1Os estudos dedicados às relações luso-espanholas no último quartel do século XX têm-se centrado em torno de dois grandes temas: a quase simultânea transição para a democracia e a opção europeia seguida por ambos os países. Na senda dos trabalhos sobre a evolução das relações bilaterais (Aldecoa 1987; Ferreira 1987; Torre 1995), estas duas vertentes são tradicionalmente apresentadas como uma sequência: transição para a democracia; novo relacionamento bilateral; adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). Apesar dos distintos processos de aproximação à Europa e dos diferentes modos como a Europa olhava para os países ibéricos e para o alargamento (Royo e Manuel 2005), a opção europeia tem assim vindo a ser descrita como fruto da abertura democrática e da nova fase do relacionamento bilateral, que culminaria na adesão simultânea dos dois países à CEE. Com base em documentação diplomática recentemente desclassificada, este artigo sustenta que esta sequência deve ser reformulada, uma vez que apenas depois da adesão à CEE se registou uma efetiva mudança no relacionamento bilateral.
2As mudanças políticas registadas nos dois países ibéricos em meados dos anos 70 do século XX são comummente referidas como o início de uma nova fase no relacionamento bilateral entre Portugal e Espanha (por exemplo, Torre 2015, I, 673). Uma vez clarificada a situação político-militar portuguesa, ao tradicional distanciamento ou alheamento
ter-se-ia sucedido uma fase de aproximação, de cooperação e de estreitamento dos laços diplomáticos, políticos, económicos e culturais. Este novo ciclo seria balizado por dois atos simbólicos: o encontro na Guar-
da, em fevereiro de 1976, entre os dois ministros dos Negócios Estrangeiros, Ernesto Melo Antunes e José María de Areilza, que marcaria o fim da desconfiança espanhola relativamente à situação político-militar em Portugal, depois de uma fase em que os acontecimentos em Portugal foram acompanhados com muita preocupação pelo regime franquista, que temia um efeito de contágio (Cervelló 1993, 348-357; Oliveira 1995, 201; Queirós 2009, 145-146); e a assinatura, em Lisboa e em Madrid, em junho de 1985, dos tratados de adesão dos dois países à CEE.
3De facto, este período é rico em acontecimentos que perspetivavam uma nova dinâmica no relacionamento bilateral entre dois povos que, salvo as comunidades raianas de ambos os lados da fronteira, tinham tradicionalmente vivido de costas voltadas. Os baixos níveis de coordenação territorial, económica e social registados entre os dois países ao longo de décadas faziam desta uma fronteira impermeável e desarticulada (Caramelo 2002, 343; Fernández 2000, 249) e os novos atores políticos procuraram alterar essa realidade na segunda metade da década de 70
do século XX. A visita oficial do chefe do governo espanhol, Adolfo Suárez, a Lisboa em novembro de 1976; as visitas do presidente Ramalho Eanes em maio de 1977 e de Mário Soares em novembro desse ano
a Madrid; a celebração em Madrid, em novembro de 1977, do Tratado de Amizade e Cooperação que substitui o antigo Pacto Ibérico; e a visita de estado do rei Juan Carlos a Portugal em maio de 1978 seriam alguns marcos de uma nova fase do relacionamento bilateral que teria conhecido nesses e nos anos seguintes um forte aprofundamento (García 2011, 163-165).
- 1 Na sequência do primeiro alargamento da CEE foi celebrado um acordo com a EFTA para o estabelecim (...)
4Além desta intensa troca de visitas ao mais alto nível político, registadas em escassos 18 meses, entre 1976 e 1986 foram celebrados vários convénios e acordos e realizaram-se inúmeras reuniões e encontros, que culminariam com a instituição, em novembro de 1983, das Cimeiras Luso-Espanholas. O acordo sobre as relações mútuas de pesca, o acordo para dispensa de passaportes, as negociações que conduziram à criação do anexo P ao acordo Espanha-EFTA,1 o acordo sobre segurança das instalações nucleares de fronteira, o acordo de segurança nuclear, o acordo de cooperação no turismo, o acordo de meteorologia e geofísica, o acordo de saúde, o novo acordo consular e de estabelecimento ou a revogação do acordo sobre naturalização são alguns exemplos da nova dinâmica que se pretendia implementar no relacionamento bilateral. No entanto, apesar dos esforços de sucessivos governos de ambos os lados da fronteira, não foi fácil dissipar antigas desconfianças e desconhecimentos mútuos. A década aqui estudada é marcada por tensões e desentendimentos particularmente sentidos em quatro grandes domínios: o das negociações para a adesão à CEE; a integração da Espanha na NATO; o conflito em torno das pescas; o desequilíbrio da balança comercial. Estes fatores condicionaram o desenvolvimento das relações bilaterais que apenas conheceria verdadeiramente uma nova fase após a integração dos dois países nas comunidades europeias.
5O artigo começa, assim, por descrever o que parecia ser o arranque promissor de um renovado relacionamento bilateral (secção 1), fenómeno que tem vindo a ser descrito por vários autores como o “espírito da Guarda” (Cervelló 1993, 357; Oliveira 1995, 211; d’Abreu e Calvo 2007, 409-445; Sardica 2013, 256; Caramelo 2014, 185), para de seguida revelar como os atritos registados em torno do alargamento ibérico e da adesão da Espanha à Aliança Atlântica (secção 2 e 3) acabariam por condicionar o esperado desenvolvimento das relações bilaterais nas suas múltiplas dimensões (secção 4), razão pela qual se sustenta que o designado “espírito da Guarda” ficou aquém das expectativas e que apenas a adesão dos dois países à CEE abriria verdadeiramente um novo ciclo nas relações entre os dois países.
6Três meses depois da morte de Franco e da derrota das forças revolucionárias em Portugal, realizou-se um primeiro encontro dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois estados. Melo Antunes e Areilza reuniram-se em fevereiro de 1976 na cidade da Guarda e concertaram um conjunto de medidas que passavam pela definição de um calendário para o pagamento das indemnizações relacionadas com os assaltos à embaixada e ao consulado da Espanha em Lisboa; pela assinatura de dois convénios, um sobre os limites da plataforma marítima e outro para a construção de uma ponte internacional sobre o rio Guadiana; pelo restabelecimento da cotação do escudo em Espanha; e pela suspensão em território espanhol das atividades dos grupos de extrema-direita portugueses e em território português das atividades das organizações de extrema-esquerda. Este primeiro esforço de aproximação ficaria conhecido como o “espírito da Guarda” e seria prosseguido com a visita oficial do presidente do governo Adolfo Suárez a Portugal, em novembro de 1976, escassos seis dias depois de as Cortes espanholas terem aprovado a lei para a Reforma Política que viria a ser referendada a 15 de dezembro e que abriu as portas da transição espanhola. Em Portugal tinha já sido fechado o ciclo da transição revolucionária, com a aprovação da Constituição e a realização das primeiras eleições legislativas em abril de 1976, e a eleição, por sufrágio direto, do presidente da República e a tomada de posse, em julho, do I Governo Constitucional, chefiado pelo líder socialista, Mário Soares.
- 2 Tratado de Amizade e Cooperação entre Portugal e Espanha, Diário da República, nº 98, I série, 1º (...)
7Foi sob a égide de Soares e de Suárez e no lastro do encontro da Guarda que se iniciaram as negociações para a celebração de um novo Tratado de Amizade e Cooperação que viria a substituir o Pacto Ibérico de 1939. Simbolicamente ratificado pelos dois chefes de estado, o rei Juan Carlos e o presidente Ramalho Eanes, em Guimarães em maio de 1978, o Tratado fazia referência à identidade europeia dos dois países e à “causa da unidade europeia”, e visava desenvolver novas áreas de cooperação, incrementar o intercâmbio comercial entre os dois países, intensificar os laços culturais, científicos e tecnológicos, promover os recursos naturais comuns, facilitar o trânsito nas fronteiras, e instituía a criação do Conselho para a Cooperação luso-espanhola, presidido pelos ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os estados, que deveria reunir-se pelo menos uma vez por ano e que coordenaria os trabalhos das várias comissões mistas criadas pelas convenções em vigor entre os dois países.2 Apesar de bilateral, o tratado articulava-se, como ficava patente no seu preâmbulo, com o desejo de os dois países virem a integrar a CEE. Portugal apresentara o pedido de adesão em março de 1977 e em junho de 1978 chegara finalmente a resposta positiva para o início das negociações que arrancariam em outubro desse ano. Espanha entregou o pedido de adesão em julho de 1977 e as negociações tiveram início em fevereiro de 1979. A adesão à CEE passou a ser o principal objetivo das máquinas diplomáticas dos dois países que refletiam as ambições das respetivas elites, apostadas em consolidar e fortalecer os novos regimes democráticos (Royo e Manuel 2005, 41).
- 3 Telegrama nº 180 da embaixada de Portugal em Madrid, 14.6.1978, Arquivo Histórico-Diplomático do (...)
8Foi neste contexto de dupla abertura, a nível ibérico e europeu que, um mês depois do novo Tratado de Amizade ter sido ratificado, avançaram as negociações para a celebração de um acordo para o livre comércio de bens industriais entre Portugal e Espanha. A Espanha estava nesse momento a negociar um acordo bilateral com a EFTA, da qual Portugal fazia parte, e foi neste âmbito que os dois países ibéricos se preparam para celebrar um acordo que previa o gradual desaparecimento dos direitos aduaneiros industriais e de alguns produtos agrícolas entre si. O acordo, que se pensava poder entrar em vigor no final de 1978, independentemente do sucesso das negociações entre Espanha e a EFTA, estabelecia duas fases de desagravamento alfandegário, com um ritmo mais lento para Portugal, e previa o seu desaparecimento completo entre 1982 e 1985. Estipulava ainda a realização de uma feira ibérica anual, que deveria englobar os sectores industriais, comerciais e turísticos, a realizar alternadamente nos dois países. Paralelamente foi assinado um acordo de cooperação no sector do turismo que abrangia troca de conhecimentos e experiências no domínio da legislação, formação profissional, ordenamento do território, planeamento e promoção conjunta.3
- 4 Telegrama nº 179 da embaixada de Portugal em Madrid, 14.6.1978, AHD-MNE.
- 5 A reunião do Conselho prevista para 1979 também seria adiada. Telegrama nº 348 da embaixada de Po (...)
9O projeto de acordo de livre comércio foi descrito pela imprensa como um acordo histórico e como prova do excecional clima de colaboração e entendimento entre os dois países,4 mas rapidamente se perceberia que as boas intenções teriam muita dificuldade em passar do papel. É verdade que a queda do II Governo Constitucional, no verão de 1978, abriu um período de instabilidade governativa em Portugal que teve reflexos na condução da política externa, mas alguns fatores específicos afetaram o relacionamento bilateral. A primeira reunião do Conselho para a Cooperação luso-espanhola, agendada para 1978, não chegou a realizar-se, o projeto de acordo de livre comércio transformar-se-ia num simples anexo do acordo Espanha-EFTA formalizado em junho de 1979, e a feira ibérica também não chegou a ver a luz do dia.5 Apesar das expectativas criadas em torno do novo tratado, o ano de 1978 representa assim não um ponto de partida para voos mais altos mas um ponto de chegada. Nos anos seguintes, um conjunto de questões iria condicionar e desgastar esse relacionamento e assistir-se-ia a uma progressiva deterioração das relações luso-espanholas, que atingiria o ponto mais baixo nas vésperas da entrada dos dois países para a CEE.
10Um dos motivos que está na origem da apresentação do pedido de adesão de Portugal à CEE em março de 1977 é o desejo de antecipação em relação a Espanha. A suposição de que esse passo iria ser dado pelo governo espanhol “funcionou como detonador da decisão diplomática portuguesa” (Gama 1994, 11). Com esta antecipação, Portugal esperava garantir negociações separadas e assim conseguir aderir à CEE antes da Espanha. Por isso, governos, diplomatas e negociadores portugueses procuraram desde a primeira hora evitar a globalização das negociações e defenderam negociações bilaterais e individuais, pois temiam que os problemas relacionados com a adesão da Espanha condicionassem e atrasassem uma negociação que se antevia menos problemática (Cunha 2018, 122-124). Portugal apostou na sua pequena dimensão e na vertente política do alargamento para conseguir uma adesão mais rápida que a espanhola (Cavallaro e Sánchez 2017, 398-399), mas acabaria por vingar a tese da globalização das negociações defendida, entre outros, pela República Federal da Alemanha que, se por um lado, foi fundamental para desbloquear o processo de ampliação aos dois países ibéricos, por outro lado, opôs-se à hipótese de se registarem adesões separadas (Díaz 2020). Esta via não foi, contudo, liminarmente afastada e em Portugal manteve-se, por muitos anos, viva a esperança de uma adesão antes da Espanha, o que afetou e condicionou o relacionamento bilateral.
- 6 Telegrama nº 51 da embaixada de Portugal em Madrid, 16.2.1978; telegrama nº 10 para a embaixada d (...)
- 7 Telegrama nº 218 para a embaixada de Portugal em Madrid, 15.10.1979, AHD-MNE.
11A ideia de adesões separadas não era descabida. Em fevereiro de 1978, o comissário responsável pela pasta do alargamento, o italiano Lorenzo Natali, afirmou, durante uma visita a Madrid, que Portugal ingressaria no Mercado Comum – expressão então bastante utilizada – depois da Grécia mas antes da Espanha. Três meses depois, o presidente em exercício do Conselho das Comunidades, o dinamarquês Knud Andersen, manifestou-se contra o princípio da globalização das negociações, e no mesmo sentido foram as declarações do presidente francês, Giscard d’Estaing, que no decurso de uma visita oficial a Espanha no verão de 1978 defendeu que considerava que a ordem de apresentação das candidaturas da Grécia, Portugal e Espanha era a ordem natural para o seu ingresso na CEE.6 No ano seguinte, em outubro de 1979, durante a visita oficial do presidente Ramalho Eanes a França, Giscard voltou a afirmar que a ordem de entrada dos países candidatos nas Comunidades deveria fazer-se pela ordem de apresentação das candidaturas, pelo que Portugal deveria aderir antes da Espanha.7
- 8 Telegrama nº 97 da embaixada de Portugal em Madrid, 4.4.1979, e Telegrama nº 72 para a embaixada (...)
12Foi com base nesta expectativa que Portugal procurou sempre assegurar a separação dos processos negociais e recusou as propostas espanholas no sentido de os dois países conjugarem esforços e ensaiarem modelos de cooperação tendo em vista a adesão à CEE. Em abril de 1979, o diretor-geral para a Europa do Ministério dos Assuntos Exteriores da Espanha sugeriu ao embaixador português a institucionalização de um sistema de consultas políticas para acompanhar o processo de integração dos dois países na CEE. A reação portuguesa não podia ser mais clara: a embaixada em Madrid deveria recusar quaisquer sugestões no sentido de se estabelecerem contactos tendo em vista uma ação concertada face às comunidades. Para Lisboa, uma ação desse tipo apenas beneficiaria Espanha e retiraria a Portugal as vantagens que lhe eram conferidas na qualidade de país “economicamente mais fraco”.8 Esta postura afetou o desenvolvimento das relações com o país vizinho, mas Portugal sofreu um duro revés quando, em junho de 1980, o presidente francês declarou que as negociações para a ampliação do Mercado Comum deveriam ser interrompidas até que os seus problemas internos fossem resolvidos.
- 9 Reagindo as declarações do presidente francês, Ramalho Eanes lembrou as anteriores posições de Gi (...)
- 10 Telegrama nº 499 da embaixada de Portugal em Madrid, 30.12.1981, Arquivo Histórico-Diplomático, M (...)
- 11 Telegrama nº 51 da embaixada de Portugal em Madrid, 4.2.1982, AHD-MNE.
- 12 Expresso, 9.1.1982 e 22.1.1982; Telegramas nº 12 e 15 da embaixada de Portugal em Madrid, 11.1.19 (...)
- 13 El País, 21.7.1982.
13Em Portugal houve quem pensasse que a proposta de Giscard d’Estaing apenas se aplicava a Espanha,9 mas a pausa nas negociações acabou por afetar as duas candidaturas ibéricas. No final de 1981, em Madrid, o presidente da Comissão Europeia defendeu que embora as negociações se devessem desenvolver tendo em conta a situação particular de cada um dos países candidatos e não fosse necessário que as negociações terminassem ao mesmo tempo, por razões institucionais e técnicas, a data da adesão dos dois países deveria ser idêntica.10 Quatro semanas depois, em entrevista ao diário madrileno ABC, o primeiro-ministro português, Pinto Balsemão, afirmaria que não era justo que os obstáculos que Espanha enfrentava no seu caminho para a adesão afetassem Portugal.11 O governo espanhol adotou uma postura dúbia a este respeito. Quando os seus interlocutores eram portugueses, os responsáveis do país vizinho afirmavam não se opor a uma eventual adesão isolada de Portugal. No entanto, nas diferentes capitais europeias defendiam a globalização das negociações.12 Apesar de todos os sinais dados no sentido de que uma adesão prévia de Portugal seria cada vez menos provável essa hipótese ainda perdurou. Em julho de 1982, perante um provável acordo entre Portugal e a CEE no importante domínio dos têxteis, e dado o impasse negocial que nesse mesmo campo se verificava com Espanha, o El País avançava que as negociações de Portugal e Espanha poderiam ficar definitivamente desligadas e que Portugal poderia tornar-se o 11º estado-membro da CEE em 1984.13
- 14 Telegrama nº 54 da embaixada de Portugal em Madrid, 1.2.1983, AHD-MNE. Dias depois, o secretário (...)
- 15 El País, 27.11.1983.
- 16 Telegrama nº 521 da embaixada de Portugal em Madrid, 30.11.1983, AHD-MNE.
- 17 El País, 28.11.1983.
14Essa hipótese não era apenas veiculada pela imprensa. Em fevereiro de 1983, o embaixador de Portugal em Madrid continuava a referir-se a essa possibilidade, relatando comentários de altos responsáveis políticos espanhóis no mesmo sentido.14 Procurando capitalizar os laços de amizade que mantinha com o presidente francês, no final desse ano o primeiro-ministro português, Mário Soares, insistiu junto de François Mitterrand que a adesão de Portugal fosse tratada separadamente da espanhola.15 Reagindo a estas démarches, o membro do governo espanhol responsável pelas negociações com a CEE afirmou que nada tinha contra essas tentativas portuguesas e que até poderia haver vantagem numa adesão prévia de Portugal, uma vez que depois de aprovada a entrada de Portugal seria inadmissível manter a Espanha de fora durante muito tempo. No entanto, off the record, manifestou o seu ceticismo quanto ao apoio francês relativamente às pretensões de Portugal.16 Estava certo. As pressões portuguesas não tiveram o efeito desejado. Na mesma altura o presidente da Comissão, Gaston Thorn, voltava a defender a adesão simultânea de Portugal e Espanha e apontava o dia 1 de janeiro de 1986 como a data para esse duplo ingresso.17 As tentativas de descolagem e de antecipação da adesão à CEE não tiveram sucesso, mas contribuíram para desgastar um relacionamento que era afetado por outras questões.
- 18 Num discurso nas Cortes, o ministro dos Assuntos Exteriores, Marcelino Oreja, criticou as ideias (...)
- 19 Telegrama nº 109 da embaixada de Portugal em Madrid, 23.4.1979, AHD-MNE. Um estudo elaborado pelo (...)
15O processo de adesão dos dois países ibéricos à CEE foi parcialmente acompanhado pelo da integração da Espanha na NATO. Estes movimentos paralelos eram duas faces da mesma moeda – a da plena integração, a nível económico, político e militar dos dois países no bloco ocidental – e visavam garantir a consolidação dos incipientes regimes democráticos peninsulares. No entanto, estes dois processos introduziam uma profunda alteração numa realidade que até então tinha sido construída e mantida através de uma diversificação de alianças que ajudava a garantir a dualidade peninsular. A entrada da Espanha na NATO começou a ser discutida em março de 1978 e Portugal foi acompanhando esse debate embora uma eventual adesão parecesse distante.18 Foi, no entanto, desde cedo adotado um posicionamento que seria seguido pelos sucessivos governos de Lisboa: a decisão cabia apenas à Espanha. Responsáveis civis e militares partilhavam a ideia de que Portugal não deveria opor-se à adesão da Espanha à NATO, mas que deveriam ficar salvaguardadas algumas garantias, nomeadamente em relação aos comandos NATO.19
- 20 El País, 14.6.1980; El País, 25.6.1980; Telegrama nº 294 da embaixada de Portugal em Madrid, 9.8. (...)
- 21 El País, 7.10.1980.
16Ao longo de 1980, os contornos da adesão da Espanha à Aliança começaram a ficar mais nítidos. A visita de Adolfo Suárez a Washington em janeiro desse ano, as declarações do secretário-geral da NATO, Joseph Luns, a favor da adesão, as palavras de forte apoio à entrada da Espanha proferidas pelo presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, durante a visita a Madrid, e o anúncio, feito pelo secretário de estado dos Assuntos Exteriores, Robles Piquer, em agosto de 1980, de que o governo espanhol pretendia encetar o processo de adesão à NATO no ano seguinte,20 indicavam que 1981 iria ser um ano decisivo. Foi neste contexto que, em outubro de 1980, em entrevista ao El País, o primeiro-ministro português, Sá Carneiro, afirmou que recusava fixar-se unicamente nos interesses do seu país ou das suas forças armadas pelo que defendia a entrada da Espanha na NATO.21 Sá Carneiro morreu pouco depois e seria o seu sucessor, Pinto Balsemão, a acompanhar a reta final deste processo.
- 22 Telegrama nº 137 para a embaixada de Portugal em Madrid, 5.5.1981, AHD-MNE.
17Em maio de 1981, os dois chefes de governo reuniram-se em Lisboa e a adesão da Espanha à Aliança foi um dos temas tratados. Calvo Sotelo manifestou o grande interesse do seu governo na entrada na NATO e o primeiro-ministro português reafirmou o apoio de Portugal à entrada da Espanha na Aliança, mas chamou a atenção para a conveniência de se delimitarem e definirem as áreas, responsabilidades e comandos militares dos dois países, tendo defendido que era necessário evitar que unidades militares portuguesas viessem a ser colocadas sob o comando de oficiais espanhóis. Nesse sentido, sugeriu que Portugal continuasse integrado no comando Atlântico, o SACLANT, e que Espanha assegurasse a cobertura da área mediterrânica e passasse a integrar o comando europeu, o SACEUR, solução que mereceu a compreensão e aprovação de Calvo Sotelo.22 Ou seja, Portugal apoiava a adesão desde que fossem cumpridos dois princípios fundamentais: não existiria qualquer comando unificado e as forças armadas dos dois países deveriam integrar-se em comandos diferentes.
- 23 Telegrama nº 569 para a DELNATO, 19.6.1981, AHD-MNE.
- 24 Telegrama nº 311 da embaixada de Portugal em Madrid, 10.7.1981, AHD-MNE.
18Além de ter transmitido esta posição ao país candidato, o governo português iniciou um conjunto de démarches junto dos países-membros da Aliança para sublinhar a importância que atribuía à questão dos comandos e obter garantias de que não haveria alterações nesse domínio. Em meados de junho, os Estados Unidos, o Reino Unido e a RFA tinham já manifestado o seu apoio às pretensões portuguesas.23 Foi com base neste pressuposto que a diplomacia portuguesa foi acompanhando a evolução do processo de candidatura da Espanha à NATO e que no início de julho tomou conhecimento do relatório elaborado pela comissão militar nomeada pelo governo espanhol para preparar a entrada na Aliança Atlântica. Nesse relatório previa-se que a adesão espanhola não alteraria a posição e os interesses de Portugal, mas apontava-se para a criação de um estado-maior peninsular conjunto, no quadro da NATO, com presidências alternadas de ambos os países.24
- 25 Diário de Lisboa, 5.9.1981 e 7.9.1981.
19Dois meses mais tarde, numa conferência de imprensa em Madrid, o deputado, secretário da UCD para as relações internacionais e embaixador da Espanha junto da CSCE, Javier Rupérez, referiu-se à criação de um comando peninsular espanhol que abrangeria o território espanhol, o mar Cantábrico, o estreito de Gibraltar, o Mediterrâneo e as ilhas Canárias, mas mencionou também, a título pessoal, a hipótese de uma posterior reorganização de comandos e da criação de um comando unificado que seria chefiado alternativamente por oficiais portugueses e espanhóis. Estas declarações provocaram fortes reações em Portugal. O governo de Lisboa revelou que tanto o governo espanhol como os restantes membros da Aliança sabiam que um comando unificado era “uma solução inaceitável” para Portugal. No mesmo sentido manifestou-se o presidente da República português.25
- 26 O ministro Pérez Llorca telefonou ao ministro português afirmando que se tratava de um equívoco q (...)
- 27 Telegrama nº 397 da embaixada de Portugal em Madrid, 10.9.1981, AHD-MNE.
20Mais do que um mal-entendido, como se apressaram a justificar as autoridades espanholas,26 as declarações de Rupérez terão servido de balão de ensaio e de teste às reações de Lisboa à ideia de criação de um comando peninsular unificado, que aliás constava no relatório da comissão militar encarregada pelo governo de estudar a entrada na NATO. A clara oposição portuguesa levou Madrid a corrigir o tiro. Além dos esclarecimentos efetuados pelos canais diplomáticos, o ministro dos Assuntos Exteriores emitiu um comunicado no qual, depois de referir que os dois governos vinham discutindo o ingresso da Espanha na Aliança Atlântica e que a inserção concreta no dispositivo defensivo só seria discutida posteriormente, reiterava que Espanha não reivindicaria a existência de um comando peninsular e que não existia qualquer divergência entre os dois países.27
- 28 Arquivo do Conselho da Revolução, actas, vol. 10, cx. 11, acta da reunião 10.3.1982, ANTT. Um imp (...)
- 29 A adesão da Espanha foi aprovada com os votos a favor dos partidos de centro-direita, a abstenção (...)
- 30 Depois de conhecidos os resultados da votação, o ministro Pérez Llorca revelou ter receado que a (...)
- 31 Segundo a imprensa portuguesa, os EUA avisaram Lisboa que vários empréstimos concedidos a Portuga (...)
21Ultrapassado o incidente, voltou a verificar-se alguma tensão quando, uma vez apresentado o pedido formal para a integração da Espanha e depois de o mesmo ter sido aprovado pelos Aliados na reunião do Conselho do Atlântico realizada no dia 11 de dezembro de 1981, Portugal tardou a ratificar o protocolo que consagrava a adesão da Espanha à NATO. O Conselho da Revolução, que tinha de dar o seu aval à entrada da Espanha por se tratar de uma alteração de um tratado internacional sobre assuntos militares, demorou três meses a pronunciar-se favoravelmente28 e a Assembleia da República mais de quatro meses.29 A aprovação pelo parlamento português foi assim recebida com alívio pelo governo espanhol que chegou a temer pelo seu sucesso,30 mas estes dois impasses causaram incómodo nas relações bilaterais. É que todo este processo foi uma verdadeira corrida contra o tempo. A situação política em Espanha deteriorava-se de dia para dia e temia-se que o recurso a eleições antecipadas se traduzisse numa vitória eleitoral do PSOE que pudesse travar a adesão caso esta não tivesse ficado devidamente formalizada. Por isso registaram-se pressões, tanto do governo espanhol como dos Estados Unidos,31 para que Portugal ratificasse, sem demoras, a adesão da Espanha. Mas Portugal tardou em dar esse passo. É que apesar das garantias obtidas sobre a questão dos comandos continuavam a existir algumas dúvidas neste domínio.
- 32 Telegrama nº 536 para a DELNATO, 31.3.1982, e telegramas nº 530 e nº 540 da DELNATO, 5-4-82 e 20- (...)
22No final de março de 1982, numa reunião da NATO, o secretário-geral da organização afirmou que não havia distinção entre o processo de adesão ao tratado e a entrada na sua estrutura militar e que, uma vez concluído o processo de adesão, a Espanha integraria automaticamente a estrutura militar. Esta declaração alarmou as autoridades portuguesas, que entendiam que os dois processos eram autónomos. No início do mês seguinte, em resposta ao pedido de esclarecimentos apresentado por Portugal, Joseph Luns corrigiu a sua declaração anterior e afirmou que a integração na estrutura militar teria de ser discutida e aprovada por unanimidade.32 Só depois deste esclarecimento é que o processo de ratificação avançou em Portugal.
- 33 Telegrama nº 2 para a embaixada de Portugal em Madrid, 2.1.1982, AHD-MNE.
- 34 Telegrama nº 210 da embaixada de Portugal em Madrid, 27.5.1982, AHD-MNE. A Grécia, que procurou g (...)
- 35 Telegrama nº 175 para a embaixada de Portugal em Madrid, 28.5.1982, AHD-MNE. Portugal ratificou a (...)
23Este impasse acentuou o mal-estar nas relações com Espanha e levou o governo de Lisboa a reagir com alguma dureza. Confrontado pelo embaixador da Espanha com os atrasos, o ministro dos Negócios Estrangeiros português referiu que o problema não estava nas mãos do governo, mas deu a entender que o atraso estava relacionado quer com a definição das zonas de comando militares, quer com as negociações com a CEE, onde, em seu entender, a Espanha tudo estava a fazer para forçar a globalização das duas candidaturas.33 Meses mais tarde, quando se verificou que Portugal fora o penúltimo país a ratificar a adesão, situação que não deixou de ser sublinhada pelo ministro Pérez Llorca,34 o ministro português voltou a reagir com severidade. Além de instruir o embaixador em Madrid a “levantar o tom”, a “salientar nossa benevolência” e a “não aceitar quaisquer observações”, Gonçalves Pereira revelou que estava a considerar adiar a próxima visita de Pérez Llorca a Portugal. Posicionamento semelhante foi expresso ao embaixador espanhol em Lisboa. O ministro português manifestou desagrado pelas observações do seu homólogo espanhol, afirmou que apenas esperava agradecimentos, que se o governo português não pretendesse ratificar a adesão da Espanha não o faria e que estava um pouco farto das insistências do governo de Madrid.35
24Três meses depois da adesão à NATO, as Cortes espanholas foram dissolvidas. As eleições antecipadas de outubro de 1982 deram a vitória ao PSOE, que não foi a tempo de impedir a adesão à NATO, mas que congelou imediatamente as negociações para a integração da Espanha na estrutura militar da Aliança. O principal ponto de atrito nas relações entre os dois países neste domínio foi assim removido. Acresce que a mudança de governos em Madrid (dezembro de 1982) e em Lisboa (junho 83) fazia antecipar uma nova fase no relacionamento bilateral. No entanto, nem mesmo a existência de dois governos liderados por socialistas alteraria o rumo que se vinha registando desde 1978.
25Além dos atritos provocados pela globalização das negociações para a adesão à CEE e pela entrada da Espanha na NATO, as relações luso-espanholas ficaram marcadas nos primeiros anos da década de 80 por um conflito em torno das pescas e pelo tradicional desequilíbrio das relações comerciais a favor da Espanha. Em 1969, Portugal e Espanha tinham assinado um convénio que permitia que as embarcações dos dois países pescassem nas duas zonas marítimas entre as seis e as doze milhas. Apesar de aparentemente equilibrado, o acordo beneficiava a importante frota pesqueira espanhola, à época uma das maiores e mais bem equipadas do mundo. Este acordo, que muitos consideravam lesivo para os interesses portugueses, terá tido como contrapartida o apoio do governo de Madrid à política colonial portuguesa (Pereira 1986, 79). Em 1977, a criação a nível europeu das Zonas Económicas Exclusivas obrigou a uma renegociação do acordo anterior, uma vez que a pesca até às doze milhas passou a ficar interdita a outros países, obrigando à criação de um esquema de atribuição de licenças.
26Foi então estabelecido, em setembro de 1978, um novo acordo que determinava a imposição de quotas, a rever anualmente, e que obrigou Espanha a diminuir a atividade pesqueira nas águas portuguesas. No entanto, em 1981 os dois governos assinaram um protocolo que foi considerado lesivo pelos pescadores portugueses e que levou o governo de Lisboa a propor a Madrid negociações para a celebração de um novo protocolo menos gravoso para os seus interesses. Perante a falta de resposta das autoridades espanholas, Portugal deixou de aplicar o protocolo de 1981 e anunciou que os pescadores espanhóis deixariam de ter acesso às águas portuguesas a partir de 1 de janeiro de 1981, mas a Espanha continuou a reafirmar a validade do convénio de 1969 e do acordo de 1978 (Monteiro 2017, 318-320; Cavallaro e Sánchez 2017, 403-405). Em causa estava a possibilidade da Espanha invocar direitos históricos na ZEE portuguesa nas negociações para a adesão à CEE.
27Esta polémica acabaria por minar um relacionamento que os dirigentes socialistas de ambos os lados da fronteira procuravam intensificar. Em janeiro de 1983, o El País publicou dois artigos que pretendiam relançar as relações luso-espanholas. Do lado português, Jaime Gama, deputado socialista, que seis meses depois assumiria a chefia do Ministério dos Negócios Estrangeiros, escrevia, com razão, que as transformações democráticas ocorridas nos dois países não tinham produzido qualquer efeito profundo nas relações bilaterais e que apesar das declarações públicas sobre cooperação e amizade se mantinha uma desconfiança recíproca. Fazendo um balanço do relacionamento bilateral e dos principais pontos de atrito, Gama defendia que Portugal e Espanha não poderiam continuar e viver de costas voltadas e antecipava uma nova fase no relacionamento bilateral com a chegada ao poder dos socialistas espanhóis. Do lado espanhol, Fernando Schwartz, um diplomata próximo do PSOE, então diretor-geral da Oficina de Información Diplomática do Ministério dos Assuntos Exteriores, sublinhava a manutenção dos receios portugueses em relação a Espanha, reconhecia que o país vizinho permanecia um desconhecido mas afirmava que o novo governo liderado por Felipe González estava empenhado em implementar mudanças, não deixando de referir os problemas existentes no domínio das pescas, os desequilíbrios na balança comercial, ou os problemas em torno das negociações para a adesão ao mercado comum.36 Apesar das boas intenções, nos meses seguintes não se verificou qualquer melhoria nas relações entre os dois países. Pelo contrário, elas continuaram a degradar-se.
- 37 Telegramas nº 15 e 53 para a embaixada de Portugal em Madrid, 20-1-1983 e 17-2-1983, e Telegrama (...)
- 38 Telegramas nº 15 e 53 para a embaixada de Portugal em Madrid, 20-1-1983 e 17-2-1983, e Telegramas (...)
28Nos primeiros dois meses de 1983 Portugal voltou a insistir numa renegociação global das relações de pesca com Espanha. No ano anterior Portugal tinha concedido 477 licenças de pesca a favor de Espanha mas apenas tinha obtido 201. Acresce que as autoridades portuguesas estavam preocupadas com a progressiva diminuição do total de capturas de peixe em águas portuguesas. Em 1972 tinham sido capturadas 365.000 toneladas mas em 1982 esse valor baixara para 187.000 toneladas. Este decréscimo levou Portugal a procurar implementar uma redução do esforço de pesca nas suas águas tendo em vista a preservação das espécies,37 mas Espanha manteve-se indiferente aos argumentos apresentados por Portugal e recusou a proposta de realização de uma reunião do Conselho de Cooperação sem que previamente se chegasse a uma base de entendimento neste campo.38 Durante este impasse sucederam-se vários incidentes com embarcações espanholas em águas territoriais portuguesas, amplamente noticiados pelos órgãos de comunicação social de ambos os países, que contribuíram para agravar o clima de tensão que nem mesmo a mudança política registada em Portugal foi capaz de contrariar.
- 39 Telegramas nº 50, 61 e 315 da embaixada de Portugal em Madrid, 28.1.1983, 4.2.1983, 19.7.1983. AH (...)
29Em junho de 1983, depois de os socialistas terem vencido as eleições de abril sem maioria absoluta, Mário Soares voltou a liderar um governo. Desta vez contava com o apoio do segundo maior partido, o PSD. O novo executivo, que ficaria conhecido como “Bloco Central”, tinha como prioridade concluir as negociações para a adesão à CEE e pretendia também promover uma melhoria substancial nas relações com Espanha. Para tal contava com o apoio do chefe da diplomacia do país vizinho, Fernando Móran, que tinha estado colocado em Lisboa, cidade onde mantinha vários contactos e amizades, e que não escondia a sua admiração por Portugal, e também do presidente do governo, Felipe González. Em diversas ocasiões ambos se mostraram empenhados em melhorar as relações com Portugal, manifestando nomeadamente abertura para implementar políticas que contribuíssem para diminuir o desequilíbrio da balança comercial entre os dois países.39 No entanto, também neste domínio não se registou uma evolução positiva.
Quadro 1. Balança comercial Portugal-Espanha, 1976-1990 (em milhões de euros)
30Apesar da atenção particular que foi dada a Portugal no âmbito do acordo Espanha-EFTA, traduzida na incorporação de um anexo específico que tinha em consideração as fragilidades da economia portuguesa e que procurava minimizar o impacto da abertura do mercado português ao país vizinho, os efeitos desse acordo foram bastante negativos para Portugal. Espanha continuou a aplicar medidas protecionistas não tarifárias e a atribuir subsídios às exportações. No primeiro ano após a sua entrada em vigor, as importações espanholas cresceram 53% mas as exportações de produtos portugueses para Espanha caíram 12% (Pereira 1986, 72). Perante estes dados, Portugal procurou renegociar o anexo P do acordo Espanha-EFTA e garantir maiores reduções nas pautas negociadas com Espanha e um tratamento preferencial em determinados produtos, nomeadamente nos têxteis. Espanha aceitou rever as pautas mas recusou conceder os tratamentos preferenciais solicitados por Lisboa. Mais uma vez verificou-se um impasse e Portugal aplicou as medidas de emergências prevista no acordo, congelando as importações espanholas. O anexo P nunca chegou a ser denunciado mas as medidas de congelamento às importações espanholas também não foram levantadas (Cavallaro e Sánchez 2017, 402-403). Os problemas em torno das pescas e dos crónicos deficits a favor da Espanha acabariam, assim, por invalidar os esforços dos responsáveis políticos dos dois países para alterar um rumo que vinha sendo seguido desde o final da década anterior.
- 40 Telegrama nº 457 da embaixada de Portugal em Madrid, 26.10.1983. AHD-MNE.
- 41 El País, 9.11.1983.
31Em novembro de 1983 realizou-se em Lisboa a primeira cimeira bilateral de chefes de governo. Semanas antes, num debate no Senado, Fernando Móran reconheceu que os problemas existentes entre os dois países tinham um carácter estrutural, afirmou que a aproximação com Portugal, que descreveu como “uma obra de arte política em relação a Castela”, era da máxima importância para a política externa espanhola e manifestou-se esperançoso quanto aos resultados práticos da cimeira.40 No entanto, apesar das afinidades políticas partilhadas pelos líderes dos dois países, a cimeira ficaria mais marcada pelas diferenças, a começar pela designação do encontro. Os espanhóis preferiam designá-la de cimeira ibérica mas os portugueses opuseram-se e a cimeira acabou por ficar denominada cimeira luso-espanhola em Portugal e hispano-portuguesa em Espanha. O primeiro-ministro português esclareceu a posição portuguesa em entrevista a um dos maiores diários espanhóis: “Ibérico é um todo que não implica nações, mas nesta península há dois países que a integram desde sempre: um chama-se Espanha, o outro Portugal”.41
32Não se tratava apenas de divergências semânticas. No discurso que proferiu no parlamento português, Felipe González propôs a criação de uma zona de comércio livre que a prazo se deveria transformar numa associação económica semelhante ao Benelux. Empenhado em constituir uma frente comum que tinha em vista não apenas as negociações para a adesão à CEE mas a atuação futura dos dois países no âmbito comunitário, o presidente do governo espanhol defendeu a criação de uma zona industrial e económica peninsular dentro da área económica europeia. Traumatizados com as repercussões do acordo Espanha-EFTA, os responsáveis portugueses afastaram qualquer hipótese nesse sentido, argumentando que tal modelo não seria do interesse nem da economia portuguesa nem da economia espanhola. Os governantes portugueses continuavam a apostar numa prévia adesão de Portugal à CEE, pelo que não estavam interessados em promover qualquer tipo de integração das duas economias ibéricas. Por esse motivo, além desta recusa portuguesa, foi também declinada a proposta apresentada por Felipe González de elaboração de uma carta conjunta dirigida aos países-membros da CEE a insistir na urgência de uma decisão relativa à adesão dos dois países. Também no domínio das pescas não se chegou a qualquer entendimento.
- 42 Diário de Lisboa, 11.11.1983, 12.11.1983 e 14.11.1983; El País 11.11.1983 e 12.11.1983; Telegrama (...)
33Os resultados limitaram-se assim, além da celebração de um acordo sanitário relativo ao trânsito de gado, de outro sobre a construção de duas pontes internacionais, uma no rio Minho e outra no Guadiana e à abertura permanente de duas fronteiras terrestres, e de um acordo para a intensificação dos intercâmbios culturais, à elaboração de uma declaração conjunta que fazia alusão aos dois novos regimes democráticos, às relações Este/Oeste, ao desarmamento e à necessidade de se desbloquearem as negociações para o alargamento da CEE, e à assinatura de um protocolo adicional ao Tratado de Amizade e Cooperação luso-espanhol, que instituía um sistema de consultas regulares a vários níveis e a realização de encontros anuais entre os dois chefes de governo. Perante a escassez de resultados, tanto a imprensa portuguesa como a imprensa espanhola encheram-se de títulos sobre o pessimismo, o desencanto e a frustração em torno deste encontro.42
- 43 Telegrama nº 461 da embaixada de Portugal em Madrid, 15.10.1984. AHD-MNE.
34As negociações sobre a questão das pescas ficaram assim adiadas para 1984, mas a recusa de Madrid em aceitar a reserva exclusiva das águas situadas entre as seis e as doze milhas exigida por Lisboa conduziu a um novo impasse negocial que levou o governo português a suspender, em fevereiro, as negociações. No final de setembro Portugal entregou a nota de denúncia do acordo luso-espanhol sobre relações mútuas de pesca celebrado em 1978. Esta decisão foi muito mal recebida pelo governo espanhol. Morán revelou ao embaixador português a deceção do seu governo e referiu que o presidente do executivo, Felipe González, tinha ficado “especialmente desagradado” com a atitude portuguesa, dando a entender que a reunião do Conselho de Cooperação luso-espanhol prevista para o final do ano poderia ser cancelada. Também o rei Juan Carlos se mostrou muito preocupado com o futuro do relacionamento bilateral. Depois de lamentar a denúncia, o rei revelou que González pretendia adotar medidas retaliatórias no quadro das negociações para a adesão à CEE. Sublinhando a sua especial amizade por Portugal, Juan Carlos afirmou que tinha procurado refrear os impulsos do presidente do governo, aconselhando-lhe paciência e prudência, e manifestou a sua disponibilidade para contribuir para uma melhoria no relacionamento entre os dois países.43 Apesar do envolvimento do rei, as reações do governo espanhol foram duras.
- 44 Telegrama nº 367 para a embaixada de Portugal em Madrid, 21.12.1984. AHD-MNE.
- 45 Telegramas nº 373 e 374 para a embaixada de Portugal em Madrid, ambos de 28.12.1984. AHD-MNE.
35Embora Portugal tivesse denunciado o acordo de 1978, Espanha reagiu afirmando que o convénio de 1969 continuava em vigor. Nesse sentido anunciou que as embarcações espanholas continuariam a exercer os seus direitos de pesca entre as 6 e as 12 milhas, reiterou a necessidade de consultas bilaterais e a elaboração de planos de pesca, sustentando que a não atribuição de licenças era ilegal.44 Paralelamente, o governo espanhol anunciou o cancelamento da reunião do Conselho de Cooperação e da Cimeira de chefes de governos previstas para dezembro de 1984. Esta decisão caiu mal nas Necessidades. Portugal reagiu manifestando incompreensão pela atitude espanhola, considerando que as dificuldades num determinado sector não poderiam justificar a suspensão de um instrumento de cooperação formalmente institucionalizado como era o Conselho de Cooperação, órgão privilegiado para examinar as questões de interesse comum e analisar os aspetos mais relevantes do relacionamento bilateral.45
- 46 Telegramas nº 11 e 15 da embaixada de Portugal em Madrid, 7.1.1985 e 8.1.1985. AHD- MNE.
36Apesar da insistência de Lisboa, em 1984 não se realizou a reunião do Conselho de Cooperação nem a cimeira de chefes de governo. Apenas um ano depois de ter sido instituída, a realização de cimeiras anuais era posta em causa. A denúncia do acordo de pescas agravou a tensão entre as comunidades piscatórias nos dois países. Nos primeiros meses de 1985 sucederam-se os relatos de incidentes entre pescadores espanhóis e as autoridades portuguesas. Entre estes teve particular destaque o caso de um pescador espanhol que foi morto a tiro por um elemento da Guarda Fiscal em Vila Real de Santo António. Embora os governos dos dois países tenham procurado evitar uma escalada com consequências imprevisíveis, registou-se uma onda de indignação na Andaluzia e realizaram-se várias manifestações de repúdio, tendo uma delas reunido cerca de 6.000 pessoas.46
37Apesar de não terem conseguido alcançar melhorias no relacionamento bilateral, os dois líderes socialistas foram bem-sucedidos nos seus esforços para que as negociações com a CEE conhecessem um último e decisivo impulso. Depois de sucessivamente desbloqueados os entraves colocados por diversos países-membros ao novo alargamento, no final de março de 1985 Portugal e Espanha concluíram finalmente as negociações para a adesão à CEE. Faltava no entanto que os dois países chegassem a um entendimento sobre o relacionamento bilateral no período de transição pós-adesão. Numa corrida contra o tempo, nos primeiros meses de 1985, portugueses e espanhóis foram impelidos a chegar a um acordo que não colocasse em causa a data prevista para a efetivação do alargamento ibérico, o dia 1 de janeiro de 1986. É que a Comunidade exigia que o tratado de adesão dos dois futuros estados-membros incorporasse, além do que fora acordado em separado com a CEE, as medidas transitórias que os dois países iriam aplicar entre si. Caso não chegassem a um entendimento, a CEE poderia exigir que ambos os países aplicassem o ‘acquis’ comunitário, ou seja, o imediato estabelecimento de um regime de livre-câmbio, ou então impor que os novos membros viessem a aplicar mutuamente o regime geral que tinham negociado com as Comunidades. Além de lesiva para os interesses de Portugal e Espanha, que deixariam de ter qualquer palavra no seu relacionamento bilateral durante o período transitório, a aplicação de qualquer uma destas alternativas revelaria um importante fracasso diplomático e demonstraria a fragilidade de um relacionamento que os responsáveis políticos dos dois países continuavam a louvar e a exaltar publicamente.
- 47 Telegramas nº 145, 150 e 169 da embaixada de Portugal em Madrid, 6.3.1985, 8.3.1985 e 15.3.1985. (...)
- 48 Telegramas nº 248, 261 e 270 da embaixada de Portugal em Madrid, 19.4.1985, 23.4.1985 e 28.4.1985 (...)
38Com as respetivas negociações para a adesão à CEE a entrarem na reta final, Portugal e Espanha iniciaram assim com uma acrescida pressão estas negociações que, apesar de bilaterais, eram acompanhadas de perto pelos negociadores comunitários. Em meados de março de 1985, os dois países tinham já chegado a acordo sobre grande parte dos capítulos, optando por aplicar mutuamente o tratamento que tinham negociado com a CEE. Ao contrário do que temia a diplomacia portuguesa, Espanha aceitou a proposta apresentada por Portugal de eliminação dos direitos aduaneiros para os produtos portugueses a partir da adesão, mantendo-se apenas como exceção o caso dos têxteis e das manufaturas de cortiça. Por fechar, ficou apenas o melindroso capítulo das pescas.47 O forte empenho do ministro dos Assuntos Exteriores, do presidente do governo e do próprio rei Juan Carlos, e o facto de a máquina diplomática espanhola estar focada nos interesses globais em torno da conclusão das negociações com a CEE e menos preocupada no estabelecimento de regimes específicos com Portugal, contribuíram para a remoção do último obstáculo que impedia um entendimento, quando a Espanha, levando à prática as suas declarações de que estava disposta a dar dois passos por cada passo dado por Portugal, deixou cair a invocação dos direitos históricos no domínio das pescas.48
- 49 Diário de Lisboa, 30.4.1985; Telegramas nº 278 e 280 da embaixada de Portugal em Madrid, 1.5.1980 (...)
39Na madrugada de 30 de abril de 1985, Portugal e Espanha chegaram finalmente a um acordo que regularia o seu relacionamento bilateral durante o período transitório. No domínio das pescas, as águas territoriais portuguesas na zona das 12 milhas ficavam interditas a barcos espanhóis mas, em contrapartida, Portugal aumentava ligeiramente o número de licenças concedidas aos pesqueiros oriundos do país vizinho na zona entre as 12 e as 200 milhas. No campo da união aduaneira os produtos portugueses passariam, a partir do dia 1 de janeiro de 1986, a entrar no mercado espanhol livres de direitos alfandegários, à exceção dos têxteis, da cortiça e de alguns produtos químicos. Já os produtos espanhóis sofreriam à entrada em Portugal o mesmo tratamento que seria concedido aos produtos oriundos dos restantes estados-membros durante o período transitório. Nesse mesmo dia foi anunciado que o tratado de adesão de Portugal e Espanha seria assinado no dia 12 de junho.49
- 50 Telegramas nº 281 e 284 da embaixada de Portugal em Madrid, 3.5.1985, 6.5.1985. AHD-MNE.
40O acordo foi mal recebido do outro lado da fronteira, especialmente entre os pescadores do país vizinho, que acusaram o seu governo de não ter defendido os seus interesses.50 Apesar da imprensa de ambos os países ter afirmado que Portugal tinha obtido uma vitória, a verdade é que, ao contrário do importante impacto mediático, a repercussão económica da pesca por embarcações espanholas na zona das 12 milhas era muito diminuta. Em troca, Portugal deixou cair a intenção de aplicar a vários produtos oriundos de Espanha um tratamento pior do que aquele que tinha negociado com a Comunidade. Concluído o acordo, teve finalmente lugar a II Cimeira luso-espanhola de chefes de governo prevista para o ano anterior. No dia 25 de maio, Mário Soares e Felipe González reuniram-se em Cáceres. Além de terem procedido à ratificação do acordo alcançado no último dia de abril, acertaram os pormenores para a cerimónia de assinatura do tratado de adesão, que se realizaria em Lisboa e em Madrid no dia 12 de junho. Agora sim, estavam reunidas as condições para o início de uma nova fase do relacionamento bilateral, devidamente enquadrada no quadro supranacional que ambos os países passariam a integrar.
41A reaproximação entre os dois países ensaiada em 1976 e formalmente estabelecida com a assinatura do Tratado de Amizade e Cooperação de 1977 foi bloqueada por um conjunto de fatores. Apesar dos discursos e das declarações proferidas por sucessivos responsáveis políticos e diplomáticos de ambos os países, as diferentes estratégias para a integração dos dois países na CEE, as dúvidas quanto à hipótese de adesões separadas, a adesão da Espanha à NATO, o diferendo em torno das pescas e o desequilíbrio da balança comercial impediram que os dois novos regimes democráticos iniciassem verdadeiramente um novo tipo de relacionamento. As afinidades ideológicas entre os dois governos, primeiro entre a AD e a UCD, depois entre o PS e o PSOE, não foram capazes de impedir estas tensões, embora tenham contribuído para evitar uma maior escalada conflitual.
42A entrada na última fase das negociações para a adesão dos países à CEE constituiu um forte incentivo para que fossem superados os últimos obstáculos. Com praticamente todos os capítulos negociais fechados e com a data da adesão agendada, restava apenas chegar-se a um entendimento sobre o modus vivendi das relações luso-espanholas durante o período transitório pós-adesão. Numa corrida contra-relógio foi finalmente possível estabelecer-se uma nova base para o relacionamento bilateral que era um elemento determinante para Portugal. Escrevendo à época, José Medeiros Ferreira (1987, 73) sublinhou que “a verdadeira pedra de toque da nossa integração reside no futuro das relações com a Espanha”. Esta preocupação, que esteve sempre presente durante as negociações para a adesão, contribuiu para o arrastamento desse processo negocial e condicionou a evolução do relacionamento luso-espanhol entre 1976 e 1986. O alargamento ibérico, nos moldes em que se registou, deteriorou as relações bilaterais nos anos que o antecederam mas forçou e antecipou mudanças que se iriam revelar decisivas e duradouras. Apenas a inclusão num novo e maior espaço supranacional permitiria superar antigas desconfianças.