1“Seres unicelulares, de forma achatada, em fita, providos de um núcleo grande, sem vacúolo central, movendo-se com o auxílio de um filamento ou flagelo” (Ferreira 1904, 209), foi assim que o médico e naturalista português Bethencourt Ferreira descreveu os tripanossomas, em 1904. Esses microrganismos foram, primeiramente, objeto da história natural, sendo verificados em 1841 no sangue de uma truta pelo alemão Gustav Valentin e, anos mais tarde, em rãs e em ratos. No final do século XIX, aqueles parasitos foram identificados como agentes causadores de importantes epizootias como a surra, que acometia os cavalos e alastrava-se pela Índia, e a nagana, verificada no gado do continente africano. Tais doenças representaram significativos obstáculos à expansão colonial, pois os animais domésticos eram necessários para a agricultura e para os exércitos (Delaporte 2003).
2Doenças como a malária, a febre-amarela, a ancilostomíase, a filariose, a oncocercose e a doença do sono, reportadas nos domínios coloniais europeus impostos à África e Ásia, foram chamadas de doenças tropicais pelos colonizadores e eram consideradas um empecilho à construção de seus impérios, pois dizimavam parcelas da população nativa, reservatório de mão-de-obra, e comprometiam o estabelecimento de núcleos populacionais europeus naqueles territórios (Lyons 1992). Em 1898, o médico britânico Patrick Manson definiu como “doenças tropicais” as enfermidades que ocorriam somente, ou com maior prevalência, nas regiões de clima quente do globo terrestre. Embora Manson reconhecesse que determinados microrganismos eram causadores de doenças ao homem, admitia também que algumas doenças, como a filariose e a malária, careciam da ação de insetos sugadores de sangue para a sua propagação. Segundo o autor, a transmissão dessas doenças estaria, portanto, restrita às zonas geográficas de incidência de tais insetos:
The title which I have elected to give to this work, Tropical Diseases, is more convenient than accurate. [...] I employ the term “tropical” in a meteorological, rather than in a geographical, sense, meaning by it sustained high atmospheric temperature; and by the term “tropical diseases” I wish to indicate diseases occurring only, or which from one circumstance or another are especially prevalent, in warm climates. (Manson 1914, 17)
3A expansão europeia – ávida por riquezas como o marfim, a borracha, o cacau, o café, o cobre e o ouro – foi acompanhada pela epidemia de doença do sono que grassou especialmente em Uganda e no Congo Belga e matou entre 300.000 e 500.000 pessoas entre 1896 e 1906 (Steverding 2008). Todavia, como as causas daquela grave enfermidade eram ainda desconhecidas, a “corrida à África” foi sucedida por uma corrida científica em busca da etiologia da doença do sono e Portugal, nação desejosa em afirmar-se como potência colonial frente a seus adversários mais poderosos e recuperar-se do orgulho ferido pelo ultimato britânico de 1890, enviou, em abril de 1901, a primeira expedição científica europeia para estudar a doença em solo africano (Amaral 2008). Os bacteriologistas integrantes da missão portuguesa, após examinarem amostras do líquido cefalorraquidiano e do suco ganglionar de 70 doentes em Angola e na ilha do Príncipe, concluíram que a doença do sono era uma meningoencefalite de natureza bacteriana (Bettencourt et al. 1902). Entretanto, as conclusões da equipe portuguesa chocaram-se com os resultados obtidos por Aldo Castellani e David Bruce, membros de uma missão científica enviada pela Royal Society of London ao Uganda em 1902, que verificaram nas amostras centrifugadas do líquido cefalorraquidiano de doentes do sono a presença de tripanossomas (Silva 2008).
4Em 1903 e 1904, os cientistas ao serviço do império britânico obtiveram sucesso contra os seus colegas portugueses na controvérsia científica internacional sobre a etiologia da doença do sono. Experiências realizadas em laboratório com macacos confirmaram que o Trypanosoma brucei gambiense – batizado com esse nome, pois os primeiros tripanossomas dessa espécie foram verificados no sangue de um marinheiro irlandês na região do Gâmbia – estava na origem dos sintomas relacionados à doença do sono e que tal protozoário era transmitido ao homem pela mosca tsé-tsé, Glossina palpalis, díptero hematófago de hábitos ribeirinhos (Busvine 1993). Os sintomas da doença do sono coincidiam com o desenvolvimento do Trypanosoma brucei gambiense sobre o organismo humano: inchaço dos gânglios cervicais e estado febril, com a presença do parasito na corrente sanguínea e linfática; e sonolência, cada vez mais intensa, quando o flagelado atingia o sistema nervoso central através do líquido cefalorraquidiano. A doença, em seu estágio final, não tinha cura e conduzia suas vítimas ao óbito com escaras de decúbito em seus corpos (Amaral 2012). A invencível sonolência conferia à doença um quadro de verdadeiro horror ao transformar suas vítimas em “mortos-vivos” que adormeciam no curso de suas atividades mais triviais, como no meio de uma conversa ou durante as refeições, ainda com a comida na boca e sem completar a mastigação. A doença não tinha cura e condenava os doentes a uma vida de total fragilidade antes da morte, como ilustra a citação:
- 1 Portugal em África. Revista quinzenal illustrada, 231 (1910), p. 239.
Não é raro ver uma caravana de formigas abaterem-se durante a noite sobre esses cadáveres vivos, e, com as mandíbulas aceradas, cavarem fundos sulcos nas carnes do moribundo. A vítima impotente nem sequer bole. Isso sem falar dos ratos e de outros animais que tomam à sua conta os membros inferiores.1
- 2 Arquivo Histórico da Marinha, Lisboa, Ordens da Armada. Cartas de lei. Ministério dos Negócios da M (...)
5Nos países europeus com possessões ultramarinas em África e Ásia foram criadas instituições voltadas para o estudo das chamadas doenças tropicais e para a instrução dos médicos enviados às colônias, como a Liverpool School of Tropical Medicine e a London School of Tropical Medicine, fundadas no Reino Unido em 1898 e 1899, respectivamente (Wilkinson e Power 1998). Os alemães, por sua vez, instituíram em Hamburgo o Institut für Schiffs-und Tropenkrankheite, em 1901, e os franceses fundaram na cidade Marselha a École du Pharo, em 1905. Em Portugal, à semelhança dos demais poderes europeus, foi criada, em abril de 1902, a Escola de Medicina Tropical de Lisboa (Amaral 2008), para “completar a educação profissional dos facultativos dos quadros de saúde das províncias ultramarinas e dos médicos navais, por meio de lições teóricas seguidas de demonstrações e exercícios práticos feitos nas enfermarias e laboratórios sobre todos os ramos da medicina tropical”.2
6Alguns colaboradores da referida Escola ganharam projeção internacional, como Ayres Kopke, professor de bacteriologia e parasitologia, que propôs um método para o tratamento da doença: injeções endovenosas de atoxil, composto orgânico arsenical, para a destruição dos tripanossomas na corrente sanguínea dos enfermos. Contudo, a terapêutica apresentava graves efeitos colaterais, como a cegueira, e era inócua para os casos avançados da doença (Kopke 1915a). Outro aspecto que merece destaque foi a campanha de extermínio das glossinas na ilha do Príncipe, conduzida pelo médico Bernardo Bruto da Costa, diplomado pela Escola de Medicina Tropical em 1905. Por meio de intervenções ambientais – caça aos animais domésticos e selvagens, captura das moscas e desbaste das matas – os portugueses conseguiram eliminar, em 1914, as moscas tsé-tsé na pequena ilha (Amaral 2018), que chegou a reportar 2.525 mortes pela doença entre 1902 e 1913 (Costa et al. 1915). Entretanto, a doença continuou a fazer vítimas em Angola e em Moçambique. Dada a gravidade da doença do sono, os tripanossomas, que até os anos de 1903 e 1904 estavam associados a algumas epizootias, adquiriram importância médica como causadores de males ao homem e, do outro lado do Atlântico, no Brasil, em 1909, um facultativo anunciou à comunidade científica a descoberta de uma nova tripanossomíase humana. Nesse sentido, os tópicos a seguir buscam explanar, primeiro, a história da descoberta da doença de Chagas no Brasil e, depois, suas primeiras recepções em Portugal.
7O Instituto Oswaldo Cruz, fundado no Rio de Janeiro em 1900 como Instituto Soroterápico, desempenhou no Brasil papel similar às escolas de medicina tropical europeias e um de seus colaboradores protagonizou uma significativa descoberta científica que contribuiu para fazer do Instituto o principal centro de ressonância da medicina tropical em terras brasílicas. Tal descoberta teve início em 1907, quando Carlos Ribeiro Justiniano Chagas e Belisário Penna foram enviados por Oswaldo Cruz para coordenar os trabalhos de profilaxia contra a malária, que acometia os operários empregados na construção de um trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil, entre os municípios mineiros de Pirapora e Corinto, a 150 léguas do Rio de Janeiro. Durante a execução desses trabalhos, Carlos Chagas foi informado pelo chefe da comissão de engenheiros, Cornélio Homem Cantarino Mota, sobre a existência de um inseto hematófago, conhecido como barbeiro, e que proliferava nas frestas das casas de pau-a-pique dos moradores da região. Em um laboratório improvisado no povoado de Lassance, o cientista, ao observar pelas lentes de um microscópio o tubo intestinal desses artrópodes, verificou a presença de tripanossomas e supôs que poderiam ser parasitos naturais do inseto ou mesmo uma fase evolutiva de algum parasita presente em vertebrados. Pela impossibilidade de continuar suas investigações em Minas Gerais, Carlos Chagas remeteu alguns barbeiros para que Oswaldo Cruz os fizesse picar um sagui de laboratório e, alguns dias depois, o animal adoeceu com tripanossomas em seu sangue. Essa nova espécie foi batizada de Trypanosoma cruzi, homenagem a Oswaldo Cruz (Chagas 1909).
8Visto a frequência dos barbeiros nas míseras habitações dos sertões do Brasil, Chagas suspeitou que o Trypanosoma cruzi poderia ser também transmitido ao homem e procurou identificá-lo nas amostras sanguíneas coletadas dos moradores de Lassance. Na sequência de algumas tentativas infrutíferas, localizou o flagelado em três crianças – Berenice, José e Joaquina – com idades de dois, oito e seis anos respectivamente e que apresentavam acessos febris e gânglios cervicais volumosos (Chagas 1910). Fundamentado na observação clínica das pessoas que viviam nas moradias infestadas por barbeiros em Lassance e nos dados fornecidos pela anatomia patológica, através dos trabalhos de Gaspar Vianna no Rio de Janeiro, Carlos Chagas realizou uma longa conferência na Academia Nacional de Medicina em 26 de outubro de 1910, data na qual foi aceito como membro titular daquela prestigiosa associação médica brasileira. De acordo com Chagas, naquele momento a moléstia atingia principalmente as crianças e era apresentada como uma enfermidade de múltiplas expressões clínicas, abrangendo cardiopatias, problemas no sistema nervoso e disfunções na tireoide. A hipertrofia dessa glândula, o bócio, passou a ser considerada o principal sinal da doença (Kropf 2009).
9Dada a gravidade da doença que fragilizava a população rural, justamente aquela que se esperava realizar os maiores esforços físicos para suportar as fainas do campo, os médicos brasileiros começaram a se interessar pela disseminação geográfica do inseto transmissor, que parecia cobrir extensas áreas do país: Pirajá da Silva (1911) registou a presença do barbeiro na Bahia em 1910 e, no mesmo ano, Artur Neiva, que se dedicou ao estudo desses insetos, afirmou que o Instituto Oswaldo Cruz possuía exemplares vindos dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso e Goiás (Neiva 1910). Favorecido pela autonomia estadual dos primeiros anos da República e pela prosperidade econômica do café, São Paulo desenvolveu seus próprios estudos sobre a distribuição dos triatomíneos (barbeiros) pelo estado: entre 1912 e 1916, os institutos Bacteriológico, Pasteur e Butantan examinaram centenas de barbeiros procedentes dos municípios do interior paulista, mapearam sua disseminação pelo território estadual e identificaram dois casos de infecção parasitária pelo Trypanosoma cruzi provenientes de Ribeirão Preto e de Brotas (Silva e Mota 2019).
10O laboratório constituiu-se como um elemento central para a medicina, o espaço onde as doenças infecciosas eram necessariamente definidas e identificadas (Cunningham 1992). No entanto, para a tripanossomíase americana, as técnicas empregadas no início de Novecentos apresentavam limitações para a identificação dos casos crônicos da doença. A confirmação parasitária da doença de Chagas poderia ser obtida por quatro formas: o exame direto de amostras sanguíneas através do microscópio, a inoculação do sangue de um doente em animais de laboratório, o xenodiagnóstico e a reação de Machado-Guerreiro. O xenodiagnóstico consistia no uso de barbeiros, criados em laboratório e livres da infecção tripanossômica, para que picassem indivíduos suspeitos de portarem a doença, caso o paciente possuísse o Trypanosoma cruzi no sangue, o exame microscópico das fezes do inseto denunciaria a presença dos flagelados (Britto e Lima 2009). Essa técnica apresentava complicações por ser necessário criar os barbeiros em laboratório, fazê-los picar os doentes e esperar pelo desenvolvimento do tripanossoma em seus tubos digestivos, o que desencorajava o seu uso corrente (Villela e Bicalho 1923). A reação de Machado-Guerreiro era um teste sorológico através do uso de antígenos extraídos do baço de cães infectados pelo tripanossoma. Esse procedimento não identificava o parasito no organismo, mas apenas os seus rastros e funcionava da seguinte forma: esperava-se que o soro dos doentes portadores do Trypanosoma cruzi reagisse positivamente, através da fixação de complemento, diante da presença do antígeno, formado a partir de corpos de tripanossomas. Porém, esse teste sorológico ainda encontrava-se em desenvolvimento (Kropf 2009).
11Apesar das dificuldades verificadas para a confirmação laboratorial de casos com infecção parasitária, a doença de Chagas foi considerada por intelectuais e médicos pertencentes à Liga Pró-Saneamento do Brasil – fundada em 1918 para cobrar maior intervenção das autoridades no combate às endemias rurais – como um dos grandes flagelos que castigavam os sertões brasileiros, ao lado da malária e da ancilostomíase (Hochman 2006). O descompasso entre a dimensão atribuída à doença e o número de casos clínicos com confirmação parasitária desencadeou uma acesa controvérsia científica sobre a tripanossomíase americana na Academia Nacional de Medicina. A querela teve início em novembro de 1922 e estendeu-se até dezembro de 1923, com Afrânio Peixoto, catedrático de Higiene na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e escritor bastante afamado em Portugal, como o principal adversário de Carlos Chagas. Peixoto, preocupado em garantir a imigração europeia para o país, negou o conceito de doenças tropicais (Stepan 2001). Para ele, a higiene era a ferramenta fundamental para garantir a saúde da população e o Brasil não poderia ficar com a pecha da insalubridade com a estigmatização do seu clima: “Existem apenas doenças evitáveis, contra as quais a higiene tem meios seguros de defesa e reação” (Peixoto 1908, 21-25).
12Contudo, a projeção conferida à doença de Chagas, como emblema de um país doente e símbolo de uma doença tropical brasileira, parecia, aos olhos de Peixoto, uma grave afronta ao orgulho nacional, além de reforçar os estigmas climáticos em detrimento das ações higienistas (Stepan 2001). Desta forma, durante os meses nos quais o acirrado debate sobre a dimensão epidemiológica da tripanossomíase americana foi travado na Academia de Medicina, Afrânio Peixoto discordou da generalização da doença pelo Brasil chamando-a de “mal de Lassance” (Benchimol e Teixeira 1993). A polêmica na Academia Nacional de Medicina foi encerrada oficialmente em dezembro de 1923 com um parecer favorável a Carlos Chagas, embora se reconhecesse a dificuldade, dada a dimensão continental do Brasil, em organizar um estudo detalhado sobre a disseminação geográfica da doença (Kropf 2009). Essa controvérsia e as dúvidas sobre a relação entre a manifestação do bócio e a ação do Trypanosoma cruzi sobre o organismo humano contribuíram para envolver a tripanossomíase em dúvidas, que só começariam a dissipar-se na década de 1930.
13Apesar das dificuldades em fazer com que a doença emergisse como uma entidade mórbida plenamente caracterizada, sua descoberta conferiu significativo prestígio a Carlos Chagas no Brasil e no exterior: em 1917 sucedeu a Oswaldo Cruz na direção do Instituto Oswaldo Cruz, função que acumulou, a partir de 1920, com a direção do Departamento Nacional de Saúde Pública (Kropf e Lacerda 2009). Foi na qualidade de diretor dos serviços de saúde do Brasil e de delegado do país no Comitê de Higiene da Liga das Nações, órgão composto por cientistas de projeção internacional e responsável por orientar os projetos de saúde daquela organização (Weindling 2006), que Carlos Chagas embarcou para a Europa em uma viagem de cerca de três meses, entre agosto e novembro de 1924. Em sua passagem pelo “Velho Mundo”, o médico brasileiro esteve em Genebra, onde participou dos trabalhos do Comitê, e em cidades como Karlsbad, na Tchecoslováquia, Sevilha e Madri, nas quais conferenciou sobre a tripanossomíase americana (Chagas Filho 1993). Em Espanha, Chagas participou do Primeiro Congresso Ibero-Americano de Ciências Médicas, iniciativa castelhana para promover a aproximação médico-científica com as repúblicas americanas de língua espanhola.3 Como último destino em sua viagem pela Europa, e atendendo ao convite feito por colegas portugueses, entre eles Ricardo Jorge, representante de Portugal no Comitê de Higiene da Liga das Nações, Carlos Chagas embarcou para a capital portuguesa e aproveitou a visita para conferenciar sobre a sua descoberta científica na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
14Na tarde do dia 23 de abril de 1909, um dia após Oswaldo Cruz, diretor do Instituto de Manguinhos, anunciar na Academia Nacional de Medicina da capital federal do Brasil a descoberta científica feita por seu discípulo, Carlos Chagas, os portugueses amargaram os efeitos de um violento terremoto que acarretou prejuízos materiais em Lisboa e provocou pânico e destruição na região do Ribatejo, ao destruir as povoações de Benavente, Salvaterra de Magos, Coruche, Samora Correia, Vila Franca de Xira, Vila Nova da Rainha, Alhandra e Alenquer, causando a morte de dezenas de pessoas (Teves-Costa e Battlo 2011). A tragédia dominou os principais jornais do país por semanas e apenas em 10 de maio O Século publicou uma pequena nota, no final da terceira página, intitulada “A doença do sono. Descoberta de um médico brasileiro”:
O eminente cientista brasileiro, dr. Oswaldo Cruz, diretor geral de saúde do Rio de Janeiro, apresentou uma comunicação à Academia de Medicina, da capital do Brasil, atribuindo-se a descoberta de uma nova doença produzida por um novo tripanossoma. O sábio brasileiro acompanhou a sua memória com o estudo dos caracteres clínicos da doença e com a análise biologica do novo gérmen patogênico. A nova doença é muito conhecida no Brasil, e no Estado de Minas, que é um dos mais afetados, e chamam “barbeiro” ao inseto transmissor. Este inseto é semelhante ao percevejo, não habita o plasma sanguíneo e ataca de preferência o rosto, circunstância que lhe motiva o nome.4
15Através do título escolhido, a primeira notícia publicada por um jornal português de grande circulação conferiu à descoberta brasileira um lugar à sombra da doença do sono. Além disso, o informe apresentou algumas incongruências ao atribuir a descoberta a Oswaldo Cruz (o nome de Carlos Chagas nem sequer foi mencionado) e produziu uma confusão entre o Trypanosoma cruzi e o inseto transmissor da doença ao homem, expressa na frase “[o inseto] não habita o plasma sanguíneo”. A origem desta imprecisão relacionou-se com a comunicação que Oswaldo Cruz realizou no Rio de Janeiro sobre a biologia do Trypanosoma cruzi. Na ocasião, o diretor de Manguinhos relatou que o novo parasito, ao contrário de outros tripanossomas, evoluía no interior dos glóbulos vermelhos e não no plasma sanguíneo (Cruz 1909). A descoberta da nova tripanossomíase, contudo, ganhou maior visibilidade no meio científico português.
16Sobre a recepção da descoberta brasileira na Europa, Gabriel Gachelin e Annick Opinel (2009) destacaram o caso francês, em que apontaram para a existência de duas posições distintas sobre a tripanossomíase americana entre os cientistas daquele país: a primeira consistiu em acompanhar e transmitir as descrições feitas por Carlos Chagas sobre a doença e o parasito, e a segunda posição produziu contribuições significativas de natureza laboratorial sobre o Trypanosoma cruzi, cujo maior expoente foi Émile Brumpt, residente no Brasil entre 1913 e 1914. Em Portugal a ausência de publicações decorrentes de trabalhos locais com o Trypanosoma cruzi foi alimentada por uma confluência de fatores, como a impossibilidade da observação de pacientes agudos ou crônicos nos hospitais do país, a aparente restrição de casos da doença de Chagas a determinadas regiões no interior do Brasil e o envio de missões científicas portuguesas à África em detrimento da América do Sul. Porém, isso não significou o desinteresse dos médicos lusitanos pela nova tripanossomíase. Pelo contrário, em 1909 havia em Portugal um ambiente receptivo às notícias vindas do Brasil, promovido por vários estudos realizados no país sobre os tripanossomas e a tripanossomíase africana, tais como: o uso do atoxil como ferramenta terapêutica em doentes do sono por Ayres Kopke (1915a); a descrição de uma nova espécie feita por Annibal Bettencourt e Carlos França (1907), o Trypanosoma pestanai, não patogênico e presente no sangue dos texugos; e a análise das lesões anatomopatológicas provocadas pelo atoxil nos olhos dos doentes mortos pela doença do sono por José de Magalhães (1909) e Caetano Gama Pinto (1910).
- 5 Jornal da Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa, 75 (1910), p. 178.
17Os médicos portugueses acompanharam, através da literatura especializada, os estudos sobre a tripanossomíase americana. Durante a sessão de 12 de março de 1910 da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa foi apresentado o primeiro caso de leishmaniose visceral ou calazar em Portugal, identificado por Dionysio Alvares em uma criança de nove anos, na capital (Campino e Maia 2010). Na ocasião, Ayres Kopke, então professor da cadeira de Bacteriologia e Parasitologia da Escola de Medicina Tropical de Lisboa, tomou a palavra para parabenizar o colega pelo trabalho, mas também para lamentar que mais uma doença ingressava no rol das patologias portuguesas. Aproveitou para salientar que o estudo dos protozoários “tem atualmente um grande valor científico”,5 especialmente aqueles que desencadeavam graves doenças no organismo humano, como o Trypanosoma brucei gambiense, a Leishmania infantum e o Schizotrypanum cruzi.
18A respeito desse último parasito, Kopke – que viria a considerar a descoberta brasileira como uma das contribuições científicas mais relevantes para o desenvolvimento da medicina tropical, mas também como um desdobramento das pesquisas europeias sobre a doença do sono (Kopke 1915b) – referiu-se aos estudos de Chagas acerca dos aspectos morfológicos do novo tripanossoma como demonstrativos do “íntimo grau de parentesco existente entre os diferentes protozoários parasitas do sangue”, resultado que, segundo ele, corroborava a hipótese formulada pelo protozoologista alemão Fritz Schaudinn de que “uma grande maioria dos protozoários parasitas do sangue descende de uma forma ancestral flagelada”.6 A projeção internacional alcançada na época por Ayres Kopke, promovida por seus estudos sobre a doença do sono, requeria que estivesse atento às recentes pesquisas produzidas sobre protozoários e as doenças que provocavam no homem. Assim, as contribuições de Carlos Chagas evidentemente não poderiam passar incólumes à consciência do professor da Escola de Medicina Tropical de Lisboa. Kopke ainda integrou a comissão científica internacional que decidiu premiar o médico brasileiro com a medalha Schaudinn em junho de 1912:
- 7 A Medicina Contemporânea, 36 (1912), p. 159.
O prêmio Schaudinn, instituído pelo Instituto de moléstias tropicais de Hamburgo, destinado ao melhor trabalho em assunto de protozoologia, microbiologia e outros ramos destas especialidades, foi este ano conferido ao dr. Carlos Chagas. Como se sabe, este médico brasileiro descobriu uma doença – transmitida pela picada de um inseto hematófago e produzida pela inoculação de um protozoário flagelado (Trypanosoma cruzi) –, hoje conhecida pelo nome do seu descobridor. O prêmio, uma medalha de ouro, é conferido por uma comissão internacional do que faz parte o nosso colega Ayres Kopke.7
19A premiação, seguida pela indicação ao prêmio Nobel de medicina em 1913, contribuiu para que o nome de Carlos Chagas começasse a ventilar nos meios médico-científicos portugueses, sendo que alguns de seus trabalhos foram republicados na íntegra em Portugal a partir daquele ano. O periódico coimbrão Movimento Medico divulgou, em quatro partes publicadas entre agosto e outubro de 1913, um extenso artigo sobre a etiologia, a clínica da doença e a multiplicação do parasito no organismo humano (Chagas 1913), texto publicado originalmente nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz dois anos antes (Chagas 1911). A segunda comunicação veio à tona em outubro de 1918, quando o periódico lisboeta A Medicina Contemporânea publicou um estudo sobre o papel do tatu para a epidemiologia da doença (Chagas 1918b), previamente divulgado pelo Brazil-Medico em julho do mesmo ano (Chagas 1918a). A publicação desses dois artigos evidenciou o interesse em informar os médicos e cientistas portugueses sobre as linhas gerais da nova tripanossomíase.
20Verifiquei ainda duas teses inaugurais de medicina que abordaram a doença de Chagas: a primeira, de autoria de Aires Fernandes Sá, diplomado pela Faculdade de Medicina do Porto em 1913, e a segunda de António da Costa, formado pela Universidade de Coimbra em 1919. As duas monografias comparavam a doença do sono com a doença de Chagas em seus aspectos etiológicos, clínicos, terapêuticos e profiláticos com clara ênfase para a tripanossomíase africana: essa ocupou 23 páginas contra oito dedicadas à tripanossomíase americana na tese de Fernandes Sá (1913), e, na tese de António da Costa (1919), que frequentou a Escola de Medicina Tropical de Lisboa, foram 58 páginas dedicadas à doença do sono e oito à doença de Chagas. Os dois trabalhos apresentaram a descrição de casos clínicos diagnosticados com a doença do sono, mas nenhum com a doença de Chagas. Com relação a essa enfermidade, António da Costa afirmava ser um assunto pouco familiar aos médicos portugueses. A despeito disso, o estudo da tripanossomíase americana seria justificado pelas semelhanças morfológicas entre o Trypanosoma cruzi e o Trypanosoma brucei gambiense, tais como corpo alongado, membrana ondulante e flagelo:
[...] levando-nos por exclusão de partes a descrever alguns casos de doença do sono e a fazer algumas ligeiras considerações sobre a doença de Chagas, por ser um assunto pouco conhecido e se relacionar um tanto com a doença do sono por serem próximos parentes os seus agentes etiológicos. (Costa 1919, 7)
21Apesar das semelhanças morfológicas, Aires Fernandes Sá descreveu sucintamente diferenças importantes sobre o conhecimento que se tinha na época acerca da multiplicação desses protozoários no organismo humano: o Trypanosoma brucei gambiense, cujo comprimento variava dos 13 aos 33 micrômetros, multiplicava-se por divisão binária no sangue circulante, e, ao mencionar os trabalhos publicados por Gaspar Vianna em 1911, admitia que aquele parasito poderia, na forma arredondada, se dividir nos tecidos muscular, cardíaco, nervoso e glandular. Ao se referir ao Trypanosoma cruzi, que media cerca de 20 micrômetros de comprimento, Fernandes Sá (1913) – baseado nos trabalhos de Chagas, Brumpt, Laveran e Mesnil – destacava que a divisão binária do protozoário não ocorria na corrente sanguínea, mas no músculo cardíaco e nos gânglios linfáticos, com o tripanossoma na forma arredondada.
22As íntimas relações com o Brasil não permitiam aos portugueses ignorar todas as doenças que grassavam na antiga colônia americana e por então principal destino da torrente emigratória lusitana. Porém, se o “país irmão” atraiu centenas de milhares de portugueses – 153.213 pessoas pelos dados oficiais em 1912 e 1913, anos em que o fluxo migratório atingiu cifras recordes (Mendes 2011) –, também repeliu os inconformados com a contração do mercado de trabalho, com o aumento do custo de vida no Brasil e com a saudade que nutriam da terra natal: 55.697 portugueses engrossaram as fileiras de retornados entre 1913 e 1914 (Pereira 2002). A contrastar com os “brasileiros de torna-viagem”, que regressavam com fortunas acumuladas no Brasil, muitos foram os portugueses que voltaram doentes com malária, ancilostomíase e leishmaniose cutâneo-mucosa, cujo primeiro caso foi verificado em 1913 em um homem de 30 anos de idade empregado na extração da borracha no Alto Amazonas (Padesca 1913). As levas de retornados “com a saúde anarquizada” (D’Almeida 1914, 76) contribuíam para sedimentar a imagem do Brasil como o paraíso das doenças tropicais capazes de corromper os corpos daqueles que para lá se aventuravam:
Nos países tropicais as simbioses são vulgares e pode afirmar-se sem receio de contradição – raro é o individuo que de lá regressa portador de um só padecimento. Doentes vindos do Brasil ou das nossas colónias, ao sezonismo que domina com mais ou menos intensidade em uma ou outra região, associam padecimentos particulares a algumas das nossas terras do ultramar, e a determinadas zonas do extenso território brasileiro, além daqueles que a chamada civilização espalha por toda a parte, como a tuberculose e a sífilis. (D’Almeida 1914, 75)
- 8 Brasil-Portugal, 16/09/1901.
23O receio de que as doenças provenientes do Brasil fossem reportadas em Portugal alimentou a adoção de medidas sanitárias nos portos portugueses que se traduziram na imposição de quarentenas aos passageiros procedentes da América do Sul, medidas que foram consideradas por alguns como draconianas e que pouco contribuíam para o estreitamento das relações entre os dois países atlânticos.8 Mas haveria algum risco de a doença de Chagas ser reportada em terras portuguesas? Mesmo diante da ausência de triatomíneos nos territórios da metrópole, ilhas adjacentes e colônias africanas, algumas vozes respondiam que sim, havia o risco. Entre elas, destaco aqui um trecho extraído da tese inaugural de Fernandes Sá ao justificar a importância do conhecimento da tripanossomíase americana por parte de seus colegas portugueses: “[...] estamos a ver que não virá longe o dia em que na clínica escolar se fará a demonstração de casos de tripanossomíase americana, dada a intensa mobilidade dos povos entre o norte de Portugal e o Brasil” (Sá 1913, 89).
- 9 Diário de Notícias, 02/11/1924.
24Essa ameaça também foi reconhecida pelo próprio Carlos Chagas durante sua visita à capital portuguesa, em novembro de 1924. Mas em um contexto distinto. Naquele ano, a abrangência geográfica da tripanossomíase americana era duramente questionada por alguns médicos brasileiros e Chagas, ao considerar sua existência em Portugal, mesmo desconhecendo casos clínicos com confirmação parasitária no país, pretendia, com essa estratégia discursiva, responder a seus adversários com a ampliação dos eventuais limites territoriais da doença de Chagas, pois esses já não estariam apenas circunscritos ao Brasil ou ao continente americano, mas atingiriam a Europa, através de Portugal, como expresso em uma entrevista concedida ao jornal Diário de Notícias: “Conhecem-se os seus terríveis efeitos na América. Mesmo na Europa, principalmente em Portugal, trazida por aqueles que regressam dos climas tropicais”.9
25No entanto, nenhum caso da doença foi verificado em Portugal nos primeiros anos do século XX, o que não significou necessariamente a sua inexistência no país. E a razão disso talvez resida nas dificuldades para estabelecer o diagnóstico de uma doença com modalidades clínicas variadas e desconhecida pela maioria dos médicos portugueses, particularmente dos facultativos que exerciam o seu ofício nas freguesias do interior rural do país – para onde regressava uma parcela significativa dos emigrantes retornados. Esses profissionais, simbolizados pela figura de João Semana, personagem fictício criado pelo escritor Júlio Dinis, dispunham de escassos recursos laboratoriais e tecnológicos e baseavam suas atividades em elementos de ordem clínica (Carvalho 2017), condições de trabalho que dificultariam qualquer diagnóstico de doença de Chagas entre os portugueses retornados para as suas aldeias natais. Sobre o diagnóstico, Aires Fernandes Sá notou que o método através da punção dos gânglios linfáticos, aplicado pelos portugueses em suas colônias africanas nos doentes do sono, não surtia o efeito desejado para a observação do Trypanosoma cruzi sob as lentes de um microscópio: “A punção dos gânglios linfáticos não oferece vantagem na pesquisa do tripanossoma, ao contrário do que acontece na doença do sono. Apesar de ingurgitados, os gânglios não constituem sede de permanência, nem no homem nem na cobaia” (Sá 1913, 53).
26A ausência de casos observados em Portugal não impediu a acolhida atenciosa dispensada a Carlos Chagas durante a sua estadia no país. Ao desembarcar na estação ferroviária do Rossio, em 27 de outubro de 1924, o médico brasileiro, em viagem pela Europa desde agosto daquele ano, chegou a Lisboa. Os portugueses tinham a sua simpatia. Afinal, sete anos antes, em 1917, o governo lusitano doou a expressiva quantia de 20:000$000 (vinte contos de réis brasileiros) à campanha para a arrecadação pública de fundos, coordenada por uma comissão central da qual fizeram parte Miguel Couto e Carlos Chagas, com o propósito de erigir um monumento em honra a Oswaldo Cruz na cidade do Rio de Janeiro. Na altura, os dois médicos foram à embaixada de Portugal para agradecer pelo donativo enviado por Lisboa, como anotou o embaixador português no Brasil, Duarte Leite:
- 10 Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Lisboa. Embaixada de Portuga (...)
O Prof. Miguel Couto, Presidente da Comissão do Monumento Oswaldo Cruz, e o Dr. Carlos Chagas, Diretor do Instituto Oswaldo Cruz em Manguinhos, vieram a esta Embaixada agradecer o donativo do Governo Português a favor do monumento àquele ilustre sábio brasileiro. Ambos me pediram que transmitisse ao Governo Português a expressão do seu reconhecimento por aquele donativo, que traduz o elevado apreço pelos serviços que à colônia portuguesa do Rio de Janeiro prestou Oswaldo Cruz, promovendo a extinção da febre amarela.10
- 11 Diário de Notícias, 28/10/1924.
- 12 O Século, 30/10/1924.
27Em Lisboa, Chagas hospedou-se com sua esposa, Íris Lobo Chagas, no luxuoso hotel Avenida Palace. A estadia do casal contou com momentos aprazíveis, como passeios pelas ruas de Sintra,11 recepções na embaixada do Brasil12 e visitas guiadas na capital portuguesa por Ricardo Jorge, com quem Carlos Chagas mantinha estreitos contatos dada a projeção internacional de ambos (Benchimol 2013). Os principais jornais do país – O Século e o Diário de Notícias – procuraram cobrir os sete dias de sua estada na capital portuguesa, de 27 de outubro a 3 de novembro de 1924. No dia de sua chegada, O Século entrevistou o clínico português Albino Pacheco, que vivera por 12 anos em contato com os médicos brasileiros no Rio de Janeiro, para que explicasse aos leitores quem era, afinal, o ilustre visitante:
Trata-se de um sábio autêntico, cuja primeira obra representa um caso único e virgem em toda a história das ciências, porque apareceu com ele em público, completo, integral, perfeito, tendo realizado ele só o trabalho que, em relação a qualquer outro problema, demanda o esforço duma série de perfeitos investigadores e de mais duma geração.13
- 14 O Século, 02/11/1924.
- 15 Diário de Notícias, 02/11/1924.
28Na noite do dia 1 de novembro de 1924, Carlos Chagas realizou uma conferência na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa sobre a tripanossomíase americana. À semelhança das conferências realizadas em Espanha, o médico brasileiro procurou insistir na sintomatologia e na relevância social de sua descoberta. Contudo, influenciado pelas críticas recebidas nos anos anteriores, Chagas buscou reforçar os aspectos cardíacos da doença, expondo-os em primeiro lugar frente às demais formas clínicas da doença: a nervosa e a endócrina: “A forma cardíaca da doença é a que determina maior letalidade e são muito frequentes os casos de morte súbita, às vezes em pessoas jovens, atribuíveis aos processos inflamatórios do miocárdio”.14 Sobre a relação entre o bócio e o Trypanosoma cruzi, Carlos Chagas admitiu ser um assunto controverso. No entanto, afirmou estar convicto da origem parasitária do bócio identificado nos rincões brasileiros. Completou sua exposição ao acrescentar que a tripanossomíase americana ainda carecia de um tratamento eficaz, sendo a profilaxia, realizada a partir do reboco das paredes de barro e do extermínio do inseto, a forma mais assertiva de combater a doença.15
29No Brasil, Carlos Chagas, em diversas oportunidades, comparou o sentido da urgência na adoção de medidas sanitárias destinadas a combater a tripanossomíase americana com o interesse dos europeus pela tripanossomíase africana: a caça ao barbeiro era necessária para fins patrióticos, pois a doença flagelava a vida dos camponeses brasileiros; enquanto os anseios europeus pelo controle da doença do sono eram despertados por interesses coloniais (Chagas 1911). Todavia, em Portugal, nação colonizadora e que havia obtido êxito no extermínio das glossinas na ilha do Príncipe dez anos antes, essa comparação foi evitada para contornar possíveis atritos com os médicos portugueses. A conferência, que contou com a ilustração de desenhos e projeções, foi uma oportunidade de aproximação médico-científica entre os dois países e de divulgação dos trabalhos de Chagas entre seus colegas portugueses. No término da exposição, o presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Costa Sacadura, proferiu algumas palavras de agradecimento em que buscou enfatizar a fraternidade luso-brasileira:
- 16 Diário de Notícias, 02/11/1924.
A forma como a assembleia acaba de manifestar ao dr. Carlos Chagas o apreço pelas elevadas qualidades de que tem dado tão exuberantes provas demonstra-me o aplauso com que recebeu a iniciativa de o convidar a vir ao seio da nossa coletividade travar conhecimento mais íntimo com os médicos seus compatriotas nascidos na Europa.16
- 17 Arquivo histórico da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. Livro de recortes de jornais de Carlos (...)
30Em 3 de novembro de 1924, Costa Sacadura, Annibal Bettencourt, Egas Moniz e Ricardo Jorge reuniram-se para acompanhar o embarque do cientista brasileiro no navio neerlandês “Urania” com destino ao Rio de Janeiro. A boa acolhida e a divulgação da ciência brasileira durante a viagem à Europa, concluída em Portugal, contribuíram para reforçar a reputação científica de Carlos Chagas em um momento de duras críticas movidas contra a sua descoberta por algumas vozes no Brasil. Neste sentido, Chagas escreveu a próprio punho numa página jornalística que noticiava o êxito de sua atuação no continente europeu: “Regresso da Europa possuído do mesmo ardor patriótico, e anima-me a convicção de que, nesse momento, saberemos gabar o prestígio de nossa terra perante o estrangeiro e salvar a nossa cultura. Rio, 17-11-1924, Carlos Chagas”.17
31Este artigo, fruto de pesquisa original, abordou as primeiras recepções acerca de uma descoberta científica realizada no Brasil, a doença de Chagas, em Portugal, país que registrou, no início desse século, aproximadamente 900 doentes infectados com o Trypanosoma cruzi, a maioria constituída por imigrantes oriundos da América Latina (Ferrão et al. 2013, 66-70). Todavia, a repercussão obtida pela descoberta brasileira em terras lusitanas, no início do século XX, não ocorreu de forma “natural”, mas resultou da interação entre elementos inibidores e potencializadores dessa ressonância na sociedade portuguesa. Entre os primeiros, pode-se elencar as dificuldades no estabelecimento do diagnóstico parasitário da doença verificadas na época e a pouca familiaridade dos médicos portugueses, nomeadamente daqueles que exerciam o seu ofício no interior do país, com a tripanossomíase americana, fatores que possivelmente influíram na ausência de casos confirmados da doença em Portugal. Além disso, o inseto transmissor do Trypanosoma cruzi, o barbeiro, inexistia no território metropolitano, ilhas adjacentes e nas colônias portuguesas em África e Ásia.
32A despeito desses elementos, havia em Portugal um ambiente científico receptivo às notícias sobre a descoberta da nova tripanossomíase humana no Brasil, manifesto pelas pesquisas desenvolvidas no país sobre a doença do sono, a tripanossomíase africana, cujo maior expoente foi Ayres Kopke. O parasitologista português mostrou-se atento às contribuições de Carlos Chagas, especialmente quanto aos aspectos morfológicos do Trypanosoma cruzi, e integrou o grupo de cientistas de renome internacional que decidiu atribuir ao descobridor da doença de Chagas a medalha Schaudinn, em 1912. Para mais, os significativos deslocamentos populacionais entre os dois países, representados pelo intenso fluxo emigratório lusitano aos portos brasileiros, não permitiram aos médicos portugueses ignorar por completo todas as doenças reportadas na ex-colônia americana e conferiram certa legitimidade aos receios manifestados por algumas vozes em Portugal quanto ao risco de “importação” da doença de Chagas através dos emigrantes retornados. Paralelamente, os canais de circulação do conhecimento sobre a tripanossomíase americana em Portugal – como a elaboração de teses inaugurais de medicina, a republicação, em periódicos científicos portugueses, de artigos originalmente publicados por Chagas no Brasil, e a conferência proferida pelo brasileiro na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa – foram estimulados pela projeção internacional alcançada por Carlos Chagas.