- 1 Há autores que estudam casos em que as redes científicas de circulação de conhecimento cruzam vár (...)
1A história da ciência e da técnica desenvolve tradicionalmente a sua análise a partir do caso europeu e dos seus centros de produção de conhecimento (universidades, museus, gabinetes de curiosidades, jardins botânicos e academias), de acordo com lógicas que subentendem uma relação de dominação, superioridade e supremacia face aos espaços extraeuropeus (Wendt 2016). No caso português, esta cultura científica ocidental está em sintonia com as políticas e práticas impostas por um império transoceânico e pluricontinental implantadas a uma escala global; e é centralizada e controlada por instituições estatais científicas estabelecidas nas “capitais políticas e culturais” que são Lisboa e Coimbra. Estamos a referir-nos concretamente à Secretaria de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos e ao Gabinete de História Natural e Jardim Botânico da Ajuda, localizados em Lisboa, e talvez, embora com menor intensidade, ao Museu de História Natural da Universidade de Coimbra.1
2De acordo com esta ótica, as colónias eram fontes de curiosidade científica e estavam associadas à observação, descrição e registo dos fenómenos e à coleta dos materiais, enquanto ao reino cabia a criação dum novo conhecimento sobre o mundo natural colonial com base na informação coligida pelos naturalistas em missão nos vastos espaços coloniais portugueses (Domingues 2019). Era sobretudo o Gabinete de História Natural da Ajuda e Domingos Vandelli que detinham a centralização da comunicação, acumulação e troca de conhecimento científico, tanto ao nível da receção de dados como da irradiação da informação, de e para as colónias, de e para a comunidade científica internacional que era a República das Letras (Brigola 2003, 115-138, 273-277). Esta chave interpretativa baseada num modelo bilateral de circulação e comunicação científica está comummente associada à viagem filosófica. Em consonância com este modelo, Alexandre Rodrigues Ferreira e a equipa que acompanhou o naturalista numa viagem quase sem fim pelos rios e sertões do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá recolheram informações ao longo duma expedição que durou dez anos pelos sistemas fluviais amazónico e mato-grossense, transpostas em textos, imagens, objetos. Estes dados empíricos destinavam-se a ser estudados como coleção e integrados nos modelos e sistemas taxonómicos europeus – de que o Lineano era apenas um dos sistemas – na “central de cálculo” que era Lisboa. Integravam-se num amplo plano científico e político-económico em torno de uma história natural das colónias, coordenada por Domingos Vandelli, que mobilizou vários segmentos sociais unidos por este objetivo comum (Pataca, 2006; Barrera-Osorio 2008; Domingues 2019).
3Importa, contudo, considerar que, nas últimas décadas, a historiografia tem vindo a desenvolver alguma flexibilidade epistemológica em relação a esta forma de interpretar a produção de conhecimento científico e estudar os circuitos de comunicação e as redes culturais e intelectuais que a sustentam. Os novos caminhos apontados por esta historiografia valorizam, por exemplo, a participação das populações locais, nativas ou criollas, considerando-as como elementos constitutivos destas redes internacionais de circulação do conhecimento que atuavam por todo o globo sendo ativamente participantes e veiculadoras de dados válidos e credíveis (Schaffer et al. 2009). Podemos, por exemplo, perceber a valorização que recentemente os historiadores têm concedido à participação local na dinamização das expedições e na constituição do conhecimento científico em artigo de Anderson Antunes, Luisa Massarani e Ildeu C. Moreira (2019) sobre as interações que se estabeleceram entre os viajantes naturalistas Agassiz, Wallace, Edwards e Spruce, que percorreram a bacia hidrográfica amazónica no século XIX, e as comunidades locais, consideradas nos relatos destes viajantes como uma presença constante e imprescindível nas expedições, mas que lhes suscitava igualmente surpresa, admiração e desprezo nos seus modos de vida quotidiana; ou em artigo de Nelson Sanjad (2019) sobre Emília Snethlage, os etnológicos berlinenses e as redes formais e informais de apoio, constituídas por investigadores locais, índios, guias, intérpretes, missionários, “coronéis de barranco”, em relação às quais os cientistas ligados ao Museu Paraense Emílio Goeldi dependiam para atuar na Amazónia em inícios do século XX.
4Se aplicarmos este princípio teórico-metodológico quando recuamos no tempo, teremos inevitavelmente de reconhecer que o leque de agentes históricos envolvidos na viagem filosófica é bastante maior do que o grupo constituído por Alexandre Rodrigues Ferreira, os dois riscadores (José Joaquim Freire e Joaquim José Codina) e o jardineiro-botânico (Agostinho do Cabo). A viagem pressupôs igualmente a participação de remeiros, guias, intérpretes, pescadores, soldados, colonos, que atuaram não só como facilitadores da expedição, mas também como detentores de saberes válidos e úteis para os expedicionários. Esta perceção historiográfica conduz-nos, então, ao reconhecimento de que muitos dos participantes da viagem tinham um conhecimento ancestral e empírico da natureza e do ambiente, uma sabedoria que não tinha a sua matriz na ciência europeia, mas que estava estruturada em saberes e práticas locais sobre fenómenos e produtos naturais.
5É certo que já alguns estudos têm evidenciado como Ferreira e a sua equipa nuclear dependeram, de forma vital, do trabalho e da experiência destes agentes facilitadores para navegar (e sobreviver) nos rios das bacias hidrográficas amazónica e mato-grossense (Domingues 1991; Pataca 2016). Estes conhecimentos tinham a sua origem e maestria numa aprendizagem obtida ao longo de gerações entre indivíduos da mesma comunidade, da mesma família ou com a mesma experiência profissional, experientes na navegação de determinadas rotas fluviais, que detinham um conhecimento específico, especializado ou iniciático em relação a determinadas funções e tarefas ligadas ao dia a dia dos expedicionários e relacionadas com a recoleção dos alimentos e a forma de os preparar; a utilização de plantas para curar febres, feridas e mordeduras de animais e insetos; a escolha de locais que fossem abrigos seguros; a abertura de trilhos na floresta e o conhecimento de labirintos fluviais para progredir eficientemente no terreno; o domínio de línguas e protocolos de aproximação que permitissem encetar, de forma eficiente, a comunicação e obter a colaboração e o apoio das comunidades indígenas.
6Através da utilização de saberes e técnicas, contribuíram ativamente para que a viagem alcançasse o êxito que obteve enquanto expedição científica com uma duração de dez anos, percorrendo milhares de quilómetros desde a foz do rio Amazonas até aos confins do sertão mato-grossense e cuiabano, registando e coletando milhares de espécimes, produzindo algumas centenas de textos e mais de um milhar de imagens (Domingues 2021). Ou seja, a viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira deu origem, nos anos de 1780-1790, a uma informação que não tinha precedentes sobre a natureza e a humanidade desta parte da América portuguesa. Este ‘êxito’ que aqui destacamos leva igualmente em consideração o facto de os expedicionários (ou a maioria) terem sobrevivido e regressado a Lisboa depois deste impressionante périplo.
7Reflexões como estas conduzem-nos a um universo que se encontra ainda pouco estudado quando se trata das viagens filosóficas realizadas nas décadas de 1780 e 1790 aos espaços coloniais portugueses e que pretendemos explorar neste artigo: o de existirem vários níveis ou esferas de saber nas obras destes naturalistas da segunda metade de setecentos e que estes saberes dialogavam e interagiam entre si, coexistindo, por vezes contradizendo-se, mas não se excluindo. Com este artigo, queremos evidenciar que a produção textual de Ferreira é o resultado complexo não apenas das suas observações e da sua experiência em viagem, nem tão-pouco dependeu exclusivamente da aquisição de técnicas e de saberes teóricos-científicos e eruditos adquiridos durante a sua formação e treino enquanto naturalista; mas pressupôs igualmente a existência de práticas colaborativas que estabeleceu com os seus pares ao longo da viagem; e dependeu igualmente de informações provenientes de meios que não eram exclusivamente académicos, relacionados com os “saberes vulgares”. Estes saberes estavam mais próximos da natureza amazónica do que os detidos por um naturalista baiano formado na Universidade de Coimbra e eram, nalguns casos, resultado de sabedorias empíricas e ancestrais comummente utilizadas pelas comunidades que habitavam as bacias hidrográficas do norte da América portuguesa. Em Ferreira, estes saberes – o “científico” e o “vulgar” – não são fraturantes ou excludentes, mas coexistem em paralelo e são considerados como igualmente válidos, embora o naturalista reconheça uma nítida superioridade (e atualidade) ao conhecimento científico tal como era ensinado no curso de Filosofia Natural da universidade coimbrã.
8Estas questões levam-nos ainda a refletir neste artigo sobre alguns conceitos operativos aplicados aos espaços imperiais portugueses na segunda metade do século XVIII, entre eles: práticas colaborativas-empíricas, comunicação científica, interação social e intelectual, e transferências de conhecimento entre a comunidade científica portuguesa e as comunidades locais; tal como em relação a noções de validação, proveniência e credibilidade científicas. Nalguns casos, mais do que trocas, constatamos que existe uma apropriação dos saberes locais amazónicos pela ciência portuguesa setecentista, a que podemos ainda somar a redução ao anonimato de uma categoria específica destes colaboradores.
9Este artigo estrutura-se em três partes. A primeira pretende mostrar, de forma sintética, o percurso formativo do naturalista e a importância que a cultura científica da época teve no modo como as observações científicas e os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira foram moldados. A segunda visa demonstrar que a viagem filosófica, entendida como um ambicioso projeto holístico, também dependeu da colaboração dos pares de Rodrigues Ferreira, especializados em outras áreas científicas (medicina, astronomia) ou conhecedores de regiões por onde o naturalista não tinha viajado. Os seus testemunhos são uma componente importante na informação produzida pelo naturalista. A última secção incide sobre a dimensão que os conhecimentos dos “práticos do país”, não apenas indígenas, mas igualmente colonos, tiveram na obra de Ferreira, bem como sobre o tipo de atividades colaborativas que se desenvolveram. As autoras pensam que é na ponderação conjugada da importância que estes três elementos tiveram na obra de Ferreira que reside a novidade deste artigo.
- 2 Sobre os manuais e instruções de preparação da viagem filosófica com referência a alguns autores (...)
10Obviamente que não podemos ignorar que uma parte significativa das observações e dos registos de Ferreira foi determinada, a nível teórico e metodológico, pela sua formação enquanto aluno do curso de Filosofia Natural da Universidade de Coimbra reformada (1772) e pelo saber teórico-científico adquirido no complexo museológico da Ajuda, hierarquicamente subordinado ao Secretário de Estado da Marinha e Negócios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, e ao diretor do Jardim Botânico, Domingos Vandelli. Esta formação coimbrã-lisboeta encontra-se plasmada, por exemplo, na planificação da viagem filosófica, considerada nesta fase preparatória como resultante duma cultura científica adquirida em manuais de instruções e no treino obtido nas viagens de curta duração que o naturalista realizou no reino, como é o caso das expedições à mina de carvão do Cabo Mondego, em Buarcos (1778), e ao termo e comarca de Setúbal, para produzir experiências com produtos naturais (1783).2
- 3 Costa e Sá menciona ainda como eram poucas as obras então acessíveis sobre o Brasil: apenas os di (...)
11Manuel José Maria da Costa e Sá (1952) amplia ainda estas atividades de preparação do naturalista durante o longo período que antecedeu a partida para o Pará com o estudo e descrição dos produtos naturais do Real Museu da Ajuda; a leitura dos manuais de instruções científico-naturais (que ensinavam a produzir diários, preparar remessas e conhecer os produtos e as riquezas naturais) e de algumas obras acessíveis nas bibliotecas lisboetas e coimbrãs sobre o Brasil; a realização de experiências físicas e químicas nos laboratórios do complexo museológico; e a colaboração ativa nas sessões da Academia Real de Ciências de Lisboa, onde apresentou algumas memórias: sobre as matas portuguesas, o abuso da conchiologia em Lisboa, as plantas medicinais. Estas tarefas levadas a cabo por Rodrigues Ferreira destinavam-se sem dúvida, como refere Costa e Sá, a habilitá-lo a “recolher e aprontar todos os produtos dos três reinos da natureza que encontrasse nos países da sua viagem para serem remetidos ao Real Museu de Lisboa”, acrescentando que “também se lhe incumbiu a espinhosa tarefa de fazer particulares observações filosóficas e políticas acerca de todos os objectos desta mesma viagem”.3 Estas referências metodológicas, teóricas e científicas explicitam-se na forma como os registos de Ferreira eram organizados, na estrutura e nos conteúdos, e na importância que conferiu a uma cultura experimental e empírica.
- 4 É provavelmente uma alusão à febre que ia vitimando o naturalista e a sua equipa no rio Madeira.
12Quando lemos algumas das memórias zoológicas, botânicas e antropológicas publicadas pelo Conselho Federal de Cultura (do Brasil) no início dos anos de 1970, constatamos que elas resultaram geralmente de uma observação acurada dos fenómenos observados pelo naturalista em relação ao ambiente, aos espécimes naturais, às comunidades ameríndias, bem como em relação aos procedimentos e saberes que os indígenas tinham destas realidades; ou, então, relatam a vivência pessoal do naturalista, adquirida durante a viagem por vezes da forma mais dura: “Por experiência sei que semelhantes lugares são infestados cada ano com febres intermitentes da peior sorte, com febres ardentes e pestilenciais” (Ferreira 2007b, 85).4 Apresentam eminentemente um caráter utilitário e pragmático, usam os nomes nativos na definição das espécies, enunciam as características, utilização e utilidade dos produtos naturais e objetos (Lopes 1998, 48-54).
- 5 Biblioteca da Ajuda (BA), Mss 51, VI, ff 46-15.
13Quanto aos diários da viagem, eles podem resumir o trajeto e os acontecimentos quotidianos mais marcantes ocorridos durante os dias que se iam sucedendo, se são roteiros5; ou, então, assumir uma forma bastante mais complexa e descrever a presença colonial luso-brasileira quando se trata dos diários da viagem filosófica e do “projeto holístico” que é a redação da história, geopolítica, economia, demografia, sociedades das regiões percorridas. Esta é a proposta que está subjacente ao Diário da viagem filosófica pela capitania de S. José do Rio Negro, constituído por 16 participações e alguns suplementos e anexos que “constituem um corpo de história geral e particular deste rio”. Ou, ainda, o texto da “História filosófica e política do rio da Madeira”, um esboço incompleto e parcelar dedicado a Martinho de Melo e Castro, que o naturalista define enquanto projeto da seguinte forma:
É a história filosófica e política do rio da Madeira, como um dos importantes que desaguam no grande rio das Amazonas. É a relação circunstanciada que V. Exa. me ordena que eu faça do que ele é, aonde nasce ou acaba; qual é o seu curso e a sua navegação; a natureza do céu ou do terreno; a quantidade, a qualidade e os usos das suas produções. É finalmente uma noção política da infância dos seus estabelecimentos, quais têm sido os seus progressos ou vicissitudes e qual o seu estado atual. (Ferreira 2007a, 11)
14Para Ferreira, a apresentação deste projeto na sua forma final implicaria, por um lado, a continuidade da viagem e a ampliação gradual da informação: “A continuação da viagem irá subministrando a matéria para a continuação da história”; e pressupunha, por outro lado, a transformação dos registos “fáceis e desembaraçados” do naturalista-viajante num discurso científico e erudito, fundamentado através da consulta que se reservava “para o devido tempo e lugar e para a vista de uma competente biblioteca o complemento da história em que se devem escrever, segundo a arte, os animais, as plantas e os minerais observados e recolhidos” (Ferreira 2007a, 11). Esta era, reconhecidamente, a metodologia que enquadrava a produção científica do naturalista-viajante. Não obstante muitos estudiosos identificarem a importância da observação e do empirismo, observamos que Ferreira dava igualmente relevância a um saber teórico-científico que provinha das leituras dos autores que considerava como sendo referências e autoridades em áreas específicas. Para além dos óbvios Carolus Linneus, William Robertson e do conde de Buffon, através dos livros e das leituras estabelecia diálogo com a comunidade científica internacional que era a República das Letras setecentista. Nos seus diários e memórias, Ferreira concedia ainda um destaque especial a autores que tinham um conhecimento direto, atualizado, científico da Amazónia, como era o caso de Charles Marie de La Condamine e Louis Godin. Provavelmente, estes e outros relatos, como os do ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, condicionaram a experiência de viagem do naturalista pelo sertão amazónico (Safier 2007).
- 6 Se tomarmos como exemplo as “Observações…”, percebemos que Ferreira inclui uma lista de autores n (...)
15Podemos perceber melhor esta questão através dos textos mais extensos e elaborados que, apesar de não terem a designação específica de memórias, fazem parte desta classificação genérica. É o caso das “Observações geraes e particulares sobre a classe dos mamíferos observados nos territórios dos três rios das Amazonas, Negro e da Madeira: com descrições circunstanciadas, que de quase todos eles deram os antigos, e modernos naturalistas e principalmente a dos tapuios” (Ferreira 1972b), considerado por Safier (2007) como um relato erudito sobre história natural, ecologia, etnografia, que faz referências a Lineu, Buffon, Charlevoix, Anson, Dampier, Adam Smith e William Robertson; e das “Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso” (Ferreira 2007b).6 É sobretudo a influência que os diários, relatos de viagens e outros textos eruditos de autores europeus, como sejam tratados, instruções, livros, opúsculos, tiveram nas obras do ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio e do naturalista Rodrigues Ferreira que Safier privilegia neste estudo. As profusas referências a autores e obras citados nestas duas memórias devem relacionar-se com a existência duma biblioteca portátil que teria incorporado a bagagem do naturalista em viagem e, sobretudo, com a acessibilidade à biblioteca do 4º governador e capitão-general de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira Cáceres, homem dotado de vasto saber e invejável perceção estratégica, com nítido interesse por temas de história natural, que, entre 1772 e 1789, governou a capitania de Mato Grosso e se cruzou com Ferreira (Brigola 2004, 336 e 339; Costa 2001, 1008).
16A compreensão do mundo natural amazónico e mato-grossense e a superação dos problemas técnicos levantados por esta complexa e demorada expedição dependeram não apenas do trabalho individual de Ferreira, mas pressupuseram uma dimensão colaborativa que ultrapassou largamente as atividades da equipa nuclear, constituída pelo naturalista, pelo jardineiro-botânico e pelos dois riscadores. Até porque as áreas científicas abarcadas pela viagem filosófica ultrapassavam as competências científicas e técnicas detidas pelo viajante-naturalista. Ferreira superou algumas limitações cognitivas e epistemológicas graças à colaboração dos “pares”, ou seja, de indivíduos que eram especializados noutros domínios científicos, aos quais reconhecia uma formação académica sólida, capazes de transmitirem um conhecimento atualizado, credível e confiável, e em consonância com os mais atualizados métodos e técnicas então utilizados.
17Tal como o naturalista-viajante, estes pares integravam as elites científicas que, a partir da segunda metade de setecentos, cruzaram vários espaços imperiais ao serviço da Coroa (Domingues 2019, 13; Sanjad e Pataca 2007). Muitos seriam antigos companheiros da Universidade de Coimbra, com quem Ferreira estabeleceu uma relação de identidade e afinidade, sentimentos que se podem relacionar com o facto de estes indivíduos terem uma mesma origem, a das abastadas elites coloniais luso-brasileiras que enviavam os seus filhos para o reino a fim de os formarem na única universidade portuguesa e partilharem os mesmos interesses científicos e profissionais, relacionados com a filosofia natural e com o “mundo natural americano”. Muitos deles eram, tal como o naturalista, agentes coloniais ao serviço do Estado português nos sertões da Amazónia, Mato Grosso e Cuiabá, no exercício de missões vinculadas a funções burocráticas-administrativas, à definição das fronteiras com a América Espanhola e com Caiena, à construção e reparo de edificações militares, civis e religiosas ou, ainda, à assistência médica aos enfermos.
18Foram autores de observações, registos e memórias sobre os mesmos lugares que Ferreira explorou. Nalguns casos, estes registos foram disponibilizados pelos próprios ou pelos seus superiores hierárquicos (exemplo: governadores e capitães-generais) como uma forma de preparação quando o naturalista se preparava para viajar para os lugares ultraperiféricos do norte da América portuguesa. Assim, o viajante-naturalista podia beneficiar com uma experiência anteriormente adquirida por indivíduos que tinham entre si interesses sobreponíveis e identificáveis. Ao contrário dos transmissores dos “saberes vulgares”, quase sempre anónimos, os pares eram claramente nomeados e as suas memórias e observações, ainda manuscritas, eram mencionadas nos textos do naturalista e elencadas nas listagens que fazia das leituras que recomendava sobre o Brasil. Disto é claro exemplo as inúmeras referências mencionadas nas “Observações geraes e particulares sobre a classe dos mamíferos” (Ferreira 1972b).
19Não é nosso objetivo apresentar aqui uma menção exaustiva dos colaboradores da viagem. Limitar-nos-emos a apontar alguns exemplos descritivos e pontuais que são, contudo, esclarecedores da interação que se estabeleceu entre estes viajantes; e que são igualmente exemplificativos do espírito de cooperação, solidariedade e troca, eventualmente de amizade, que existiu entre o naturalista e os matemáticos-astrónomos, engenheiros-cartógrafos, cirurgiões da Coroa que circulavam pelos sertões amazónicos e mato-grossenses na segunda metade de setecentos. Embora atuantes na mesma área geográfica e ao serviço da rainha, estes indivíduos tinham missões, objetivos, interesses e carreiras distintos e, naquele momento, não atuavam como concorrentes. O facto de, nalguns casos, se (re)conhecerem como do mesmo meio académico e duma mesma origem e estrato sociocultural ajuda a compreender a proximidade pessoal e a cooperação científica que desenvolveram entre si.
- 7 Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (FBN), 21,1,020, doc. 09.
- 8 Por seu turno, António Pires da Silva Pontes utilizou a documentação da viagem de Ferreira para p (...)
20O primeiro caso que queremos destacar é o do matemático-astrónomo António Pires da Silva Pontes. Formado na Universidade de Coimbra, foi condiscípulo de Alexandre Rodrigues Ferreira. Entre 1780 e 1790, Silva Pontes viajava pela Amazónia e Mato Grosso integrando as partidas de demarcação de fronteiras no período subsequente à assinatura do Tratado Preliminar de Santo Ildefonso (1777). Por mais de uma vez, os caminhos do matemático-astrónomo e do naturalista viriam a cruzar-se nos sertões. Silva Pontes dedicou-lhe a “Memória físico-geográfica acompanhada de um plano das lagoas Gayva, Uberava e Mandiorem”, na qual descreveu a serra do Paraguai, núcleos coloniais e salinas localizados na estrada que se dirigia à vila de Cuiabá, um percurso que o naturalista percorreria pouco tempo depois.7 Por sua vez, Ferreira utilizaria esta memória nas “Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso” (Ferreira 2007b).8
21Também fez parte desta elite colaborativa o engenheiro-cartógrafo Ricardo Franco de Almeida Serra. Formado na Academia Militar da Corte, transitava pelos sertões brasileiros na mesma altura e pelas mesmas razões que o seu companheiro Silva Pontes, com quem aliás formou bastas vezes equipa (Ferreira 2013; Faria 1994). Em 1786, escreveu sobre a descoberta duma caverna – a Gruta do Inferno – que posteriormente seria explorada e descrita pelo naturalista (1791). Este mencionava Almeida Serra na sua descrição sobre a gruta (Ferreira [1789] 1863, 363-367; Costa 2001, 1003-1004; Dias 2015, 52).
- 9 Araújo Braga fez a sua formação nos hospitais de Cádis, Évora e Real de S. José de Lisboa e encon (...)
22Outro exemplo é António José de Araújo Braga. Parte da informação acerca das enfermidades amazónicas não foi da exclusiva responsabilidade de Ferreira, que admite que “até ao presente [1786] se me não tem oferecido ocasião de observar ou mais ou menos enfermidades do que as que andam descritas na Brasilica Medica de Guilherme Pinson” (Ferreira 2007c: 518). Contudo, Ferreira apresenta duas memórias sobre a matéria: “Doenças e curas pelo cirurgião António José de Araújo Braga” (1787), publicado como suplemento à Viagem filosófica ao Rio Negro; e as Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso (c. 1791). O colaborador principal nesta informação foi o cirurgião anatómico António José de Araújo Braga.9
23No primeiro opúsculo, o cirurgião forneceu ao naturalista inúmeras informações sobre as causas, sintomas e prognósticos das enfermidades mais comuns nas povoações das margens do rio Negro. Esta colaboração viria a repetir-se nas Enfermidades endémicas da capitania de Mato Grosso, embora, neste caso, o naturalista controlasse a redação do texto resultante das observações que realizou por dois anos das principais doenças da capitania. O objetivo era claro: “o de lhes dar a ler [à população de Mato Grosso], de um modo, que entendam todos, a arte de se conhecerem a si mesmos quando enfermos e de se tratarem de algumas das suas enfermidades segundo o que tenho lido ou sabido por experiência própria” (Ferreira 2007b, 80). Ferreira reconhecia a importância do testemunho de Araújo Braga e agradeceu-lhe: “Eu terei a honra e a satisfação de algum dia escrever o seu nome no frontispício das suas memórias para que venha o público no conhecimento do muito que espero, que devo aos seus trabalhos, resultando-me então a glória de ter sido o primeiro” (Ferreira 2007c, 518).
24Há ainda um último, porém especial, caso. O do desenhador, arquiteto, gravador, geógrafo e astrónomo Giuseppe Antonio Landi, formado na Accademia Clementina e na Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna. Landi chegou a Belém do Pará em 1753, com funções de arquiteto, astrónomo e desenhador de história natural da comissão demarcadora de limites do Tratado de Madrid de 1750 e ficou a residir no Pará depois da dissolução das partidas de demarcação. Em 1786, e por aproximadamente um ano, integrou como riscador de arquitetura e mapas a equipa nuclear da viagem filosófica (Pereira 2011, 84). Da sua contribuição constam desenhos aguarelados de paisagens, planos e alçados de várias igrejas e monumentos civis de Belém (igrejas da Sé, Santana, Nª Srª do Monte do Carmo, S. João Batista, Palácio dos Governadores, Casa da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, construções residenciais) e de povoações e fortalezas edificadas no sertão amazónico (exemplo: forte de S. Joaquim do rio Branco), que foram integrados na iconografia da viagem filosófica, a par dos desenhos de Codina e Freire. Landi teria ainda cedido a Ferreira um extrato do “Diário da viagem ao rio Marié em Setembro de 1755 para o descimento prometido pelos principais Manacaçari e Aduana”, da sua autoria, que Ferreira publicou na Viagem filosófica ao Rio Negro e mencionou nas “Observações geraes e particulares sobre a classe dos mamíferos” (2007c, 564-571; Ferreira 1972b, 109).
25Para além de se reconhecerem como baianos, paulistas, mineiros – conforme tem sido, aliás, enfatizado por alguma historiografia brasileira (Goeldi, 1895; Pereira e Cruz 2014) – estes cientistas-viajantes deviam autodefinir-se especialmente como membros de uma elite socioprofissional e cientifico-cultural, dotados dum esprit de corps que assentava em sentimentos de lealdade, solidariedade, pertença e orgulho. Este esprit de corps entende-se como resultante duma cultura científica que valorizava a formação escolar e intelectual em instituições conceituadas (como seriam, nesta altura, as reformadas Universidade de Coimbra, as academias militares, o Hospital Real de S. José), bem como o prestígio associado à escolha que tinha recaído sobre eles para executarem missões de natureza geopolítica e científica ao serviço do Estado português. Estes indivíduos seguiriam percursos profissionais distintos: a Ferreira estaria reservada a gestão cientifica-burocrática dum órgão ligado ao conhecimento científico: o Real Gabinete de História Natural e Jardim Botânico, em Lisboa; aos participantes nas demarcações de limites (Silva Pontes, Almeida Serra) o exercício de cargos institucionais-administrativos relacionados com a governação territorial da colónia (Espírito Santo, forte de Coimbra-MG). Ser um colaborador da viagem filosófica e ver o seu nome e a sua obra serem inscritos nos textos do naturalista era, de acordo com a cultura científica setecentista, um fator de reconhecimento, prestígio e honra. Por seu turno, Ferreira, que dependia das informações generosamente cedidas pelos pares para ter sucesso no ambicioso projeto “da história filosófica e política” do Estado do Grão-Pará, Mato Grosso e Cuiabá, fortalecia deste modo os seus laços pessoais e profissionais com a comunidade científica luso-brasileira.
26Estudar os colaboradores e as contribuições nos textos de Ferreira encaminha-nos igualmente noutra direção, relacionada com os saberes vernaculares e tradicionais no mundo colonial luso-amazónico; ou, nas palavras do naturalista, “as pessoas de mais conhecimento e que têm sido ensinadas pela experiência do país” (Ferreira 2007b, 113). Era desta forma clara que o naturalista expressava o protagonismo de indígenas e colonos quando se tratava do conhecimento do mundo natural amazónico e mato-grossense. A participação dos indígenas na construção da ciência ibero-americana e no conhecimento imperial sobre o mundo colonial atlântico de Antigo Regime não é um assunto novo e tem sido estudada, entre outros, por Candiani (2017), Wendt (2016), Murphy (2011), Safier (2010), Safier (2017), Barrera-Osorio (2010), Sánchez (2019), Antunes, Massarani e Moreira (2019). Contudo, parece-nos que, no que diz respeito à viagem filosófica, ainda não foi devidamente questionada. As análises têm-se centrado, conforme mencionámos, em Ferreira, na sua equipa e na “sua obra” ou têm-se referido brevemente à colaboração dos índios Cipriano de Sousa e José da Silva como preparadores e acondicionadores da expedição. Mas ignoram, na maior parte dos casos, os colaboradores informais que, na maior parte das vezes, permanecem anónimos para a historiografia.
27Nos rios americanos existiam outros tipos de saber que não tinham a sua origem nos meios científicos e académicos, designados por Ferreira como “o americano”, “o do vulgo”, “o dos naturais”. Contudo, este saber não se limitava ao conhecimento indígena stricto sensu. Reconhecendo que a natureza amazónica era um repositório infinito de potencialidades mais bem conhecidas por quem ali vivia, o naturalista ouvia, via e aprendia com os donos de plantações e currais, os cabos de canoa e de esquadra, os pescadores e caçadores, os mineiros e sertanistas, os habitantes das povoações ribeirinhas, os párocos, os índios e negros. Em muitas passagens, de modo particular nas memórias, Ferreira permite-se fazer referências ao facto de que recebeu determinadas informações não por observação direta, mas por intermédio de informantes que denominou, de modo genérico, de “os práticos do país”. Pelo que foi passível de identificar, verificamos que estes eram, em sua maioria, não-brancos.
28Se olharmos de modo mais detido para este grupo, e tomando a Viagem Filosófica ao Rio Negro (Ferreira 2007c) como ponto de partida, é possível identificar 169 menções que fez a índios, cafuzos e mamelucos. Dentre estes, 74 são identificados como “principais” (ou seja, lideranças indígenas). Ainda que os números tenham certa margem de imprecisão, uma vez que nem todos os citados foram contactados pessoalmente pelos membros da expedição, é interessante notar que cerca de 40% dos indivíduos referenciados por Ferreira sejam reconhecidas lideranças indígenas. Estas menções têm impacto se as contextualizarmos no âmbito das competências e do poder detidos pelos principais no funcionamento das engrenagens do mundo colonial amazónico. Eles eram peças-chave para o recrutamento e controlo dos trabalhadores indígenas destinados ao sem-número de tarefas que a expedição demandava e ao fornecimento de víveres, por exemplo. Além disso, não se pode esquecer que eram essenciais para o fornecimento de informações preciosas a respeito dos povos indígenas que habitavam os territórios explorados, sobre as possibilidades de navegação e, como não poderia deixar de ser, acerca do aproveitamento dos frutos da terra (Coelho 2006).
29Exemplar nesta direção é o encontro de Ferreira com aquele que seria responsável pelo primeiro relato índio a ser reproduzido em seus inúmeros escritos: Severino dos Santos Sakaka, sargento-mor dos índios da Vila de Monforte. Foi durante a viagem à ilha de Joannes, realizada entre os meses de novembro e dezembro de 1783, que Ferreira teve a chance de conversar longamente com Severino dos Santos que lhe ofereceu um verdadeiro panorama etnográfico da ilha e seus habitantes indígenas: Aruans, Moco-nos, Nhengaíbas, Mariapans, Karipunas e os Juioana, nome que deu nome à ilha de Joannes. Estes últimos eram também chamados de Sakaka, conforme o sargento-mor atestava. Severino prestou-lhe informações preciosas sobre as movimentações territoriais dos Sakaka, suas redes políticas de alianças com os Karipuna e sobre as fortes inimizades étnicas com os Aruans e Tupinambás. Foram os Karipuna que informaram aos Sakaka que “a gente branca de Belém era muito valorosa” e, com ajuda de intérpretes, os Sakaka foram em busca de apoio político e militar da “gente branca” contra os seus inimigos Aruans. Em troca, os Sakaka comprometeram-se com a sustentação dos soldados e a vassalagem ao Rei. A aliança foi bem-sucedida porque, derrotados os Aruans, os Sakaka estabeleceram-se em Monforte. O velho Severino, com seus supostos 70 anos, impressionou muito Alexandre Ferreira que disse ainda sobre ele: “É o mais civilizado entre eles e tem todas estas notícias por tradição de seus parentes. Sabe ler e escrever, é livreiro e tem bom discernimento. Fala expeditamente e assim entende a língua portuguesa e, portanto, nenhum escrúpulo faço de subscrever as suas informações” (Ferreira 1974a, 101).
30Quando nos debruçamos sobre a expedição, muitos dos personagens antes anónimos podem ganhar alguma visibilidade. Neste caso particular, estamos a falar dos índios preparadores José da Silva e Cipriano de Souza, moradores da capitania do Grão-Pará, que foram recrutados, em circunstâncias ainda pouco esclarecidas, para atuar como preparadores de animais e plantas logo no início da estadia do naturalista no Pará, em 1783. Estes dois homens serviriam à expedição a partir daí, seguindo-a pelas capitanias do Rio Negro e do Mato Grosso. A capacidade e o talento dos índios preparadores foram reconhecidos em várias ocasiões e, a pedido de Ferreira, em 1787 foram-lhes concedidas patentes de alferes de índios das suas respetivas povoações. Os novos postos de alferes vinham acompanhados das “honras, liberdades, isenções e franquezas” competentes, além da obrigação de continuarem a servir na condição de preparadores “enquanto durasse a expedição e a preparem depois dela concluída os produtos que se lhes ordenasse que lhes competiam”. Quando as mercês foram recebidas, os índios José e Cipriano já acompanhavam a expedição há, pelo menos, três anos. Estavam, como dizia o naturalista, “magistralmente ensaiados” em suas tarefas: “E isto em razão de se terem distinguido não somente em um novo género de serviço, que tão diferente é do que fazem os índios remeiros das canoas, mas também na mesma conduta e constância no trabalho” (Lima 1953, 64).
- 10 Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC) – Acervo Histórico, MUL – AH – EPL – UI (...)
31Notamos que há uma profusão de notícias de José e Cipriano ao longo da documentação, o que comprova a importância destas colaborações, como é o caso do registo das suas presenças indispensáveis na viagem ao Mato Grosso. São denominados de “índios preparadores dos produtos”, “os mesmos que subiram com a expedição e há seis anos que bem e fielmente bem servem a Sua Majestade”. Não nos podem restar dúvidas de que, com tanto tempo de serviço real, os dois índios se tenham tornado ainda mais essenciais para o sucesso das coletas e preparações depois da morte do jardineiro-botânico Agostinho Joaquim do Cabo, em Vila Bela. Finda a expedição, eles haveriam de acompanhar Ferreira no retorno a Lisboa e, seguramente, José da Silva serviria na condição de preparador no Real Jardim da Ajuda até meados do século XIX, trabalhando na instituição no mesmo momento em que o naturalista era seu vice-diretor.10
32Ferreira entendia que os informantes locais, fossem eles colonos ou indígenas, tinham conhecimentos válidos sobre assuntos específicos e detinham saberes que eram determinantes quando se tratava de avaliar a utilidade, o valor e a eficácia dos produtos naturais ou de técnicas. Sem nunca terem aberto um livro ou frequentado uma escola, eram conhecedores de ervas ocultas com propriedades curativas. De igual modo, notava que embora sendo desconhecedores de geometria, geografia, hidrologia, usavam eficazmente “algumas espertezas tanto mais dignas de admiração quanto menos geradas no ensino”. E a este propósito, relatava a reação de um índio gentio que, quando inquirido sobre um rio determinado, sua direção e seus habitantes, simulou o curso fluvial com o auxílio de uma corda, representou os afluentes com igual número de cordões e assinalou as aldeias localizadas nas margens com nós, respeitando as distâncias que as separavam, resolvendo assim o problema que lhe tinha sido colocado sem o auxílio de mapas (Ferreira 1972a, 93). Notamos ainda que mais do que uma separação ou uma estratificação entre o mundo colonial luso-brasileiro e os saberes tradicionais ameríndios, o naturalista parecia considerar a presença dum saber transversal que aproximava a população ribeirinha, a “gente popular” de baixa origem social e os indígenas americanos. Tal como reconhecia que os índios “gentios”, porque estavam mais próximos da natureza, tinham um conhecimento maior das espécies do que os índios aldeados ou “domésticos”. E dava como exemplo o conhecimento que tinham e a utilização que faziam de espécies venenosas, como o assacú, a erva do rato e o timbó, usadas na pesca, “além de outras muitas ainda hoje pouco conhecidas pelos domésticos” (Ferreira 2007b, 85).
33Ronald Raminelli (1998) lembra-nos que as informações dos povos nativos obtidas por Ferreira são numerosas. Contudo, crê que tal postura entrava em contradição tanto com a sua formação quanto com as suas conceções negativas com relação aos povos ameríndios. Raminelli afirma que as memórias científicas de Ferreira tinham a sua origem nos questionamentos que o naturalista realizava junto das comunidades locais. Neste tipo de textos o “ouvi dizer” suplantava as experiências, os testes e as comprovações realizadas cientificamente. E, contudo, estas memórias enfermavam em si de uma enorme contradição, pois estes índios que tinham transmitido informações valiosas eram considerados pelo naturalista como seres de “inteligência embrionária”, débeis e ignorantes, incapazes de controlar a natureza (Raminelli 1998, 159). Tal afirmação é instigante e pode servir-nos ainda para pensar o lugar destes conhecimentos na viagem filosófica na medida em que nos coloca diante de uma nova questão: as relações e modalidades de apropriação do conhecimento nativo pela ciência. Kapil Raj (2007), partindo do reconhecimento da desigualdade de relações entre ciência ocidental e não-ocidental, insiste que não se pode pensar o poder que movimenta a expansão europeia como algo inelutável e, portanto, ao referir-se a esse processo, considera necessária “a confrontação de diferentes formas de organização social sem as tratar como autárquicas e autónomas”. Neste sentido, estudos que abordaram o tema da circulação dos conhecimentos/saberes têm indicado o quanto são importantes as trocas e negociações locais, fenómenos que são em si mesmo dinâmicos e que guardam especificidades histórico-culturais.
34Como já vimos, Ferreira distinguiu José e Cipriano por suas habilidades no desempenho de tarefas que exigem conhecimentos iniciáticos, especializados e muita precisão. Eles destacavam-se dos remeiros, por exemplo, porque como preparadores de espécies naturais desempenhavam, com habilidade, uma nova e inusitada modalidade de serviço, mas tinham também uma conduta mais dedicada e uma maior constância no trabalho. Nesta mesma direção, o velho Severino também se distinguia dos demais pelas suas habilidades “civilizadas’: o domínio da leitura e da escrita e seu “bom discernimento” eram elementos convincentes para a avaliação positiva de Ferreira. De igual sorte, são os atributos do piloto e carpinteiro Dionísio da Cruz, o Cambeba levado á presença do naturalista para aplacar o seu interesse e curiosidade, e modelo para lhes registar as célebres “cabeças em forma de mitra” descritas pelos cronistas (Raminelli e Silva, 2014). Avistando-se com o habilidoso informante Cambeba em 1787, diz dele Ferreira: “O dito índio é civilizado e tem servido honradamente, sem nota e nem fuga desde que na expedição de Barcelos saiu em piloto e aqui na construção das canoas” (Ferreira 1974b, 53).
35Tais atributos parecem-nos ser elementos relevantes para contextualizar o lugar e, eventualmente, o reconhecimento da qualidade dos informantes indígenas de Rodrigues Ferreira. Ou seja, era-lhes preciso demonstrar que possuíam determinadas características e habilidades que os distinguiriam do comum dos índios para merecerem uma atenção particular. Entre elas, mencionem-se as “habilidades civilizadas”, o “bom discernimento”, a “constância” e a “conduta” no trabalho e, por fim, a honradez no serviço regular. Tais características postas em relevo estão relacionadas com uma noção de civilização que, evidentemente, é aquela na qual estava imerso o naturalista. Quanto a este particular, uma das autoras deste artigo, em trabalho anterior (Domingues 1993), já indicava a importância de considerar o que chamou de “conceito, implícito, de uma superioridade da civilização europeia face a outras” para contextualizar esses olhares classificadores do naturalista.
36Com este artigo pretendemos abordar alguns aspetos que consideramos estarem ainda pouco explorados neste “universo” que é a produção historiográfica relacionada com a Viagem Filosófica. Apesar de esta incontestavelmente ser a expedição científica mais bem estudada, há ainda temas menos conhecidos que nos podem encaminhar para outras (re)leituras não apenas desta viagem especifica à Amazónia ou das viagens filosóficas globalmente consideradas, mas também da ciência portuguesa de setecentos (Domingues 2021). Um destes caminhos permite-nos considerar que a viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira não é exclusivamente o produto, embora admirável, de um único indivíduo e da sua equipa nuclear. Pode considerar-se igualmente como o resultado dum período e duma época, de colaborações variadas com importância assimétrica – formais e informais, personalizadas e anónimas – e dos contextos múltiplos que são dados pela ciência ilustrada, europeia ocidental e portuguesa, pela formação teórico-metodológica do naturalista e pela aprendizagem que adquiriu ao longo da viagem, pelos conhecimentos locais tradicionais, criollos e indígenas.
37Com este artigo percebemos que, ao contrário dos colaboradores académicos que eram claramente nomeados nos seus textos, os informantes locais pertenciam, com raras exceções, a uma massa incógnita ou eram considerados como membros das suas comunidades ou do seu “grupo profissional”. Não sendo completamente invisíveis, eram geralmente anónimos. E não obstante o reconhecimento destacado que estes “saberes tradicionais” tiveram, de uma forma genérica, na obra de Ferreira, é preciso, contudo, considerar que, por vezes, ele entendia-os como inferiores e desatualizados em relação aos saberes eruditos e científicos deste período (Ferreira 1972a, 53). Muitas destas contribuições anónimas eram definidas pelo naturalista como causais, empíricas e assistemáticas e, embora fossem eficazes, eram ditadas pela tradição e pelos costumes, por vezes “extravagantes” na sua proximidade à superstição e à magia. Reconhecia ele que, nalguns casos, eram transversais a regiões tão distantes e vastas como o Pará e Mato Grosso (exemplo: raiz de capeba, conhecida no Pará como iaguira-caá e, no Mato Grosso, como pariparoba). Porém o naturalista não reconhecia que fossem “científicas” porque careciam de compreensão causal e de enquadramento intelectual, bem como dos princípios teóricos, experimentais, racionais e sistemáticos que caracterizavam o pensamento iluminista.
38Em suma, é indiscutível que estes saberes empíricos sobre a natureza amazónica tiveram um lugar destacado nos textos, a par das observações pessoais do naturalista e da colaboração dos pares. Quanto a Ferreira, cumpria-lhe reconfigurar, reorganizar e integrar este amplo volume de informação recolhida ao longo da viagem filosófica num novo tipo de saber, hierarquizado e “universalmente aceite”: o dos sistemas epistemológicos em voga na Europa do século XVIII (Murphy 2011, 13). Tomadas em conjunto, tais questões podem ser úteis para ampliar a nossa compreensão sobre uma viagem que indagou, recolheu e registou um notável conjunto de conhecimentos sobre a região que hoje denominamos Amazónia, dando conta da participação e, especialmente, do peso dos conhecimentos nativos para a sua construção. Do mesmo modo, como um complexo jogo de espelhos, as trocas de experiências e de saberes nas diversas possibilidades de interlocução aqui apontadas permitem iluminar trânsitos de conhecimentos nas mais variadas direções que, no limite, ajudam a conformar o campo do conhecimento científico no mundo luso-brasileiro. Acreditamos que perspetivas como estas nos podem direcionar para o papel que as redes e o “conhecimento em rede” tiveram na ciência no período das Luzes e são mais um contributo para a releitura das noções tradicionais e hierarquizadas de centro-periferia nos impérios coloniais de finais de Antigo Regime.