1A revolução de 25 de Abril de 1974 encontrou o império português em profunda convulsão. Com cinco colónias em África, todas com movimentos de libertação nacional, e três teatros de guerra, a situação era premente. Na Ásia, o cenário era distinto: pequenos territórios, sem sólidos movimentos nacionalistas, mas junto a gigantescos vizinhos, que sobre eles assumiam reivindicações mais ou menos veladas. As soluções teriam de ser diferentes, num e noutro continente. As negociações com os movimentos de libertação em África foram centrais para as autoridades portuguesas, relegando para segundo plano o destino de Timor e Macau. No caso particular de Timor, Portugal teve dificuldade em conceber um projeto credível de autodeterminação e não conseguiu concluir a sua descolonização, dando azo à ocupação do território pela Indonésia, em 7 de dezembro de 1975.
- 1 Após deixar Timor, Arnao Metello esteve ligado às negociações da descolonização de Angola. Foi de (...)
2Este estudo incide especificamente no período entre o 25 de abril de 1974 e o final de outubro desse ano, partindo da análise da ação de uma figura-chave da política portuguesa em Timor, o major António Arnao Metello (1938-2008), que assumiu naquele território os papéis de delegado do Movimento das Forças Armadas (MFA) e de presidente da Comissão para a Autodeterminação de Timor (CAT), tornando-se o oficial com maior responsabilidade no território a abraçar o programa do MFA, antes da nomeação do último governador, Lemos Pires.1 Estes primeiros meses encontram-se menos estudados pela historiografia, em contraste com os acontecimentos de 1975, que têm recebido maior atenção. No período subsequente à ocupação indonésia, foram publicados estudos, panfletos e memórias, dando voz a sentimentos críticos e até emotivos sobre os acontecimentos de 1974/1975. Enfatizando a “tragédia” e o “abandono” de Timor, foram criticados alguns dos que foram, à época, considerados como responsáveis pela situação, entre os quais Arnao Metello. Este tornou-se uma figura controversa principalmente pelo facto de, no âmbito das suas funções, ter dado margem de atuação à associação timorense que defendia a integração na Indonésia. As suas divergências com setores políticos mais conservadores quanto ao rumo da descolonização contribuíram também para que, tanto em 1974 como já depois da invasão pela Indonésia, lhe fossem assacadas responsabilidades na desestabilização político-militar que se instalou no território.
3São exemplo das críticas à atuação controversa de Metello as obras publicadas por Cravo (1976), Cascais (1977) e Thomaz (1977), que sustentaram que este promoveu a ideia da integração de Timor na Indonésia, apontando-o mesmo como o “pai” da organização pró-integracionista, a Associação Popular Democrática de Timor (APODETI). Foi também alegado que Metello, juntamente com o major Garcia Leandro, procurou, entre setembro e outubro de 1974, substituir a equipa governativa em Timor, ficando o primeiro como comandante militar e o segundo como governador, no sentido de assumirem a condução do seu processo de descolonização. Não logrando consegui-lo, os referidos autores argumentaram que Metello teria influenciado a escolha de elementos da equipa de Lemos Pires, mais comprometidos com o MFA e com a descolonização. Entre estes, destacam-se os majores Francisco Mota e Silvério Jónatas, que chefiaram, respetivamente, os gabinetes de Assuntos Políticos e da Comunicação Social do governo de Timor, tendo estado ativamente envolvidos na condução local do processo de descolonização. Em agosto de 1975 a União Democrática Timorense (UDT), na sequência do confronto armado então surgido com Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), exigiu mesmo a retirada de ambos de Timor, acusados de causarem desestabilização entre os partidos timorenses.
4As imputações a Metello, bem como aos elementos da equipa governativa de Lemos Pires e ao próprio governador, patentes nas obras acima mencionadas, foram repetidas por diversos autores (Aguiar 1977; Grupo de Pesquisa sobre a Descolonização Portuguesa 1982; Silva e Bernardo 2000). No caso particular de Metello, existem depoimentos pessoais como o de Almeida Santos (à época dos acontecimentos ministro da Coordenação Interterritorial em Portugal), que deu a entender que a criação da APODETI fora “acarinhada, se não estimulada, por um oficial português com destacadas funções políticas em Timor” (Santos 2006, 302, 313). Do lado timorense, há idênticas afirmações de Mário Carrascalão (2006), um dos fundadores da UDT e governador de Timor durante a ocupação indonésia, reiteradas por Pires (2013) e Sousa (2018). De acordo com Chamberlain (2010, 120), também o bispo D. Ximenes Belo considerou Metello um dos mentores dos ideais da APODETI. James Dunn (1995, 61-62), antigo cônsul da Austrália em Díli antes do 25 de Abril, visitou Timor em missão oficial em junho de 1974 e notou que a APODETI dispunha de apoio financeiro e político da Indonésia, mas que tinha algum suporte da administração portuguesa, entre os quais de militares como Arnao Metello. Diversamente, outros autores colocam a ênfase no grande apoio da Indonésia à formação e atividade da APODETI, nomeadamente do seu consulado em Díli, que favorecia os sentimentos antiportugueses do pequeno grupo de pró-integracionistas. Taylor (1999, 28) sugere mesmo que a elaboração programática da associação foi influenciada por elementos dos serviços secretos de informação indonésios, Badan Koordinasi Inteligen Negara (BAKIN).
5Para análise do período de 1974/1975, são fonte de informação relevante os relatórios do governador Lemos Pires (1981) e da Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor (Riscado et al. 1981). Todavia, ambos são pouco esclarecedores quanto às imputações dirigidas a Metello, até porque foram elaborados em 1976 e 1977, respetivamente, no contexto do primeiro impacto político decorrente da invasão indonésia, e focam-se principalmente no período da governação de Lemos Pires. Mantidos confidenciais até 1981, não corroboram, mas também não desmentem de forma clara, as inculpações que foram sendo atribuídas a Metello, limitando-se a concluir que as divergências surgidas entre este e outras autoridades locais tiveram repercussões no ambiente civil e militar, agravadas pela indefinição do governo central português e pela ambiguidade das posições indonésias (Riscado et al. 1981, 59-61).
- 2 O arquivo de António Arnao Metello (Arquivo AAM) foi depositado na Fundação Mário Soares (FMS), e (...)
6Depois de o povo timorense ter conquistado o seu direito à independência, com o referendo de agosto de 1999, surgiram novos testemunhos que contribuem para clarificar o contexto em que Metello atuou (Chrystello 1999; Marcelino 2000). Entretanto, tem sido tornada pública e acessível numerosa documentação portuguesa, permitindo lançar nova luz sobre os conturbados meses que condicionaram o destino de Timor a seguir ao 25 de Abril (Fernandes 2005). São também essenciais os arquivos pessoais dos atores da época, permitindo cruzar informação substancial. Alguns têm vindo a ser colocados à disposição dos investigadores, como o de António Arnao Metello, recentemente tornado público,2 em que numerosa documentação assinala a sua passagem por Timor, permitindo reanalisar a sua ação, nomeadamente no que concerne ao seu posicionamento quanto à APODETI, à autodeterminação do povo timorense, e à sua influência no processo de descolonização do território.
7Após o 25 de Abril de 1974, o MFA iniciou um novo programa para Portugal, sob a divisa dos “3 Dês” – Desenvolvimento, Democratização, Descolonização. Os primeiros meses foram de turbulência política: entre abril e outubro de 1974, tomaram posse três governos provisórios e dois presidentes da República. A questão colonial tornou-se ponto de divergências. De um lado, um setor conservador e defensor de um rumo evolutivo, inspirado na visão do general António de Spínola, em que, num esquema federativo, as colónias poderiam vir a conhecer maior grau de autonomia. Do outro lado, uma ala ligada aos militares do MFA, procurando uma solução rápida para as colónias, tanto do ponto de vista militar, para dar por finda a guerra nos territórios africanos, como no aspeto político, pela colocação da sua independência nos termos da equação. Um dos problemas do programa do MFA era como este seria interpretado, e por quem, atendendo a posições distintas, oscilando entre os apoiantes da solução federativa e os descrentes em modelos de tipo autonómico, que preferiam acelerar a independência dos territórios (Maxwell 2006, 205). Em Timor não houve guerra, nem movimentos de libertação, mas havia enormes vizinhos com ambições territoriais. Relegado para segundo plano, Timor viveu, ao longo deste período, com a ambiguidade, e mesmo ausência, de instruções concretas de Lisboa, quanto à orientação política a seguir na aplicação do programa do MFA.
- 3 Cf. Relatório do comandante militar e do chefe do Estado-Maior, para o Secretariado-Geral da Defe (...)
8Apesar da ausência de qualquer movimento de libertação com significado, os setores timorenses mais críticos à administração portuguesa estiveram sob vigilância da PIDE/DGS e do Comando Militar, havendo indícios de correntes de opinião distintas e de contestação latente. No relatório anual do Comando Territorial Independente de Timor (CTIT) de 1973 destacava-se a “eventual transformação de Timor em área de operações, seja por evolução subversiva interna apoiada ou não do exterior, seja por agressão direta do exterior, esta menos provável”. Consideravam-se “inimigos potenciais” a Indonésia e a Austrália, a despeito das relações cordiais. Entre a população timorense, sob especial vigilância estavam setores urbanos, em particular estudantes e funcionários de cultura média, cujo posicionamento se esperava poder evoluir para formas mais explícitas de contestação e consciência de grupo. Embora sem amplitude assinalável, o relatório destacava que provocavam “uma certa apreensão por se poderem considerar indícios primários de uma tentativa da instalação de clima emocional propício a ulteriores explorações de caráter subversivo”.3 Antes do 25 de Abril, José Ramos-Horta foi um dos jovens que se destacaram por, na imprensa de Timor, dirigir críticas ao rumo da governação portuguesa, o que lhe valeu o exílio em Moçambique, em 1970/1971 (Ramos-Horta 1994). Os estudantes timorenses bolseiros em Portugal reuniam-se igualmente para discutir aspetos do colonialismo (Araújo 2012), mas a sua ligação a Díli era, então, débil.
- 4 Nome que assumiu no fim de maio de 1974, depois serem consideradas outras designações como União (...)
- 5 Sobre a constituição destas associações, membros e evolução do seu conteúdo programático ver, ent (...)
9Não obstante o cenário aparentemente pacífico, o 25 de Abril teve um impacto assinalável, patente na rapidez com que, no espaço de um mês, se formaram as três principais associações políticas timorenses, que polarizariam as opções em jogo nos meses vindouros. No início de maio de 1974 desenharam-se as posições que estariam na base da União Democrática Timorense (UDT) e da Associação Social Democrática Timorense (ASDT). A primeira advogava uma solução que assegurasse a manutenção de laços com Portugal, nela pontificando elementos como Francisco Lopes da Cruz, Domingos Oliveira, os irmãos Carrascalão, César Mouzinho, e outros que ocupavam lugares de algum destaque na economia local e na administração civil. Inicialmente, a UDT alinhava com o projeto de Spínola, para mais tarde alterar a sua posição. A segunda associação abraçava a causa da independência, nela avultando nomes como José Ramos-Horta, Francisco Xavier do Amaral e Nicolau Lobato, e, em setembro de 1974, alteraria o nome para FRETILIN. Todavia, logo nos primeiros dias, o timorense José Osório Soares sugeriu que se devia considerar a viabilidade de Timor no contexto da sua área geográfica (Marcelino 2000, 37), tornando-se um dos fundadores da Associação Popular Democrática Timorense (APODETI)4, a terceira associação a constituir-se, perto do final de maio, apologista da integração na Indonésia, onde se reuniram outros timorenses como Arnaldo dos Reis Araújo, Guilherme Maria Gonçalves e Hermenegildo Martins.5
- 6 Sobre a posição da Austrália, cf. Way (2000) e Clinton Fernandes (2016).
10A Indonésia esteve sempre atenta aos acontecimentos. Formalmente, afirmava não ter ambições territoriais, e o ministro Adam Malik, em carta a Ramos-Horta, em junho de 1974, prometia apoiar a independência de Timor; todavia, as autoridades indonésias cedo se manifestaram contra ela – por receio da implementação de um foco para o comunismo, desestabilização da área geopolítica, ou o incentivo a outros movimentos independentistas já existentes –, e vários dos seus responsáveis procuraram obter suporte para efetivar a integração. A Indonésia fez diversos contactos internacionais para avaliar a situação, com destaque para a Austrália. Foi paradigmático o encontro entre o presidente Suharto e o primeiro-ministro australiano, Whitlam, no início de setembro de 1974, em que este último acentuou a sua convicção de que Timor português deveria integrar-se na Indonésia, embora após adequada forma de expressão da população nesse sentido. Outros responsáveis da condução da política externa da Austrália procuraram não hostilizar a Indonésia, sustentando as teses da inviabilidade da independência.6 Os indonésios também não descuraram uma aproximação aos decisores portugueses, destacando-se, em 1974, as diligências do embaixador indonésio em Bruxelas junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros português (Fernandes 2007, 102-03, 107-08), e a visita a Portugal, em outubro, do general Ali Murtopo, ligado ao BAKIN e aos serviços de operações especiais (OPSUS), depois responsável pelo lançamento, em Timor, da Operação Komodo, destinada a desenvolver ações para preparar a integração (Taylor 1991, 36-37).
11A Indonésia teria certamente dúvidas quanto ao futuro da política portuguesa, sobre qual seria a natureza do novo regime, e se este iria seguir o caminho de uma democracia de tipo ocidental ou situar-se sob influência soviética. Pontualmente, a imprensa mencionava o expansionismo soviético no sudeste asiático e a posição estratégica de Timor. Porém, existem notícias de negociações entre Jacarta e Moscovo, reveladoras de uma aproximação entre os dois países. Depois do golpe de 1965 e do expurgo que levou à morte de centenas de milhares de comunistas indonésios, Jacarta tinha Pequim como adversário principal, até porque existia uma forte comunidade chinesa no país. Não obstante, a composição dos governos provisórios portugueses chefiados por Vasco Gonçalves, com a presença de elementos comunistas, e a derrota de Spínola em setembro de 1974, com definitiva orientação para a descolonização, favorecendo as posições independentistas, encorparam os argumentos indonésios para a futura invasão e integração de Timor-Leste.
12Do lado português, várias personalidades tiveram papel significativo no rumo dos acontecimentos em Timor, nos primeiros meses pós-25 de Abril. A primeira delas é o major Arnao Metello, pelas funções que ocupou e pela sua proximidade ao MFA. O coronel Alves Aldeia, governador desde fevereiro de 1972, reconduzido nessas funções pela Junta de Salvação Nacional (JSN), enfrentou oposição do setor militar afeto ao MFA e ainda dos bolseiros timorenses em Lisboa (Ramos-Horta 1994, 73-74). Acabou afastado, deixando Timor em 15 de julho de 1974. Em sua substituição ficou o tenente-coronel Níveo Herdade, enviado de Lisboa para assumir, primeiro, o cargo de comandante militar e, depois, o de encarregado do governo até à nomeação efetiva de novo governador, que só ocorreria no final de outubro, com a indigitação de Lemos Pires. Herdade, assumindo posições pró-spinolistas e de reprovação da política de descolonização, acabou por entrar em confronto com o delegado do MFA, Arnao Metello.
13Outras personalidades portuguesas foram determinantes, como Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial (MCI), e o inspetor António de Sousa Santos, enviado pelo ministro a Timor, em agosto de 1974, para avaliar a situação. Com uma passagem anterior por Timor nas décadas de 1930-1940, Sousa Santos teve uma influência importante nos conflitos entre Arnao Metello e Níveo Herdade, defendendo o papel deste último e contribuindo para a saída de Metello de Timor. Também o major Garcia Leandro, que estivera em Timor entre 1968 e 1970 como chefe de gabinete do governador Valente Pires, foi um elemento fundamental nos meses subsequentes ao 25 de Abril. Em finais de maio visitou Timor como delegado do MFA e do MCI, acompanhado do major Rebelo Gonçalves. No regresso a Lisboa continuou envolvido na questão de Timor, mantendo contactos com Metello. Leandro seria depois responsável pela preparação da visita de Almeida Santos ao território, em outubro, e chegou a estar previsto para suceder a Alves Aldeia no Governo de Timor, embora tenha acabado por ser nomeado para Macau.
14As notícias da revolução de abril foram conhecidas em Díli através da Rádio Austrália (Marcelino 2000, 35; Jolliffe 1978, 61). O conteúdo do programa do MFA, nos primeiros dias, assemelhava-se a uma manta de retalhos, construída a partir da escuta das emissões, nem sempre contínuas, da Emissora Nacional, das notícias difundidas pela Rádio Austrália, de telegramas e alguma imprensa. Quanto ao futuro das colónias, o programa era vago e sofrera uma alteração na véspera do 25 de Abril, por intervenção de Spínola, que forçara a retirada de uma alínea mencionando o reconhecimento do seu direito à autodeterminação, e estava desenhado a pensar nos territórios africanos, colocando a tónica na solução das guerras e na condução de uma política conducente à paz (Pinto 2003, 19).
- 7 Boletim Oficial de Timor, ano LXXV, n.º 21, 25-05-1974.
15Alves Aldeia optou inicialmente por manter uma postura de expetativa, não fazendo declarações oficiais, o que motivou vários militares a contestarem a sua permanência no cargo. Escassos dias antes, o governador, recém-chegado de uma viagem a Lisboa, criticara o levantamento militar ocorrido em março de 1974, nas Caldas da Rainha, acusando os envolvidos de traição e deslealdade. No entanto, os novos poderes de Lisboa decidiram deixar o governador no cargo, tendo este colocado em prática um conjunto de medidas anunciadas pela JSN, como a extinção da polícia política, da Comissão de Censura, da Ação Nacional Popular e da Mocidade Portuguesa.7 Mas o surgimento, em Timor, de correntes de opinião distintas sobre o problema colonial, e a falta de orientação da JSN sobre o destino político da colónia, levou Aldeia a pedir instruções superiores. Chamando a atenção para a necessidade de legitimar as diversas tendências, e que a população não estava preparada para a autodeterminação e independência imediata, salientou que era necessário conhecer o pensamento do governo indonésio, sobretudo se surgissem ameaças de “índole comunista”. Todavia, as indicações de Lisboa foram vagas, limitadas a indicar-lhe para “proceder de acordo com os princípios do programa do MFA”, considerando os condicionalismos locais e evitando que as relações com a Indonésia se deteriorassem (Riscado et al. 1981).
- 8 A Voz de Timor, 10-05-1974.
16Em 3 de maio, o jornal local A Voz de Timor deu publicidade aos programas da JSN e do MFA e divulgou o discurso do general Spínola de 27 de abril, no qual este referira a rejeição da independência pura das colónias sem prévia consulta às populações, mencionando que uma autodeterminação dependia de um período de esclarecimento. Mas a independência teria de ser um cenário possível, o que A Voz de Timor não deixou de sublinhar, divulgando que a FRELIMO, o MPLA e a FNLA tinham declarado não aceitar uma solução federativa. O novo contexto de liberdade cívica e de expressão foi explicado em sessão pública organizada no Ginásio Escolar de Díli, a 8 de maio, presidida pelo governador Aldeia, que anunciou a criação de uma “comissão militar de esclarecimento e apoio à formação de associações cívicas”. O major Metello interveio como chefe do Estado-Maior para adiantar que a decisão sobre o regime em que Timor quereria viver seria da população, mencionando o exercício livre do direito à autodeterminação.8
- 9 Além do major Metello, integravam a comissão o major Armando Barbosa da Silva, o capitão de infant (...)
- 10 O governador Alves Aldeia informou o governo, em telegrama de 14 de maio, que já estavam formadas a (...)
- 11 O comunicado foi publicado na Voz de Timor, 17-05-1974, que igualmente divulgou a formação da UDT e (...)
17A comissão anunciada foi oficialmente criada por despacho do governador de Timor em 13 de maio, “para estudar, interpretar e esclarecer as diretivas de caráter político e dinamizar a sua concretização local”. No essencial, competia-lhe uma tarefa de pedagogia política, partindo dos pressupostos anunciados pela JSN. Deveria prestar apoio e esclarecimento às associações políticas e fazer ligação destas às autoridades superiores, considerando a necessidade de acelerar a constituição de associações que polarizassem as correntes de opinião. Seria presidida por Arnao Metello, que assim se tornou o principal responsável pelo acompanhamento da evolução política no território.9 Já estava então formada a UDT (11 de maio) e esboçada a corrente que viria a constituir a ASDT (oficialmente anunciada a 20 de maio).10 A 16 de maio é divulgado um primeiro comunicado da comissão informando que se reunira com a ASDT e a UDT, para definir as condições de constituição e reconhecimento das associações políticas.11
- 12 FMS, Arquivo AAM, doc. 11009.035.
- 13 Idem, doc. 11013.006.
18A comissão não surgiu formalmente com o nome de Comissão para a Autodeterminação de Timor, nem o conceito de autodeterminação figurava no despacho de criação. Aliás, o nome foi objeto de várias hipóteses.12 A opção final, com referência à autodeterminação, é significativa no contexto do período, pois o termo fora arredado do programa do MFA, embora Spínola o referisse vagamente no seu discurso de 27 de abril, e no da tomada de posse do I Governo Provisório, a 16 de maio, sendo então incluído no programa do governo. A interpretação dada ao conceito de autodeterminação por Arnao Metello é passível de ser conhecida numa circular que subscreveu, na qualidade de chefe do Estado-Maior, dirigida às Forças Armadas de Timor, explicando o papel do Exército no novo quadro político. Nesta circular, Metello teorizou sobre os conceitos de liberdade e democracia, o respeito pelas minorias, e definiu a autodeterminação como o ato de cada indivíduo fixar o seu próprio destino e, em termos políticos, como forma de descolonização, podendo assumir as modalidades de independência, autonomia, ou soberania limitada.13
- 14 A Voz de Timor, 31-05-1974, 9.
- 15 Relatório de Garcia Leandro sobre a visita a Macau e Timor, junho de 1974, ADN/CEMGFA/015/030/006. (...)
19Quando, em 27 de maio, chegaram a Díli os majores Garcia Leandro e Rebelo Gonçalves, delegados da JSN/MFA e do MCI, em missão de esclarecimento do contexto político, as suas declarações públicas pouco mais fizeram do que sancionar as orientações que Metello foi imprimindo ao processo político-militar ao longo do mês. Antes de deixarem Díli, em sessão pública a 30 de maio, anunciaram que o major Metello ficava oficialmente nomeado delegado do MFA. Confrontados por militares portugueses e alguns timorenses sobre a permanência no cargo de Alves Aldeia, os delegados justificaram-na argumentando que tinha pleno aval da JSN, e que as funções de governador eram essencialmente administrativas e não partidárias. No entanto, embora publicamente assegurassem a continuidade de Aldeia, sendo mesmo afirmado por Leandro que a mudança de governador só aconteceria por decisão meramente administrativa da JSN, e não por pressões de grupos,14 a realidade é que, secretamente, já se decidira a sua substituição. Durante a visita dos delegados ficou combinado um esquema que passava, primeiro, pela separação das funções de governador e de comandante militar, nomeando-se um novo comandante; depois de este chegar a Díli, aguardar-se-iam algumas semanas até “chamar” Alves Aldeia a Lisboa; em seguida, nomear-se-ia um novo governador.15
20Na mesma altura, e a propósito da constituição das associações políticas, Alves Aldeia apontou a data de 13 de março de 1975 para a realização de um referendo sobre o estatuto político futuro, com três opções: autonomia com manutenção de laços a Portugal, independência ou integração na Indonésia (Lima 2002, p. 184), hipóteses que refletiam o posicionamento das associações constituídas, bem como as defendidas em Lisboa. De facto, a visita de Garcia Leandro e Rebelo Gonçalves coincidiu com o anúncio formal da criação da terceira associação, a APODETI, a 27 de maio. A existência de um grupo pró-indonésio era conhecida de há muito. Durante uma visita a Díli do governador de Timor ocidental, entre finais de fevereiro e início de março de 1974, tinham sido afixados alguns panfletos pró-indonésios e críticos da colonização portuguesa (Figueiredo 2018, 185-86). Relatórios militares e do Governo de Timor, prévios à formalização da APODETI, assinalavam o perigo de uma ação indonésia e possíveis ações clandestinas, bem como a ação de membros do consulado indonésio em Díli, que, posteriormente, o major Leandro assinalaria em relato sobre a visita a Timor. Ramos-Horta (1994, 89) salientou igualmente o sentimento antiportuguês do cônsul indonésio e a sua responsabilidade na desestabilização política em 1974/1975.
- 16 Supintrep 4/74 de contrassubversão do período de abril de 1974, por Alves Aldeia, 16-05-1974, e mem (...)
21Em relatórios e memorandos de maio de 1974, Alves Aldeia assinalava a preocupação, entre a população timorense “evoluída”, quanto ao abandono de Portugal e a uma provável absorção pela Indonésia. A comunidade muçulmana local reagira ao programa do MFA não escondendo tendências pró-indonésias, e havia notícias sobre movimentações de um grupo ligado a uma anterior revolta, em 1959, contra o governo português, ao qual aquela comunidade se poderia associar.16 Estas informações, aliadas à transposição para Timor do programa do MFA, incentivando a liberdade de expressão e de associação, e instruções recebidas de Lisboa para manter boas relações com a Indonésia, terão estado na base das diligências portuguesas, em particular de Arnao Metello, para formalizar a APODETI. Metello, inclusive, promoveu, em sua casa, encontros com os seus fundadores, que lhe valeriam posteriores críticas (Aguiar 1977, 577). Também em cumprimento dessas instruções, e sob ordens de Alves Aldeia, Metello deslocou-se a Kupang, entre 17 e 19 de maio, para apresentar a nova situação política portuguesa a El Tari, governador de Timor indonésio.
- 17 Ofício n.º 5500 da Direção-Geral dos Negócios Políticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MN (...)
- 18 Telegrama n.º 35 de Arnao Metello para o CEMGFA, 03-06-1974, ADN/CEMGFA/022/0051/002; telegrama n.º (...)
22Aldeia fez, nos primeiros dias, um esforço para gerir a sua atividade no sentido do que supunha ser a nova orientação do governo português. Em entrevista publicada no diário de Jacarta Sinar Harapan de 24 de maio, o governador salientou a não interferência do governo nos assuntos dos partidos políticos, adiantando que competiria aos timorenses escolher o seu futuro e decidirem “continuar portugueses ou pelo contrário optarem pela Indonésia”,17 uma posição com eco em Lisboa. James Dunn, de visita a Timor em junho de 1974, terá concluído que o governador só concebia essas duas opções, e que Metello se inclinava a discordar dele, vincando a necessidade de assegurar as diversas opções aos timorenses, incluindo a independência (Marcelino 2000, 49-50). Havia, apesar de tudo, a consciência de que a criação da APODETI podia suscitar dúvidas e animosidade, tanto mais que incluía indivíduos sobre os quais tinham, no passado, recaído acusações, ou por envolvimento na revolta antiportuguesa de 1959, ou cujo comportamento moral se questionava (Jolliffe 1978, 65; Hicks 2017, 56-57). Daí que Metello tenha, no início de junho, telegrafado ao CEMGFA a pedir informação sobre a legalidade da associação, e Alves Aldeia solicitado a orientação do MCI. A resposta só chegou oficialmente no fim de junho, com indicação de que a APODETI podia atuar sem entraves.18
- 19 FMS, Arquivo AAM, docs. 11008.040 e 11012.070.
- 20 Supintrep 5/74 de informações relativo a maio, 20-06-1974, FMS, Arquivo AAM, doc. 11011.033.
- 21 Cf. relatórios de informação militar do CTIT, FMS, Arquivo AAM, docs. 11008.067 a 11008.072.
23Ao longo do mês de junho, a CAT procurou dinamizar as suas atividades. Organizou sessões de esclarecimento à população e tentou trabalhar com todas as associações políticas, de que é exemplo a realização de um inquérito no sentido de conhecer o seu posicionamento quanto à descolonização, ao contexto político, e esclarecimento dos seus ideários e posição quanto à Indonésia.19 Se Metello auxiliou efetivamente a APODETI na sua constituição, dando justificação às imputações de favorecer a via da integração que os seus opositores mais tarde lhe fariam, a documentação disponível sugere que esta ação foi orientada pela vontade de proporcionar um ambiente democrático de debate, o que está patente nas suas intervenções e na posição que manifestou contrária a movimentos clandestinos. O próprio governador Aldeia assinalou, em informação militar, que o Comando se reunira com o “cabecilha do movimento de 1959” como medida preventiva de atitudes ilegais, pedindo-lhe colaboração para o esclarecimento político dentro do programa do MFA.20 Por outro lado, nas primeiras semanas a seguir à formação da APODETI, o CTIT irá manter uma vigilância apertada sobre a associação e atividades do consulado indonésio, com diversos relatórios produzidos, assinados por um elemento também integrante da CAT, o capitão Loureiro Cadete. Alguns desses relatórios apontavam atividades consideradas inconvenientes por parte da APODETI e do secretário do cônsul indonésio, que asseverara uma possível intervenção do seu país.21
- 22 Metello indicou, por exemplo, o timorense César Mouzinho, presidente da Câmara de Díli e fundador d (...)
24A partir do início de julho, o papel de Arnao Metello na CAT, e como delegado do MFA, passou a ser progressivamente contestado, e foi revertido com a chegada do tenente-coronel Níveo Herdade, destinado a substituir Alves Aldeia. Herdade tinha anteriormente servido sob o comando de Spínola na Guiné-Bissau e iria assumir uma tendência vincadamente spinolista, pouco recetiva a uma descolonização tendente à independência das colónias. Arnao Metello, nos primeiros dias, apontou-lhe os nomes daqueles que considerava como principais conservadores e descontentes com execução do programa político do MFA. Contudo, esses setores mais conservadores de Díli, nomeadamente alguns metropolitanos relutantes com o rumo da política nacional e dirigentes da UDT com funções de prestígio no quadro administrativo português, procurariam o apoio de Herdade, lançando críticas ao MFA, e acabaram por conseguir granjear a atenção e o apoio do encarregado do governo, fragilizando a posição do delegado do MFA.22
- 23 Cf. conjunto de telegramas secretos enviados pelo governador de Timor ao MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de (...)
- 24 Adenda ao relatório sobre a visita a Timor, por Garcia Leandro, 02-07-1974, ADN/CEMGFA/015/030/006; (...)
25O nome do tenente-coronel Herdade para Timor surgiu muito cedo. A primeira sugestão nesse sentido partiu do próprio governador Alves Aldeia, que, em meados de maio, o propôs para 2.º comandante militar, possivelmente para reforçar a sua base de apoio, já que depois propôs que aquele acumulasse também funções executivas como secretário-geral, ficando hierarquicamente a seguir a si. Deste modo, quando Garcia Leandro apresentou o plano para a substituição de Alves Aldeia, embora não intencionalmente, validou o nome de Herdade para comandante militar em Timor. Não admira, portanto, que, na véspera da chegada de Níveo Herdade a Timor (a 4 de julho, tomando posse no dia seguinte), Aldeia sugerisse que este ficasse também encarregado do governo.23 Quando Leandro teve conhecimento de que estaria na mente do Governo português nomear Herdade para governador, alertou para o inconveniente da acumulação das funções governativas e militares, propondo a análise de outros nomes para substituir Alves Aldeia.24 No entanto, a 15 de julho, quando Aldeia deixou Timor, Níveo Herdade assumiu as funções de encarregado do governo, sancionado pelo Governo português.
26Ao longo do mês de julho, os contactos entre Herdade e Metello foram demonstrando que os separavam divergências ideológicas e políticas. Metello pretendia conduzir o programa do MFA no caminho da autodeterminação de Timor, dando possibilidade de expressão às diferentes tendências das associações timorenses. Para orientação superior, recorria ao CEMGFA e não ao MCI, enquadrado nas suas funções militares e de delegado do MFA. Já Níveo Herdade se tinha de manter contactos com o CEMGFA por via das suas funções de comandante militar, politicamente, enquanto encarregado do governo, dependia diretamente do MCI. Os contactos entre ambos, registados nas notas pessoais de Arnao Metello, ilustram vários aspetos que os separavam, à medida que a situação política se desenvolvia, com Herdade procurando diminuir a influência dos elementos próximos do MFA, empenhados no debate sobre a descolonização.
- 25 Tratava-se do alferes Chrystello, que publicou as suas memórias em 1999. Cf. testemunho de Herdade (...)
27Após tomar conta das funções de encarregado do governo, Herdade demonstraria a sua preocupação com a liberdade de expressão concedida, nomeadamente nos órgãos de comunicação. No mesmo dia da partida do governador Aldeia para Portugal, a 15 de julho, saíra o primeiro número do jornal da APODETI, O Arauto de Sunda. Foi o primeiro a ser publicado por uma das associações políticas, e, apesar de esta ser claramente minoritária, demonstrava capacidade de financiamento para divulgar o seu ideário. Pouco depois, surgiram críticas em torno da orientação da Voz de Timor, em especial quanto ao progressismo que surgia nas suas páginas, em consonância com a linha política do MFA. O encarregado do Governo, dando voz a apreciações de elementos ligados à UDT e de alguns portugueses conservadores, defendeu que se deviam efetuar mudanças no jornal, pedindo a Arnao Metello a substituição do chefe de redação.25
- 26 Em alusão aos contactos desenvolvidos pela ASDT e APODETI, em particular à visita de Ramos-Horta a (...)
- 27 FMS, Arquivo de AAM, docs. 11012.074 e 11012.075.
- 28 Cf. Riscado et al. (1981).
28Herdade também manifestou a Metello uma desconfiança face à missão deste como delegado do MFA. As críticas sobre a condução da política local alargaram-se aos restantes membros da CAT, cujo próprio nome Herdade considerou ter sido prematuro. Progressivamente, o encarregado do Governo endureceu a sua posição. Comentava depreciativamente a atuação do exército em Timor e chegou a declarar a Metello que considerava os partidos “perigosos” e “artificiais”. Manifestando não gostar da palavra descolonização, acusou o MFA de imaturidade e considerou que os contactos “oficiosos” com a Indonésia e a Austrália eram inconvenientes,26 defendendo que só Lisboa devia liderar o processo.27 Ao ser convidado para governador, Herdade recusou, alegando não aceitar que a política da província fosse comandada por outro que não o governador e não saber trabalhar controlado, adiantando que não concordava com a política que estava a ser seguida em Timor, que caracterizou de apressada, desajustada e mesmo perigosa.28 As divergências entre os dois mais altos responsáveis da administração portuguesa em Timor contribuíram para um clima de desestabilização e de insegurança com repercussões no meio militar e civil, conforme veio a concluir a Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor (Riscado et al. 1981). No entanto, deve ser realçado que este confronto foi simultâneo a acontecimentos que, em Lisboa, ilustram o braço de ferro entre o MFA e os apoiantes de Spínola, principalmente devido ao problema colonial.
29Spínola teve a primeira derrota política na condução da política colonial com o seu afastamento dos acordos de julho de 1974, com o PAIGC, para a independência da Guiné-Bissau. A aprovação da Lei n.º 7/74, em 27 de julho, que definitivamente fixou o direito das colónias à autodeterminação, incluindo o seu direito à independência, e revogou o artigo 1.º da Constituição de 1933, ainda em vigor, que fixava os domínios do território português, fechou ainda mais a porta ao projeto spinolista, favorecendo os propósitos do MFA, já com presença reforçada no governo chefiado por Vasco Gonçalves, que sucedera à queda do I Governo Provisório, de Palma Carlos. As forças conservadoras em Lisboa foram gradualmente, a partir do verão de 1974, colocadas em cheque perante o poder que os dirigentes do MFA iam conquistando nas negociações com os movimentos de libertação africanos. Spínola acabou por apresentar a demissão no final de setembro e o MFA reforçou a sua posição tendente à rápida descolonização (Maxwell 2006, 214-15).
- 29 Este posicionamento do ministro consta de documento elaborado no MCI intitulado “Esboço de uma linh (...)
- 30 FMS, Arquivo AAM, doc. 11012.075.
- 31 Metello registou, em apontamentos pessoais, que Mário Carrascalão lhe afirmara que o boato fora inc (...)
30A Voz de Timor de 2 de agosto publicitou a vitória do MFA sobre as teses spinolistas e publicou um artigo a propósito da Lei n.º 7/74, sob o título “Independência do ultramar, caminho irreversível”. A 3 de agosto, enquanto Mário Soares se deslocou à ONU, onde discursou sobre o rumo da descolonização portuguesa, em Lisboa Almeida Santos proferiu uma polémica intervenção numa mesa-redonda sobre o tema. Nela, o ministro caracterizou Timor como um “transatlântico imóvel” e caro para Portugal, mas ao mesmo tempo destacou a inviabilidade da sua independência. Aludiu a um suposto desinteresse da Indonésia e defendeu que a realização de um plesbicito era pouco realista, para definir a única solução aparentemente possível – a continuidade da ligação a Portugal. As suas expressões não agradaram a qualquer das associações timorenses, e acabaram por causar desorientação sobre o rumo da descolonização de Timor (Santos 2006, 293-94).29 Foi neste contexto que, no início de agosto, segundo notas pessoais de Arnao Metello, começou a circular, em Díli, a afirmação de que ele estaria a preparar a entrega de Timor à Indonésia, por diretivas de Lisboa.30 A sua visita a Timor ocidental em maio, para explicar ao governador indonésio a mudança política portuguesa, e o apoio à formação da APODETI foram factos utilizados para dar corpo ao rumor. A 12 de agosto, numa reunião da CAT com a UDT, Metello enfrentou uma postura abertamente negativa contra si e apurou que o boato fora incentivado por um dos portugueses hostis ao programa do MFA, que influenciara as posições de membros da direção da UDT.31
- 32 FMS, Arquivo AAM, docs. 11012.072.
- 33 FMS, Arquivo AAM, docs. 11012.074 e 11012.071. Veja-se ainda o telegrama 170, pessoal e secreto, de (...)
31Com a posição de Metello e as suas relações com Herdade a deteriorarem-se, o major procurou o apoio de Costa Gomes. Em 18 de agosto, esboçou vários rascunhos de uma carta pessoal, relatando a sua ação e os acontecimentos desde abril de 1974.32 Pedia para ir a Lisboa expor pessoalmente o problema, denunciando o agravamento da situação político-militar e a crítica destrutiva e desprestigiante à sua ação e ao MFA. Sucederam-se contactos por telegrama e telefonemas pessoais para o CEMGFA. Durante estes contactos, o major Garcia Leandro indicou a Metello que se estaria a estudar a possibilidade de uma solução para Timor, nomeando Leandro para governador. Metello decidiu manter silêncio sobre os conflitos perante os restantes oficiais, em respeito pela disciplina e hierarquia militar, embora fizesse saber superiormente que isso poderia aumentar a desorientação no exército e nas associações políticas, o que de facto aconteceu.33
- 34 Patente no teor dos relatórios que apresentou ao MCI. Cf. AHU, Espólio de António de Sousa Santos, (...)
- 35 Relatório de Sousa Santos de 09-09-1974, AHU, cit., e notas de Arnao Metello, FMS, Arquivo AAM, doc (...)
32A 24 de agosto, chegou a Timor o inspetor António de Sousa Santos, enviado pelo ministro Almeida Santos com o fim de observar a situação. Sousa Santos tinha anteriormente servido em Timor, era primo do ministro e padrinho de um dos membros fundadores da UDT. Além do mais, o seu posicionamento face às colónias era o de um spinolista convicto.34 Num contexto instalado de esgrimir de posições divergentes quanto à descolonização, a chegada de Sousa Santos contribuiu para reforçar o núcleo mais conservador e cercear a posição do delegado do MFA. Sousa Santos relataria ao MCI que, logo na chegada a Díli, intercedera junto do presidente da Câmara, o membro da UDT César Mouzinho, para impedir uma manifestação em que o principal visado das acusações seria Metello. Todavia, este último, nos seus apontamentos, refere que a manifestação era, na realidade, de protesto contra as afirmações proferidas por Almeida Santos no início do mês, criticadas pela UDT na Voz de Timor de 23 de agosto.35
- 36 Tal sucedia porque o equipamento de escuta e gravação utilizado antes do 25 de Abril pela PIDE/DGS (...)
- 37 Telegrama 184, confidencial, de Arnao Metello para o CEMGFA, ADN/CEMGFA/022/0051/002. Sobre as alte (...)
33Entretanto, Metello toma conhecimento de que os seus contactos telefónicos com Lisboa eram escutados, gravados e analisados pelo encarregado do governo e outros elementos da sua confiança.36 Acusado de manter um canal paralelo de comunicação com Lisboa, o major solicitou um inquérito à sua atuação. Ao mesmo tempo, em contexto de desorientação e ambiguidades da política portuguesa e dos seus mais altos responsáveis, as associações políticas timorenses reorganizavam-se internamente. Incapaz de controlar o desenrolar dos acontecimentos, Metello chegou a informar Lisboa da preparação de uma “frente revolucionária”, que se poderia radicalizar com a prevista chegada de Portugal de estudantes ligados à Casa dos Timores, demonstrando pleno conhecimento das alterações em curso no seio da ASDT, que dariam origem à sua reconfiguração como FRETILIN.37
- 38 FMS, Arquivo AAM, docs. 11009.039 e 11008.029.
- 39 Relatório de António de Sousa Santos, 09-09-1974, AHU, cit.
34A CAT reuniu-se para analisar a situação. Esboçaram-se minutas de cartas a pedir superiormente uma solução para a crise no governo em Timor, o estabelecimento de uma forma de autodeterminação com a colaboração das associações e o estudo da viabilidade da formação de um governo provisório de coligação. Equacionou-se também a própria demissão da comissão.38 Para o isolamento da CAT e de Metello contribuiu o inspetor Sousa Santos, que comunicou a Herdade e a Lisboa a sua opinião: a comissão era imatura e Metello apologista da APODETI, devendo ser mandado de imediato para Lisboa.39 A sugestão de Sousa Santos, todavia, cruzou-se com os pedidos de ida a Portugal formulados pelo próprio Metello, desde início de agosto. A 5 de setembro, Garcia Leandro comunica a Metello que o general Costa Gomes o ia mandar chamar, o que pode indiciar ser uma decisão de elementos ligados ao MFA, mais do que pressões feitas por Níveo Herdade junto do MCI, sob influência do inspetor Sousa Santos (que regressou a Lisboa a 4 de setembro). Arnao Metello deixou Díli em 11 de setembro, pela mesma altura em que é anunciada a FRETILIN e que chega a Timor um grupo de estudantes da Casa dos Timores, que nela se integrariam, contribuindo decisivamente para a sua progressiva radicalização.
35Entre setembro e outubro, já em Portugal, Metello efetuou várias diligências, desenvolvendo-se a hipótese de acompanhar Garcia Leandro numa eventual nomeação deste para governador de Timor. Na sua agenda pessoal registam-se reuniões na comissão coordenadora do Comando Operacional do Continente, encontros com Costa Gomes e Leandro, vários telefonemas para Timor e menções a contactos com o major Francisco Mota, membro do MFA que depois integraria a futura equipa governativa em Timor. Ao nível governamental, decidiu-se a visita de Almeida Santos ao território, que se realizou em meados de outubro, coincidindo com outro evento importante, ao qual Arnao Metello se encontra ligado – a visita a Portugal do general indonésio Ali Murtopo, acompanhado dos embaixadores da Indonésia em Paris e Bruxelas.
- 40 Jorge Campinos encontrara-se, em setembro de 1974, com Franciscus Seda, embaixador indonésio em Bru (...)
- 41 Relatório muito secreto de Arnao Metello, 16-10-1974, AHU/UM/MCI/Pasta 5.
36Murtopo teve um conjunto de reuniões secretas, a 14 e 15 de outubro, com o Presidente Costa Gomes, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, o ministro sem pasta Melo Antunes, o secretário de estado dos Negócios Estrangeiros, Jorge Campinos,40 e com o secretário de estado da Administração do MCI, Deodato Coutinho. Metello assistiu a uma das reuniões, em que estiveram presentes os representantes indonésios, Melo Antunes e Deodato Coutinho, redigindo um relatório sobre o teor da conversa. Nele destacou que Murtopo não escondera que a ideologia da FRETILIN preocupava a Indonésia, vincando a inviabilidade da independência. Segundo Metello, o general indonésio interpretara a atuação portuguesa de forma deficiente ou tendenciosa, deduzindo que Portugal não reagiria negativamente a uma eventual ligação de Timor à Indonésia como forma de autodeterminação, podendo mesmo ter abertura para limitar ou condicionar a FRETILIN.41
- 42 Telegrama secreto, do secretário de estado da Administração para Almeida Santos, 16-10-1974, AHU/MU (...)
- 43 Veja-se ainda o depoimento de Níveo Herdade à Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de D (...)
- 44 FMS, Arquivo AAM, doc. 11007.031.
37A atitude ambígua das autoridades portuguesas acabou sendo favorável a este entendimento pela Indonésia. Almeida Santos, que se dirigia a Timor, recebeu do seu secretário de estado um telegrama solicitando que o ministro, nos seus discursos, se abstivesse de mencionar a hipótese da independência ao mesmo nível que a da continuidade com Portugal ou a da integração na Indonésia,42 o que veio a acontecer (Santos 2006, 299). A visita do ministro a Timor e o teor das suas intervenções públicas pareciam denotar a derrota dos apoiantes de um processo de descolonização em que a independência fosse considerada uma opção efetiva, como defendido pela FRETILIN e incentivado pelo MFA. Não eram muitos aqueles que encaravam a hipótese de um Timor independente como sendo séria. Almeida Santos, que não ignorava a proximidade entre Leandro e Metello, não levantou obstáculos aos que, em Timor, pessoalmente lhe recomendaram que não nomeasse Leandro para governador, optando por o indicar para Macau (Santos 2006, 304).43 Metello, em notas pessoais, comentou que o ministro tinha cedido a uma “campanha de boatos” contra si e Leandro, que os seus discursos demonstravam um “partidarismo sentimental”, e teriam como consequência radicalizar a FRETILIN, movimento que era imprevidente subestimar, e até a própria APODETI.44
- 45 A comissão de Metello como chefe do Estado-Maior do CTIT foi terminada em 28 de outubro, sendo colo (...)
38Almeida Santos, ao fazer cair por terra a ideia de Garcia Leandro vir a governar Timor, forçou o Presidente da República a aceitar alternativas. Quanto a Arnao Metello, Costa Gomes optou por terminar a sua comissão, embora mantivesse a confiança nele e não o afastasse do processo de descolonização.45 A solução para o cargo de governador de Timor seria a nomeação de um oficial não conotado com a problemática vivida naquele território. A escolha recaiu no tenente-coronel Mário Lemos Pires, formalmente proposto por Almeida Santos ao primeiro-ministro a 29 de outubro, e aprovado no dia seguinte. Da influência que Metello terá tido na nomeação da nova equipa, conforme afirmado por alguns autores, pouco é possível confirmar a partir da documentação disponível. A nova equipa parece, na realidade, refletir uma espécie de compromisso entre o MFA e uma tendência mais conservadora, já que o novo governador tinha sido, até fim de setembro, chefe de gabinete de Firmino Miguel, quando este saiu de ministro da Defesa por ser da confiança de Spínola.
- 46 Barrento (2016, 109) refutou as afirmações feitas por Luís Thomaz de que boa parte dos colaboradore (...)
- 47 Carta de Francisco Mota para Arnao Metello, 01-12-1974, FMS, Arquivo AAM doc. 11013.028.
39Quando convidado para Timor, Lemos Pires dispôs de um dia para aceitar e de pouca margem para selecionar a equipa. Foram da sua escolha o Dr. Libânio Pires, anterior chefe de gabinete de Spínola, e o major Martins Barrento, escolhido para chefe do Estado-Maior.46 Lemos Pires trocou impressões com Metello, sobretudo para conhecer as consequências da visita do general Murtopo (Pires 1991, 60). Quanto aos restantes elementos da equipa, apenas figuram na agenda pessoal de Metello contactos com o major Francisco Mota, que seria um dos elementos mais ativos no processo de dinamização política em Timor, em 1975, nada constando relativamente ao major Jónatas. Das ligações entre Mota e Metello, e da nova orientação para Timor, apenas há registo de uma carta pessoal do primeiro, escrita no início de dezembro de 1974, em que afirma: “A equipa que chegou deu o tom ao rumo futuro. Descolonização é palavra de ordem e o diálogo amplo com todas as correntes políticas é diário. De todo este trabalho, que tem sido concorrente com a reestruturação da tropa, já começaram a resultar alguns efeitos. Os partidos, sobretudo a FRETILIN, moderaram-se; pela primeira vez a APODETI elogiou o Movimento das Forças Armadas”.47
40Após o 25 de Abril de 1974 iniciou-se, em Timor, um processo para esclarecimento da população, por parte dos representantes político-militares, sobre o novo contexto político e os objetivos do MFA relativos à descolonização. Todavia, a falta de orientações claras e a evolução da política nacional e local geraram mais dúvidas do que seguranças, tornando titubeante o processo de autodeterminação e descolonização em Timor. À saída do governador Aldeia, oriundo do regime político anterior, seguiu-se prolongada indefinição sobre a direção desse processo. No verão de 1974, os conflitos entre os principais responsáveis políticos e militares no território, em particular entre o major Arnao Metello, delegado local do MFA, e o tenente-coronel Níveo Herdade, encarregado do governo, espelhavam o digladiar das diferenças que se jogavam em Lisboa entre o MFA e os apoiantes de Spínola, quanto ao futuro das colónias. Neste contexto de indefinição, as autoridades centrais de Portugal não deram atenção adequada à situação de Timor, atuando ambiguamente, deixando as principais associações políticas timorenses, rapidamente formadas, à mercê dessa ambivalência. A situação contribuiu para questionar o programa do MFA e a atuação do governo português, lançando desconfianças sobre a descolonização, explorando-se divergências locais e gerando um clima propício a maior radicalização e diferenças de objetivos entre as associações políticas.
41Embora datem do período analisado as primeiras acusações de que Arnao Metello foi mentor da APODETI e apoiante da tese da integração de Timor na Indonésia, esses pressupostos carecem de reinterpretação. Algumas ações de Metello foram instrumentalizadas pelos seus oponentes, permitindo que as imputações que lhe foram dirigidas fossem propaladas ao longo dos anos, nomeadamente por parte de setores politicamente conservadores, alguns ligados à UDT, que viram gorada a possibilidade de Timor se manter sob influência portuguesa, num eventual esquema federativo. Ora, a documentação coeva dá indicações no sentido oposto. Metello terá atuado sob certa dose de idealismo para garantir que as três opções lógicas tivessem correspondência no terreno, e por isso empenhou-se em trazer à luz do dia os defensores da integração na Indonésia. Também as lutas que travou em 1974, em Díli e depois em Lisboa, sugerem que o seu posicionamento estava em linha com o do MFA, preconizando um ato de autodeterminação informada. Finalmente, se é possível comprovar que foi equacionada a eventualidade de Arnao Metello vir a assumir funções mais altas em Timor, quando Garcia Leandro esteve considerado como possível governador de Timor, a sua suposta influência na seleção da nova equipa governamental, liderada por Lemos Pires, não é clara e necessita de ulterior investigação.