Livio Sansone, Blackness without ethnicity : Constructing race in Brazil
Livio Sansone, Blackness without ethnicity : Constructing race in Brazil, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2003, 256 p., index, ISBN : 0312293747.
Texte intégral
1Temas como raça, etnicidade e cultura, crescentemente associados aos processos de globalização, carregam historicamente o peso dos mais variados estereótipos. Estes juntam-se com frequência a perspectivas analíticas orientadas por análises dicotômicas da vida social : racismo x cordialidade ; local x global ; tradicional x moderno ; identidade negra x identidade nacional. O trabalho de Livio Sansone é um brilhante e inteligente desmonte desses pressupostos tão firmemente ancorados em inúmeros trabalhos acadêmicos no vasto campo de sentidos associados à negritude, à mestiçagem e às peculiaridades do sistema racial brasileiro e suas modalidades própias de racismo.
2Não nos cabe aqui analisar o que levou a proclamada especificidade do Brasil como um país mestiço e cordial ser louvada no passado como um modelo não racista e exemplar como também as razões pelas quais, mais recentemente, a cordialidade tem sido atacada como uma das causas mais potentes do racismo que ela encobriria entre nós. A rejeição destes modelos bi-polares e da simplificação analítica que eles induzem abriu para Lívio Sansone um universo de pesquisa rico e complexo onde os sujeitos individuais e coletivos de sua narrativa apresentam-se « liberados » do engessamento destas construções. Podem ser « negros » pela cor sem serem « étnicos », podem ser « étnicos » sem se vincularem à uma cultura « comunitária », podem ser « nacionais » sem serem « tradicionais » ; podem ser « globais » e « cordiais » e também anti-racistas. O embaralhamento de associações identitárias antes mantidas numa ordem sociológica estanque e imutável propiciou um novo fôlego a este campo analítico. Temos assim sistemas mais sujeitos à mudança, a conexões imprevistas e portanto mais facilmente submetidos às injunções provocadas pelos conflitos de interesses e pelo exercício de sociabilidades entre grupos sociais interna e externamente diferenciados em termos de classe e de cor.
3Através de um relato etnográfico baseado em diferentes momentos de trabalho de campo e acompanhado de dados e análises macro-sociológicas da sociedade brasileira atual, Lívio Sansone conduz o leitor através duas linhas argumentativas. Em primeiro lugar, sobre o campo das relações étnicas e raciais : este seria mais complexo do que o senso comum sociológico deixaria entrever. Lívio Sansone aponta pois a presença de um sistema mais fluido cujas regras são mais sujeitas à mudança e à manipulação. Em decorrência, analisa as diferentes estratégias tanto pessoais como coletivas elaboradas para o enfrentamento do racismo em circunstâncias diversas. Em segundo lugar, sobre o processo histórico em curso : as modalidades de criação e de apropriação de classificações raciais no Brasil estão mudando e o sujeito maior deste processo de transformação são os jovens, mais claramente atingidos e concernidos pelas formas da globalização em curso. As especificidades dos fluxos que atravessam o Atlântico Negro e as mudanças sócio-políticas no plano internacional, agora sob forte hegemonia norte-americana, geraram uma certa homogeneidade dos itens culturais oferecidos ao consumo que, no entanto, são submetidos às injunções sociais e culturais locais.
4Há um tom otimista no trabalho de Lívio Sansone. Neste processo de transformações apontado busca destacar a emergência de sentidos positivos atribuídos à cor e à etnicidade negra no Brasil, sobretudo pelos jovens. Ao analisar diferenças geracionais ele dá relevo à emergência de novos valores entre a juventude negra hoje em dia : esta seria mais individualista, mais disposta a combater o racismo de que é vítima como também se mostraria mais claramente concernida pelo valor chave da modernidade : os direitos civis.
5Poderíamos designar como as « vias tortas da modernidade » a associação imprevista que Lívio Sansone destaca entre o consumo, a globalização e as demandas por cidadania presentes significativamente entre a juventude negra no Brasil e no mundo. A estetização da cultura negra, através do consumo, associada ao que já designaram como um « hedonismo negro » faz parte do movimento de globalização que atinge esta juventude para além das fronteiras nacionais. Embora Lívio Sansone afirme que a ênfase no consumo pode ser uma « espada de dois gumes », ele destaca sobretudo o que seriam os seus efeitos positivos na elaboração de novas subjetividades marcadas por modalidades renovadas de negritude. A mais interessante consequência do consumismo, relacionado ao fluxo globalizado dos itens da cultura negra, seria a sua apropriação como instrumento de participação e inclusão na sociedade. O consumismo caminharia lado a lado a exigências cada vez maiores por direitos e por cidadania por parte dos jovens negros. O lado mais sombrio deste seria a frustração inevitável que gera entre aqueles que não conseguem usufruir e manipular os símbolos de status, assim alcançados, para usá-los nas suas estratégias contra o racismo. Infelizmente, como reconhece o autor, somente uma minoria consegue ter domínio das habilidades culturais necessárias para escapar da exclusão por estes meios.
6A análise fina e a sensibilidade do autor para captar e para tecer uma narrativa onde uma multiplicidade de relações de sentido se entrelaça é um dos grandes méritos deste livro. Livio Sansone conseguiu mostrar tendências, valorizar nuances e destacar mudanças sem recair nas velhas dicotomias que insistem em se fazerem presentes no campo das análises acadêmicas. Eu faria alguns reparos na maneira como utiliza as noções de modernidade e de tradição. É possível encontrar em algumas passagens uma certa naturalização destas categorias o que, talvez, tenha induzido o autor a uma perspectiva a-crítica no seu emprego. Um entusiasmo, quem sabe um pouco excessivo, com a modernidade atual talvez seja um efeito colateral desta naturalização.
Dezembro de 2006
Pour citer cet article
Référence papier
Patricia Birman, « Livio Sansone, Blackness without ethnicity : Constructing race in Brazil », Lusotopie, XIV(2) | 2007, 218-220.
Référence électronique
Patricia Birman, « Livio Sansone, Blackness without ethnicity : Constructing race in Brazil », Lusotopie [En ligne], XIV(2) | 2007, mis en ligne le 25 mars 2016, consulté le 16 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/1030 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01402021
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