio da « literatura colonial », não poderia ter sido mais positiva. « Excepcional revelação literária » ; obra suficiente « para impor Maria Archer como escritora, para consagrar os seus dotes de narradora perfeita » ; « maravilhoso repositório do folclore negro », foram alguns dos comentários surgidos em diversos órgãos da imprensa escrita portuguesa. Houve quem, até, destacasse o carácter singular e excepcional de África Selvagem nos seguintes termos :
- 3 . Estas apreciações a África Selvagem podem ser consultadas em Archer 1938.
« Livros nacionais e estrangeiros, quadros, trechos de músicas, as narrativas de mil colonos, de militares e civis, comerciantes, funcionários públicos, jornalistas, escritores e artistas, ou de quem quer que fossem, jamais nos haviam fornecido a mais pálida sombra da África selvagem de Maria Archer »3.
12Em 1937, foi publicado Angola Filme, o quarto dos seus seis títulos na colecção « Cadernos Coloniais ». Em 1938, a Editorial Cosmos deu à estampa dois novos « cadernos » com a assinatura da escritora : Colónias Piscatórias em Angola e Caleidoscópio Africano. Nesse mesmo ano foi também publicado Viagem à Roda da África, romance de aventuras dirigido ao público juvenil e que foi distinguido no concurso literário do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) com o « Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho ». Dois anos depois, surgiu nas livrarias Roteiro do Mundo Português, uma obra que percorria as « províncias ultramarinas » portuguesas em África e no Oriente e cujo título constituía claramente uma alusão à Exposição do Mundo Português (Lisboa, 1940).
13Retalhando textos já publicados, sobretudo Roteiro…, Archer compôs em seguida Herança Lusíada Archer : s.d.). Esta obra apresentava, porém, uma novidade em relação ao volume de 1940 : um prefácio assinado por Gilberto Freyre. Nesse texto, o sociólogo brasileiro destacava o « talento literário » da autora, as suas « qualidades de observação », « poder de análise » e « gosto pelo estudo do que sob o ponto de vista europeu é exótico, pitoresco ou bizarro » (Freyre s.d. : 9). Mas na minha opinião, o interesse do prefácio reside menos nos elogios que são dirigidos à autora (e que, noutros termos, alguns críticos literários da « metrópole » já tinham há muito assinalado), e mais naquilo que Freyre refere estar ausente : uma formação científica. Para o sociólogo, caso Maria Archer aliasse às qualidades acima referidas uma formação científica em antropologia poderia ser em língua portuguesa uma Margaret Mead ou Ruth Benedict. Após ter anotado essa « falha », Freyre escreve que Maria Archer « chega por vezes a dar carácter quase científico às suas impressões de gentes e culturas quer europeias, quer tropicais […] » (itálico meu) (ibid. : 10). Ora, penso que a existir essa formação científica, Freyre não teria usado o termo « quase » na formulação anterior. Assim, ao mesmo tempo que elogia a escritora portuguesa e lhe reconhece uma sensibilidade antropológica, Freyre assinala os limites epistemológicos da sua obra, vincando assim as fronteiras entre a literatura de viagens e a literatura antropológica.
14A terminar este périplo pelos textos de temática africana de Maria Archer cabe referir que o volume Herança… foi, por sua vez, reeditado no Brasil em 1957 com o título Terras Onde se Fala Português. Maria Archer tinha, dois anos antes, fixado residência em São Paulo, ali permanecendo até 1979, altura em que regressou a Portugal. Seguiram-se África sem Luz (1962), uma antologia de contos de temática africana e, por fim, Brasil, Fronteira da África (1963) que, no essencial, reproduzia excertos de textos sobre a história e a « actualidade » angolanas anteriormente publicados na colecção « Cadernos Coloniais ».
Maria Archer. Desenho de Inês Guerreiro publicado no jornal Acção de 10 de Agosto de 1944
15Aquela colecção constitui um bom exemplo para se perscrutar melhor o que era a « literatura colonial » portuguesa. Conforme as palavras dos editores, a colecção pretendeu ser uma publicação « vulgarizadora das colónias » nos seus aspectos artísticos, históricos e etnográficos ; no fundo, era também esse o propósito da chamada « literatura colonial ». Centrada em dois grandes tópicos – a descrição de paisagens, usos e costumes indígenas e a narração de episódios da história colonial portuguesa, invariavelmente associados a figuras masculinas – aquela colecção publicou quer textos de escritores que conheciam a realidade das « colónias » (como era o caso de Maria Archer), quer textos de pessoas ligadas à vida missionária, militar e administrativa ultramarinas. Quero com isto dizer que os volumes publicados nem sempre foram redigidos por escritores « profissionais » ; o mesmo se passava na « literatura colonial » em geral. Com efeito, uma parte significativa dessa literatura surge assinada por militares, funcionários da administração colonial, missionários, meros colonos, etc., que tendo vivido ou viajado pelo « ultramar português » acharam oportuno registar, se não mesmo capitalizar, as suas impressões e experiências pessoais, ou utilizá-las como fonte de inspiração para a criação de textos ficcionais : romances, novelas, contos, etc., de motivos exóticos. É que para além de um leque bastante diversificado de autores, encontramos também obras muito variadas. Ou seja, do romance ao conto, passando pela poesia, dramaturgia, crónicas de viagem, memórias, relatos da vida militar e da actividade missionária, entre outras classificações possíveis, a literatura de temática colonial espraiou-se por muitos géneros e formas de escrita, seduziu diferentes editoras e públicos.
16Ademais, há um outro elemento caracterizador dessa literatura que interessa ser sublinhado : a predominância de autores masculinos. Este aspecto é imediatamente perceptível se, por exemplo, atentarmos no rol de colaboradores da colecção « Cadernos Coloniais ». Ou seja os textos publicados naquela colecção (cerca de 70) foram, na sua esmagadora maioria, assinados por homens. Maria Archer foi a única mulher que ali colaborou. Face a essa hegemonia masculina, importa saber como a escritora tornou credíveis as suas impressões e conhecimentos sobre a « África Colonial Portuguesa » junto dos leitores e críticos « metropolitanos » e, ao fim e ao cabo, consolidou um nome, uma posição naquele particular domínio das letras portuguesas. Repare-se que não é apenas o exercício, por uma mulher, de uma literatura cuja produção era maioritariamente de autoria masculina que deve ser tido em consideração na reflexão que fizermos sobre a sua obra. A meu ver, há também que ter em conta todo um conjunto de discursos acerca dos projectos de exploração e colonização portugueses que, por exemplo, destacaram as acções de figuras masculinas e elidiram, ou pelo menos marginalizaram, a participação das mulheres. A própria prática de viagem, inerente a esses empreendimentos, foi culturalmente apreendida como apropriada à identidade de género masculina já que pressupõe o abandono temporário, ou prolongado, do espaço doméstico e privado – esferas, por excelência, de apropriação feminina nas construções históricas ocidentais da feminilidade. Ora, foi precisamente por se considerar que o lugar da mulher era em casa, que a história do seu movimento foi ignorada (McDowell 1999 : 205) e só nas últimas décadas começou a ser estudada.
17De passagem, anoto que viajar não só não foi uma prática reservada aos homens, « brancos », como também o não foi exclusivamente das classes aristocratas e burguesas, apesar de os discursos hegemónicos assim o fazerem crer (Clifford 1997 : 33). Com efeito, nas suas viagens científicas e de exploração, homens e mulheres faziam-se acompanhar pelos seus criados, guias, intérpretes, carregadores, etc., cujas identidades de « raça » e de classe social não eram certamente comuns. Poder-se-á, então, afirmar que a noção de viagem, além de ter sido masculinamente « engendrada », foi também conceptualizada com identidades de « raça » e de classe que, conforme sublinhou Nicholas Thomas, suprimiram não apenas as vozes dos colonizados, como também as de muitos colonizadores, designadamente as vozes femininas e as de classes sociais menos privilegiadas (Thomas 1994 : 156).
18De entre os discursos masculinizadores da acção e reflexão coloniais estão também as representações e os estereótipos veiculados sobre o continente africano. Quer a literatura de viagens, quer os discursos « científicos » produzidos ao longo do século xix, imaginaram e construíram o chamado « Continente Negro » como a antítese da Europa « civilizada » e « moderna ». No imaginário popular, África representava um espaço de doença, morte, violência e barbárie, hostil à presença de « brancos », sobretudo de mulheres « brancas ». Ou seja, porque pretensamente inóspito, perigoso e socialmente desregrado, o continente africano e muito especialmente o seu interior não era um lugar apropriado para uma mulher « branca » (McEwan 1994 : 74). Vemos assim que os rumores e os estereótipos da primitividade tradicionalmente associados a este continente foram, em grande parte, construídos e reiterados através da sublimação das diferenças de género.
19Em suma, sobre o imenso território por onde Maria Archer viajou durante as primeiras décadas do século xx (e sobre o qual reflectiu e escreveu) circulavam diversos constrangimentos à sua identidade e subjectividade femininas ; aliás, todo o universo referencial à actividade literária de temática colonial era profundamente masculino. Como demonstrar, então, um conhecimento profundo das « colónias » sem evidenciar as práticas de mobilidade a ele necessárias ? Como fazer a divulgação dos seus aspectos históricos, etnográficos, etc., sem enveredar por saberes socialmente apreendidos como do domínio da aprendizagem e da reflexão masculinas ?
20Retomemos, por agora, o artigo de Paulo Braga. Como foi dito, Maria Archer é ali apresentada como um dos poucos nomes que dignificava a « literatura colonial » portuguesa. Essa convicção aparece sustentada no facto de a escritora ter vivido « nas » e « as colónias durante anos » (Braga 1937 : 305). De facto, corria o ano de 1910 quando Maria Archer acompanhou os pais naquela que seria a sua primeira viagem a África. O destino foi a ilha de Moçambique, na altura a capital da província. Um passo de Roteiro do Mundo Português evoca essa experiência :
« Vivi nela três anos, de 1910 a 1913, época em que o interior do distrito ainda nos parecia aterrante e misterioso, em que os brancos só se sentiam em segurança perfeita fechados no aro de coral da ilha. No continente mal se passava além do litoral. Temia-se o sertão, a terra negra e o selvagem » (Archer 1940 : 195).
21Passados aqueles três anos na « ilha de coral branco », como Archer lhe chamou, a família regressou à « metrópole », vivendo uma temporada na linha de Cascais. Mas em 1916, partem novamente para África. Outra antiga « colónia » portuguesa lhes marca o destino : « a Guiné maravilha », a « verdadeira África misteriosa » (Archer 1940 : 43). Em Roteiro... vamos encontrar descritas a aproximação do navio ao Arquipélago dos Bijagós, bem como as primeiras impressões da escritora sobre a paisagem e os nativos avistados a bordo :
« Para quem chega por mar à Guiné o assombro começa mal a terra se avista. Os Bijagós surgem no horizonte, deixam-nos aproximar e envolvem-nos. É formado por um numeroso arquipélago de ilhas e ilhéus rasteiros à agua, verdes e misteriosos, ricos duma exuberância tropical de matas ondulantes e cerradas. O navio sinua entre as suas ilhas até atingir o porto de Bolama, ou o de Bissau, e despejar o seu carreto de carga e passageiros. E nós, durante a travessia exótica, vamos mirando os ramalhetes de matas mal saídos do mar, com seus tufos de palmeiras aqui e além, e sua orla de praia, e os indígenas, negros e semi-nus, de pé, estáticos, na beira da praia, contemplando o navio, o seu rolo de fumo, o cachão da sua proa, e pensando, decerto, no despojo magnífico dum naufrágio possível » (Archer 1940 : 44).
22Já o momento do desembarque no porto de Bolama é-nos relatado em Caleidoscópio Africano :
« Cheguei a Bolama no amanhecer dum dia brumoso. O piloto, prático indígena, atirou o navio sobre os bancos da barra. Embriagava-se regularmente e os barcos às suas ordens encalhavam com a mesma regularidade. Esperou-se pela praia-mar para safar o navio e com a ajuda de Deus conseguimos demandar o porto. Foi assim o meu primeiro contacto com o gentio da Guiné. Um escaler a remos levou-me do navio a terra. Desembarquei. A ponte, amontoado de traves, assentava em pilares de madeira mal acepilhada, com informes pranchões em cima. Largos espaços entremeados a meio escavavam abismos onde os pés se perdiam, ora um, ora outro » (Archer 1938a : 15-16).
23Após terem vivido um ano na ilha de Bolama, Maria Archer e os pais mudaram-se para a vizinha ilha de Bissau, onde permaneceram também cerca de um ano :
« Fui habitar a melhor casa da terra, o prédio grande do Cabral, ao topo da povoação, résvés da selva onde os "papéis" escondiam o sangue e as ruínas da derrota. A menos de cem metros avistava-se a armadilha das panteras. Bastas vezes, ao amanhecer, o borborinho da rua avisava-me que a armadilha fechava hóspede » (Archer 1938a : 22).
24Seguiu-se um novo período de residência na « metrópole ». Mas em 1921, a jovem jornalista que entretanto se casara regressou a Moçambique. O casal fixa-se, então, no Ibo e ali vive cerca de cinco anos. Em 1926, regressam a Portugal e em Trás-os-Montes vivem os últimos anos de vida conjugal. Por volta de 1930, Maria Archer, já divorciada, parte para Angola. Durante quatro, cinco anos, reside em Luanda, começando aí a consolidar a sua carreira literária. Em meados da década de 1930, regressa a Lisboa e, de acordo com uma crónica jornalística publicada por altura da sua morte, depressa se torna
« […] o caso do dia nos cafés, nas redacções, no teatro, nos salões de chá e nas livrarias. A sua presença e beleza físicas, as suas respostas prontas, a inteligência viva, a cultura, o amor ao livro, o tratar frontal de problemas sociais e coloniais por uma mulher que vinha das colónias e que queria ser interveniente e se tornara objecto de admiração, fizeram escândalo. Não era conformista e isso a afastou de muitos meios oficiais e de muitos salões de tertúlias, arrastando-a para os contactos com a Oposição » (Rêgo 1982 : 3).
25Com efeito, a difícil convivência com o regime político do Estado Novo obrigou-a a emigrar para o Brasil em 1955.
26Entre 1910 e meados da década de 1930, portanto, Maria Archer viveu uma prolongada experiência de trânsito entre a « África Portuguesa » e a « metrópole ». Para Braga, a qualidade da sua obra literária resultava dessas múltiplas experiências de vida nas « colónias », as quais a escritora procurou tornar visíveis através de relatos de natureza autobiográfica e memorialística. Importa aqui recordar que outras individualidades ligadas à vida colonial portuguesa mereceram também o reconhecimento de Paulo Braga. Foram elas Viana de Almeida, Julião Quintinha, Norton de Matos, Alfredo Felner, Gastão Sousa Dias e Alves Correia. Esse reconhecimento sustentou-se no facto de também eles terem conhecido « em profundidade » a realidade africana. « Tinham as colónias no sangue », « viveram as colónias », « viveram a África », são algumas das expressões utilizadas para conferir autoridade à produção literária desses autores. Essas expressões poderão ser melhor compreendidas quando cotejadas com um outro passo do texto onde é criticada a superficialidade do trabalho da maioria dos escritores colonialistas : « […] vêem – mas não sentem a vida colonial. Andam pelos "climas" diferentes – mas não param. Não vivem a existência das colónias em profundidade » (Braga 1937 : 305).
27Na linha de Galvão que pouco tempo antes tinha defendido a urgência do « contacto íntimo e directo » entre os escritores e o « ultramar », também Braga veio reafirmar a necessidade daqueles conhecerem, pelo seu próprio pé, os « domínios ultramarinos » portugueses. A produção de conhecimentos avalizados sobre as « colónias » exigia, portanto, uma experiência empírica, personalizada no « terreno » ; mas uma experiência que deveria ir além do reconhecimento meramente turístico das paisagens e gentes « ultramarinas ».
28Considero, assim, que a dimensão autobiográfica que marca a obra de Maria Archer deve ser pensada à luz dos discursos contemporâneos que valorizavam uma produção literária de temática colonial sustentada na experiência empírica do « terreno ».
29Efectivamente, os seus textos não descuidaram reiteradas alusões às várias estadas na « África Portuguesa » e que somadas perfizeram um período de 14 anos, segundo os cálculos da própria autora. Nas páginas finais de África Selvagem, essa experiência de vida aparece vagamente relatada nos termos seguintes : « Menina e moça fui para a terra africana. No país do sol vivi anos dilatados » (Archer 1935 : 237). No volume Roteiro… a experiência africana da autora é novamente evocada. Ali, precisa o número de anos vividos em solo africano e afiança ao leitor conhecer todos os domínios portugueses naquele continente :
« A vida levou-me, desde menina e moça, às terras africanas por onde peregrinei durante catorze anos. Indo e vindo, fiz duas vezes o périplo da África. Conheço as nossas cinco colónias desse continente » (Archer 1940 : s.p.).
30Em outros volumes vamos reencontrar novas versões narrativas alusivas à experiência colonial de Maria Archer. Em qualquer uma delas, o enunciado « menina e moça » – que Ana P. Ferreira (1996) sugeriu ser uma evocação da obra homónima de Bernardim Ribeiro – persiste como marca autoral, precisamente a sublinhar a condição feminina da autora. Da mesma forma, repetem-se as referências ao período de tempo passado em África e as garantias de conhecimento das diferentes « colónias » e geografias africanas. Atente-se, pois, nos três trechos seguintes, correspondentes a diferentes obras :
« O acaso de ter vivido em África […] na meninice, na juventude, na maturidade, gessou o meu amor pelos trópicos e temperou a minha lança defensiva da gesta do colono lusíada. Que eu não sou mero observador da colonização portuguesa de além-mar – sou colono. Passei em África, embora intercalados, mais de catorze anos ; habitei nas cidades e nos povoados do seu litoral como nos do sertão ; andei pelos matos da Guiné, de Angola, de Moçambique ; fiz duas vezes o périplo do continente e varei-o até à espinha dorsal […] » (Archer s.d. : 13).
« A vida levou-me, desde menina e moça, às terras africanas, por onde peregrinei durante catorze anos. Com as viagens de ida e volta, realizei, por duas vezes, o périplo da África ; pela estrada de ferro e no automóvel atravessei-o até às regiões centrais, a mil e trezentos quilómetros do Atlântico. Conheço bem as cinco províncias portuguesas do continente negro […] (Archer 1957 : 9).
« No 1º quartel deste século, era eu menina, meu pai foi colocado na gerência dum Banco de Moçambique. Daí derivou a minha odisséia de africanista. Indo e vindo, passando uns tempos em Portugal, outros na África, foram-se catorze anos da minha vida na terra tropical […] (Archer 1963 : 121).
31Nestes vários relatos, é nítida a intenção da autora em evidenciar as suas experiências de vida em África, ficando subentendido nas entrelinhas que dessas várias vivências e contactos pessoais com as « colónias » resultou a produção de impressões e saberes avalizados a seu respeito.
32Por outro lado repare-se que além de se afirmar « colono » (« Que eu não sou mero observador da colonização portuguesa de além-mar – sou colono »), Maria Archer procurou também realçar a sua condição de mulher viajante ao fazer uso de um conjunto de termos sinalizadores de práticas de mobilidade e itinerância : « indo e vindo », « ida e volta », « andar », « atravessar », « varar », « périplo », « peregrinação », « odisséia », « estrada de ferro », « automóvel ». A meu ver, a utilização destes termos não é inocente ou gratuita ; pelo contrário, ao serem precedidos por um sujeito narrativo feminino (« menina e moça ») parecem ironizar com a pretensa exclusividade masculina da prática de viagem.
33O incessante sublinhar de uma experiência autobiográfica no « terreno » tem, ao fim e ao cabo, a função de creditar os textos junto do público leitor e das instituições que garantem a sua divulgação e circulação. Esta sugestão de leitura inspira-se numa formulação de Clifford Geertz (1989) a respeito dos artifícios retóricos e estratégias narrativas que povoam as monografias etnográficas. Diz Geertz que os antropólogos necessitam de convencer os leitores de que aquilo que escrevem resulta de terem podido penetrar (ou, se preferirem, terem sido penetrados por) outra forma de vida, de terem, de um ou de outro modo, realmente « estado lá ». A escrita, acrescenta Geertz, tem aqui um papel determinante : o de convencer, de persuadir o leitor de que aquele « milagre invisível » aconteceu (Geertz 1989 : 14). Ora, essa foi também uma preocupação de Maria Archer : tornar visível a sua efectiva presença física nas « colónias », quer na condição de residente, quer na condição de viajante por forma a dotar de autoridade a panóplia de conhecimentos veiculados nos seus textos. Os vários trechos citados na secção anterior ilustram bem essa dimensão autobiográfica que caracteriza a obra de Maria Archer. Afinal, foi ela que tornou possível reconstituirmos e acedermos a alguns episódios da experiência africana da autora.
34Mas outras dimensões, outras escritas de natureza menos subjectiva e pessoal povoam a literatura de temática africana de Maria Archer. Na verdade, os seus textos evocam episódios da história colonial portuguesa, narram lendas e contos de temática africana, descrevem paisagens, gentes e culturas exóticas, veiculam conhecimentos de teor etnográfico e críticas à administração colonial portuguesa. Trata-se, afinal, de textos que misturam e intercalam vários tipos de discursos, cruzando os terrenos da história, da etnografia, da política, da geografia, da literatura autobiográfica, da ficção, etc. Ao fim e ao cabo, aquilo que pretendo sugerir é que Maria Archer procurou ir ao encontro do objectivo primeiro da « literatura colonial » portuguesa : a divulgação da história e da actualidade das « províncias ultramarinas » de acordo com aquilo que eram as pretensões dos discursos hegemónicos. De facto, Archer ora escreveu sobre a sua história e geografia, ora desfiou impressões sobre as suas gentes e culturas, na tentativa de despertar « o gosto e o desejo » dos jovens pelos « enormes prolongamentos da Pátria » (AGC 1926 : 10). Colónias Piscatórias em Angola é, nesse aspecto, um texto exemplar uma vez que se dirige à « gente nova » da « metrópole ».
35Apresentado como « trabalho de vulgarização » da indústria pesqueira angolana, esse texto visou encorajar a emigração de jovens para Angola e o investimento de capitais naquela « colónia ». Com esse objectivo em vista, a autora entendeu ser necessário munir os seus leitores de um conjunto de informações e de conhecimentos por si adquiridos sobre aquela actividade. De forma didáctica, Maria Archer cumpriu essa tarefa em várias frentes : sintetizou as características naturais de Angola ; explicou como se pesca e prepara o peixe seco ; indicou as nomenclaturas dos diferentes espécimes de peixes ; descreveu os aparelhos e as técnicas de pesca mais utilizadas ; referiu os mercados mais importantes e as indústrias paralelas, etc. Por outro lado, endereçou um conjunto de propostas ao Governo de Lisboa com o intuito de tornar aquela indústria mais competitiva : injecção de capitais, envio de técnicos e de pessoal consular, criação de escolas de pesca, financiamento de pesquisas oceanográficas, entre outras. Pelo teor das críticas e sugestões apontadas, Colónias... impôs-se, do início ao fim, no domínio masculino e público da política e da administração colonial portuguesa. Naquele, mas também em outros textos, a pena da escritora foi comandada por interesses económicos e por uma visão mercantilista da colonização.
36Segundo Ferreira (1996), os discursos coloniais hegemónicos trabalharam uma « ideologia da diferença sexual », a qual atribuía à mulher uma propensão natural « para representar a verdade íntima e moral do negro, por oposição aos interesses legais, políticos ou científicos a que obedeceria a representação masculina » (Ferreira 1996 : 89). Esta é uma ideia presente no prefácio de José Osório de Oliveira ao livro Feitiços (1936) de Guilhermina de Azeredo, uma escritora contemporânea de Maria Archer que vivera vários anos em Benguela. Nas palavras de Osório de Oliveira :
« a mulher, por natureza e condição, é mais sensível ao sofrimento alheio e está apta, por isso, a compreender a alma sofredora dos negros. Estes são para o colono, para o funcionário, para o militar e até para o padre, seres que precisam de direcção. Para a mulher são criaturas humanas que precisam de simpatia » (Oliveira 1935 : 13-14).
37A empatia da figura feminina com « os negros » facilitaria a sua incursão « no mistério vedado àqueles que [os] estudam [...] com pretensões científicas », ou que os consideram seres a evangelizar e a civilizar. O contributo da mulher seria, em última análise, « uma experiência emotiva, portanto marginal do ponto de vista científico-racional » (Ferreira 1996 : 90).
38O leitor informado por essa « ideologia da diferença sexual » esperaria, então, encontrar « emoções » nos textos de Maria Archer e não factos e argumentos sobre as paisagens e as gentes pretensamente primitivas das « colónias ». Contudo, não é isso que acontece, ou não é exclusivamente isso que acontece para ser mais rigorosa. Como já foi dito, Maria Archer transita pelos saberes da história, da etnografia, da geografia, da política colonial, etc., transgredindo assim o terreno das « emoções » onde supostamente deveria permanecer. Na minha opinião, é essa mescla de escritas que torna mais complexa a presença destas escritora na « literatura colonial » portuguesa.
39Foi, certamente, à luz dos constrangimentos de género que se abatiam sobre a sua condição feminina que a autora de Caleidoscópio registou o seguinte apontamento :
« Eu sou apenas artista, com a pena ao serviço da sensibilidade, e não gosto de meter o bedelho em assuntos fora do meu ofício ; por isso me abstenho de gabar com números na mão o valor económico dos planaltos de Angola » (Archer 1938a : 39).
40Ora, este é um procedimento retórico habitual em Maria Archer. Repare-se : a fechar o volume Angola... encontra-se uma « nota da autora » onde se pode ler o seguinte : « Estes apontamentos foram escritos com o maior cuidado ; mas a autora que não é historiadora, não garante a precisão das datas que indica, nem a veracidade dos informes que colheu. » (Archer 1937 : 40). Também Sertanejos alerta o leitor para a eventual existência de imprecisões nas matérias abordadas, assinalando o carácter despretensioso das informações registadas :
« A minha ignorância em assuntos de linguística é absoluta e não quero intrometer-me no que não entendo. Conto apenas um ligeiro pormenor que observei (…). Um depoimento pessoal, sem quaisquer pretensões, não pode ser acusado de pedantismo. » (Archer 1936a : 32).
41Através destes enunciados, Maria Archer refuta pretensões literárias intelectualmente mais elevadas e inscreve-se enquanto uma voz feminina e sensível que procura alhear-se de domínios que diz não conhecer. Mas a meu ver, esta estratégia textual não deixa de ser artificiosa e de estar carregada de ironia uma vez que toda a sua obra de temática africana se imiscui nos mais variados domínios e campos do saber. Aquilo que a um primeiro olhar parecia o exercitar da modéstia ou, como melhor entendeu Ferreira, « uma espécie de auto-defesa motivada pela insegurança da escritora face às expectativas da instituição literária em geral e do discurso colonial em particular » (Ferreira 1996 : 91), é também, na minha opinião, uma resposta irónica aos constrangimentos de género vigentes. Artifícios e estratégias de uma mulher que, no terreno da escrita, teve que tornar crível uma vivência fora da « metrópole » através da inscrição da sua subjectividade feminina e, por outro lado, demonstrar proficiência em assuntos socialmente compreendidos como resultantes de aprendizagens masculinas por forma a consolidar um lugar na « Literatura Colonial Portuguesa ». É nesse espaço de tensão e compromisso que situo a produção africanista de Maria Archer.