- * O presente artigo está baseado em Marques 2000.
- 1 Conforme site oficial do IBGE : <www.Ibge.gov.br>.
1O assunto « Islã », no Brasil, ainda não foi amplamente estudado e discutido nos meios acadêmicos, se comparado com países da Europa e com os Estados Unidos. Talvez isso ocorra em função do baixo número de muçulmanos em relação ao grande número de católicos e das outras manifestações religiosas que crescem no Brasil, como é o caso das religiões afro-brasileiras, evangélicas e outras. Estas, sim, amplamente debatidas nos meios intelectuais. A falta de precisão de dados das instituições oficiais islâmicas e a insignificância estatística com relação ao número de adeptos colocam a comunidade islâmica, no Brasil, como grupo minoritário e de menor importância acadêmica. O último censo demográfico brasileiro, do ano de 2000, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), demonstra que o número de muçulmanos gira em torno de 20 000 pessoas enquanto os seguidores das religiões afro-brasileiras atingem os 570 000 e os evangélicos, os 26 milhões, aproximadamente1. Apesar dos dados do IBGE mostrarem pouca representatividade da comunidade muçulmana no Brasil, as instituições islâmicas brasileiras mostram números imprecisos, que variam entre 500 000 e 2 milhões de muçulmanos, dependendo da fonte (Oliveira & Mariz 2005 e Montenegro 2002). Os dados estatísticos das duas fontes, comunidade muçulmana brasileira e IBGE, ainda serão números bem pequenos se comparados com os 15 milhões de muçulmanos na Europa e os 5 ou 6 milhões de muçulmanos nos Estados Unidos (Tiesler 2005).
- 2 Dados sobre crescimento do Islã retirados do site por Mônica Muniz.
- 3 Programa Ecumênico da Rede Globo de Televisão, dedicado ao Islã, às sextas feiras.
2Apesar de o grupo islâmico existir em número reduzido no Brasil, o seu estudo e a sua análise tornam-se importantes na medida em que, mesmo diante da exposição negativa apresentada pelas mídias nacionais e internacionais, o Islã tem sido apresentado por essas mesmas mídias como a religião que mais cresce no mundo em número de adeptos2. Este crescimento (Marques 2000) pode ser constatado pelo aumento do número de sites islâmicos, fóruns, cursos de árabe oferecidos nas comunidades islâmicas. Além disso, hoje é freqüente a transmissão de sermões por rádio e televisão3.
- 4 Embora seja praticamente consenso na literatura sobre imigração que o primeiro fluxo migratório ár (...)
3Independentemente da discussão do Islã ser ou não uma religião étnica, uma religião de imigrantes (Montenegro 2002) no Brasil, a comunidade muçulmana foi resultado da imigração árabe, principalmente de sírios e libaneses, a partir da Segunda Guerra Mundial. No entanto, o primeiro fluxo migratório começou em 18604. Esse primeiro momento caracterizou-se pela chegada dos árabes cristãos em função do domínio Otomano ; chegaram, em seguida, os árabes muçulmanos. O segundo período migratório teve como característica a grande ligação com a terra natal. Os imigrantes eram cidadãos politizados, envolvidos em movimentos sociais ou políticos em suas regiões de origem, e mantinham a união através da língua árabe. Eles consideravam-se árabes e se identificavam com as causas palestina e libanesa. Esse segundo fluxo pode ser explicado pela implantação do Estado de Israel e pela frustração gerada pelo fracasso das lutas em prol da independência da Síria e do Líbano. No entanto, embora tenham sido esses imigrantes sírios e libaneses os maiores divulgadores e propagadores do Islã, no Brasil, há indícios de que a presença muçulmana date da sua colonização. Ainda nos dias de hoje pode-se perceber costumes mouros, como lendas, expressões, jogos, indumentárias e alimentações que foram trazidas, na memória dos portugueses, como lembrança da presença moura, no Algarve, de duzentos e cinqüenta anos antes da colonização do Brasil. O turbante das baianas, as estórias da mãe d’água, as refeições servidas no chão de casas simples e das fazendas, as comidas como arroz doce, frutas secas, o cuscuz, algumas superstições, expressões como « graças a Deus », « pelo amor de Deus », gestos de mão para chamar alguém ou morder dedos como sinal de raiva, são alguns dos exemplos desses traços mouros, herança dos nossos antepassados portugueses (Cascudo 1984). Existem também algumas influências, na nossa arquitetura, como as torres das igrejas e as molduras de janelas, e objetos, como leques, guarda-sóis e outros.
4Apesar do Brasil não ser, notoriamente, reconhecido como um país de muitas tradições islâmicas, embora exista traços culturais deixados pelos portugueses, de influência moura, há também a influência dos africanos muçulmanos, trazidos como escravos. O uso da roupa branca às sextas feiras e o patuá portado por adeptos do candomblé são mostras dessa herança.
5Na história de escravidão dos africanos no Brasil, muitos dos que aqui chegaram eram muçulmanos e vinham de várias partes da costa africana. Os escravos eram conhecidos por nomes diferentes daqueles que tinham na África. Os de língua iorubá, por exemplo, eram chamados de nagôs e muitos eram muçulmanos, embora a maioria fosse adepta ao candomblé. Os de etnia haussá eram mais islamizados.
- 5 Também conhecido como « Levante dos Malês ». Para alguns autores, a palavra « malê » vem de « imal (...)
6Em Salvador, na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um grupo de escravos africanos promoveu uma revolta que ficou conhecida como Revolta dos Malês5. (Reis, 2003) Os malês foram massacrados e durante anos espalhou-se o medo de que um novo levante pudesse ocorrer. Não se sabe quais os planos, caso os Malês saíssem vitoriosos, o que se sabe é que a revolta aconteceu no final do mês do Ramadã e que os revoltosos usavam vestimentas tipicamente muçulmanas e amuletos protetores feitos a partir de versos do Corão. Especula-se que, em caso de vitória, a Bahia pudesse se tornar uma nação islâmica.
7Embora o Islã, no Brasil, segundo alguns autores tenha seu início na colonização, a presença mais efetiva se deu a partir das imigrações sírias e libanesas e em menor número imigrantes vindos da Palestina, Paquistão, alguns países africanos e outros.
- 6 Para Nabhan 1996, « a presença do imigrante árabe muçulmano e a propagação do pensamento do Islão (...)
8Baseados em argumentos da minha pesquisa realizada com a comunidade muçulmana de São Paulo e região metropolitana, há indícios de que a presença, no Brasil, do imigrante muçulmano árabe, sírio e libanês e a propagação das idéias do Islã6 no nosso meio favoreceram e propiciaram a escolha de alguns brasileiros, sem nenhuma ascendência árabe, a se converter ao Islã. Embora as mulheres tivessem se destacado como protagonistas da pesquisa, os depoimentos dos homens foram de grande importância e serviram de reforço e contraponto aos temas abordados pelas mulheres. As entrevistas demonstraram o caminho que esses convertidos trilharam até encontrarem o Islã, como foi o processo de conversão e apontaram os benefícios e as dificuldades advindas da decisão. Uma dessas dificuldades esbarra na questão étnica, embora existam indicações de que as assimetrias do « ethos árabe » e « ethos não árabe », em parte, tenham sido superadas pelo comprometimento com a religião.
- 7 Em Ribeiro 1997 : 20, « … a confluência de tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado (...)
9A ampliação das comunidades muçulmanas do Brasil através da conversão e, especificamente, da comunidade muçulmana de São Paulo e região metropolitana, certamente, vem contribuir com as estatísticas que demonstram o crescimento do Islã em relação aos números absolutos de adeptos. Essas conversões vieram ocorrer num solo religioso fértil e multiétnico, com vários componentes diferenciados em função das diversas matrizes que compõe a sociedade brasileira7. Alguns brasileiros, sem nenhuma ascendência árabe, se juntaram à comunidade muçulmana, primariamente formada por sírios e libaneses, passando a respeitar a rigidez da religião, no sentido do cumprimento dos preceitos religiosos, contrapondo-se ao cenário despojado do país. Por exemplo, os desfiles de carnaval, onde as mulheres têm os corpos completamente à mostra, e as danças são, por vezes, erotizadas.
10É interessante observar que o Brasil possui um grande leque religioso e o catolicismo é visto como a « religião de todos » (Brandão 1988 : 47), embora existam as migrações para outras religiões. Richard Travisano (Hood et al. 1996 : 276) chamou essas migrações e conversões menos radicais – com relação aos fundamentos ideológicos e religiosos e sem rompimento definitivo com o modo de vida anterior – de « alternação ». No caso do convertido ao Islã, entretanto, o que se observou foi uma forma mais radical, com mudança do seu modo de vida e de sua visão sobre o mundo.
11Seria propício também observar que a « conversão » pode apresentar-se sob aspectos psicológicos, sociológicos, antropológicos e históricos. E ainda pode ser analisada sob as dimensões da « tradição », « transformação » e « transcendência » (Elíade 1987 : 73-74). No entanto, para essa análise, recorri ao conceito Travisano de « conversão como radical reorganização da identidade, pensamento e vida » assim como da descontinuidade de crença e visão de mundo, rejeição do modo de vida anterior e adesão a um outro modo de vida.
- 8 Conforme Richardson e Clark (Hood & Spilka et al., op. cit. : 280), existem duas formas de convers (...)
- 9 Conforme Saliba (1995 : 84-85), no modelo « ativo », um dos modelos dentro dos estudos contemporân (...)
12A análise dos dados das 15 entrevistas abertas – realizadas sobre o histórico de vida dos convertidos, a trajetória religiosa de cada um, os motivos que os levaram a converter, as dificuldades e facilidades antes, durante e após se tornarem muçulmanos – apontaram para uma forma « gradual »8 e « ativa »9 de conversão. A motivação pela opção de tornar-se adepto ao Islã, para alguns, se deve à falta de « identidade religiosa » ; para outros, o estímulo ao estudo relacionado às religiões ou experiências pessoais dramáticas. Para alguns, ainda, a desorganização familiar ou a dúvida com relação à existência de Deus foram os motivos que os levaram a se converter. Outros entrevistados apontaram motivações nas questões político/étnicas. Estes tiveram participação ou lideraram movimentos sociais e de esquerda.
- 10 O significado de ser muçulmano é exatamente o conceito da submissão total à vontade de Deus.
- 11 Em Gallagher 1990 : 16-18.
13A conversão pode ser vista por vários prismas. No conceito islâmico, tornar-se um muçulmano, através da conversão, é uma forma de voltar a um estado anteriormente experimentado. Para eles, todos nascem em total estado de submissão, ou seja, todos nascem muçulmanos10, por isso assumem que as pessoas se « revertem » ao aceitarem o Islã como sua religião. Para William James11, a unificação do « eu dividido » é a maior contribuição para a crença religiosa, e a conversão representa o melhor exemplo dessa « unificação do eu ». Os brasileiros convertidos ao Islã aceitaram tanto a total submissão à vontade de Deus quanto a unificação do eu, o que resultou no reconhecimento da solução de seus problemas. Wohlrab-Sahr (2002 : 1-17), em artigo sobre a conversão ao Islã na Alemanha e nos Estados Unidos, debate essa questão à luz da teoria funcional, que relaciona a crise biográfica à conversão religiosa, descrevendo-a como relação entre « problema-referência » e « problema-solução ». A teoria funcional a que se refere é desenvolvida por Luhman (1970) e diz respeito à substituição da idéia de « manutenção da continuidade » pela resolução do problema, considerando alguns « problemas-referências ». Para Wohlrab-Sahr, a abordagem funcional relaciona religião e biografia. Na pesquisa realizada na comunidade muçulmana, em São Paulo, a biografia foi utilizada com finalidade de observar as conexões entre a religião, o modo de vida anterior à conversão e o modo de vida pós-conversão.
14Com objetivo de detectar esses possíveis « problemas-referências » dos atores da pesquisa, foi realizado um questionário que possibilitasse o melhor entendimento desse ciclo de vida e suas relações sociais e familiares. Do material concatenado, foi possível extrair uma biografia geral dos convertidos. As crises relacionadas às buscas religiosas ficaram explícitas nos relatos dos convertidos que declararam certas dificuldades por não terem uma religião ou crença com que se identificassem. Citações como « sempre senti falta de uma religião », « desde pequena conheci muitas religiões » ou « achava estranho não ter uma religião », demonstram essa crise pela falta de identificação religiosa. Em alguns casos, a experiência da dúvida com relação à existência de Deus trouxe rejeição e frustração por não encontrá-Lo. Outros experimentaram rupturas pessoais, como separações, problemas familiares, doenças e morte de pessoas próximas, o que os motivou a buscar na religião o conforto.
- 12 Exemplo : citação de homem convertido, « julgava errado, no cristianismo, o conceito de trindade, (...)
15O material empírico da pesquisa realizada por Wohlrab-Sahr não aponta para os conflitos « intra-religiosos » como causas das conversões ao Islã. No caso brasileiro, numa análise sistemática, há também indicação da existência desses conflitos intra-religiosos além dos outros « problemas-referências » relevantes já citados12.
16Às crises biográficas soma-se a insegurança gerada pela ausência de uma identidade que supere as adversidades. A busca dessa identidade será encontrada no grupo a que o convertido passará a pertencer. A sua transformação num indivíduo confiante perante as situações cotidianas o ajudará a colocar em prática os seus ideais e assumir os seus valores.
17O termo identidade tem provocado discussões nos meios intelectuais pela própria natureza ambivalente face à modernidade. Segundo Zigmunt Bauman « a idéia de "identidade" nasceu da crise de pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o "deve" e o "é" e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da idéia » (Bauman 2005 : 17-18). O pertencimento e a identidade, para Bauman, estão em constante mutação, visto que o indivíduo toma decisões, percorre caminhos e age de formas diversas. Para ele « a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável e os experimentos jamais terminam ». A nossa identidade acompanha o mundo em constante movimento. Para ele, o indivíduo busca, constrói e mantêm as referências comuns das suas identidades em movimento, lutando para juntar-se aos grupos que, igualmente, se movimentam de forma veloz, tentando se sentir pertencentes por um momento e não por muito tempo. No entanto, para os convertidos, o sentimento de pertencimento a uma comunidade e a nova identidade, que resultou da conversão, é presumido como efetivo.
18A busca de nova identidade causa apreensão e tensão e a comunidade torna-se uma boa alternativa. Em Weber (1987) a comunidade baseia-se nas ligações emocionais, afetivas ou tradicionais, não importando as conveniências e sobriedades das considerações que predominam nessas relações. Essas comunidades estarão sempre abertas aos valores emocionais indo além das utilidades arbitrárias. Em Bauman as comunidades são o « porto seguro » para as pessoas inseguras e assustadas com a transitoriedade do mundo. No entanto, ele polariza, afirmando que essa mesma comunidade que acolhe pode ter tanto a visão do paraíso quanto a visão do inferno. Ele vê ambigüidade na comunidade onde um indivíduo que está simultaneamente sobrecarregado de responsabilidades e ansioso por mais liberdade poderá se sobrecarregar ainda mais das responsabilidades. No caso dos convertidos ao Islã da comunidade de São Paulo e região metropolitana, os aspectos emocionais e afetivos estão presentes na relação com a comunidade e com sentimento de pertencer a ummah global de fé. Por outro lado, a ambigüidade fica por conta dos aspectos culturais árabes, presentes na comunidade de maioria síria e libanesa, que, segundo os convertidos entrevistados, se confundem com a religião. Isso gera insatisfações e desconfortos.
- 13 Segundo Bauman (2005 : 17), « É comum afirmar que as "comunidades" (às quais as identidades se ref (...)
19Os « muçulmanos brasileiros » citados neste artigo vêm enfatizar uma categoria de brasileiros, sem nenhuma ascendência árabe, que se converteram ao Islã e que se sentem, algumas vezes, discriminados pela própria comunidade. Apropriando da divisão de categoria de Siegfried Kracauer, citado por Zygmunt Bauman13, esses « muçulmanos brasileiros » tentam se encaixar na comunidade de « vida », onde os « membros vivem juntos numa ligação absoluta » e que é formada, a priori, por sírios e libaneses. No entanto, eles se identificam mais com a comunidade de « destino », constituída pelas idéias e princípios do Islã. Com isso, essa comunidade muçulmana, se olhada por fora, é homogênea devido a sua « identidade » islâmica global, porém, internamente, é heterogênea por conta das diferenças entre os dois « ethos » : o árabe e o brasileiro.
20Apesar dessas diferenças, há indícios de que os convertidos ao Islã se comprometem com a religião e, em parte, superam as dificuldades de fazer parte de uma comunidade religiosa que é minoria no país e que é vista, pelos não muçulmanos, como radical e autoritária. Esses muçulmanos convertidos assumem o que Lofland e Stark (1965) apresentam como « o estabelecimento das relações afetivas dentro do grupo », « a redução dos contatos externos ao grupo » e « a interação com outros membros do grupo ». Anteriormente à conversão existem fases de conflito como « momento de profunda tensão e insatisfação », « disposição espiritual », « busca religiosa » e « a oferta religiosa ».
- 14 Conforme Pollack 1992 : 204, citado por Mancuso 2000 : 28.
21A aceitabilidade, admissibilidade e credibilidade são vistas, por Pollack, como critérios importantes para a construção das identidades14. Dentro desse conceito, os convertidos ao Islã das comunidades de São Paulo e região metropolitana passaram a aceitar a tradição islâmica e admitem pertencer a uma comunidade. O sentimento de pátria distante que os sírios e libaneses sentem de certa forma os une, embora não se negue a fragmentação que fica por conta das diferenças culturais, sociais e afetivas dentro do grupo. É nesse contexto que o convertido deverá inserir-se e identificar-se. Porém, essa integração não tem sido tarefa muito fácil, tendo em vista essas diferenças culturais e étnicas. Diante disso, os convertidos, apesar de se mostrarem integrados à comunidade muçulmana enquanto identidades individuais, se diferenciam enquanto identidade grupal. É o que os faz imaginar ser possível um tipo de Islã que chamam de « Islã brasileiro ».
22Na antropologia, segundo Geertz, « é comum referir-se à coleção de noções de um povo sobre como as coisas são em seu conjunto como sua visão de mundo. A seu estilo geral de vida, à maneira como fazem as coisas e gostam como elas sejam feitas, chamamos de ethos » (Geertz 2004 : 105). Torna-se função dos símbolos religiosos a ligação da visão de mundo e o ethos, isto é, um apóia-se no outro. É interessante observar que a valorização dos símbolos, principalmente aqueles mais visíveis, como é o uso do véu islâmico pelas mulheres muçulmanas, exterioriza sua crença e altera o olhar de ambos os lados, dos convertidos e da sociedade que os vê. Se, por um lado, os convertidos se apresentam como um muçulmano no sentido universalista e se expressam como tal, esse mesmo muçulmano será visto pela comunidade islâmica a que pertence como um « muçulmano brasileiro », convertido. Embora os convertidos tentem emancipar-se dos aspectos culturais e étnicos que compõem a comunidade muçulmana, a sociedade brasileira os vê com estranhamento por não saber distinguir os aspectos étnicos e culturais que compõem o Islã.
- 15 Patologia. Nome científico, parotidite epidêmica, também conhecida por trasorelho.
23Em alguns relatos, bem-humorados ou com desapontamento, as convertidas narram histórias pitorescas sobre situações que vivenciaram. Os casos vão de pessoas que perguntam se a roupa que usam é uma nova moda aos que satirizam indagando se têm dor de dente, dor de ouvido ou caxumba15, por causa do uso do véu. Existem ainda os que hostilizam insinuando que elas deveriam voltar para sua terra natal, alusão, é claro, à idéia ligada à radicalização muçulmana ou visão distorcida do Islã como religião que abriga o terrorismo, exibida pelos meios de comunicação. As dificuldades, os desacatos e insultos enfrentados pelos convertidos no cotidiano, num país em que o Islã representa a minoria, são compensados pela idéia de « pertencimento ». O convertido acredita que as recompensas são maiores do que as dificuldades enfrentadas, embora não neguem os percalços por conta dos aspectos culturais e étnicos da comunidade muçulmana de São Paulo.
- 16 Depoimento colhido em entrevistas dos convertidos.
24Em depoimentos16 como « existe um etnocentrismo grande, "arabismo", que coloca os árabes numa pretensa segurança e sentimento de superioridade », « existe um grande preconceito por parte daqueles que já nasceram em berço muçulmano com relação àqueles que se tornaram muçulmanos », « os árabes acham que têm o monopólio do Islã e nos países onde não existe tradição islâmica, a tendência é importar o estilo árabe », os convertidos demonstram a dificuldade de relacionamento dentro da comunidade muçulmana, em função das diferenças culturais, e o incômodo da tentativa de « arabização » por conta do background árabe predominante na comunidade de São Paulo. Num cenário diferente, a comunidade muçulmana do Rio de Janeiro não sofre a influência direta da « arabização », visto que é formada, em sua maioria, por muçulmanos não árabes. Enquanto em São Paulo os convertidos representam 15 % da comunidade (Montenegro 2002 : 69), no Rio de Janeiro os convertidos representam de 50 % a 60 %, o que significa dizer que os valores, por si só, já demonstram que a porcentagem dos convertidos não-árabes determina o perfil de cada uma dessas comunidades.
- 17 Não existem dados se os muçulmanos que estudam nas universidades de países árabes são brasileiros, (...)
25A despeito do significado dos termos « islamização » e « arabização », que são contraditórios, os convertidos da comunidade de São Paulo, de certa forma, acabam passando pelos dois processos, diferentemente da comunidade do Rio de Janeiro, que luta pela « desarabização » (Ibid. : 72-74.). Essa desarabização fica por conta da refutação da idéia da religião muçulmana como sendo religião de imigrantes árabes. A Arábia Saudita e outros países árabes propiciam estudos para os muçulmanos brasileiros em suas universidades17, enviam recursos financeiros, colaboradores e líderes, o que reforça a idéia da implantação de um Islã carregado de arabismo como ideologia.
- 18 A circuncisão feminina é uma prática tribal que surgiu na Eritréia pré-monoteísta indo depois para (...)
- 19 Termo citado pelos próprios convertidos.
26O Islã, por ter surgido no mundo árabe, traz fortes traços culturais, embora a expansão da religião para outros países tenha contribuído para o estabelecimento de uma rica variedade cultural. Existem controvérsias dentro da própria comunidade universal, a ummah islâmica, sobre a rotulação e diversificação de práticas como é o caso do « Islã negro » dos Estados Unidos, constituído a partir do movimento negro em prol dos seus direitos civis, criado por Malcom X e atualmente liderado por Louis Farrakhan. Outras divergências sobre as práticas do Islã, ligadas à cultura de cada país, podem ser exemplificadas pela circuncisão feminina, constantemente citada como sendo islâmica18. No entanto, não há como negar a existência do conceito de « Islã árabe »19, no Brasil, em função das suas raízes e da exposição da mídia sobre os radicais muçulmanos ligados ao mundo árabe, em detrimento da universalidade do Islã, proclamada no Corão.
27O depoimento « um islã brasileiro já começa a ter uma cara própria e irá se delineando com o crescimento do Islã no Brasil » reforça a idéia controversa dentro da comunidade islâmica que fica por conta das diferenças étnicas, embora não se negue que existam opiniões diferentes na mesma comunidade. Um dos muçulmanos convertidos que teve a possibilidade de freqüentar uma escola islâmica na Inglaterra apresentou o discurso universalista de que todos os muçulmanos são iguais, e o que diferencia os muçulmanos de países diferentes é a cultura de cada um.
- 20 Em matéria jornalística publicada pela Agência de Notícia Brasil-Árabe (ANBA) em 10 de Fevereiro d (...)
- 21 Termo utilizado para explicar a forma como os brasileiros lidam com as dificuldades. Ver em Barbos (...)
- 22 « … eu junto duas e duas orações, eu faço as da manhã […] e agora estou trabalhando a tarde, dá pr (...)
28Segundo o xeque libanês Hussam Al-Bustani, que mudou para o Brasil em 1993, a Sociedade Beneficente de Santo Amaro, em São Paulo, pretende abrir um curso de graduação em Teologia Islâmica, que está em negociação com a Universidade Al-Jinan, localizada no Líbano20. Para ele, o maior interesse pelo curso, no Brasil, vem de não muçulmanos que não têm origem árabe. Segundo Al-Bustani, a universidade libanesa combina com o perfil dos brasileiros, por ser uma instituição « moderna, onde estudam homens e mulheres ». Esse depoimento do Xeque nos instiga a pensar em duas possibilidades : a implantação de uma universidade islâmica « moderna » no Brasil como sinal de um possível « Islã brasileiro » ou uma forma de arabização dos convertidos brasileiros. Existe também uma possibilidade de ampliação da comunidade muçulmana no Brasil em função da afirmação de Al-Bustani de que a graduação, dentro da universidade, poderá abrir portas para trabalhos em instituições do mundo islâmico, visto que várias associações do mundo muçulmano têm interesses em divulgar a cultura islâmica no Brasil. De certa forma, alguns convertidos passam a ter como patrões membros da própria comunidade islâmica, o que proporciona uma melhor relação entre trabalho e religião. No caso dos convertidos que não trabalham na comunidade, o « jeitinho brasileiro »21 ajuda no cumprimento dos preceitos religiosos. Por exemplo, nas cinco preces diárias alguns dos convertidos disseram, em depoimentos, que na impossibilidade de se ausentarem ao trabalho nos horários das preces, eles « juntam » as orações como forma de compensar a oração não realizada22.
29A Mesquita do Brasil, localizada em São Paulo, foi a primeira, construída em 1942. Sua importância se dá tanto por ter sido a primeira quanto por comportar o maior número de fiéis nas preces das sextas-feiras e nas datas comemorativas dentro do Islã. Embora o número de convertidos não árabes venha crescendo no Brasil, só recentemente os sermões da Mesquita do Brasil, por exemplo, têm sido traduzidos para o idioma Português. O mesmo acontece com a Sociedade Muçulmana de São Bernardo do Campo, também importante por comportar um grande número de muçulmanos. Tornou-se importante o ensinamento do idioma árabe dentro da comunidade muçulmana aos não árabes, com objetivos corânicos. O árabe é o idioma original da revelação sagrada além de ser, também, o idioma no qual os muçulmanos fazem suas preces e sermões. Para atender a comunidade muçulmana, existe grande número de sites islâmicos com textos sobre os diversos assuntos relacionados à religião, cursos à distância de, por exemplo, jurisprudência, oferecidos por universidades de estudos islâmicos internacionais. Além desses serviços, existem as agências matrimoniais e até mesmo conversões. O número de fóruns de discussões, chats e blogs crescem na medida em que cresce o interesse pelo conhecimento do Islã, seja pelos convertidos, pelos nascidos muçulmanos ou pelos não muçulmanos. Outra fonte importante de informações que ajudam a comunidade de muçulmanos e não muçulmanos a discutir o Islã são as associações, os centros de informações e as sociedades que compõem um corpus de integração entre a ummah religiosa e todos que tenham curiosidade em conhecer um pouco mais sobre a religião.
30Apesar das controvérsias ligadas às rotulações do Islã como religião de imigrantes, « Islã árabe », « Islã negro », enfim, de um Islã particularista ou universalista, o seu crescimento parece ser parte de uma movimentação migratória ou deslocamentos devido às dificuldades sociais e econômicas nos países de origem. Se em alguns países da Europa, em que a maioria dos muçulmanos vem de uma mesma região geográfica e demonstram um forte padrão de reprodução de etnicidade, como é o caso turco na Alemanha, indianos e paquistaneses na Grã-Bretanha ou dos magrebinos na França (Tiesler 2005), no Brasil a comunidade muçulmana, primariamente formada pelos sírios e libaneses, não poderia ser diferente. A necessidade de preservação cultural entre a comunidade de muçulmanos de origem árabe constitui a moral cultural (Geertz 1989 : 143-144) que proporciona visão de mundos próprios, ocasionando uma relação circular entre eles, marginalizando os considerados « outros ». Essa discriminação acaba por incentivar a união dos convertidos de origem não árabe contra a « arabização » ; conseqüentemente, esforçam-se para um melhor conhecimento da religião e um bom convívio com a comunidade, sem se deixarem engolir pela sua cultura.
31Pierre Sanchis (1997 : 113) apresenta a dialética da busca das religiões, invocando « ancestrais » e « raízes » diante de uma modernidade que privilegia o « emergente » e « atual ». As raízes históricas da religião fazem muito bem àqueles que pertencem a elas porque têm o sentimento de ser parte de algo duradouro. O « apego às raízes na defesa das identidades » pode levar a uma visão fundamentalista histórica, acrescenta Al-Jabri (1999 : 39). Assim, o árabe muçulmano se afirma diante de uma identidade e da tradição histórica e empunha a bandeira do « ancestral fundador » do Islã, enquanto o muçulmano não árabe, apesar de fazer parte da comunidade, não terá a mesma identidade, no sentido grupal.
32A secularização não parece resultar do completo desaparecimento das atividades religiosas, no entanto, a separação da « Igreja » e « Estado », a partir da criação do Brasil República, pode ter resultado na ampliação do mercado religioso (Pierucci 1999 : 7). Além disso, a falta de compromisso com o Estado também pode ter levado ao crescimento desse mercado religioso, que disputa o consumidor prometendo a solução dos problemas, o alívio para as dores físicas e espirituais. Há uma nova tendência de (re)interpretação da teoria da secularização (Wohlrab-Sahr 2002 : 1), como um novo « paradigma » entre alguns sociólogos da religião, principalmente nos Estados Unidos. Os debates se contrapõem aos antigos modos de ver a secularização, criando significados contraditórios, com sentidos completamente diferentes, como é o caso da « pluralização da cosmovisão » de Peter L. Berger, que postulava a idéia de que a relativização dos conteúdos religiosos perdia o « antigo status objetivado », hoje nem mais mencionados. Diante do novo contexto, a religião passa a ser discutida como uma nova opção de escolha racional onde, no perde e ganha do mercado, os convertidos não garantem a fidelidade trocando para outra religião conforme a necessidade. Existe também um melhor envolvimento dos « profissionais » que concorrem no mercado, disputando o consumidor ávido pelas soluções de seus problemas.
- 23 « A religião de hoje é a religião da mudança rápida, da lealdade pequena, do compromisso descartáv (...)
33Embora tenham surgido essas novas correntes de pensamento e, para Prandi, a religião, na atualidade, não seja vista como uma ruptura cultural e social23, se recorrermos aos dados empíricos da pesquisa realizada na comunidade muçulmana de São Paulo, o que veremos é um caminho em direção ao conceito de Travisano, como radical organização da identidade, mudança de visão de mundo, rompimento com o passado e exteriorização da nova religião.
34As transformações surgidas no mundo trouxeram como conseqüência a globalização. Em Bauman (2005 : 10-12) o processo de globalização é uma forma radical e irreversível. A globalização, para ele, é uma « grande transformação » que afetou estruturas estatais, condições de trabalho, relação entre Estados, subjetividade coletiva, produção cultural, vida cotidiana e as relações entre o eu e o outro. O processo de globalização atingiu um estágio tal que não tem mais volta. Todos dependem de todos. De certa forma, até mesmo com visão otimista, Bauman vê no processo de globalização uma oportunidade da humanidade caminhar num mesmo sentido garantindo tanto a vulnerabilidade quanto a segurança. Para ele a globalização passa de maldição à benção quando afirma que a « humanidade nunca teve uma chance melhor ». No entanto, é cauteloso e deixa uma interrogação se isso realmente pode acontecer, já que a possibilidade depende apenas de nós. A questão identitária, conseqüência da falta de segurança com relação à crise multiculturalista, pode também estar ligada ao colapso do Estado de bem-estar social. A globalização, em Bauman, significa que o Estado não tem mais o poder nem o desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação. O crescimento da sensação de insegurança, com a « corrosão do caráter », cria as condições para o esvaziamento das instituições democráticas e as privatizações públicas. Para ele a « corrosão do caráter » é a manifestação da profunda ansiedade que caracteriza as tomadas de decisões, o comportamento e os projetos do homem na sociedade moderna do ocidente.
35Em Giddens, a globalização tende a influenciar o desenvolvimento de maneira desigual e homogeneizar as culturas. Uma das formas de minimizar essas conseqüências pode ser a adoção de conceitos que têm como base as doutrinas religiosas, no entanto, alerta Giddens que, embora as crenças e práticas religiosas forneçam o refúgio das tribulações cotidianas, elas também podem ser fonte de ansiedade e apreensão mental (Giddens 1991 : 109). Os temores do pecado e a promessa de salvação vão moldando o cotidiano dos fiéis. Não importa em que direção de pensamento se caminhe, a adoção de uma religião ou a adesão a qualquer outro grupo é uma forma de sentir-se includente. A grande transformação que afeta a vida cotidiana afeta, de modo particular, o indivíduo e sua identidade. Fazer parte de uma comunidade é uma forma de sentir-se parte de um sistema. A sensação de insegurança é assim minimizada, e o pertencimento oferece a oportunidade de o indivíduo caminhar com o grupo e se preocupar com as mesmas coisas.
- 24 Narrativa de duas convertidas : « Após ter me desiludido também com as falsas maravilhas do mundo (...)
36No caso muçulmano, o que pareceu também motivar alguns convertidos foram decepções dos conceitos do mundo moderno e a vontade de viver num mundo mais justo, pautado pela igualdade24. Para Nabhan (1996 : 120), esse interesse dos brasileiros pelo Islã pode ter vindo da possibilidade de compartilhar, além dessa igualdade, a simplicidade e disciplina da prática religiosa. É importante observar que a crise, em decorrência da perda de referência, no mundo que impõe seus pontos de vista e implica em problemas de origem moral podem ter contribuído para uma maior busca religiosa e, conseqüentemente, uma sensível transformação dos convertidos.
- 25 B. Oelze é um dos organizadores Simmel (2005).
37Georg Simmel (2005 : 119-126), em seu ensaio sobre a imagem que gera seu próprio mundo, explica a « essência da arte » através do « todo » e « parte ». As coisas do mundo real são somente partes de um todo, que é o mundo. Simmel exemplificou o conceito de « todo » como um circuito fechado, onde a energia da obra de arte sai e volta, criando uma conexão tensa em si mesmo. Oelze25 questiona Simmel de forma interessante. Ele se contrapõe à noção de totalidade da obra de arte. Para Oelze, uma obra de arte não é completa, pois ela corta partes do mundo, das paisagens, assim como quando nós olhamos por uma janela. Nosso olhar, ou visão de mundo, não é completo, diz ele.
38A problematização desse artigo vem das contradições entre essas « partes » e o « todo » que envolvem a identidade islâmica global, enquanto ummah transnacional e a identidade nacional. Se numa análise olharmos o Islã enquanto religião que supere as tradições históricas e conseguirmos enxergar nele o « todo » descrito por Simmel, podemos enxergar o circuito fechado a que ele se refere, « a essência ». No entanto, estaremos olhando por uma janela porque, mesmo dentro no Islã, existem as diferenças que ficam por conta da própria divisão da religião como sunita, xiita, sulfi, pelas escolas de direitos ou ainda pelo próprio conceito cultural contido nas suas raízes. Ora, então se olharmos as « partes » que compõem esse « todo » vamos perceber as diferenças étnicas e culturais. Por isso, existe um Islã adequado às condições brasileiras, não num sentido da essência da religião, mas num sentido de emancipação contra os particularismos culturais e étnicos da comunidade formada principalmente pelos árabes.
39Num país como o Brasil, de minoria muçulmana, que tem uma comunidade, em São Paulo, formada a partir de imigrantes árabes, e com a diversidade de matrizes étnicas e um grande mercado de oferta religiosa, o Islã vem retomar uma « tradição » destituída pela falta de compromisso religioso em função da separação Igreja/Estado. Mohammed Abed Al-Jabri 1999 : 11-13.) vê a tradição pelo viés da razão do pensamento árabe, tratando a palavra « tradição » como tradução do que ele chama de « turath », que « não é a herança de um pai morto, mas sim um pai sempre presente, sempre vivo ». Para ele não cabe à modernidade recusar a tradição nem romper com o passado, mas, antes de tudo, assumir a relação de ambos na « contemporaneidade ». É seguir o progresso.
40Abril de 2006