Marroquinos em Portugal
Résumés
Les immigrés marocains participent-ils à la construction de la « communauté » musulmane au Portugal ? L’analyse commence par une description succincte de l’évolution du phénomène de l’immigration marocaine au Portugal dans les années 1990. Le Portugal pourrait-il constituer un contexte d’intégration positive des immigrés marocains, comme alternative à d’autres pays européens ? On peut suivre cette question selon quatre critères : la tradition du luso-tropicalisme, l’arabisme portugais, la récupération du passée arabe, le rôle de Portugal comme médiateur entre l’Europe et le monde arabe, et la communauté musulmane portugaise.
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Mots-clés :
immigrés marocains, lusotropicalisme, arabisme portugais, communauté musulmane portugaiseIndex géographique :
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Este artigo integra-se numa investigação em curso que se baseia num trabalho de campo em Lisboa e (presentemente) no Algarve e que já resultou na apresentação ao mestrado com o título Las Fronteras Invisibles. Imágenes de la inmigración marroquí en Portugal y en España. Trata-se agora da pesquisa de doutoramento em realização na Universidad Autónoma de Madrid (UAM), financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino superior de Portugal. Uma versão deste artigo foi apresentada no Terceiro Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, « Afinidade e Diferença », realizado em Lisboa nos dias 6, 7 e 8 de Abril de 2006.
Texte intégral
1O estudo que aqui apresentamos integra-se numa investigação em curso sobre a integração de Portugal na rede transnacional de imigração marroquina e sobre a permeabilidade da fronteira luso-espanhola por parte destes sujeitos migrantes. Assim, mais que constatar dados, vamos referir hipóteses.
- 1 F. L. Machado, « Contorno e especificidades da imigração em Portugal », Sociologia – Problemas e P (...)
- 2 A única investigação até agora realizada sobre o tema é : A. Cabral (ed.), Imigração Marroquina, P (...)
2Depois da análise dos dados resultantes da regularização extraordinária de imigrantes realizada em Portugal em 1996, diferentes investigadores chamaram a atenção, ainda que subtilmente, para a aparição inesperada de regularizados de nacionalidade marroquina1. O interesse da presente investigação pelo fenómeno da imigração marroquina para Portugal surge primeiro pela possibilidade de completar o quadro visual sobre imigração marroquina na Europa, mas também, observando desde a perspectiva espanhola, por nos parecer que Portugal deveria ser a sequência directa da evolução do fenómeno – tal como Espanha e Itália vão estabelecer-se como destinos para estes migrantes no momento em que países como a França, Holanda, Bélgica e a Alemanha fecham as suas fronteiras à imigração, também Portugal parecia ser a alternativa lógica a uma certa saturação do mercado espanhol. Por outro lado parecia-nos que Portugal poderia reunir uma série de elementos sociais, culturais e históricos que poderiam facilitar a incorporação dos imigrantes marroquinos à realidade portuguesa. Nas notas finais veremos até que ponto se confirmam as hipóteses que iremos desenvolvendo ao longo do artigo2.
Evolução da imigração marroquina na Europa
- 3 É também relevante uma certa transformação nos modelos de produção que vai resultar numa especiali (...)
- 4 J. Césari, « Los marroquíes en Francia », in B. López García, A. Planet & A. Ramírez (eds), Atlas (...)
3Os movimentos migratórios marroquinos remontam a épocas anteriores ao período colonial. Por essa altura dirigiam-se a países do Médio Oriente e da África ocidental. Os primeiros marroquinos que chegam à Europa são comerciantes que se instalam em França e em Inglaterra pela metade do século xix. Já no século xx, e principalmente a partir do boom económico do pós-IIa Guerra mundial, vários são os acontecimentos (simultâneos) que « empurram » os nacionais marroquinos para os países europeus. Em primeiro lugar, a guerra de independência argelina provocou o regresso a França das empresas instaladas na região norte da Argélia, o que levou a que muitos trabalhadores rifenhos seguissem os seus empregadores para o território francês. Em segundo lugar, durante a mesma época, Marrocos viveu um momento de explosão demográfica o que acentuou um certo desequilíbrio entre a população e os recursos naturais e económicos do país. Finalmente, deve-se notar que as principais saídas são provocadas pela assinatura de acordos de mão-de-obra com países como a França, a Alemanha, a Holanda e a Bélgica, que vão abrir os primeiros canais de imigração (pendular) massivos. Os anos 1970 do século xx assistem à grave crise de petróleo que provoca o fecho das fronteiras europeias e ao início da chamada política de « imigração zero »3. O fenómeno entra numa segunda fase, de assentamento e também de diversificação de destinos. Os países do norte e centro da Europa mantêm um único canal de imigração aberto através do reagrupamento familiar (primário e secundário), o que provoca por um lado uma estabilização das populações, e por outro, o aumento das entradas irregulares4. Como alternativa os trabalhadores marroquinos dirigem-se então para países como a Líbia e a Arábia Saudita (com uma capacidade ‑ de recursos e de interesse político ‑ de recepção de imigrantes muito limitada), e para Espanha e Itália que demonstram ser regiões nas quais era possível (principalmente devido à inexistência de uma legislação relativa aos movimentos de imigração) a permanência daqueles que não conseguiram passar as fronteiras do norte economicamente mais vantajoso.
O caso espanhol
- 5 A. Ramírez, « Marroquíes en España : aproximación a una tipología para el caso del Maresme catalán (...)
- 6 Colectivo Ioé, « La inmigración magrebí en España », in B. López García & otros (eds), op. cit. : (...)
- 7 A preferência dirige-se para os países da América latina, Guiné-Equatorial, Filipinas, Portugal, G (...)
- 8 F. Bravo López, « La legislación de extranjería en el debate político », in TEIM, Atlas de la inmi (...)
- 9 A. Izquierdo, « Los preferidos frente a los extranjeros permanentes : la inmigración marroquí en l (...)
4Na vizinha Espanha a comunidade marroquina foi a primeira comunidade de imigrantes não europeus a instalar-se no país. O fenómeno remonta ao início do século xx sendo no entanto bastante incipiente e fluído até aos anos 1970, momento em que a impossibilidade em atravessar a fronteira francesa levou a que muitos marroquinos se fixassem na Catalunha. Esta Comunidade Autónoma registava nesta época um aumento da industrialização e tinha capacidade de absorção destes novos trabalhadores5. A partir daí e até aos anos 2000 o fenómeno conhece uma evolução rápida e constante, aumentando o número de indivíduos que vivem no país e sofrendo alterações na sua constituição : de um universo constituído por homens jovens solteiros concentrados em algumas zonas do país (Catalunha, Madrid, Andaluzia) passa para uma diversificação de género (um elemento específico do caso espanhol é a imigração de mulheres – solteiras, casadas e viúvas – com projectos migratórios independentes), de idade (Espanha depara-se com uma realidade grave de imigração de menores de idade não acompanhados) de destinos (os imigrantes marroquinos encontram-se já em todas as Comunidades Autónomas espanholas) e de origens (chegam a Espanha marroquinos de todas as regiões de Marrocos)6. No entanto, a legislação espanhola entra em confronto com esta realidade. A construção da política de imigração espanhola realizou-se sob a pressão da entrada na então Comunidade Económica Europeia, o que significa que antes de mais nada o governo tinha que demonstrar ser capaz de exercer um controlo sobre a nova fronteira sul da Europa. Assim, desde a primeira « Ley de Extranjería » de 1985, em nenhum momento os imigrantes marroquinos são contemplados positivamente nos documentos legisladores dos movimentos migratórios7. A não preferência pelos imigrantes de nacionalidade marroquina torna-se visível principalmente a partir de 1996, ano em que o Partido Popular ganha as eleições para a presidência do governo espanhol. Este assumiu a luta contra a imigração irregular como um dos seus principais papéis ante a União Europeia e para tal a imagem da patera (as pequenas embarcações de madeira ou borracha utilizadas para atravessar o Estreito) como metáfora dessa irregularidade8. A imigração foi muito utilizada pelo PP como instrumento na luta económica e politica com o governo do Reino de Marrocos em debates sobre distintos temas, como por exemplo a pesca, e os meios de comunicação participaram activamente na divulgação da necessidade de restrição de entradas de imigrantes, leia-se marroquinos. Ante esta pressão, a realidade sofre uma transformação em Espanha : lentamente os números de imigrantes marroquinos estão a descer... e os de latino-americanos estão a subir9. Será Portugal uma alternativa como destino migratório ?
Imigrantes marroquinos em Portugal
- 10 PALOP são os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné- (...)
5Ainda que se encontre relativamente perto de Marrocos e que no seu principal país vizinho, Espanha, a população marroquina seja uma das mais importantes dentro da comunidade imigrante, em Portugal a questão da imigração marroquina constitui uma novidade. Como sabemos, os imigrantes que tradicionalmente se dirigem para Portugal são originários dos chamados PALOP10 e do Brasil, mas as regularizações extraordinárias dos anos 1990 apontam para um fenómeno que posteriormente se confirmou com o processo de pedidos de autorizações de permanência do ano 2001 : por um lado a nova presença massiva em Portugal de cidadãos oriundos de países do Leste da Europa, e por outro a aparição e crescimento (constante mas discreto) de pessoas provenientes do norte de África, principalmente de Marrocos.
Quadro 1. Participação de marroquinos nos processos de regularização extraordinária e no processo de pedidos de autorização de permanência
Regularizações Extraordinárias |
Autorizações de Permanência |
|||||
1992/1993 |
1996 |
2001 |
2002 |
2003 |
2004 |
2005 (prorrogações) |
98 |
520 |
1 025 |
323 |
47 |
(não contab.) |
521 |
6Fonte : Estatísticas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (<www.sef.pt>).
- 11 P. Fargues (ed.), Migrations Méditerranéennes. Rapport 2005, European University Institute & Europ (...)
- 12 Incluindo neste número os detentores dos seguintes documentos oficiais : residência, autorização d (...)
7Chegar a um número real de pessoas de nacionalidade marroquina que vivam em Portugal é um exercício complicado. No relatório sobre as migrações mediterrâneas publicado pela Comissão Europeia11, o ministère des Affaires étrangères et de la Coopération marroquina contabiliza 2 866 marroquinos a viver em Portugal no ano 2004, enquanto que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras português considera a existência de 1 539 cidadãos com essa nacionalidade no ano 200512.
Quadro 2. Cidadãos marroquinos com situação regularizada em Portugal em 2005
Total |
Residentes |
Autorizações de Permanência |
Vistos de Longa Duração |
|||
Vistos de Trabalho |
Visto de Estada Temporária |
Vistos de Estudo |
||||
Total |
1 539 |
926 |
521 |
69 |
14 |
9 |
Homens |
1 140 |
578 |
488 |
62 |
7 |
5 |
Mulheres |
394 |
348 |
33 |
7 |
7 |
4 |
Fonte : Estatísticas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (<www.sef.pt>).
Considerando os diferentes números oficiais existentes e fazendo uma estimativa dos irregulares, baseando-nos em dados recolhidos ao longa da nossa investigação, calculamos que vivam em Portugal entre 5 000 e 6 000 cidadãos de nacionalidade marroquina. Discutindo a questão com alguns dos informantes desta investigação eles próprios se negam a acreditar na validade das estatísticas oficiais. Não simplesmente pela existência de uma relevante bolsa de imigrantes marroquinos irregulares que não se encontram contabilizados pelas instituições oficiais, mas também pelo facto de Portugal não constituir um destino final do processo migratório. Segundo os próprios sujeitos, o acesso a algum documento oficial português que lhes permita uma residência legal no país (inclusive para aqueles que esperaram os dez anos necessários para receber a nacionalidade) permite-lhes atingir o seu objectivo final que é a « verdadeira Europa » – França, Alemanha, Holanda, países onde a maioria tem família já instalada. Este universo representa a imagem típica de uma primeira geração de imigração : é constituído essencialmente por homens solteiros em idade activa (maioritariamente entre os 20 e os 40 anos). No entanto já podemos observar como a imagem começa a sofrer uma certa alteração, com o início de processos de reagrupamento familiar e também de casamentos mistos e já existem alguns nascimentos de filhos de pais marroquinos em território português.
O potencial incorporador13
- 13 Preferimos utilizar o conceito de incorporação de Alejandro Portes e não o de integração por estar (...)
- 14 Utilizamos aqui de forma algo livre o conceito que Gilberto Freyre popularizou para definir o Bras (...)
- 15 A.. R. Moreira, Ideias, Práticas e Instituições do Arabismo Português, monografia de licenciatura (...)
- 16 M. Cardeira da Silva, « O sentido dos árabes no nosso sentido. Dos estudos sobre árabes e sobre mu (...)
- 17 Ver por exemplo « Lisboa joga cartada do Magrebe » e « O elogio da pequenez », Público 29 de Janei (...)
8Considerámos que Portugal poderia (potencialmente) surgir como um destino alternativo baseando-nos em alguns supostos que poderiam funcionar como meios de incorporação positiva dos marroquinos na sociedade portuguesa : a) uma certa construção da identidade nacional baseada numa hipotética capacidade de tolerância e de adaptação ao outro resultante da experiência histórica do contacto cultural (na tradição do luso-tropicalismo)14; b) a tradição do arabismo português que procura aproximar-se da academia europeia orientalizando parte do próprio território português15; c) a recuperação da presença « árabe » no território e identidade portugueses através da redignificaçao dos espaços arqueológicos do Al-Andalus16; d) e por último a forma como os últimos governos portugueses têm tentado recuperar estas distintas tradições para a construção de um papel de mediador político entre a Europa e o mundo árabe, tendo o governo marroquino como interlocutor do outro lado do mediterrâneo17.
- 18 M. Cardeira da Silva, « O sentido dos árabes no nosso sentido... », op. cit.
- 19 Fez e Marraquexe transformam-se nas cidades guardiãs de uma identidade tradicional marroquina que (...)
9Cardeira da Silva recorda numa publicação recente18 como David Lopes (responsável pela institucionalização do arabismo em Portugal) definiu o Portugal histórico através de três dimensões « para nacionais » : a presença dos árabes na Península, a presença dos próprios portugueses em Marrocos e a presença dos portugueses no Oriente. E como no pós-25 de Abril de 1974 o processo de reconstrução nacional e de desenvolvimento económico regional passou por uma exploração do potencial turístico e económico que os vestígios e a herança árabes poderiam implicar. Mértola abriu caminho para que as regiões norte e sul do país se apercebessem das vantagens da reabilitação de material arqueológico sempre sustentado por uma promoção turística do mesmo através da escenificação da vida quotidiana em feiras e mercados da época do Al-Andalus. A nível local, Mértola, Castro Marim, Cacela Velha, Silves, Castro Verde, Lagos e Sintra, associam a redignificação da imagem dos árabes na história e identidade nacionais servindo por um lado uma folclorização e reinvenção da memória, mas também uma dimensão política de encontro com os países árabes do mediterrâneo19. E a nível nacional diversos governos portugueses, nessa encruzilhada entre a Europa e os países árabes, procuraram personificar o papel do mediador de conflitos, de ponte de diálogo que a « genética portuguesa » diversa permitiria (árabe, judaica e cristã, num multiculturalismo tolerante que ascenderia à idade média e que se manipularia também como capacidade de aproximação ao outro reconhecendo as diferenças sem entrar em conflito). Até que ponto esta recuperação da « essência » árabe na identidade nacional resulta a efeitos reais numa maior facilidade de incorporação dos árabes (marroquinos) contemporâneos que escolhem este país para residir ?
O contexto de incorporação
- 20 N. C. Tiesler, 2005, « Novidades no terreno : muçulmanos na Europa e o caso português », Análise S (...)
10Os imigrantes marroquinos que se encontram em Portugal enquadram-se perfeitamente como sujeitos do que Tiesler20 chamou a pós-descolonização, uma fase de imigração caracterizada por novos padrões de imigração independentes do passado colonial, exteriores ao mundo lusófono e integrados em trajectórias migratórias globalizadas.
- 21 F. Freire, Do Yemen ao Dafundo. Itinerários para a construção de uma masculinidade, monografia de (...)
11O universo a que nos aproximamos nesta investigação é constituído por pessoas que seguem um padrão de imigração por imperativos económicos. A incorporação dos marroquinos na sociedade portuguesa realiza-se principalmente a nível do mercado de trabalho. Os sujeitos caracterizam-se por uma forte mobilidade (tanto dentro como fora do país) e em geral a sua presença em Portugal relaciona-se, de forma vinculativa, com uma temporalidade e um objectivo. Dentro do universo dos marroquinos que vivem em Portugal, podemos encontrar distintas categorias : os imigrantes económicos regularizados, os imigrantes económicos irregulares, e também quadros superiores e estudantes (que em muitos casos desenvolvem paralelamente actividades económicas21). Estes grupos não são uniformes. Portugal constitui um contexto de diferença no qual os elementos étnico-culturais definem uma unidade mas também distinções.
- 22 Muitos deles fixam-se em Portugal simplesmente porque se encontravam empregados em barcos portugue (...)
12Os pioneiros da imigração marroquina fazem a sua entrada no país pelo norte, tendo como primeiro destino Espanha e sendo a passagem para Portugal um experiência exploratória. Pela investigação no terreno conseguimos definir o ano de 1983 como o primeiro a assistir à presença de vendedores na região do Porto. Sabemos também que membros da elite económica e intelectual marroquina se encontravam nos anos 1980 do século xx na região de Lisboa. Tentando aproximar-nos a uma cronologia da imigração marroquina em Portugal, podemos no entanto afirmar que é a década de 1990 a que assiste às primeiras entradas organizadas de marroquinos no país. A finais dos anos 1980 e inícios dos 1990 Marrocos e Portugal assinam os acordos de pesca que permitem que as embarcações marroquinas pesquem ao largo da costa portuguesa, e que as embarcações portuguesas pesquem ao largo da costa marroquina. Os homens marroquinos que trabalhavam nos barcos pesqueiros não podem ainda ser considerados imigrantes uma vez que distribuíam a sua vida entre Portugal e Marrocos (em geral originários da região de Doukhala), mas quando o rei de Marrocos, na altura Hassan II, pai do actual monarca, não renova os acordos muitos destes homens fixam-se em Portugal (principalmente nas zonas do Algarve e de Setúbal)22. Alguns deles foram os responsáveis pelo início do negócio da venda ambulante, principalmente na zona do Algarve : ao ter familiares em Espanha mas principalmente em Itália que se dedicavam a esta actividade começaram a vender artesanato marroquino nas feiras semanais e mensais realizadas por todo o Algarve. Com o tempo acabam por casar com portuguesas ou por trazer as esposas marroquinas, criando assim o primeiro núcleo de uma posterior rede de entrada em Portugal.
- 23 A imigração feminina a Espanha, e em menor medida a Itália, resulta de transformações culturais qu (...)
13Outra actividade a que se dedicam os marroquinos que vivem em Portugal, principalmente na zona sul do país é a agricultura. É entre os anos 1992 e 1996 que se realizam os primeiros contratos colectivos de trabalhadores agrícolas. São empresas espanholas que produzem em terras portuguesas que primeiro realizam esta operação, imitando o modelo existente no seu país de origem. Este fenómeno é muito interessante porque inicia o movimento migratório de mulheres sozinhas, fora do âmbito do reagrupamento familiar23. Um número importante destas mulheres são originárias da região de Kenitra e durante algum tempo permanecem dentro de um movimento pendular entre Portugal e Marrocos até que decidem instalar-se em Portugal, algumas caindo na irregularidade. São principalmente mulheres jovens solteiras, entre os 20 e os 39 anos, no entanto podemos encontrar algumas mulheres casadas que reagrupam os maridos (fruto de casamentos reais ou de casamentos ”brancos”).
- 24 Este fenómeno da venda ambulante entre o colectivo marroquino pode ser comparada com a realidade i (...)
14O ano de 1996 é o que dá visibilidade à imigração marroquina. Durante este ano realiza-se o segundo processo de regularização extraordinária de trabalhadores estrangeiros. Como resposta às críticas de falta de divulgação do primeiro processo de regularização extraordinária realizadas pelo Secretariado coordenador de Associações para a legalização (SCAL), houve uma tentativa de involucrar distintos actores sociais de forma a informar o maior número possível de pessoas. Como resultado, a mensagem ”viajou” até Espanha e a Itália, países de onde chegou um importante número de vendedores ambulantes, que realizavam essa actividade nos outros países do sul da Europa e que se vão dedicar à venda de tapetes, óculos de sol e relógios um pouco por todo o país24. Muitos conseguiram a regularização mas outros tantos permaneceram no país em situação irregular. Estes homens, casados e solteiros, de entre 20 e 40 anos, são originários de todas as zonas de Marrocos, com uma incidência importante das zonas de Beni Mellal, Khouribga e Agadir.
A diversificaçaó do fenómeno
15A partir do ano 2000, assistimos à diversificação do fenómeno. Diversificam-se as origens, diversificam-se as actividades económicas a que se dedicam e diversificam-se as regiões do país onde se encontram. Com a abertura do processo de pedidos de autorização de permanência do ano 2001 e com a publicidade do Euro 2004 de futebol cobrem-se as necessidades de legalização (ainda que muitos tenham permanecido no país em situação irregular) e de incorporação ao mercado de trabalho. A partir destes anos podemos encontrar nacionais marroquinos a trabalhar na construção e obras públicas, na venda ambulante e em hotelaria, mas também em fábricas e na agricultura. No sentido inverso, é também a partir do ano 2000-2001 que começam a partir muitos dos indivíduos que estavam já há alguns anos em Portugal. A crise económica que afectou todo o país teve também o seu impacto nos imigrantes que viam melhores possibilidades de cumprir os seus objectivos migratórios (económicos) saindo do país, agora com documentos que demonstram ter a sua situação regularizada num país europeu.
- 25 Um motivo pelo qual não encontramos muito pessoal investigador de nacionalidade marroquina nas uni (...)
16Fora destes movimentos concretos existem algumas realidades que são transversais a todos estes anos. É o caso dos trabalhadores de algumas empresas luso-marroquinos dedicadas à indústria têxtil, que provocam uma fluidez de trabalhadores entre as regiões de Lisboa e do Porto em Portugal e as de Casablanca e Kenitra em Marrocos. E é também o caso do diminuto grupo de intelectuais marroquinos que vivem no país. Em Portugal existem cerca de 15 professores25 e 9 alunos que se encontram a ensinar ou estudar em universidades portuguesas, nas mais diversas áreas desde a economia ou informática à literatura.
17As relações que os nossos informantes constituem no país de acolhimento são circunstanciais – partilham elementos que contextualmente os afirmam a todos como marroquinos mas existem numa distância já que entre os diferentes indivíduos ou colectivos não se criam tecidos que os unam a todos como comunidade em Portugal. Importante é a divisão que existe entre os regulares e os irregulares, perfeitamente exemplificado pelas diferenças entre os vendedores ambulantes e os vendedores que se especializam nas feiras ou mercados árabes e medievais. Os primeiros encontram-se em geral em situação de irregularidade com todas as consequências sociais que isso implica – vivem em situações de instabilidade social, normalmente reúnem-se vários na mesma casa e na mesma zona para poupar o máximo possível até alterarem o seu estatuto legal. Por outro lado os segundos já passaram para um estádio mais avançado de incorporação, ao serem pessoas que já estiveram a vender nas ruas mas que já conseguiram um visto de trabalho ou uma autorização de residência, documento obrigatório para poder participar nestes eventos, normalmente organizados pelas Câmaras Municipais dentro das actividades culturais dos municípios. Entre os primeiros dificilmente encontramos mulheres, enquanto que os segundos já passaram em muitos casos pelo processo de reagrupamento familiar e alguns casos já têm inclusive crianças nascidas em Portugal.
- 26 A informação que temos é que esta associação ainda se encontra em criação.
- 27 « A associação tem por objecto facilitar a integração dos marroquinos residentes em Portugal na co (...)
18O associativismo marroquino pode também ser considerado exemplo desta afirmação. Depois de muitos esforços para tentar estruturar uma associação de imigrantes marroquinos, a Embaixada de Marrocos em Portugal deu finalmente o seu apoio em consequência de um apelo do rei Mohamed VI à união das comunidades de marroquinos que vivem no estrangeiro. Propôs-se então a criação de três associações : uma no Algarve, uma em Lisboa26 e outra no Porto. A última a ser criada é a « Associação Cultural dos Marroquinos e os Amigos de Marrocos (ACMAM) » cujos estatutos se apresentaram no Registo de Associações de Faro em Julho de 2006. Esta associação agora criada não tem simplesmente como objectivo o apoio aos imigrantes marroquinos que se encontram no país, mas pretende em grande medida funcionar como intermediário entre a cultura marroquina e a cultura portuguesa27.
19Haverá que ver se a existência de três associações vai funcionar como catalizador ou vai criar simplesmente mais distância entre os grupos que vivem nas diferentes zonas do país. No entanto, o circuito da imigração e a forte mobilidade vivida por todos os sujeitos levam-nos a participar da comunidade transnacional marroquina – quase todos têm membros da unidade familiar dispersos pelo mundo, principalmente em França, Itália, Holanda e Espanha, e em muitos casos o seu próprio percurso individual é marcado pela transnacionalidade. Exceptuando o grupo inicial dos pescadores e os trabalhadores agrícolas contratados no país de origem, quase todos têm percursos que já passaram pelo menos por outro país europeu, sendo que alguns vivem agora a sua quarta etapa migratória. O melhor exemplo desta transnacionalidade são os vendedores ambulantes que circulam no sul da Península Ibérica como se de uma região única se tratasse, alguns alargando muitas vezes este movimento até Itália. Vivem entre os três países e utilizam os circuitos das feiras (das feiras semanais e mensais, mas principalmente das feiras árabes e medievais) para definir a sua permanência num ou noutro país.
Participação na comunidade islâmica portuguesa28
- 28 A população do Reino de Marrocos pertence maioritariamente ao Islão sunita, ortodoxo, divisão teol (...)
20Ao trabalhar sobre um colectivo muçulmano torna-se difícil evitar a questão de até que ponto a Comunidade Islâmica portuguesa serve de colchão de incorporação para os imigrantes marroquinos ?
- 29 N. C. Tiesler, « Muçulmanos na margem : a nova presença islâmica em Portugal », Sociologia – Proble (...)
- 30 Ver para o caso dos imigrantes do Bangladesh : J. Mapril, « ’Bangla masdjid’ : Islão e bengalidade (...)
- 31 O. Roy, El Islam Mundializado. Los musulmanes en la era de la globalización, Barcelona, Edicions B (...)
21Quando os marroquinos chegaram a Portugal encontrava-se já criada a Comunidade Islâmica de Lisboa, uma instituição constituída principalmente por indivíduos oriundos das antigas colónias portuguesas que se esforçaram desde o inicio na construção de uma relação positiva e apolítica com o Estado e com a sociedade de acolhimento29. Os anos 1990 observam uma diversificação das origens dos imigrantes muçulmanos mas estes « pioneiros » permanecem como porta-voz da comunidade, elaborando agora um discurso universalizante do Islão e integrador dos distintos membros da umma ‑ numa adaptação à nova realidade através de subalternização da etnicidade30. No entanto, como Roy afirmou, este Islão como fenómeno mundializado encontra-se sujeito a fenómenos como a individualização da relação com a religião e a comunitarização do grupo religioso31.
- 32 Apesar da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) e a Mesquita Central de Lisboa serem duas instituiçõe (...)
- 33 O. Roy, El Islam en occidente : ¿La occidentalización del Islam?, Transcrição editada da Conferênc (...)
22O espaço da mesquita de Lisboa32 não se traduz num elemento catalizador das sociabilidades e configurações identitárias dos marroquinos que vivem em Lisboa. Em contraste com o discurso aglutinador da mesquita central, os crentes marroquinos procuram distanciar-se da identidade muçulmana que se constrói em Portugal. Os sujeitos elaboram um discurso político sobre a realidade da mesquita central que é o local de reunião de africanos e indianos e não de árabes ou magrebinos. A vivência dos marroquinos em Portugal provoca uma transformação na sua religiosidade – na forma como estes indivíduos vivem a sua relação com a religião33. O facto do colectivo de imigrantes marroquinos que vive em Lisboa ser muito disperso dificulta o acesso físico ao espaço da mesquita mas também existe uma dissociação para com as actividades da mesquita central e para com o culto (num discurso que reconhece igualdade na religião mas uma diferença na cultura) o que impede uma prática religiosa quotidiana.
23O facto de representarem uma diferença em relação aos representantes dos muçulmanos em Portugal, não impede no entanto a sua participação na comunidade a nível local. Observa-se um distanciamento do principal protagonista do Islão em Portugal – a Mesquita Central e a Comunidade Islâmica de Lisboa (com cuja identidade e discurso não se sentem identificados) – e uma privatização do Islão ou uma participação em comunidades religiosas particulares. Os crentes marroquinos que vivem em Portugal afastam-se conscientemente do seu próprio ideal de vivência religiosa. Admite-se a dificuldade em manter um seguimento quotidiano das máximas muçulmanas, o que, no discurso dos informantes, se encontra contemplado no Islão para aqueles que se encontram num país não muçulmano por questões de sobrevivência pessoal e familiar. A religião mantém-se dentro de casa, ou simplesmente num momento de espera até ao regresso a Marrocos. Muitos imigrantes marroquinos chegam inclusive a regressar a Marrocos para celebrar as principais festas religiosas. Daqueles que não podem fazer a viagem uma parte importante prefere permanecer em casa do que juntar-se às celebrações nas mesquitas ou locais de culto.
- 34 No Verão do ano 2005 nem a Comunidade Islâmica de Lisboa nem a organização islâmica Al Furqán tinh (...)
- 35 Entrevista com o Presidente da « Associação Cultural dos Marroquinos e os Amigos de Marrocos » rea (...)
24Ainda que a participação na vida religiosa da Mesquita Central de Lisboa seja praticamente nula, em pequenos locais de culto nos arredores de Lisboa (como no caso do local de culto de Forte da Casa) ou noutras regiões do país é mais activa (como é o caso do local de culto de Faro para cuja criação há cerca de quatro anos diversos imigrantes marroquinos participaram activamente34). No entanto, nesta participação mistura-se muitas vezes a obrigação religiosa com o acto social. A mesquita é um lugar de encontro de uma « comunidade » que se encontra dispersa. Prova disso pode ser o facto de inicialmente o local de culto de Faro ter sido pensado como uma associação cultural ou como um centro cultural. Segundo alguns informantes foi a mediação das Comunidades Islâmicas de Lisboa e do Algarve que definiram aquele espaço como local de culto. O que se pretendia num início era ter um espaço de encontro para os adultos e de ensino para as crianças35.
Visibilidade e religiosidade feminina
- 36 « Lenço » é o termo português utilizado pelas minhas informantes para o hijab. Apenas algumas mulh (...)
- 37 A. Ramírez, Migraciones, Género e Islam…, op. cit.
- 38 M. Abranches, 2005, « Mulheres muçulmanas em Portugal : formas de adaptação entre múltiplas refere (...)
25Parece-nos interessante dedicar alguma atenção à faceta feminina desta imigração já que, segundo os próprios informantes, há um outro elemento que os distancia da comunidade islâmica portuguesa : uma imagem exterior, principalmente feminina, distinta e imediatamente associável à religião islâmica. O lenço36 é instrumentalizado por algumas destas mulheres de múltiplas formas numa estratégia de incorporação na sociedade de acolhimento mas também de manutenção de direitos e de um determinado estatuto num contexto diverso ao da sua sociedade original. Ramírez refere, para o caso das mulheres marroquinas em Espanha, como o contexto de saída condiciona uma situação determinada da mulher no país de imigração37. O sistema de estratificação de género em Marrocos define que o projecto de vida feminino é dependente do masculino mas parece ser que a imigração permite uma adaptação da condição feminina e das restrições culturais à mobilidade feminina. Por outro lado Abranches observa em Portugal como as mulheres muçulmanas imigrantes utilizam as transformações características da sociedade ocidental na (re)construção das duas identidades, podendo a condição feminina ser estrategicamente manipulada38.
26Encontramos dois tipos de mulheres imigrantes marroquinas em Portugal : as que realizam um projecto migratório independente, e aquelas cujo projecto migratório depende de outro familiar (normalmente o marido mas também pode ser de um irmão). Entre as mulheres que estão sozinhas em Portugal as práticas religiosas, mas também o modelo de mulher marroquina, entram numa nova ordem de pensamentos : considera-se que este é um momento particular da vida no qual pode ser necessário levar a cabo uma existência que não corresponde ao ideal mas a que a necessidade económica as submete. O facto de tudo se fazer para ajudar a família justifica acções menos valorizadas socialmente. Entre essas acções encontra-se o abandono das práticas religiosas quotidianas.
27Algumas mulheres, principalmente as que não realizaram um trajecto imigratório individual e cuja presença no terreno da imigração resulta do reagrupamento familiar, instrumentalizam o papel da mulher muçulmana de forma a recuperar direitos que consideram que estão a perder em contexto imigratório. O lenço é então utilizado na luta pela recuperação de um papel dentro do espaço íntimo da casa familiar. Outras, num contexto de incorporação ao mercado de trabalho (subalterno) referem como o lenço lhes permite participar e auxiliar a economia familiar, agora transnacional, numa tentativa de conjugar fidelidade às origens mas também modernidade e autonomia pessoal. Algumas destas mulheres, por exemplo, auto-orientalizam e personificam a imagem de árabo-muçulmanas nas festas « árabes » e nas feiras de artesanato oriental regionais que se realizam principalmente durante o Verão e que fazem reviver, e « mercadorizam », a época da presença árabe em Portugal.
* * *
28Ao longo do artigo fomos colocando algumas questões às quais já fomos respondendo mas que tentaremos agora sistematizar. Perguntámos se Portugal constitui para os imigrantes marroquinos uma alternativa directa a outros países europeus. Perguntámos se a recuperação da « costela » árabe e a capacidade histórica de relação com o outro diferente facilitariam a incorporação destes imigrantes marroquinos/árabes na sociedade portuguesa. E, por último, perguntámos se a existência de uma comunidade muçulmana já instalada no país e na opinião pública, facilitaria a incorporação destes muçulmanos marroquinos.
29Portugal aparece como destino da imigração marroquina através de duas vias : uma indirecta e outra directa. Efectivamente, existe um número importante de pessoas que veio para Portugal depois de ter passado pela experiência de outros países europeus, no entanto, Portugal também abriu canais de entrada directa : os pescadores que foram os pioneiros do fenómeno, e os trabalhadores agrícolas contratados no país de origem iniciam o seu projecto migratório em Portugal. Assim, Portugal é simultaneamente primeiro destino e destino alternativo. Mas há uma ideia que é importante reter neste momento e que afecta de forma essencial o fenómeno da imigração marroquina em Portugal que é a circulação. Portugal é um país que vive uma crise económica desde há vários anos e o colectivo marroquino é um dos que se ressente desse facto. Estes migrantes parecem mais interessados na participação na comunidade marroquina transnacional do que na construção de algo em Portugal. Este país continua a ser manipulado como um passo num projecto migratório que se quer terminar em França ou na Holanda, países que constituem, segundo os informantes, a ”verdadeira” Europa (económica)..
- 39 Uma associação de imigrantes serve muitas vezes como uma instituição que representa um grupo e com (...)
- 40 Mas o nascimento destas crianças não é necessariamente um factor de assentamento. Segundo a legisl (...)
30O colectivo de marroquinos que vivem em Portugal caracteriza-se por ser recente, heterogéneo, disperso e temporal. Num país com a dimensão de Portugal e com um número de imigrantes tão reduzido (constituem simplesmente um 0,3% dos imigrantes em Portugal) e tão disperso não foi ainda possível criar um sentimento de comunidade entre os imigrantes marroquinos. Consideramos a existência de uma comunidade quando os próprios sujeitos migrantes se sentem parte de um grupo mais amplo e se reconhecem nesse grupo39. O colectivo de marroquinos que vive em Portugal ainda é maioritariamente constituído por homens, muitos deles em situação de irregularidade ante a legislação portuguesa. No entanto até há três anos atrás parecia que este fluxo estava a entrar numa segunda fase, com o início de processos de reagrupamento familiar e com o nascimento das primeiras crianças em Portugal40.
31Apesar da temporalidade do fenómeno, não deixa de ser interessante a relação que os imigrantes marroquinos estabelecem com a sociedade de acolhimento. Em Portugal existe um discurso público (e político) de recuperação da essência árabe na identidade nacional, e uma faceta de facilidade histórica de contacto com o outro diferente, que se instrumentaliza (e que se revive com a escenificação do passado histórico multicultural nas feiras árabes e medievais). Apesar de ser uma folclorização, esta instrumentalização da relação com o outro árabe tem a vantagem de não denegrir a imagem dos países árabes contemporâneos. Ao contrário do que acontece em Espanha e em França, países onde a imagem que os nacionais têm dos marroquinos está directamente relacionada com a colonização e as consequências da descolonização, em Portugal a inexistência desse passado recente parece resultar numa apolitização da relação com o outro marroquino que vive no país. A reacção dos portugueses ante os imigrantes marroquinos é de aceitação. A imagem que os portugueses têm dos marroquinos passa primeiro pelo filtro do exotismo e só depois pelo da ameaça em termos de mercado de trabalho. Os próprios informantes elaboram um discurso de proximidade à cultura portuguesa : muitos são os que utilizam o passado árabe português para justificar uma sensação de bem-estar neste espaço migratório. No entanto, estes elementos não chegam a contribuir para uma incorporação real na sociedade de acolhimento. « Isto é como Marrocos » utiliza-se para justificar a facilidade que encontram em viver em Portugal mas também a dificuldade em atingir os objectivos económicos que se propuseram ao iniciar um projecto migratório. A principal desvantagem de Portugal como destino migratório é o facto de ser considerado como o país mais pobre da União Europeia, considerando muitos informantes que Marrocos se encontra quase no mesmo nível de desenvolvimento económico.
32A última questão refere-se à religião e à comunidade muçulmana como factor de incorporação. Loubna, uma informante, 26 anos, há três anos a viver em Portugal, dizia :
« Se estás ao balcão numa loja que vende coisas árabes, como me aconteceu lá em baixo na loja da Fátima [Olhão]... Ou se vais aquelas feiras onde ela vai com o marido, todos te perguntam de onde é que és. E é que nem pensam que usas o lenço porque és muçulmana. Mas aqui no meu bairro [num polígono industrial em Carcavelos], é só sair à rua que ficam todos a olhar para mim [...]. Uma vez com a Karima na rua uma senhora tirou a cabeça pela janela do carro e chamou-nos terroristas. [...] Eu quero é ir para casa da minha cunhada [França]. [...] Aqui nem o imã da mesquita nos defende. Sabes, ele é do Paquistão e na mesquita falam todos português, não querem saber do que dizem dos árabes. »
- 41 A. Vakil, « Questões inacabadas : colonialismo, Islão e portugalidade » in M. C. Ribeiro & A. P. F (...)
33As palavras desta informante são-nos úteis para duas questões. Em primeiro lugar para exemplificar o tema da folclorização da recuperação da memoria histórica do legendário passado árabe.. Vemos como as hipóteses lusotropicalistas, mas também o arabismo português, legitimam uma apropriação turística da « essência » árabe, sem chegar a ter uma repercussão concreta, positiva, nas vivências quotidianas dos marroquinos que vivem em Portugal. E em segundo lugar permite-nos observar a relação destes muçulmanos com a comunidade islâmica. Esta, ainda maioritariamente « portuguesa »41, não representa para estes indivíduos um colchão interessante de integração. Os crentes marroquinos não se identificam com o principal representante do Islão em Portugal. Observamos uma privatização – que passa por uma vivência mais privada mas também pelo abandono temporário das práticas religiosas quotidianas – e uma participação nas comunidades religiosas locais, que em alguns casos ajudaram a construir.
8 de Dezembro de 2006
Notes
1 F. L. Machado, « Contorno e especificidades da imigração em Portugal », Sociologia – Problemas e Práticas (Oeiras), 24, 1997 : 9-44. J. G. Pereira Bastos & S. Pereira Bastos, « Imigrantes, minorias étnicas e minorias nacionais em Portugal, hoje : da exclusão social e identitária ao multiculturalismo ? », in SOS Racismo, A Imigração em Portugal. Os movimentos humanos e culturais em Portugal, Lisboa, SOS Racismo, 2002 : 273-288. M. L. Fonseca, J. Alegria & A. Nunes, « Immigration to medium sized cities and rural areas: the case of eastern Europeans in the Évora region (southern Portugal) », in M. I. Baganha & M. L. Fonseca (eds.), New Waves : migration from eastern to southern Europe, Lisboa, Luso-American Foundation, 2004 : 91-118.
2 A única investigação até agora realizada sobre o tema é : A. Cabral (ed.), Imigração Marroquina, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2003, 292 p.
3 É também relevante uma certa transformação nos modelos de produção que vai resultar numa especialização do trabalho, num aumento de salários e na diminuição da mão-de-obra.
4 J. Césari, « Los marroquíes en Francia », in B. López García, A. Planet & A. Ramírez (eds), Atlas de la inmigración magrebí en España, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid Ediciones & Dirección General de Migraciones, 1996 : 55-59. M. Poulain, « La communauté marocaine de Belgique : caractéristiques démographiques », in K. Basfao & H. Taarji (eds), Annuaire de l’Émigration. Maroc, Rabat, Fondation Hassan II pour les Marocains résidant à l’étranger, 1994 : 30-36.
5 A. Ramírez, « Marroquíes en España : aproximación a una tipología para el caso del Maresme catalán », in B. López García & otros (eds), España-Magreb. Siglo xxi : el provenir de una vecindad, Madrid, Editorial Mapfre, 1992 : 249-255.
6 Colectivo Ioé, « La inmigración magrebí en España », in B. López García & otros (eds), op. cit. : 233-247. B. López García, « Implantación e integración de los inmigrantes magrebíes en España », in B. López García (ed.), Inmigración Magrebí en España. El retorno de los moriscos, Madrid, Editorial Mapfre, 1993 : 29-136.
7 A preferência dirige-se para os países da América latina, Guiné-Equatorial, Filipinas, Portugal, Gibraltar e para os judeus sefarditas (Ver : Ley Orgánica 7/1985 de 1 de Julio, Ley de Derechos y Libertades de los Extranjeros en España, conhecida como Ley de Extranjería). B.. López García, « La evolución de la inmigración marroquí en España (1991-2003) », in Taller de Estudios Internacionales Mediterraneos (TEIM), Atlas de la inmigración marroquí en España, Madrid, Universidad Autónoma de Madrid Ediciones, 2004 : 213-221.
8 F. Bravo López, « La legislación de extranjería en el debate político », in TEIM, Atlas de la inmigración ..., op. cit. : 109-111. L. Mijares, Aprendiendo a Ser Marroquíes. Inmigración y escuela en España, Tese Doutoral apresentada no Departamento de Estudios Árabes e Islámicos, FFL – UAM, mimeo, 2004, 520 p.
9 A. Izquierdo, « Los preferidos frente a los extranjeros permanentes : la inmigración marroquí en los inicios del siglo xxi », in TEIM, Atlas de la inmigración ..., op. cit. : 112-114.
10 PALOP são os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau e Sao Tomé e Príncipe).
11 P. Fargues (ed.), Migrations Méditerranéennes. Rapport 2005, European University Institute & European Comission – Europe Aid Cooperation Office (Euromed), 2005, 405 p.
12 Incluindo neste número os detentores dos seguintes documentos oficiais : residência, autorização de permanência e vistos de longa duração (Fonte : <www.sef.pt>).
13 Preferimos utilizar o conceito de incorporação de Alejandro Portes e não o de integração por estar este último demasiado conotado com o processo de aculturação associado à política francesa de imigração. Portes utiliza a noção de modos de incorporação para descrever o processo de inserção dos imigrantes nos distintos contextos de acolhimento. Ver A. Portes, Migrações Internacionais. Origens, tipos e modos de incorporação, Oeiras, Celta Editora, 1999, 160 p.
14 Utilizamos aqui de forma algo livre o conceito que Gilberto Freyre popularizou para definir o Brasil como terra de mestissagem. Parece-nos interessante uma adaptação deste conceito, que nas suas origens pretendia caracterizar a presença no Brasil e a colonização portuguesa em África como de mestissagem, tolerância racial e de co-habitação harmoniosa entre povos, à realidade contemporânea de um país que continua a ser incapaz de assumir os seus racismos (Ver edição de 1997 da revista Lusotopie dedicada ao Lusotropicalismo). M. M. Marques, N. Dias & J. Mapril, « Le ‘retour des caravelles’ au Portugal : de l’exclusion des immigrés à l’inclusion des lusophones ? » in É. Ritaine (ed.) L’Europe du Sud face à l’immigration. Politique de l’étranger, Paris, PUF, 2005 : 149-183. A. Vakil, « Do Outro ao Diverso. Islão e Muçulmanos em Portugal : história, discursos, identidades », Revista Lusófona de Ciência das Religiões (Lisboa), 2004, III (5/6) : 283-312.
15 A.. R. Moreira, Ideias, Práticas e Instituições do Arabismo Português, monografia de licenciatura em Antropologia, Faculdade das Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), mimeo, 2000, 76 p. A. R. Moreira, Árabes e Nação na periferia da Europa : de Alexandre Herculano a David Lopes, dissertação de mestrado em Ciências Sociais, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), mimeo, 2005, 139 p.
16 M. Cardeira da Silva, « O sentido dos árabes no nosso sentido. Dos estudos sobre árabes e sobre muçulmanos em Portugal », .in « Europa e Islão », Análise Social (Lisboa, Instituto das Ciências Sociais), XXXIX (173), 2005 : 753-806. A. Vakil, « The Crusader Heritage : Portugal and islam from Colonial to Post-colonial Identities », in R. Shannan Peckman (ed.), Rethinking Heritage : Cultures and Politics in Europe, Londres e Nova Iorque, I.B. Tauris, 2003, 268 p.
17 Ver por exemplo « Lisboa joga cartada do Magrebe » e « O elogio da pequenez », Público 29 de Janeiro de 1991 ; « As metades de nós », « De judeus e árabes todos temos um pouco » e « A nossa costela árabe », Público 1 de Fevereiro de1991 ; « Portugal quer ser a ‘ponte’ do dialogo euro-árabe », Público 1 de Abril de 1991 ; « Ministro marroquino elogia Portugal », Público 26 de Janeiro de1992 ; « À espera do ‘vizinho do sul’ », Público 21 de Setembro de1993 ; « Portugal e Marrocos inauguram cimeira anual », Público 30 de Maio de 1994 ; « Mais um passo para a Europa », Público 31 de Maio de 1994 ; « MAI de Marrocos em Lisboa », Público 17 de Maio de 1997. Ver também o jornal Público nos dias posteriores aos atentados de Madrid de 10 de Março de 2004. Ver AA.VV, Catálogo da Exposição Marrocos-Portugal. Portas do Mediterrâneo, Tânger, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, 199 p.
18 M. Cardeira da Silva, « O sentido dos árabes no nosso sentido... », op. cit.
19 Fez e Marraquexe transformam-se nas cidades guardiãs de uma identidade tradicional marroquina que pode ser explorada economicamente para aproximar-se do ideal imaginário do exotismo árabe dos portugueses.
20 N. C. Tiesler, 2005, « Novidades no terreno : muçulmanos na Europa e o caso português », Análise Social – Europa e Islão (Oeiras), XXXIX (173), 2005 : 827-849.
21 F. Freire, Do Yemen ao Dafundo. Itinerários para a construção de uma masculinidade, monografia de licenciatura em Antropologia, FCSH-UNL, mimeo, 1999, 108 p.
22 Muitos deles fixam-se em Portugal simplesmente porque se encontravam empregados em barcos portugueses e ao ser despedidos nestas circunstâncias foi-lhes prometido pelo governo português um subsídio de compensação, a que perdiam o direito no caso de regressarem a Marrocos.
23 A imigração feminina a Espanha, e em menor medida a Itália, resulta de transformações culturais que Marrocos tem vindo a sofrer e que permitem a migração das mulheres sem estarem vinculadas a um projecto matrimonial. Ver A. Ramírez, Migraciones, Género e Islam. Mujeres marroquíes en España, Madrid, Agencia Española de Cooperación Internacional, 1998, 380 p.
24 Este fenómeno da venda ambulante entre o colectivo marroquino pode ser comparada com a realidade italiana. Em Espanha existem cada vez mais marroquinos dedicados a esta actividade mas são principalmente os originários de países da África negra que a ela se dedicam. Ver O. Schmidt, « Dix ans d’immigration marocaine en Italie. Un premier bilan (1981-1991) », Revue Maroc-Europe : regards croisés, 3, 1992 : 128-138.
25 Um motivo pelo qual não encontramos muito pessoal investigador de nacionalidade marroquina nas universidades portuguesas relaciona-se com dificuldades burocráticas. Um professor universitário entra no mesmo estatuto laboral que qualquer outra actividade assalariada, significando que está sujeito ao mesmo tipo de restrições, como por exemplo a interdição de se ausentar do país sem autorização específica do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Decreto-Lei nº 34/2003 de 25 de Fevereiro, que altera o Decreto-Lei nº 244/1998 de 8 de Agosto, com as alterações decorrentes da Lei nº 97/1999 de 26 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 4/2001 de 10 de Janeiro, que aprova as condições de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional). A nova proposta de Lei de Imigração recentemente aprovada pelo Conselho de Ministros tem em consideração esta realidade e propõe a sua alteração.
26 A informação que temos é que esta associação ainda se encontra em criação.
27 « A associação tem por objecto facilitar a integração dos marroquinos residentes em Portugal na comunidade portuguesa e apresentar a cultura marroquina ao povo português amigo » (Art. 3º, Cap. I dos Estatutos da ACMAM).
28 A população do Reino de Marrocos pertence maioritariamente ao Islão sunita, ortodoxo, divisão teológica do Islão a que pertence também a maioria dos muçulmanos que vive em Portugal.
29 N. C. Tiesler, « Muçulmanos na margem : a nova presença islâmica em Portugal », Sociologia – Problemas e Práticas (Oeiras), 34, 2000 : 117-144.
30 Ver para o caso dos imigrantes do Bangladesh : J. Mapril, « ’Bangla masdjid’ : Islão e bengalidade entre os bangladeshianos em Lisboa », Análise Social. Europa e Islão (Oeiras), XXXIX (173), 2005 : 851-873.
31 O. Roy, El Islam Mundializado. Los musulmanes en la era de la globalización, Barcelona, Edicions Bellaterra, 2003, 214 p.
32 Apesar da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL) e a Mesquita Central de Lisboa serem duas instituições distintas, a maioria dos marroquinos com quem contactei fora de Lisboa vêm a Mesquita Central como a representante e sede física da CIL.
33 O. Roy, El Islam en occidente : ¿La occidentalización del Islam?, Transcrição editada da Conferência, Madrid, FRIDE, 2005, 23 p.
34 No Verão do ano 2005 nem a Comunidade Islâmica de Lisboa nem a organização islâmica Al Furqán tinham informação da sua existência.
35 Entrevista com o Presidente da « Associação Cultural dos Marroquinos e os Amigos de Marrocos » realizada a 11 de Agosto de 2006.
36 « Lenço » é o termo português utilizado pelas minhas informantes para o hijab. Apenas algumas mulheres de estatuto sócio-económico (e também educacional) mais elevado utilizam o termo « véu ». Parece-me importante deixar constância de que na maioria dos casos as conversas com as informantes decorriam em português (e em alguns casos em francês), sempre com a presença de uma pessoa de confiança que dominasse o árabe dialectal marroquino (dharija). No entanto, qualquer que fosse o idioma utilizado, tratava sempre se pedir a tradução de determinadas palavras (para o português ou para o árabe/dharija). No caso do lenço seria zif ou foulard.
37 A. Ramírez, Migraciones, Género e Islam…, op. cit.
38 M. Abranches, 2005, « Mulheres muçulmanas em Portugal : formas de adaptação entre múltiplas referencias », in SOS Racismo, Imigração e Etnicidade. Vivências e trajectórias de mulheres em Portugal, Lisboa, SOS Racismo, 149-179.
39 Uma associação de imigrantes serve muitas vezes como uma instituição que representa um grupo e com a qual os membros se identificam ao definir-se a si próprios.
40 Mas o nascimento destas crianças não é necessariamente um factor de assentamento. Segundo a legislação portuguesa, estas crianças não têm direito imediato à nacionalidade portuguesa e sim a um estatuto idêntico ao da mãe. Tem direito à nacionalidade directa aquele que nasce em território português, filho de cidadão estrangeiro residente em Portugal com título válido de residência há pelo menos 6 ou 10 anos, conforme se trate, respectivamente, de cidadãos nacionais dos PALOP ou de outros países (Lei nº 37/81 de 3 de Outubro, Lei da Nacionalidade com as alterações introduzidas pela Lei nº 25/94 de 19 de Agosto).
41 A. Vakil, « Questões inacabadas : colonialismo, Islão e portugalidade » in M. C. Ribeiro & A. P. Ferreira (ed.), Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo, Porto, Campo das Letras, 2003 : 255-294.
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Pour citer cet article
Référence papier
Rita Gomes Faria, « Marroquinos em Portugal », Lusotopie, XIV(1) | 2007, 205-221.
Référence électronique
Rita Gomes Faria, « Marroquinos em Portugal », Lusotopie [En ligne], XIV(1) | 2007, mis en ligne le 30 mars 2016, consulté le 03 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1103 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01401010
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