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Os regressos da guerra: espaço público, mundo digital e (re)produções mnemónicas

The Returns of War: Public Space, Digital World, and Mnemonic (Re)Productions
Les retours de la guerre: espace public, monde virtuel et (re)productions mnémoniques
André Caiado, Verónica Ferreira e Miguel Cardina
p. 215-240

Resumos

Durante um largo período, o efetivo impacto da guerra colonial na sociedade portuguesa foi acompanhado de um relativo silêncio institucional envolvendo a memória do conflito. À escassa abordagem pública do evento seguiu-se, nas duas últimas décadas, o crescimento de diferentes processos de memorialização do conflito, para os quais contribuiu decisivamente o trabalho de memória produzido por associações ou grupos mais ou menos formalizados de antigos combatentes. Este artigo analisa dois desses eixos memoriais: os monumentos evocativos da guerra e as representações mnemónicas do conflito no maior blogue português de antigos combatentes. Argumentaremos que apesar de estarem circunscritos às comunidades de recordação que os promovem e neles participam, influenciam e são influenciados pela memória pública dominante da guerra e contribuem para gerar momentos de sociabilidade e sentimentos de (auto)reconhecimento para esses grupos.

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Notas do autor

Este artigo resulta de investigação desenvolvida no âmbito do projeto “CROME - Crossed Memories, Politics of Silence. The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times” (StG-ERC-715593). financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do programa-quadro comunitário de investigação e inovação Horizonte 2020 da União Europeia.

Texto integral

1A guerra colonial foi sendo marcada, nas últimas décadas, por um conjunto de memorializações seletivas e por estratégias de esquecimento ativo. Em Portugal, o relativo silêncio sobre a guerra, particularmente das suas dimensões mais violentas e do seu carácter colonial, repousou num conjunto multifacetado de fatores. Entre eles deverá constar a própria natureza do Estado Novo, que bloqueou as possibilidades de uma discussão aberta sobre o conflito, o papel dos militares na rutura política do 25 de Abril, bem como a permanência de representações benevolentes sobre o colonialismo na sociedade portuguesa. A esses fatores se poderia ainda associar a dificuldade genérica em verbalizar publicamente fenómenos de violência bélica, de sofrimento e de trauma individuais ou, adicionalmente, o próprio facto de a guerra, essencialmente, se ter realizado em território africano, expurgando o território português das marcas físicas de uma guerra feita “noutro lugar” (Cardina e Martins 2018, 11-16; Cardina 2020).

  • 1 Os encontros anuais são quase sempre organizados ao nível da companhia ou do batalhão e reforçam (...)

2Há cerca de duas décadas, Luís Quintais (2000, 1003-1004) notou como a referência ao trauma abriu caminho para articular a “nossa história recente” com a experiência dos ex-combatentes, permitindo “narrativizar uma história nocturna [sic]”. No final da década de 1990, o estado português reconheceu legalmente o stress pós-traumático de guerra, estendendo o conceito de “deficiente das Forças Armadas” aos portadores de “perturbação psicológica crónica resultante da exposição a fatores traumáticos de stress durante a vida militar” (lei nº 46/99, 16 de junho). Pela mesma altura intensificam-se os convívios de antigos combatentes,1 realizados de forma dispersa pelo país, agregando antigos camaradas de armas geralmente do mesmo batalhão ou companhia. No espaço público dá-se, em 1994, a inauguração do Monumento aos Combatentes do Ultramar, um imponente monumento instalado em Belém, Lisboa. O monumento tem sido palco de cerimónias evocativas da guerra e de celebração patriótica, com destaque para o Encontro Nacional de Combatentes, que aí se tem realizado anualmente por ocasião do dia nacional, comemorado a 10 de junho. A década de 1990 correspondeu assim a um período de relativo aumento de visibilidade da guerra, marcado sobretudo pela definição da ideia do soldado-vítima – alicerçada na tentativa de os antigos combatentes granjearem maior reconhecimento social e reivindicarem mais apoios sociais ao estado – e pela manutenção da subalternização da natureza colonial da guerra (Loff 2015; Cardina 2016).

3Mais recentemente, sobretudo a partir dos anos 2000, tem emergido uma maior e mais plural visibilidade do tema, acentuada no campo historiográfico e académico, nas artes performativas, nos documentários (desde logo pelo impacto da série A Guerra, de Joaquim Furtado), na produção testemunhal em suporte escrito ou digital e na contínua proliferação de monumentos, cerimónias e convívios, um pouco por todo o país. Estas dimensões configuram modalidades de inscrição memorial predominantemente articuladas com a autoridade do vivido, pulverizadas em termos geográficos e dinamizadas por coletivos de antigos combatentes, por estruturas associativas e pelo poder local. Através destes mecanismos, os antigos combatentes tornam-se também eles agentes do processo de memorialização da guerra, necessariamente dinâmico e moldado pela importância que passou a ser atribuída às narrativas individuais de guerra. As sessões de psicoterapia foram um relevante e primordial contexto de narrativização das experiências de guerra (Quintais 2000), mas não o único. A publicação ficcional e não ficcional, a par da utilização das novas tecnologias de informação e comunicação para narrar estas experiências, abriu novas portas à expressão mnemónica dos antigos combatentes.

4Apesar de serem promovidos e valorizados sobretudo pelas comunidades de antigos combatentes, às quais se destinam afinal, argumentaremos que não são de todo isentos à institucionalização, à articulação com dinâmicas provenientes do estado ou à capacidade de influir no debate público sobre o tema. A partir de dinâmicas de rememoração individual e de grupo introduzem outras ressignificações e (re)produções mnemónicas do evento que ditou o epílogo do império colonial português. Este artigo procura assim analisar dois dos processos de memorialização desencadeados por esta mudança: os monumentos evocativos da guerra e as representações mnemónicas da guerra no maior blogue de veteranos do país, Luís Graça e Camaradas da Guiné (LGCG). O objetivo passa por compreender as dinâmicas e processos que explicam este “regresso da guerra” e os legados deste passado.

5Na primeira parte será apresentada a análise diacrónica da evolução do processo de monumentalização. Serão identificadas as principais dinâmicas de construção e tendências de representação, assinalando-se a mudança das propostas escultóricas e iconográficas ao longo do tempo. Este trabalho é baseado na análise semiótica e da epigrafia de monumentos, representações feitas nos media, entrevistas a agentes promotores e análise de um conjunto de fontes que incluem discursos proferidos nas cerimónias de inauguração, memórias descritivas, projetos de arquitetura e notícias. Na segunda parte, a análise estende-se ao impacto e às dinâmicas de produção mnemónica que se desenvolvem no espaço digital da internet em língua portuguesa e às narrativas e representações do passado daí resultantes. Em particular, a evocação de experiências por antigos combatentes e a formação de uma comunidade de memória a partir de blogues. Com esse objetivo, produziu-se uma análise crítica de discurso às publicações do maior blogue coletivo de veteranos da guerra colonial (LGCG). A análise incidiu sobre os conteúdos criados por quem participa diariamente na edição da página, em entrevistas semiestruturadas realizadas aos principais editores do blogue e foi complementada pela consulta de outras fontes relevantes, nomeadamente notícias e testemunhos publicados em livro.

6Como este artigo procurará demonstrar, os discursos dos blogues – especificamente aqueles produzidos no âmbito do blogue LGCG – são influenciados pelas representações públicas dominantes sobre a guerra, mas também fazem parte de um processo comunitário de criação de narrativas individuais partilhadas e reconfiguradas em grupo. São memórias que se desenvolvem nos interstícios das memórias individuais e da memória pública, alavancando uma narrativa difusa sobre o que foi a guerra a partir de episódios (re)contados, discussões, recensões, poemas, evocações biográficas, fotografias de convívios e historiografia amadora. Também a monumentalização da memória de guerra constitui um processo de representação de experiências de guerra, coletivas ou individuais, que são partilhadas e reconfiguradas em grupo. É um processo essencialmente promovido pelas comunidades de antigos combatentes, com o apoio da administração local. As principais leituras e dinâmicas de representação dos monumentos alimentam o culto da figura do combatente como herói e várias representações recentes ainda manifestam a permanência de um imaginário imperial.

1. A monumentalização da guerra em Portugal

7A construção de monumentos evocativos da guerra colonial estende-se ao longo de quase seis décadas, desde o início do conflito até à atualidade. Este fenómeno não é específico do caso português, na medida em que na mesma cronologia se assistiu à construção, noutras antigas potências colonizadoras, de monumentos que evocam guerras de descolonização – travadas por países europeus para impedir a independência das suas colónias –, nomeadamente aqueles relativos às guerras da Argélia (Buettner 2016; Brazzoduro 2019) e da Indochina, em França, mas também nos Países Baixos, relativos à guerra de independência da Indonésia (Buettner 2016). No caso português salienta-se a escala do processo, a agência e capacidade empreendedora dos promotores e o conjunto de representações, discursos memoriais e narrativas visuais sobre a guerra, o império português e os antigos combatentes que os monumentos evocativos da guerra colonial projetam no espaço público.

  • 2 Entendemos um marcador de memória como a ferramenta, código, símbolo, objeto ou monumento cuja vi (...)
  • 3 De acordo com critérios definidos pelos autores, atendendo ao seu carácter fúnebre, não foram con (...)
  • 4 A contabilização dos monumentos e a inventariação das datas de inauguração foi feita a partir do (...)

8No dealbar do século XXI, o advento de novas tecnologias, equipamentos e técnicas de comunicação e informação, que possibilitaram e catapultaram novas formas de memorialização e comemoração, não só não abrandou o ritmo de construção de monumentos, como, pelo contrário, contribuiu para o seu expressivo crescimento. Fê-lo, ao permitir criar novos espaços de recordação e socialização e o reforço destas comunidades de memória (Pickering e Keightley 2013), onde as sementes dos projetos de edificação destes marcadores de memória são germinadas.2 Até ao final de 2020, detetou-se a existência, em Portugal, de cerca de 415 monumentos,3 a grande maioria deles – cerca de 357 – construídos após o virar do milénio.4 A somar ao número e à velocidade com que estes monumentos foram sendo erguidos, impressiona também a sua dispersão geográfica. Com o objetivo de facilitar a análise e a compreensão das particularidades do fenómeno, distinguem-se três diferentes fases de monumentalização (ver quadro 1), relacionadas com as dinâmicas sociais do processo, as mudanças no ritmo de construção dos monumentos e a diversidade das propostas iconográficas e escultóricas que apresentam.

Quadro 1. Monumentos inaugurados por período

Quadro 1. Monumentos inaugurados por período
  • 5 O monumento de homenagem aos “boinas verdes” – representação figurativa de um paraquedista a ater (...)

9A primeira fase (1963-1974) é paralela à duração da guerra. Os monumentos construídos neste período são, na sua maioria, de reduzida dimensão e caracterizados pela simplicidade escultórica: invariavelmente uma coluna, um obelisco, um pelourinho ou uma pedra com uma lápide. Não obstante, existem exceções correspondentes a monumentos de dimensão relevante, que optam por uma representação figurativa do soldado-herói, que irá tornar-se um modelo muito comum nos monumentos que virão a ser construídos nas décadas seguintes. O primeiro monumento a surgir com estas características foi o Monumento aos Mortos em Combate, inaugurado a 3 de julho de 1968, no interior do Regimento de Paraquedistas, em Tancos,5 ao qual se seguiram o monumento de Coimbra e o de Fânzeres, no concelho de Gondomar, ambos inaugurados em 1971.

  • 6 Na sequência de obras feitas na zona circundante, a estátua viria a ser retirada e recolocada em (...)
  • 7 A referir: Oeiras (21/06/1997), Vila Real (01/12/2000) e Leomil (25/04/2009).

10No monumento de Coimbra, dedicado “Aos Heróis do Ultramar”, é projetada a figura do combatente-salvador, mediante a representação de um soldado que transporta às costas uma criança “africana” despida. Construído durante o curso da guerra para honrar os militares, esta representação estava alinhada com a propaganda do regime e visava granjear apoio público para a condução da guerra.6 Não obstante, décadas após o fim da guerra e a instauração do regime democrático, esta visão paternalista do combatente-salvador (branco) que protege a criança “africana” seria recuperada em três outros monumentos.7 Em parte, devido ao conjunto particular de representações que projeta no espaço público, o monumento de Coimbra tornou-se alvo de ações de pichagem e apropriação política que mereceram algum destaque mediático, no outono de 2020 e na primavera de 2021. Desde o início do processo que se instaurou a prática de dedicar os monumentos à memória coletiva dos combatentes. Anos mais tarde generalizar-se-ia outra. Para além de se dedicarem os monumentos a todos os combatentes que tinham prestado serviço, também se passou a homenagear individualmente cada combatente natural da terra onde o monumento estava localizado. Esta última homenagem individual era feita mediante a inscrição dos nomes dos soldados – e não raras vezes dos seus postos –, territórios onde tinham prestado serviço e naturalidades (aldeias ou freguesias), em lápides contíguas ou nos próprios monumentos.

  • 8 Constituída pelo governo português, logo em 1979, a comissão ficaria encarregada de fazer o levan (...)

11Nos 25 anos que se seguiram ao final da guerra e que delimitam a segunda fase (1975-1999), a construção de monumentos foi pouco expressiva, acompanhando um certo silêncio público sobre o conflito, que se instala após o seu fim, e que remete a memorialização da guerra, nos primeiros tempos, fundamentalmente para a esfera privada (Antunes 2015; Campos 2017; Cardina 2020; Ribeiro e Ribeiro 2018). Neste período contabilizam-se perto de 30 monumentos, que variam entre a representação clássica do soldado, a comum lápide com a inscrição dos nomes dos soldados ou a tradicional coluna ou obelisco. Apesar da retração da memória da guerra do espaço público, ao longo da década de 1980 as forças armadas e as comunidades de antigos combatentes desenvolvem algum trabalho de memória sobre o conflito. Este ficou expresso na edificação de 10 monumentos no interior de unidades militares, no trabalho desenvolvido pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África, que vai ficar encarregada de elaborar uma história do conflito,8 e no lançamento da construção do monumento nacional de homenagem aos antigos combatentes.

  • 9 Para mais informações sobre o processo, ver Magalhães (2007) e Associação dos Deficientes das For (...)

12O processo de construção do Monumento aos Combatentes do Ultramar, localizado junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém, Lisboa, iniciou-se em 1985 e culminou com a sua inauguração em 15 de janeiro de 1994. Foi alvo de várias controvérsias: desde os motivos para a edificação, as opiniões divergentes de várias associações, a angariação de fundos para a sua construção, a escolha do local e da maquete selecionada, até à própria recusa de Mário Soares, então presidente da república e, por inerência de funções, comandante supremo das forças armadas, em presidir à comissão de honra instaladora do monumento e os apupos de que foi alvo na inauguração oficial.9 Apesar do apoio institucional do estado português se ter concretizado através dos donativos efetuados por diversos organismos, a responsabilidade pela iniciativa e a concretização de todos os trabalhos conducentes à sua construção deveu-se, no essencial, a várias associações de antigos combatentes.

13O monumento de Belém é um reflexo da memória do conflito existente na sociedade portuguesa. Como realça Elsa Peralta (2017, 178), a sua estética formal “bem como os critérios que nortearam a sua escolha de entre as várias propostas apresentadas a concurso, denotam a preocupação em erigir um monumento que não desestabilize a narrativa pública prevalecente sobre a história imperial e colonial portuguesa”. Inseridos numa paisagem monumental glorificadora do império, que tornam a zona um complexo de memória (Peralta 2017), o monumento e as cerimónias aí organizadas, por ocasião do encontro anual de homenagem aos combatentes, servem para reabilitar o que – na opinião dos dirigentes de associações de veteranos – se considera ser a falta de reconhecimento público devido a quem combateu (Caiado 2018). Nos discursos proferidos durante estas cerimónias, por parte dos oradores convidados e dos presidentes da comissão organizadora do evento, é comum a manifestação deste sentimento.

14A terceira fase (2000-2020) é caracterizada pela multiplicação do número de monumentos, assim como pela diversidade das formas escultóricas e iconográficas escolhidas. Só a partir dos anos 2000 começam a surgir monumentos em cujos conjuntos escultóricos figura a representação dos territórios onde a guerra foi travada e, em menor número, também de Portugal. Nalguns casos e quando os monumentos são dedicados aos combatentes que prestaram serviço em várias partes do então designado “ultramar português” também são representados outros territórios como Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor, o Estado Português da Índia e, mais raramente, Macau. A presença destes mapas é identificada em cerca de 50 monumentos. A partir deste período, a par com o aumento do número de monumentos inaugurados por ano, também se vê com maior frequência a presença da cruz da Ordem de Cristo e/ou da esfera armilar, símbolos e elementos figurativos do imaginário imperial. É possível ainda identificar a naturalização de um imaginário imperial na iconografia das propostas escultóricas de alguns monumentos. Constituem alguns exemplos ilustrativos os monumentos de Tondela (30/06/2002), em cujas faces estão replicadas cartas de navegação marítimas da costa africana; o de Santa Comba Dão (13/05/2010), composto por sete elementos verticais onde estão gravados os nomes e os mapas das sete colónias; o monumento/praça de Calendário (20/10/2018) (ver figura 1), em cujo baixo-relevo está representado um mapa-múndi; ou o de Valado de Frades (19/01/2020), no qual foram pintados os brasões dos oito “territórios ultramarinos”.

  • 10 A LC, criada após a I Guerra Mundial, surgiu da iniciativa da comunidade dos combatentes que sent (...)
  • 11 Notícia disponível em https://www.dn.pt/portugal/interior/ja-sao-300-os-monumentos-de-homenagem-a (...)

15Para o crescimento nesta fase do fenómeno de monumentalização contribuem particularmente as associações de veteranos, em especial a Liga dos Combatentes (LC).10 Esta associação, tutelada pelo Ministério da Defesa Nacional, registou neste período um grande crescimento do número de núcleos regionais, que passaram de 64 para 112, entre 2003 e 2016.11 O envolvimento do estado neste processo também não deve ser descartado, embora seja necessário distinguir o papel da administração central do da administração local. Ao nível da administração central, o apoio é indireto, e consubstancia-se na representação frequente do governo da república nas cerimónias de inauguração dos monumentos das localidades de maior dimensão e através do apoio institucional fornecido pela LC.

Figura 1. Praça dos ex-combatentes, Calendário – Vila Nova de Famalicão

Figura 1. Praça dos ex-combatentes, Calendário – Vila Nova de Famalicão

16Ao nível da administração local, o apoio é efetivo. Em muitos casos os órgãos autárquicos são um dos agentes promotores dos processos de construção de monumentos. Quando acontece, a sua contribuição é expressa através da comparticipação financeira, da iniciativa pela construção de alguns monumentos ou da nomeação do arquiteto camarário para desenhar os projetos. Constitui um caso ilustrativo o verificado em Vila Nova de Foz Côa, em que o município foi responsável pela inauguração, em 2012 e 2013, de 16 monumentos, um em cada freguesia do concelho, já depois da construção do primeiro, na sede do concelho, em 2011. Os monumentos são todos idênticos, compostos por lápides de ardósia, nas quais são representados os três territórios onde foi travado o conflito. As lápides registam a “homenagem aos militares que prestaram serviço no ex-ultramar português”.

17Nalguns concelhos parece existir ainda o que poderíamos designar como efeito de contaminação, dada a profusão de construção de monumentos pelas várias freguesias de um mesmo município. Os casos mais significativos encontram-se em Vila Nova de Famalicão (10), Leiria (14) e Vila Nova de Foz Coa (17). Na vila de Ribeirão, concelho de Vila Nova de Famalicão, existe um conjunto memorial mais vasto, construído de forma faseada e agrupando monumentos e painéis de azulejos, sendo revelador da influência do seu principal promotor, em articulação com os órgãos autárquicos locais, mecenas e outros agentes. O investimento financeiro necessário para as obras, feitas ao longo de vários anos, foi possibilitado graças aos donativos feitos pela autarquia, LC, empresas e particulares, conforme explicado por José Ferreira dos Santos, presidente do núcleo da LC de Ribeirão e principal promotor do empreendimento:

  • 12 Entrevista a José Ferreira dos Santos, presidente do núcleo da LC de Ribeirão (15/07/2019).

É claro que estamos a falar aqui de [xxx] euros que se gastou. Não se deve nada. A Câmara deu-nos [xxx] euros, o resto foi tudo amigos, tenho muitos amigos, como deve imaginar, uns davam 20, outros davam 5, outros davam 10… e eu arranjei dinheirinho para fazer isto tudo. Faz de conta que era uma empresa. Eu não apresentava aqui ao grupo se podia fazer, eu fazia! Pois se estivesse à espera deles ainda hoje não tinha nada. Uma pessoa para isto tem de gostar muito do que faz, senão não consegue fazer nada. Não se consegue fazer nada.12

  • 13 Entre as várias obras consultadas sugere-se a leitura de Abousnnouga e Machin (2014), por apresen (...)

18Nas últimas décadas surgiu uma vasta literatura sobre monumentos e memoriais de guerra e processos de monumentalização, cuja leitura indicia a globalização de formas, modelos escultóricos e linguagens, mais ou menos padronizadas, independentemente do conflito que o monumento evoca ou do país onde está erigido.13 A análise diacrónica deste processo permite identificar a porosidade de modelos internacionais na construção dos monumentos da guerra colonial. Refiram-se, entre outras, a prática de inscrição dos nomes dos tombados ou o recurso a obeliscos, colunas ou à estátua do soldado, as quais foram muito usados no processo de monumentalização da I Guerra Mundial (Abousnnouga e Machin 2014; Winter 2014; Correia 2015). Por outro lado, a representação figurativa dos soldados projeta a sua força, coragem e robustez física, em detrimento de figuras que representem soldados feridos, mortos ou fisicamente débeis. Assinala-se ainda a não representação do “inimigo”, de operações concretas ou de gestos belicosos explícitos. Por outro lado, os monumentos mais antigos parecem, em muitos casos, ter servido de modelo para os mais recentes. Outra fonte de inspiração importante para os promotores e autores parecem ser os monumentos evocativos da I Guerra Mundial construídos em Portugal (Correia 2015). A prática de inscrever o nome dos soldados tombados, o recurso ao padrão como modelo construtivo ou a introdução de elementos da heráldica nacional (Correia 2015) são algumas das práticas e formas identificadas nestes dois processos de monumentalização.

  • 14 Registam-se como exceções o mural localizado na vila de Ribeirão e a placa invocando o nome de 21 (...)
  • 15 Sobretudo em Angola e Moçambique, o número de africanos incorporados no Exército chegou a ser, no (...)

19A existência de motivações políticas ou identitárias para a construção de monumentos de guerra, por parte de agentes políticos, indivíduos ou mais frequentemente de grupos, mais ou menos alargados, conduz à materialização de determinada(s) história(s) ou memória(s) e necessariamente à invisibilidade de outras. O processo de monumentalização da guerra colonial não é exceção. A omissão das vítimas civis que o conflito provocou é uma delas, a que se junta a ausência de representação de soldados negros das forças armadas portuguesas (FAP), seja de forma autónoma ou em conjunto com tropas brancas.14 A figura-tipo do soldado das FAP representada é a do soldado branco – à imagem das comunidades que promovem este processo –, pese embora o enorme peso e importância que a designada “africanização da guerra” teve, sobretudo nos anos finais do conflito.15 Por fim, a referência ao papel das mulheres durante a guerra é também pouco significativa: apenas seis monumentos evocam a memória feminina, prestando homenagem às mães, esposas e madrinhas de guerra (ver figura 2).

Figura 2. Monumento às mães e combatentes da guerra do ultramar, Ribeirão – Vila Nova de Famalicão

Figura 2. Monumento às mães e combatentes da guerra do ultramar, Ribeirão – Vila Nova de Famalicão

20Na leitura deste processo de monumentalização sobressai a exaltação da figura do combatente, da mesma forma que se articula este acontecimento histórico dentro de uma metanarrativa de defesa da pátria e se verifica a elisão da violência colonial e da violência expressa na guerra. Este modo particular de recordar o conflito resulta do que Keightley e Pickering (2013, 97) designam por vernacular remembering: a confluência entre as narrativas individuais dos antigos combatentes – já depuradas após um processo de seleção de memórias pessoais que ocorre com a passagem do tempo – com as narrativas oficiais públicas, tendencialmente marcadas pelo apagamento do colonialismo enquanto experiência de desigualdade, violência e racismo. Os monumentos constituem-se enquanto produtos mnemónicos que refletem uma determinada memória pública sobre a guerra. Como anotou Bodnar (1994, 13-15), a memória pública “emerge da interseção entre expressões culturais vernaculares e oficiais” e evidencia a estrutura de poder na sociedade.

21Assim, a forma de memorialização que se consubstancia nestes monumentos procura estar em linha com um modelo de rememoração dominante com o qual a maioria dos ex-combatentes se possa identificar. Tendendo a centrar-se nas noções de dever, patriotismo e coragem, acaba assim por oferecer um guião que se pretende mais facilmente compreendido e aceite por todos. Parece igualmente surgir para responder a uma necessidade de reconhecimento público dos próprios, que é genericamente identificada em testemunhos de antigos combatentes (Antunes 2015; Martins 2015; Campos 2017), bem como nos discursos proferidos nas cerimónias de inauguração e na própria epigrafia dos monumentos. A monumentalização pode, de certa forma, constituir-se como um mecanismo de compensação, acionado para suavizar os sentimentos de indignação e ressentimento manifestados por muitos antigos combatentes. Apresenta-se também como resposta à tensão e mágoa que afirmam sentir por não serem recipientes da homenagem e reconhecimento público que consideram que lhes deveria ser prestada. Estes monumentos não foram construídos apenas por eles, mas também para eles, que para além de agirem como empreendedores de memória (Jelin 2003), apresentam-se também como protagonistas de memória, “aqueles que participaram diretamente nas atividades representadas e que servem de suporte à memória local” (Peralta 2008, 48).

22Para além desta potencialidade catártica e da tentativa de granjearem maior visibilidade e reconhecimento público, o dinamismo destes processos de memorialização pode também ser desencadeado pela tentativa destes agentes de memória de contribuírem para suprir a lacuna de conhecimento sobre a guerra a partir da autoridade do vivido. À semelhança do que sucede com os blogues e memórias expressas em meio digital, os monumentos acabam também por tornar-se espaços de ritualização e performance públicas associadas às cerimónias aí organizadas, que alimentam o desejo de socializar com antigos camaradas de armas e possibilitam a realização de rituais de lembrança destas comunidades de recordação. Nas palavras de Eduardo Varandas, antigo combatente e arquiteto que desenhou cerca de uma quinzena de monumentos, a construção de monumentos e a organização de encontros está relacionada:

  • 16 Entrevista a Eduardo Varandas, arquiteto e vogal da direção da LC (19/08/2020).

Eu acho que uma coisa está ligada à outra, não é? É uma forma de as pessoas manterem aquela amizade que conquistaram naquele período de tempo da sua juventude. É uma forma de as pessoas irem preservando e manterem uma vez por ano, para se reunirem, para conviverem e recordarem tempos passados e talvez a construção dos monumentos seja uma forma agregadora dessa memória, dessa camaradagem durante esses tempos.16

23Apesar da proliferação destes monumentos por todo o território português, constituindo-se como marcadores de memória, permanece por conhecer com mais detalhe o modo de apropriação destes monumentos pelos antigos combatentes que não contribuíram para a sua construção, nem se identificam com os mesmos, ou por parte da população em geral. Não é claro que, na generalidade, se constituam como algo mais do que locais para a realização de liturgias cívicas ou religiosas em certas datas comemorativas: dia do combatente; 10 de junho; finados; dia do armistício. Ao mesmo tempo, este boom de monumentos aconteceu sensivelmente no mesmo período em que se democratizou o acesso às tecnologias de informação e comunicação a crescentes sectores da população, possibilitando o surgimento de memórias e representações da guerra no espaço digital.

2. A internet como espaço de encontro e de produção mnemónica

24O acesso generalizado à internet veio permitir uma crescente autoridade discursiva individual baseada na experiência vivida da guerra, tendência já visível na publicação de memórias em edições de autor e em pequenas editoras. Este novo meio de partilha de experiências potenciou, em paralelo com os convívios que também vinham proliferando, contactos entre antigos combatentes há muito separados. Os blogues foram, no fundo, as primeiras plataformas digitais utilizadas de forma generalizada e democratizante por ex-militares da guerra colonial com o objetivo de contar e partilhar as suas memórias. Uma tendência que tem evoluído desde os anos 2000 e que, sobretudo desde meados da década de 2010, se transferiu para plataformas como o Facebook. O aumento deste material mnemónico explica-se, em parte, pela necessidade de aproveitar estas novas ferramentas de enunciação para inscrever a sua subjetividade no espaço público enquanto agentes de um evento histórico que, para todos os efeitos, os marcou. Fator ao qual acresce a disponibilidade de tempo possibilitada pela chegada à idade da reforma e a premência em deixar o testemunho aos filhos e netos num momento em que a idade média destes homens se situa já acima dos setenta anos.

  • 17 Número de veteranos a 3 de agosto de 2021.
  • 18 O nome “tabanca” remete para as habitações tradicionais existentes na Guiné-Bissau. A Tabanca Gra (...)

25A elevada quantidade de blogues, nem sempre passíveis de análise enquanto locais de inscrição mnemónica, levou à seleção do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné como caso de estudo. Trata-se, de acordo com os seus editores, do maior blogue português na internet que – nascendo a 23 de abril de 2004 de um blogue pessoal de Luís Graça – se expande até nele convergirem 847 membros.17 Todavia, embora o número demonstre a enorme dimensão do blogue, o grosso dos textos é escrito por um número restrito de membros. Doze, para sermos exatos, cujas identificações se encontram no final do blogue. Destes, quatro são editores responsáveis pela seleção e publicação dos textos e formam o núcleo que produz a maioria dos conteúdos acessíveis. Os restantes membros, embora não escrevam ou publiquem conteúdos recorrentemente, são frequentadores da página e dos diversos convívios promovidos pelo blogue ou têm-no como núcleo agregador. Os encontros da Tabanca Grande e os encontros das diversas tabancas locais18 reúnem uma boa parte destes 847 ex-combatentes. Na verdade, de acordo com Jorge Cabral – um dos membros permanentes –, para determinados veteranos é o convívio com outros camaradas que os motiva a participarem na Tabanca.

  • 19 Recolhidos a 30 de setembro de 2019.
  • 20 Existem outras referências ao blogue na imprensa, ver “Diálogo com o ‘inimigo’ em Bissau” e “Tert (...)

26O grande impacto do blogue reflete-se também nos números que apresenta para a frequência de visitas à página. Segundo dados do próprio blogue19 houve cerca de 11,1 milhões de visitas desde maio de 2010. Em dezassete anos, foram objeto de 12,9 milhões de visitas. É claro que este número não reflete a totalidade de pessoas que acedem à plataforma, mas antes, de acordo com os editores, o número de vezes que se entrou no blogue através da hiperligação. Da mesma forma, nem todas as visualizações são de antigos combatentes. Académicos, estudantes ou jornalistas interessados no tema da guerra encontram no blogue um arquivo valioso e uma ponte de contacto com os ex-militares. Na peça jornalística feita pela revista Visão, a 22 de abril de 2010, intitulada “Blogoterapia” (Miguel 2010),20 Luís Graça esclarece qual é a essência da plataforma: “Somos uma espécie de grupo de auto-ajuda. Costumamos falar em ‘blogoterapia da guerra em África’”. Esta dimensão catártica – explorada mais à frente – junta-se à autoridade discursiva destes homens enquanto agentes da história. Na mesma entrevista, Luís Graça identifica um dos lemas que norteia os editores: “Não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti”. É a autoridade do vivido, da qual não abdicam e que fazem questão de exercer e sublinhar nas diversas publicações sobre episódios vividos e descritos na primeira ou na terceira pessoas (Ferreira 2020). Neste último caso, ao relembrarem os seus companheiros mortos durante a guerra.

27Todavia, vale a pena ter em conta que, pese embora esta vontade de “contar” nasça, em parte, do que até então consideraram ser um certo silêncio público sobre a guerra colonial, as memórias expressas pelos ex-combatentes em meio digital são influenciadas pelas representações sociais que circulam na sociedade portuguesa. Dito isto, se este aspeto já caracteriza o processo de monumentalização da guerra, torna-se ainda mais importante na análise dos discursos mnemónicos escritos pelos antigos combatentes. Estes discursos, ora fazem parte da tentativa de conferir sentido a uma juventude perdida, ora se inserem dentro de uma linha de reivindicação de um espaço público que lhes permita reclamar os seus direitos enquanto vidas e corpos marcados pela violência de uma guerra que não escolheram, mas na qual participaram.

  • 21 Inácio Silva foi responsável e dinamizador de duas petições à Assembleia da República, participa (...)

28Nesta última linha, numa das entrevistas realizadas, Inácio Silva referiu utilizar as plataformas digitais para reivindicar os direitos sociais e económicos dos ex-combatentes através do apelo à petição, compensando desta forma a falta de acesso à comunicação social tradicional.21 Este apelo concretizou-se na divulgação e angariação de assinaturas para a petição “Os ex-combatentes solicitam ao estado português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios” (petição nº 309/XIII/2). Ao todo foram conseguidas 4700 assinaturas. Num texto longo, pede, entre outras reivindicações simbólicas como o “reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios”, “que os complementos especiais de pensão, agora convertidos no suplemento especial de pensão, sejam substituídos pela antecipação da idade da reforma, tendo em conta o tempo de serviço militar prestado em condições especiais de dificuldade ou perigo, até ao máximo de cinco anos”. A petição foi avaliada pela Comissão de Defesa Nacional e discutida na Assembleia da República, a 31 de janeiro de 2018, mas não teve efeitos práticos. Estas reivindicações sociais, das quais o blogue faz eco, demonstram como a guerra colonial foi, para muitos, uma experiência passada que preenche uma parte significativa das suas memórias e das suas vidas hoje. Para alguns, há uma associação entre guerra e nostalgia de uma juventude perdida. A recordação da exuberância dos ambientes do território guineense e o companheirismo que encontraram entre pares são, ainda assim, as boas recordações daquele tempo de mocidade:

  • 22 Entrevista a Manuel Joaquim, ex-furriel miliciano da companhia de caçadores 1419 (Bissorã e Mansa (...)

Aí está uma espécie de contradição, mas eu fui feliz na guerra. No limite, portanto, sofri, muito [...] eu hoje já nem consigo recordar o quanto sofri [...].22

  • 23 Entrevista a Hélder Sousa, ex-furriel miliciano de transmissões TSF (1970-72), membro permanente (...)

Não lhe sei dizer se isto não é um revivalismo [...] “ah! quando eu era novo” [...] pode ser isso [...] no fundo ao relatarem aqueles, aqueles episódios estão-se a projetar quando eram mais novos [...] ou uma nostalgia, acredito que também haja essa parte, mas julgo que, eu penso que é mais notório a necessidade de extravasar e deitar cá para fora as memórias que têm [...].23

29Segundo Hélder Sousa, autor da segunda declaração e um dos membros permanentes do blogue LGCG, há camaradas que têm receio que o blogue acabe porque não teriam com quem partilhar as suas histórias, já que as famílias demonstram pouco interesse em ouvir as mesmas histórias vezes sem conta. Por outro lado, muitas das publicações são imbuídas de um sentido de pertença a um momento importante da história nacional e em muitos veteranos vê-se o objetivo de contribuir, não para a escrita de memórias, mas para a escrita de uma história factual da guerra colonial. Um dos exemplos deste propósito foi a razão apresentada por um dos editores do blogue LGCG para a sua recusa em conceder uma entrevista. Na sua perspetiva, as circunstâncias de uma entrevista espontânea direcionada para a memória da guerra levariam a “imprecisões históricas” devido às “deformações das memórias” inerentes ao passar dos anos. Também nos relatos publicados em livro, essa parece ser uma das suas principais preocupações. Almejam contribuir, com o conhecimento obtido pela experiência, para a escrita da história – entendida enquanto ciência dominada pela autoridade dos factos e temporalmente distanciada.

Aqui não é de criatividade nem de estética literária que se trata. Trata-se, isso sim, de memórias, duma narração cronológica de factos, com aquela objetividade que o rigor da objetividade histórica exige. Com efeito, toda a factualidade aqui descrita ou narrada corresponde à verdade, tenha ela sido pessoalmente vivida, simplesmente presenciada ou veiculada por terceiros, designadamente órgãos de comunicação social. (Henriques 2016, 7)

  • 24 Entrevista a Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do pelotão de caçadores nativos (...)

30Apesar da dimensão fragmentária e dispersa dos blogues, esta conjuga-se, no caso do blogue LGCG, com uma forte dimensão coletiva e comunitária (ver Figura 3). Um grupo de veteranos, unidos pela guerra na Gui-
né, trabalha conjuntamente na tarefa de (re)construir uma história da guerra, em particular aquela que diz respeito ao teatro de operações da Guiné-Bissau, através de vários testemunhos entrecruzados. No fundo, de acordo com o próprio mote do blogue, “[...] ajudar os ex-combatentes a reconstruir o puzzle da memória da guerra colonial [...]”. Concomitantemente, há uma forte associação entre a narração de experiências no blogue e a ideia de catarse – a blogoterapia. Como afirma Mário Beja Santos, “o blogue nasce de uma necessidade catártica do Luís Graça e durante alguns anos é ele, com a ajuda de algumas pessoas, e subitamente o blogue alarga”.24

Figura 3. Página principal do blogue LGCG, 30 de setembro de 2019

Figura 3. Página principal do blogue LGCG, 30 de setembro de 2019
  • 25 Entrevista a Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais/ranger no bat (...)
  • 26 Entrevista a Inácio Silva, entrevista citada (08/01/2019).
  • 27 Entrevista a Jorge Cabral ex-alferes miliciano de artilharia, pelotão de caçadores nativos 63 (Fá (...)

31Esta vertente é também referida por outros veteranos nas entrevistas. A escrita – no sentido da exteriorização da experiência vivida, muitas vezes, como acima se refere, sob a forma de uma objetivização da sua experiência através de outras fontes – assim como o contacto com outros camaradas que viveram a mesma guerra são as duas componentes desta blogoterapia. Nas declarações prestadas à Visão, no âmbito da peça acima mencionada, Luís Graça refere-se a esse “efeito terapêutico”, dizendo: “Muita gente que vivia isolada, sozinha com os seus fantasmas e memórias, sem ligações, sem suporte social, passou a conviver e a verbalizar as suas recordações, passou a registar isso no papel. E nós publicamos”. Forma-se, assim, a partir do blogue, uma comunidade de pertença e partilha. Comunidade que se estende para além do mundo digital e se materializa nos diversos convívios das supramencionadas tabancas, um pouco por todo o país, como se evidencia pelos seguintes testemunhos: “Eu acho que tem feito bem à malta que esteve por lá nas guerras estes convívios porque é para exteriorizar aquilo que está lá dentro”;25 “A razão principal é para matarmos saudades, convivemos juntos num ambiente hostil durante um determinado período da nossa vida, eramos jovens e, e é como os colegas da escola”;26 “Depois o contacto com outros camaradas. Fizeram-se amizades com pessoas que nunca estiveram juntas, não é? E agora são amigos, não é? Ah, nesse aspeto, sim... mas, as pessoas também não falam de guerra nos almoços”.27

  • 28 Mesmo aquelas memórias que não se relacionam com a experiência no teatro de operações da Guiné tê (...)

32O trânsito, muito significativo, entre a atividade mnemónica no mundo digital e no mundo físico também é medido em função da influência que o blogue exerce sobre a produção de memórias publicadas em livro. Parte da produção literária, especialmente a relativa à Guiné, não pode ser dissociada da produção digital. As duas formas de transmissão de memória crescem de forma mais expressiva no mesmo período e, de certa forma, alimentam-se mutuamente. Um número considerável de livros de memórias sobre a guerra da Guiné faz referência ao blogue nas suas dedicatórias e agradecimentos: “Estas memórias não seriam possíveis sem a preciosa ajuda de: [...] Blogue ‘Luís Graça & Camaradas da Guiné’ – pela oportunidade e incentivo. [...] Comentadores do Blogue – pela simpatia e pelo incentivo” (Ferreira 2016, 11), ou “Este livro só foi possível porque o Luís Graça me estragou os planos de escrever esta obra só depois da reforma, ao convidar-me a conhecer o blogue ‘Luís Graça e Camaradas da Guiné’, onde fiquei prisioneiro e refém de memórias pessoais e coletivas” (Santos 2008, 11). A facilidade em publicar e compilar textos no blogue, bem como o apoio e incentivo dado pelos camaradas, foram alguns dos fatores que galvanizaram estes homens a publicarem as suas memórias ou diários de guerra. Um dos membros do blogue confessou, inclusive, em entrevista, estar a preparar as suas memórias em livro:28

  • 29 Jorge Cabral, entrevista citada.

Tenho 93 histórias, para aí, deve sair um livrinho este ano ainda. Estou a adaptar, a tirar uns excessos de linguagem, porque aquelas histórias eram escritas, principalmente, para militares [no blogue] e para que outro público possa perceber alguma coisa é necessário adaptar algumas coisas. Mas este ano sai de certeza. Andam-me a chatear há anos, há anos!29

  • 30 Como, por exemplo, diários de viagem. Ver, por exemplo, ‘Guiné 61/74-P20824: Viagem de volta ao m (...)

33Ainda neste âmbito, é possível descrever algumas metanarrativas recorrentes tanto nas publicações do blogue como em alguns livros. Por um lado, a relativa despolitização do conflito – prendendo a narrativa em análises tático-militares (Silva 2015, 217-218), ou sublinhando a sua atuação em nome de ideais lidos como universais, e.g. “dever de servir a pátria” – e, por outro, a indignação perante o desperdício de uma juventude gasta numa guerra inútil, desemparados e sem ajudas do estado que compensem o seu sacrifício (Henriques 2016, 10). Nos blogues, é a partir de fragmentos que se cria um composto de narrativas comuns sobre a guerra. As publicações não seguem uma linha cronológica, nem um formato específico. Podem encontrar-se poemas, fotografias, episódios da guerra, memoriais aos mortos, divulgação de convívios ou tomadas de posição em polémicas relacionadas com diferentes formas de representar ou comemorar a guerra colonial no presente, mas também textos que não se relacionam com o evento.30

34Os eventos passados surgem aqui recontextualizados e transformados em narrativas afetivas individuais dentro e para a comunidade. Em teoria, quando comparadas com as memórias impressas, são testemunhos com um maior espectro de visibilidade porque são acessíveis gratuitamente a partir de qualquer dispositivo com ligação à internet. Permitem ainda, por via do formato publicação-comentário, contestar as representações sociais da guerra veiculadas pelas publicações ou ter acesso a possíveis conflitos e a tensões mnemónicas entre camaradas. Todavia, o acesso a esse canal de contestação depende em última instância das políticas de permissão dos editores, aos quais é imputada a decisão final sobre o que é ou não publicado nos comentários. Relativamente ao conteúdo das publicações, a partilha de fotografias dos antigos combatentes, tiradas durante a guerra, assume grande destaque.

35As fotografias têm um papel importante e de destaque no blogue pois, num contexto em que determinados aspetos da guerra são silenciados, representam uma prova material da existência do conflito e, por extensão, de tudo o que lhe é inerente. Ainda que esse tipo de representações visuais seja comparativamente menor do que as fotografias de cenas do quotidiano. As fotografias permitem, ao mesmo tempo, que essa ligação material ao passado deixe de se restringir ao espaço privado dos arquivos familiares e alargue o seu alcance, entrando, ou possibilitando a sua entrada, nas representações públicas do conflito (Dijck 2007; Hirsch 2012, 233, 240-242). Dão um rosto aos soldados mobilizados, aos mortos e aos estropiados. Possibilitam a subjectivização da memória ao vincularem a experiência da guerra a homens concretos capazes de contar a “sua história”, por oposição aos números da guerra que muitas vezes os representam no discurso público. Paralelamente, e ainda que inadvertidamente, permitem entrever a violência e a hierarquia racial do tempo colonial. O exemplo mais comum são as várias fotografias de soldados mortos – sobretudo combatentes do PAIGC –, de deficientes das FAP e de soldados das FAP ao lado de mulheres guineenses de peito descoberto (sobre este último tema, cf. Antunes 2017, 220-223; Vicente 2017, 206-208).

  • 31 Refira-se, como exceção, o livro de memórias de Amadú Ballo Djaló (2010), comando guineense, escr (...)

36Note-se ainda que as memórias presentes nos blogues – ou, por extensão, nos livros de memórias – não são, no entanto, representativas de todo o universo de combatentes e, embora Luís Graça afirme que “[n]o blogue, onde todos se tratam por tu e não existem hierarquias militares”, em boa verdade, as memórias escritas são maioritariamente provenientes de ex-combatentes com um nível de escolaridade mais elevado – comparativamente ao da grande maioria dos soldados que combateram nas ex-colónias – e provenientes da então metrópole.31 Aqueles que publicam livros e escrevem em blogues são sobretudo oficiais e sargentos, grande parte deles milicianos. Não há, desta forma, uma representação expressiva dos elementos menos escolarizados – com patentes mais baixas – embora existam exceções. A par disto, a iliteracia digital impede a existência de uma maior representatividade destes testemunhos. Numa anedota ilustrativa, um dos combatentes conta:

  • 32 Jorge Cabral, entrevista citada.

Eu uma vez disse ao Luís Graça “tu devias era chamar aqueles soldados quase analfabetos para escreverem, com erros de ortografia e tudo”. No fundo acaba por ser um pouco elitista, não? No fundo, quem é que lá está? Alferes e furriéis. Poucos os soldados, não é? [...] É um bocadinho elitista, isso é. Há pessoas que nem sabem o que é a internet, não é? Eu perguntei uma vez a um: [...] “tens net?”, perguntei-lhe a ele e ele respondeu “tenho, tenho, um rapaz e uma menina”.32

  • 33 Luís Graça participou no Simpósio Internacional “Guiledje: na rota da independência da Guiné-Biss (...)

37Da mesma forma, a representação dos guineenses que combateram do lado colonial ou dos guineenses que combateram do lado do PAIGC é praticamente inexistente, embora existisse interesse por parte dos editores nessa representação, em particular de Luís Graça. O resultado desta falta de representatividade acaba por ser a perpetuação de visões influenciadas sobretudo pelas narrativas dos veteranos metropolitanos alfabetizados, alguns deles professando a metanarrativa do “dever de defender a pátria”. Embora, novamente, haja diferenças motivadas pela existência de um sentimento crítico da guerra, pela própria evolução e até mudança do discurso dos ex-combatentes, pela existência de pelo menos um membro permanente guineense, Cherno Baldé, e pelos contactos que vão existindo com guerrilheiros do PAIGC ou da participação do historiador guineense Leopoldo Amado.33

3. Conclusão

38Nas primeiras duas décadas após o fim da guerra, para além de um punhado de obras literárias e filmes emblemáticos, de alguns livros de memórias escritos por antigos combatentes e da construção de alguns monumentos, a memorialização do conflito esteve maioritariamente confinada ao foro privado. A chegada à reforma de antigos combatentes, aliada ao surgimento de ferramentas que democratizaram o acesso a mecanismos de produção testemunhal, permitiu a milhares deles inscreverem no espaço público as suas representações do conflito. Os dois eixos de memorialização analisados – os monumentos erguidos no espaço público e os trechos narrativos, de sentido memorial, publicados em blogues – refletem a necessidade de dar visibilidade ao seu passado, de “contar a sua história” e de obter um maior reconhecimento social.

39O processo de construção de monumentos assume relevância por atestar uma memorialização pública da guerra, dinamizada no essencial por antigos combatentes, em articulação com estruturas políticas locais. Constituídos em comunidade, permitem-lhes terem aqui potenciais lugares de memória, onde organizam cerimónias de lembrança dos camaradas mortos, se evoca a guerra e celebra a experiência de ser antigo combatente. Estendendo-se há já quase seis décadas, quando analisado diacronicamente, este processo é um reflexo da própria evolução da memorialização do conflito na sociedade portuguesa. As opções escultóricas e iconográficas mais simples, clássicas e formais que caracterizam os monumentos construídos nas primeiras duas fases distinguidas neste trabalho vão-se diversificando com a passagem do tempo e a intensificação do processo construtivo. A multiplicação das soluções estéticas e arquitetónicas propostas, que se verifica sobretudo a partir dos anos 2000, é influenciada pela dinâmica e porosidade dos processos de reelaboração de memórias e testemunhos individuais e pela emergência de uma autoridade do vivido autorreconhecida.

40Por seu turno, o blogue LGCG constitui-se como um arquivo digital vivo e em permanente expansão sobre a guerra colonial. Animado por uma dinâmica de comunidade, permite aos ex-combatentes terem a possibilidade de inscrever as suas memórias numa plataforma publicamente acessível. No fundo, trata-se aqui da possibilidade de democratizar a supramencionada autoridade discursiva do vivido, não obstante as limitações sociais e económicas que essa democratização apresenta. A importante dimensão comunitária da partilha de memórias, na qual se inserem os diversos convívios da Tabanca Grande e das tabancas locais, completa o quadro do impacto social do blogue. A digitalização da memória da guerra acompanha a tendência iniciada em meados dos anos 1990 de narrar uma experiência considerada traumática. Para muitos, o blogue é uma atividade terapêutica de grupo – a blogoterapia.

41Estes dois eixos de memorialização destacam-se também por permitirem visibilizar cada combatente individualmente. No caso do processo de monumentalização, a prática de inscrever os nomes dos combatentes nas lápides contribui para a sua valorização individual, em paralelo com a glorificação abstrata do esforço de combate prestado pela massa anónima dos combatentes. Também o blogue possibilita aos combatentes – pelo menos em teoria, e pese embora a sub-representação dos militares de patentes mais baixas e/ou racializados – partilharem as suas memórias e contarem as suas histórias, da mesma forma que a digitalização das suas fotografias pessoais dá rosto aos milhares de homens que colaboram na plataforma. Ambos os processos pretendem transmitir o testemunho às gerações seguintes, acabando por se constituir como veículos de transmissão de memória(s) da guerra. Ainda que esta dinâmica – de produção e também de apropriação – venha naturalmente a ser reconfigurada com o tempo, sobretudo com o paulatino desaparecimento da geração que foi levada a combater, os campos memoriais analisados constroem representações sobre o conflito que tanto se articulam como se apresentam enquanto alternativas às, também elas mutáveis, memórias públicas da guerra, cumprindo ainda a função de gerar momentos de sociabilidade e de autorreconhecimento da(s) comunidade(s) existencialmente marcadas por essa experiência.

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Notas

1 Os encontros anuais são quase sempre organizados ao nível da companhia ou do batalhão e reforçam a sociabilidade e a partilha de memórias conjuntas. A título meramente ilustrativo, o número de eventos atingiu em 2014 o recorde de 360, de acordo com dados do Portal dos Veteranos da Guerra do Ultramar (UTW), embora estes números possam pecar por defeito. De acordo com os eventos publicitados neste portal, entre 2006 e 2018 terão sido organizados em média 260 eventos anuais.

2 Entendemos um marcador de memória como a ferramenta, código, símbolo, objeto ou monumento cuja visualização ou uso tenha potencial para ativar a memória de um acontecimento, pessoa ou evento histórico com o qual esteja relacionado.

3 De acordo com critérios definidos pelos autores, atendendo ao seu carácter fúnebre, não foram considerados os monumentos situados em cemitérios civis ou talhões militares. Apenas foram contabilizados os localizados na via pública ou no interior de unidades militares.

4 A contabilização dos monumentos e a inventariação das datas de inauguração foi feita a partir do cruzamento dos dados disponíveis em Porteira e Martins (2018), LC (2021), UTW (2021) e em notícias disponibilizadas pelos media, órgãos autárquicos e associações de veteranos nas suas páginas eletrónicas. Foram ainda contactadas várias câmaras municipais, juntas de freguesia e regimentos militares, por e-mail ou telefone, para solicitar dados em falta e nalguns casos foram efetuadas visitas ao terreno para recolher informação.

5 O monumento de homenagem aos “boinas verdes” – representação figurativa de um paraquedista a aterrar – foi o primeiro a ser construído dentro de uma unidade militar.

6 Na sequência de obras feitas na zona circundante, a estátua viria a ser retirada e recolocada em 2005, na Praça dos Heróis do Ultramar.

7 A referir: Oeiras (21/06/1997), Vila Real (01/12/2000) e Leomil (25/04/2009).

8 Constituída pelo governo português, logo em 1979, a comissão ficaria encarregada de fazer o levantamento de toda a documentação com potencial interesse histórico ou militar (portaria nº 43/80, 16.02.1980) sobre o conflito. O trabalho produzido resultou nos vários volumes que constituem a Resenha histórico-militar das campanhas de África: 1961-1974, os quais começaram a ser publicados a partir de 1988.

9 Para mais informações sobre o processo, ver Magalhães (2007) e Associação dos Deficientes das Forças Armadas (2017).

10 A LC, criada após a I Guerra Mundial, surgiu da iniciativa da comunidade dos combatentes que sentiram a necessidade de se agrupar de forma a defenderem os seus interesses, bem como apoiarem os inválidos de guerra, as viúvas e os órfãos. Foi oficializada em 29/01/1924, pela portaria nº 3888. Assumindo-se como uma instituição de “ideal patriótico” e de carácter social, a LC foi evoluindo institucionalmente, sendo atualmente considerada uma instituição de utilidade pública.

11 Notícia disponível em https://www.dn.pt/portugal/interior/ja-sao-300-os-monumentos-de-homenagem-aos-combatentes-5334653.html [último acesso a 04/08/21].

12 Entrevista a José Ferreira dos Santos, presidente do núcleo da LC de Ribeirão (15/07/2019).

13 Entre as várias obras consultadas sugere-se a leitura de Abousnnouga e Machin (2014), por apresentar uma boa revisão bibliográfica sobre a temática.

14 Registam-se como exceções o mural localizado na vila de Ribeirão e a placa invocando o nome de 211 comandos africanos presente no Regimento de Comandos, descerrada a 29/06/2007. Os nomes das tropas negras das FAP estão também listados indiferenciadamente, enquanto “soldados que morreram ao serviço de Portugal”, no lapidário do Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Belém.

15 Sobretudo em Angola e Moçambique, o número de africanos incorporados no Exército chegou a ser, nos anos finais da guerra, cerca de metade do contingente em combate (Gomes 2013).

16 Entrevista a Eduardo Varandas, arquiteto e vogal da direção da LC (19/08/2020).

17 Número de veteranos a 3 de agosto de 2021.

18 O nome “tabanca” remete para as habitações tradicionais existentes na Guiné-Bissau. A Tabanca Grande é o nome dado à comunidade de combatentes que se juntam no blogue e que se concretiza no convívio nacional realizado anualmente, desde 2009, em Monte Real. As tabancas locais são grupos de combatentes de mais pequena dimensão, que se juntam por pertencerem à mesma área geográfica e se reúnem com recorrência variável.

19 Recolhidos a 30 de setembro de 2019.

20 Existem outras referências ao blogue na imprensa, ver “Diálogo com o ‘inimigo’ em Bissau” e “Tertúlia da Guiné faz ‘blogoterapia’” no caderno Gente do Diário de Notícias de 1 de março de 2008 ou, mais recentemente e aquando da publicação do livro da jornalista Catarina Gomes Furriel não é nome de pai, disponível em https://www.dn.pt/lusa/um-dos-ultimos-tabus-da-guerra-colonial-passa-por-furriel-nao-e-nome-de-pai-9380369.html [último acesso a 04/08/21].

21 Inácio Silva foi responsável e dinamizador de duas petições à Assembleia da República, participa no blogue LGCG e é também coeditor, juntamente com outro camarada, de um blogue da sua companhia. Nestas plataformas publicita os desenvolvimentos da sua petição, intitulada “Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios”, debatida em plenário na Assembleia da República no dia 31 de janeiro de 2018.

22 Entrevista a Manuel Joaquim, ex-furriel miliciano da companhia de caçadores 1419 (Bissorã e Mansabá, 1965-67), membro do blogue LGCG (11/01/2019).

23 Entrevista a Hélder Sousa, ex-furriel miliciano de transmissões TSF (1970-72), membro permanente do blogue LGCG (09/01/2019).

24 Entrevista a Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do pelotão de caçadores nativos 52 (Missirá e Bambadinca, 1968-70); é autor de dezenas de títulos sobre a Guiné e a guerra colonial e membro permanente do blogue LGCG (07/01/2019).

25 Entrevista a Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais/ranger no batalhão de caçadores 4612/74 (Cumeré, Mansoa e Brá, 1974), membro permanente e coeditor do blogue LGCG (09/07/2018).

26 Entrevista a Inácio Silva, entrevista citada (08/01/2019).

27 Entrevista a Jorge Cabral ex-alferes miliciano de artilharia, pelotão de caçadores nativos 63 (Fá Mandinga e Missirá, 1969-71) e membro permanente do blogue LGCG (15/04/2019).

28 Mesmo aquelas memórias que não se relacionam com a experiência no teatro de operações da Guiné têm uma relação com o mundo virtual através de páginas como a UTW, na qual muitas edições de autor estão disponíveis em formato PDF para download livre.

29 Jorge Cabral, entrevista citada.

30 Como, por exemplo, diários de viagem. Ver, por exemplo, ‘Guiné 61/74-P20824: Viagem de volta ao mundo: em plena pandemia de COVID 19, tentando regressar a casa […]’, disponível em https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/04/guine-6174-p20824-viagem-de-volta-ao.html [último acesso a 11/08/2021].

31 Refira-se, como exceção, o livro de memórias de Amadú Ballo Djaló (2010), comando guineense, escrito com a colaboração de Virgínio Briote, editor jubilado do blogue LGCG, e publicado pela Associação dos Comandos.

32 Jorge Cabral, entrevista citada.

33 Luís Graça participou no Simpósio Internacional “Guiledje: na rota da independência da Guiné-Bissau”, organizado pela Ação para o Desenvolvimento, em 2008, e que reuniu na Guiné antigos combatentes portugueses e antigos combatentes guineenses e cabo-verdianos. No Diário de Notícias, acompanhando a reportagem do evento, está também uma peça sobre o blogue, disponível em https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2008/03/guin-6374-p2599-o-simpsio-de-guileje.html [último acesso a 04/08/21].

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Índice das ilustrações

Título Quadro 1. Monumentos inaugurados por período
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/9489/img-1.jpg
Ficheiros image/jpeg, 16k
Título Figura 1. Praça dos ex-combatentes, Calendário – Vila Nova de Famalicão
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/9489/img-2.jpg
Ficheiros image/jpeg, 37k
Título Figura 2. Monumento às mães e combatentes da guerra do ultramar, Ribeirão – Vila Nova de Famalicão
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/9489/img-3.jpg
Ficheiros image/jpeg, 22k
Título Figura 3. Página principal do blogue LGCG, 30 de setembro de 2019
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/9489/img-4.jpg
Ficheiros image/jpeg, 68k
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

André Caiado, Verónica Ferreira e Miguel Cardina, «Os regressos da guerra: espaço público, mundo digital e (re)produções mnemónicas»Ler História, 79 | 2021, 215-240.

Referência eletrónica

André Caiado, Verónica Ferreira e Miguel Cardina, «Os regressos da guerra: espaço público, mundo digital e (re)produções mnemónicas»Ler História [Online], 79 | 2021, posto online no dia 20 dezembro 2021, consultado no dia 12 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/9489; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.9489

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Autores

André Caiado

Centro de Estudos Sociais e Instituto de Investigação Interdisciplinar, Universidade de Coimbra, Portugal

andrecaiado@ces.uc.pt

Verónica Ferreira

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal

veronicaferreira@ces.uc.pt

Miguel Cardina

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal

miguelcardina@ces.uc.pt

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Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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