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O movimento sindical nos casinos em Portugal, 1925-1974

Brief History of Trade Unionism in Portuguese Casinos, 1925-1974
Le mouvement syndical dans les casinos au Portugal, 1925-1974
João Gomes
p. 107-130

Resumos

A história do movimento sindical nos casinos foi determinada, em grande medida, pela existência das gratificações (gorjetas). Ao contrário do que sucede na maioria dos contextos profissionais, o salário nunca representou, historicamente, a principal componente remuneratória dos pagadores de banca (dealers/croupiers). Desta forma, em detrimento de uma luta potencialmente unitária pelo salário, a dinâmica associativa e sindical destes trabalhadores caracterizou-se pela fragmentação das suas categorias profissionais na luta pela apropriação das gratificações. Este artigo, resultado de uma pesquisa documental e arquivística, procura perceber de que forma a existência das gratificações influenciou o movimento associativo e sindical nos casinos, em contraste com o sector da hotelaria, também ele altamente dependente das gorjetas.

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1A história da regulamentação do jogo em Portugal é caracterizada pela tensão permanente entre “tolerância” e “repressão” (Vaquinhas 2006). Moralmente condenado e legalmente proibido desde as Ordenações Afonsinas, no século XV, o jogo proliferava por todo o território nacional, pelo menos, desde o século XIX (Crespo 1981 e 2012). Entre 1900 e 1902, existiam 17 cafés onde se jogava na Póvoa de Varzim, sete na praia de Espinho, seis na Figueira da Foz e oito em Cascais (Vaquinhas 2006). Mas este fenómeno não se remetia, exclusivamente, às estâncias balneares e ao regime monárquico. Na década de 1920, Lisboa possuía 35 casas de jogo. José de Ataíde, director da primeira Repartição do Turismo criada em Portugal, referia em 1911:

Em modestas aldeias do Norte, em confortáveis vilas do Alentejo e Algarve jogava-se fortemente, com paixão, sem conta nem medida. Do Norte ao Sul do país, como um polvo de colossais dimensões, o jogo estendia os seus formidáveis tentáculos, asfixiando nas suas ventosas milhares de indivíduos. (Apud Pina 1988, 47)

  • 1 Ver Pedro Guimarães, “Estudo sobre o jogo” (1946). Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de (...)

2Assim, os trabalhadores desta indústria informal possuíam um mercado de trabalho amplo e diverso. No entanto, empurrados para a ilegalidade, subsistiam graças à prática quase institucionalizada das gorjetas e permaneciam alheios a um movimento associativo que havia despontado na primeira metade do século XIX (Fonseca 1979; Silva 2011). A sua actividade profissional era precária e incerta, as suas condições de trabalho informais e os seus rendimentos circunstanciais. A legalização do jogo em Portugal surge apenas em 1927 (decreto-lei nº 14 643, de 3 de Dezembro), já no contexto da Ditadura Militar (28 de Maio de 1926), que levaria, alguns anos mais tarde, à ascensão de António de Oliveira Salazar ao poder (Vaquinhas 2006; Deus e Lé 2016 e 2017). Mas a regulamentação do jogo não foi sinónimo de liberalização. Pelo contrário, a regulamentação visava isolar a actividade em determinadas “zonas de jogo” legalmente definidas pelo estado e garantir o monopólio da sua exploração (decreto-lei nº 14 643, de 3 de Dezembro). Este documento estabelecia duas “zonas de jogo permanentes”: o Estoril e o Funchal; e seis “zonas de jogo temporárias” (abertas de 1 de Junho a 31 de Outubro): Santa Luzia (transferida, posteriormente, para a Póvoa de Varzim), Espinho, Curia, Figueira da Foz, Sintra e Portimão. No entanto, apenas Estoril, Espinho, Póvoa de Varzim e Figueira da Foz funcionaram ininterruptamente (Guimarães 1946).1 Mais grave ainda, destas, apenas o Estoril era uma “zona de jogo permanente”. Assim, a regulamentação do jogo contraiu, abrupta e violentamente, o mercado de trabalho no sector do jogo.

3Mimetizando o isolamento em “guetos de riqueza” (Lefebvre 2011, 98) a que a indústria do jogo havia sido votada, os trabalhadores dos casinos rapidamente se apropriaram desta característica, manipulando-a para seu próprio benefício. O isolamento e o reduzido mercado de trabalho, aperceberam-se, poderiam ser utilizados como armas, permitindo assegurar privilégios profissionais através da implementação de práticas de “oclusão social” (Weber 1968; Parkin 1979). Em particular, estes trabalhadores procuraram controlar o seu mercado de trabalho, restringindo o acesso às suas categorias profissionais e impedindo a vulgarização da sua “arte” (Mónica 1986). Os profissionais dos casinos, pela insistência na protecção e “oclusão” das suas competências técnicas, aproximavam-se mais do movimento associativo dos “artistas” que do sindicalismo operário. As tendências corporativas da Associação de Classe (AC) e as práticas de “closed shop” mobilizadas pelo Sindicato Nacional (SN) do sector do jogo, sempre protegidas pelo estado, reforçavam a distância destes profissionais em relação ao restante movimento sindical. Os privilégios profissionais, que necessitavam de tão desesperada protecção, eram as gratificações (gorjetas).

4Ao contrário do que sucede na maioria dos contextos profissionais, o salário nunca representou, historicamente, a principal componente remuneratória dos pagadores de banca (dealers/croupiers) dos casinos em Portugal. Ao invés, foram as gratificações que sempre assumiram esse papel. Desta forma, não surpreende que a dinâmica associativa e sindical do sector do jogo tenha, sistematicamente, privilegiado as gratificações, em detrimento do salário. Mas a negligência do salário e a priorização das gratificações produziram dinâmicas associativas peculiares. Os trabalhadores dos casinos não lutam pelo salário, mas pela apropriação das gratificações, não se aglutinam contra o patronato, mas fragmentam-se internamente entre categorias profissionais. Em particular, a AC e o SN do sector do jogo, hegemonizados pela categoria profissional dos pagadores de banca, procuraram sempre formalizar, junto do estado, as regras para a distribuição assimétrica das gratificações.

5Mas como justificar a especificidade desta dinâmica sindical, resultado da existência das gratificações, em contraste com o sector da hotelaria, onde as gorjetas também assumiram um papel determinante (Nunes 2007 e 2015)? As gratificações influenciaram, decisivamente, os dois movimentos associativos. Elas impediram, subjectiva e objectivamente, a completa transformação destes trabalhadores em operários. No entanto, os trabalhadores do sector hoteleiro pretendiam integrar-se na categoria de “trabalhadores assalariados”, enquanto os profissionais dos casinos, mimetizando o isolamento e o exclusivismo da indústria do jogo, procuravam distanciar-se da classe operária. Desta forma, as gratificações, no sector do jogo, funcionaram como aquilo que Bourdieu (2010) designa como um mecanismo de “distinção” material (rendimentos) e simbólico (estatuto). Este artigo, baseado numa investigação documental e arquivística, procura analisar o papel das gratificações na constituição das dinâmicas associativas do sector do jogo, em contraste com o sindicalismo dos trabalhadores hoteleiros. Esta escolha não é arbitrária, dada a preponderância das gorjetas nestes dois sectores de actividade. Importa referir, igualmente, que os casinos empregam um conjunto muito diversificado de trabalhadores. No entanto, este artigo debruça-se, exclusivamente, sobre os profissionais de banca, dada a sua posição hegemónica no movimento sindical dos casinos e restringe-se ao período da AC (1925-1934) e do SN (1934-1974).

1. A Associação de Classe (1925-1934)

6Nos finais do século XIX e inícios do século XX, o sindicalismo afirmou-se definitivamente em Portugal (Silva 2011). Se o sindicalismo reformista e socialista impulsionara o primeiro esforço do associativismo operário, era agora o anarco-sindicalismo que ganhava protagonismo (Fonseca 1979; Nunes 2007). A repressão monárquica e republicana, no entanto, acompanhava de perto esta crescente dinamização da classe operária. Apesar das promessas de democratização social e política, a I República rapidamente adoptou as políticas punitivas que haviam vigorado durante os últimos anos do regime monárquico, procurando impor um “travão” ao movimento sindical (Silva 2011, 43). Às greves cada vez mais frequentes e a um associativismo cada vez mais organizado, o regime respondia com detenções e encerramento de sindicatos (Nunes 2007).

7Logo em 1911, realizava-se o Congresso Sindicalista, era fundada a União dos Sindicatos Operários e inaugurada a Casa Sindical de Lisboa, onde se viriam a instalar 34 sindicatos. Em 1913, já a Casa Sindical havia sido encerrada três vezes pelo governo. Em 1914, constituía-se a União Operária Nacional (UON), a primeira central sindical portuguesa, mas, em 1916, o Governo Civil de Lisboa ordenava a sua dissolução. Esta não obedeceu e manteve-se em funcionamento. A Primeira Guerra Mundial, como tal, não alterou, fundamentalmente, esta dinâmica. A I República, com toda a sua instabilidade política e parlamentar, mostrava-se incapaz de reprimir eficazmente o movimento sindical e este, procurando consolidação, não conseguia impor, definitivamente, o facto sindical ao regime. Em 1919, a UON transformava-se em Confederação Geral do Trabalho (CGT), de influência anarquista, e, em 1924, o recém-fundado Partido Comunista Português (PCP) começava a granjear algum protagonismo no movimento sindical. A repressão, as detenções e o encerramento de casas sindicais articulavam-se agora com as profundas divisões que, a partir da década de 1920, começavam a emergir no interior do movimento sindical, nomeadamente, entre as correntes socialistas, anarco-sindicalistas e comunistas. “Dividido e enfraquecido”, o movimento sindical não opôs resistência ao golpe militar de 1926 (Silva 2011, 82). Instaurada a Ditadura Militar, a repressão sindical intensificou-se.

  • 2 A 30 de Outubro de 1928 nascia, por sua vez, a Associação de Classe dos Empregados dos Clubs e Ca (...)

8É neste contexto que surge o primeiro esforço organizativo dos trabalhadores da indústria do jogo. Despertando tarde, num momento de divisão e num contexto repressivo, o sector do jogo ignora toda a história do associativismo português. As correntes ideológicas que o haviam hegemonizado não ganham aí qualquer preponderância. Emergindo, fundamentalmente, como um sindicato de ofício, ele não possui quaisquer ambições mais amplas. Esse primeiro esforço materializa-se, então, em 1925, dois anos antes da regulamentação do jogo. Por alvará de 7 de Fevereiro, formalizava-se a fundação da Associação de Classe dos Empregados dos Clubs e Casas de Recreio de Lisboa (ACECCRL).2 O surgimento de uma associação de classe com o objectivo de defender os interesses dos trabalhadores do sector do jogo contrastava com a inexistência de uma actividade legal ou juridicamente reconhecida como passível de ser defendida. Tal peculiaridade resultou na obliteração deliberada da palavra “casino” da denominação oficial da associação. Desta forma, a ACECCRL surgia, primeiro, como instrumento de solidariedade dos trabalhadores deste ramo profissional. Tal como tantas outras associações, a ACECCRL foi constituída com base no “velho conceito de fraternidade da sociedade medieval” (Silva 2011, 20), isto é, as suas acções direccionavam-se, quase exclusivamente, para a angariação de fundos e posterior distribuição pelos mais necessitados, desempregados, incapacitados e reformados. Em segundo lugar, a associação procurava assegurar a protecção remuneratória e contratual dos seus associados. Por fim, a ACECCRL assumia, como objectivo, a legalização da indústria do jogo e a consequente institucionalização das categorias profissionais por si representadas, que se encontravam destituídas de qualquer protecção legal.

  • 3 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 5. Arquivo Histórico na Áre (...)
  • 4 ARQUESOC, 1932, s/p.

9Defender a legalização do jogo em Portugal e as condições contratuais e laborais dos seus associados significava, para a ACECCRL, enfrentar toda uma moralidade adversa aos jogos de fortuna e azar presente à época na sociedade portuguesa (Vaquinhas 2006 e 2012; Deus e Lé 2016 e 2017; Crespo 2012). O jogador, como o alcoólico, contradizia os ideais republicanos do “Homem Novo” e do “patriotismo cívico” (Ramos 2011), que valorizavam as características de “bom pai” e de “trabalhador disciplinado e honesto” (Vaquinhas 2011, 322). O jogo era, portanto, uma actividade “desviante”, representando a “degenerescência” e a “decadência” humanas. Por esse motivo, a ACECCRL procurou, desde cedo, salientar os benefícios económicos e financeiros da legalização do jogo. A associação, no Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas relativo a 1929 e publicado a 23 de Fevereiro, defendia que o jogo era “mais um prazer que um vício” e que poderia fomentar o desenvolvimento local e turístico das regiões através do aproveitamento de receitas por parte do estado e dos municípios.3 Contra o velho argumento que insistia na obscenidade da prática do jogo, a ACECCRL reiterava que obscena era a situação social dos seus representados e que os preconceitos em relação ao jogo eram suportados por uma “moral sem consistência e velha”, uma “moral sediça e obsoleta, apenas preocupada com conveniências exteriores”. Por essa razão, em correspondência com o administrador do Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Geral (ISSOPG), datada de 1 de Março de 1932, a AC defendia a necessidade de instituir a “ordem moral” e “material” na vida dos seus associados que, antes da regulamentação do jogo, era “odiosa, vexatória e anormal”.4

10Para legitimar a regulamentação do jogo, o estado havia utilizado os mesmos argumentos da associação, salientando os seus potenciais benefícios económico-financeiros. No preâmbulo do decreto-lei nº 14 643 de 1927, o legislador reiterava:

Houve sempre uma proibição legal expressa, a par do jôgo campeando nas praias, nas termas e até nas cidades, como Lisboa e Pôrto. […] Inaugurado o Govêrno da Ditadura Militar, de novo a tentativa surgiu, mas agora em condições de se converter em realidade, porque a Ditadura, não carecendo de uma clientela, não tinha que sucumbir aos interesses molestados com a regulamentação do jogo. Com a regulamentação que se preparou, o Estado procura tirar o máximo de receita do jôgo, deixando bem claras e patentes quais as pessoas que poderão jogar e quais as condições em que tal será permitido.

  • 5 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 3-8. ARQUESOC.

11Esta primeira regulamentação do jogo reflectia o seu cariz economicista e pragmático. Referia-se ao jogo como um mal necessário, lançando suspeitas sobre o sucesso da sua proibição generalizada. No entanto, a ACECCRL não ficou satisfeita com as disposições legais constantes no diploma, afirmando que o decreto publicado não havia levado em conta os interesses da associação. No relatório da direcção de 1929, a ACECCRL afirma que “a mais grave crise da […] profissão” começou com a regulamentação do jogo.5 Refere que, expirado o primeiro ano de concessão, nem para o estado, nem para os profissionais, nem para os industriais, a regulamentação do jogo “foi uma solução conveniente”. Segundo a associação, “nos países onde se faz turismo a valer, o jogo entra quer como principal elemento de atracção, quer como base do seu êxito perdurável”. Em Portugal, ao invés, o turismo encontra-se num “estado primitivo” e a regulamentação do jogo, mais do que liberalizar a actividade, permitindo encaixes financeiros significativos, restringiu e isolou o jogo, limitando a acção e o investimento nele realizados. Tal significou, na opinião da ACECCRL, a “morte” das localidades cujos “atractivos naturais não bastam como chamariz”. A associação manifestava-se, assim, contra o regime de concessão que paralisara o desenvolvimento económico e turístico das localidades e apelava à liberalização da indústria.

  • 6 ARQUESOC, 1932, s/p.
  • 7 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 9-11. ARQUESOC.

12Esta reivindicação, antagónica às correntes ideológicas que hegemonizavam o movimento sindical português, não era despropositada. Como referido anteriormente, a legalização do jogo obrigou a uma abrupta e violenta contracção do mercado de trabalho no sector. A liberalização, na opinião da ACECCRL, permitiria recuperar muitos dos postos de trabalho que, entretanto, haviam sido extintos. Através das “zonas de jogo temporárias”, a regulamentação do jogo introduziu, igualmente, uma enorme precariedade e sazonalidade laboral na vida destes trabalhadores. Naturalmente, a criação de um “exército industrial de reserva” (Marx 1990) e de uma força de trabalho flutuante foram instrumentalizadas pelo patronato. No mesmo relatório, a ACECCRL acusava, em particular, o Casino da Madeira, que, aproveitando-se da miséria em que se encontravam estes trabalhadores, oferecia ordenados máximos de 30$ diários e deixava os encargos de transporte por conta dos contratados. A regulamentação do jogo transformara a vida destes trabalhadores num “calvário penoso”, reduzindo-os à “máxima penúria”. Ao mesmo tempo, as condições de trabalho, apesar da legalização da actividade, permaneciam “desumanas” e “bárbaras”.6 Segundo a associação, a sua actividade caracterizava-se pela “permanência prolongada no local da prática de jogo” (que chegava às 12 e 14 horas diárias), pelas “despesas incomportáveis de alimentação” e pelas “despesas de residência” no caso das “zonas de jogo temporárias”.7 Para além destes factores, ACECCRL protestava ainda contra a perpetuação dos contratos verbais, dos horários de trabalho irregulares e dos quadros informais de pessoal.

13Desta forma, as principais reivindicações da associação consistiam: 1) no estabelecimento de contratos de trabalho, com a duração mínima de três meses, entre os sócios e as concessionárias por intermédio da AC; 2) na fixação de ordenados mínimos para os empregados de banca de 60$ diários, acrescidos de 15$ de ajudas de custo; 3) na determinação de horários de trabalho de oito horas diárias; 4) na divisão do trabalho em dois turnos compostos por igual número de empregados; e 5) na repartição integral das gratificações pelos empregados, “como se praticava anteriormente à regulamentação, visto ser essa, sem dúvida, a intenção dos parceiros [clientes] que as concedem”. Dado o histórico de ilegalidade e informalidade contratual e remuneratória que caracterizava a indústria do jogo, não surpreende que este caderno reivindicativo ainda contemple os ordenados. Por outro lado, também já constam deste documento as exigências relativas às gorjetas, nomeadamente, “à participação dos industriais nas gratificações que os parceiros lhes concedem, o que é uma prática indigna”.

  • 8 Estatutos da Associação de Classe dos Empregados dos Clubs e Casas de Recreio de Lisboa, 1924, 3. (...)

14Como veremos mais à frente, durante o regime corporativo, já a ACECCRL abandonara a reivindicação de liberalização da indústria do jogo, procurando, ao invés, instrumentalizar a reduzida dimensão do seu mercado de trabalho para seu próprio benefício. Por outro lado, a associação evidenciava já o seu carácter corporativo. A ACECCRL mimetizava o isolamento e o exclusivismo a que o estado sujeitara a indústria do jogo. Em primeiro lugar, como consta da primeira alínea do caderno reivindicativo de 1929, a associação pretendia mediar a contratação de novos profissionais, prática eminentemente corporativa. Em segundo lugar, os estatutos da associação, redigidos em 1924, estipulavam que a ACECCRL, pela sua “índole especial”, alheava-se “de todos os movimentos de natureza política”.8 Os estatutos assinalavam também que os estrangeiros que pretendessem constituir-se como associados deveriam exercer há mais de cinco anos uma das profissões representadas pela associação, residir no país há mais de 10 e inscrever-se como sócios nos 30 dias imediatos à aprovação dos estatutos. Por fim, o documento referia ainda que a admissão de novos associados dependia de uma proposta assinada por um “sócio efectivo”, isto é, um sócio que exercesse a profissão há mais de cinco anos. Em terceiro lugar, as preocupações da ACECCRL relativas ao horário de trabalho e às condições contratuais e remuneratórias dos seus associados, embora se assemelhassem às do restante movimento operário e sindical, eram formuladas de formas manifestamente distintas.

  • 9 ARQUESOC, 1932, s/p.

15Ao contrário deste, que ambicionava unificar os protestos de todos os trabalhadores assalariados, agrupando-os em torno das centrais sindicais, a ACECCRL procurava salientar a especificidade da profissão de pagador de banca, com o intuito de assegurar, junto do estado e não contra ele, certos privilégios profissionais. Segundo a ACECCRL, o horário de trabalho das 8 horas diárias (48 horas semanais), aprovado pelo decreto-lei nº 5516, de 7 de Maio de 1919, deveria abranger os profissionais do sector do jogo. No entanto, ao contrário, por exemplo, do sector hoteleiro, a ACECCRL defendia a sua aplicação em virtude da especificidade da profissão de pagador, rejeitando a sua equiparação a outras profissões. Na correspondência de 1932 com o administrador do ISSOPG, a ACECCRL assinalava que os seus associados estão sujeitos a uma actividade “violenta”, “exaustiva” e a “um envelhecimento precoce”.9 A associação defendia ainda que a profissão de pagador exigia rápidas “operações aritméticas”, um “desembaraço surpreendente nos pagamentos a fazer”, uma atenção perspicaz à “maneira de jogar de cada jogador” e uma “permanente tensão de espírito”, concluindo tratar-se de um “trabalho esgotante”, composto de tarefas “quase sobrehumanas” e de “exigências extraordinárias” para quem as deve repetir, com igual presteza, durante duas horas consecutivas. Estas exigências foram reconhecidas pelo ISSOPG quando, a 8 de Março de 1932, o parecer foi aprovado e reconhecido. O organismo público justificava assim a sua decisão: “O empregado de banca tem de prestar uma atenção constante à marcha geral do jogo, demandando um esforço constante para cálculos, pagamento e recebimento rápidos […]”.

16Algo de muito diferente ocorreu no sector hoteleiro. Em 1925, aquando da fundação da ACECCRL, já os profissionais da hotelaria possuíam uma experiência sindical de mais de duas décadas (Nunes 2007). Em 1898 nascia, no Porto, a Associação de Classe dos Empregados dos Cafés, Restaurantes e Hotéis e, em 1908, surgia a Associação de Classe dos Empregados dos Hotéis e Restaurantes de Lisboa (ACEHRL). Grande parte das reivindicações da ACEHRL incidiam sobre o horário de trabalho. Os profissionais da indústria hoteleira chegavam a permanecer 18 a 20 horas por dia nos seus locais de trabalho. Quando, em 1919, foi aprovado o decreto-lei nº 5516, que impunha as 8 horas de trabalho diárias, os profissionais hoteleiros ficaram, deliberadamente, excluídos deste diploma. Segundo o legislador, esta medida apenas deveria ser aplicada à categoria de “trabalhadores assalariados”. Os empregados da hotelaria, por sua vez, eram classificados como “criados domésticos”. Situação que se manteve até 1934, aquando da publicação do secreto-lei nº 24 402, de 24 de Agosto.

17Desta forma, até 1934 a dinâmica associativa do sector hoteleiro assentou, sobretudo, na luta contra esta categorização. Manifestamente, os trabalhadores hoteleiros pretendiam ingressar nas fileiras da classe operária e dos “trabalhadores assalariados”. Em 1932, Pinho Ribeiro, presidente da associação, defendia que a classe hoteleira deveria ser considerada parte do operariado e não uma classe distinta:

  • 10 O Dever, nº 1, 1932, 2.

Há em qualquer indústria, duas classes de trabalhadores – os manipuladores e os vendedores – aqueles são operários e estes são empregados do comércio. Na indústria hoteleira, na cozinha e nas repartições anexas, fora o chefe, são todos operários, pois fabricam, com matéria-prima, os produtos para a venda ao público. Pertencemos pois, tanto à classe operária como à comercial.10

18Em 1933, a associação enviava uma carta ao ministro das Finanças expondo o mesmo problema:

  • 11 O Dever, nº 3, 1933, 4.

Solicitamos portanto a vossa excelência que a classe deixe de ser considerada doméstica e passe a usufruir dos benefícios da legislação sobre o horário de trabalho, visto nada haver que justifique tal classificação porquanto os operários de cozinha que exercem funções de serviço nos hotéis, restaurantes e demais estabelecimentos desempenham um trabalho industrial, pois que transformam e manipulam artigos para serem vendidos ao público.11

19O sector da hotelaria, portanto, renegava a classificação de “criados domésticos” e defendia activamente a sua incorporação na categoria dos “trabalhadores assalariados”. Argumentavam que, apesar de não envergarem o “fato-macaco” no seu quotidiano laboral, eram tão operários quanto os outros (Nunes 2007). No entender da ACERHL, a integração dos seus associados na categoria de “trabalhadores assalariados” permitiria que estes usufruíssem de algumas medidas consagradas na legislação laboral da época, como as 8 horas de trabalho diárias. Observamos, então, que a questão do horário de trabalho, apesar de representar uma preocupação comum entre o sector do jogo e o sector da hotelaria, era articulada de formas bastante diferentes. Se o sector do jogo, eminentemente corporativo, defendia a aplicação das 8 horas diárias em virtude das especificidades e particularidades da função de pagador de banca, rejeitando a sua equiparação a outras profissões, os hoteleiros pretendiam ser integrados na categoria de “trabalhadores assalariados”, equivalendo-se a eles. Se o jogo fazia assentar a sua acção e retórica na diferença e na especificidade, a hotelaria articulava as suas reivindicações através da semelhança e da identificação com a restante classe operária. Se estes pretendiam ser operários, os outros evitavam ao máximo esta designação. Se o sector do jogo apelava ao estado, a hotelaria depositava na luta sindical as suas esperanças de emancipação social.

20Mas como se relacionam as gorjetas com estas diferentes dinâmicas associativas? Como observámos, o objectivo da associação hoteleira era integrar os seus profissionais na categoria de “trabalhadores assalariados”. No entanto, a componente remuneratória mais relevante dos “criados domésticos” não era o salário, mas as gratificações. Para tal, as gorjetas deveriam ser abolidas, dado que contradiziam essa equiparação. Tal como acontecia no sector do jogo, inicialmente, estes profissionais não possuíam qualquer retribuição salarial fixa, obtendo todos os seus rendimentos das gorjetas concedidas pelos clientes. Os patrões apropriavam-se ainda de parte destas gorjetas, em troca de dormida, alimentação e farda. Por vezes, a taxa do patronato sobre as gorjetas atingia os 50%. Desta forma, as incipientes reivindicações das associações hoteleiras relativamente ao tema das gratificações assemelhavam-se às do sector do jogo. Em Agosto de 1909, os empregados do Café Suisso encetavam uma greve contra o pagamento das gorjetas aos patrões. Finalizada a greve, os patrões concordavam em reduzir o pagamento das gorjetas de 900 para 600 réis por dia. Em Setembro de 1911, a ACERHL apresentava um conjunto de exigências para o sector da hotelaria. A primeira reivindicação assinalava: “Não permitir que os patrões possam locupletar-se com as gorjetas” (Nunes 2007, 339). Propunham, então, o fim do “imposto sobre o direito ao trabalho”.

21Apesar desta aparente aproximação entre o sindicato hoteleiro e o do jogo, rapidamente observamos que a convergência temática esconde uma divergência temporal. Ou seja, no momento em que o sector da hotelaria contestava a apropriação das gorjetas pelo patronato, o sector do jogo auferia integralmente as suas gratificações. Como observámos anteriormente, as empresas concessionárias começaram a apropriar-se das gratificações depois da regulamentação de 1927. Em 1929, quando a ACECCRL contestava a apropriação das gorjetas pelo patronato, já o movimento sindical da hotelaria mudara de estratégia. Pelo menos desde a Primeira Guerra Mundial que os trabalhadores hoteleiros interpretavam a prática da gratificação como indigna e humilhante. Muito provavelmente, esta transformação esteve relacionada com a diminuição abrupta das gratificações durante esses anos de turbulência económica e social. Os profissionais da hotelaria, destituídos de qualquer garantia salarial, experienciaram, em primeira mão, o risco da ausência de um rendimento fixo.

22Desta forma, rapidamente passaram a entender as gorjetas como uma “esmola vexante”, iniciando, de seguida, um movimento pela “abolição da gorjeta”. Ao mesmo tempo, as gorjetas contradiziam a sua principal reivindicação: a de pertença ao operariado. Desta forma, o primeiro passo foi dado a 31 de Julho de 1922, quando os trabalhadores da hotelaria da cidade do Porto, em reunião magna, decidiram afirmar-se pela “abolição da gorjeta”. Por sua vez, em 1924, a ACERHL apresentava um novo caderno reivindicativo no qual defendia a fixação de uma “taxa de serviço” aplicada sobre a conta do cliente. No início da década de 1930, o movimento pela abolição das gorjetas ganhava relevância, culminando, inclusivamente, com a promulgação do decreto-lei nº 21 861, de 15 de Novembro de 1932, que reconhecia o princípio da “taxa de serviço” e proibia as gorjetas nos “hotéis, restaurantes, botequins e estabelecimentos similares”.

23Neste sentido, a proibição das gorjetas nunca chegou aos casinos. Para estes profissionais, as gorjetas não eram uma “esmola vexante” que obstava à sua completa transformação em “trabalhadores assalariados”. Eram um mecanismo de “distinção” que legitimava a sua diferenciação em relação à restante classe operária e que necessitava de protecção. Desta forma, quando o sector hoteleiro assumiu a pretensão de “abolir” as gorjetas, os profissionais do jogo procuravam garantir a sua percepção exclusiva, impedindo a sua apropriação pelo patronato. As gorjetas do sector do jogo, mais elevadas que as do sector hoteleiro, favoreciam o distanciamento material (rendimentos) e simbólico (estatuto) em relação à restante classe operária. Se, para os profissionais hoteleiros, a integração na categoria de “trabalhadores assalariados” representava uma vantagem, nomeadamente em relação ao horário de trabalho e ao estabelecimento de um salário fixo, para os trabalhadores do sector do jogo essa equivalência significava uma acentuada desvalorização social e económica. Simultaneamente, os pagadores de banca aperceberam-se que poderiam manipular, para seu próprio benefício, o isolamento e o exclusivismo da indústria do jogo, bem como as preocupações moralistas do estado em relação à actividade. Desta forma, procuraram, activamente, fechar o acesso à sua categoria profissional através de práticas de “oclusão social” legitimadas pelo estado, que visavam, sobretudo, proteger os seus privilégios profissionais, isto é, as suas gratificações. Situação que se acentuou durante o regime corporativo.

2. O Sindicato Nacional (1934-1974)

24No final da década de 1920, o sindicalismo parecia recuperar alguma da sua energia reivindicativa e organizativa. O protagonismo do PCP, agora liderado por Bento Gonçalves, culminaria na fundação da Comissão Inter-Sindical (CIS) em 1930, a primeira central sindical comunista (Silva 2011; Nunes 2007). Em 1931, a corrente socialista respondia com a criação da Federação das Associações Operárias (FAO). Mas, nesse período de intensificada repressão, surgia, igualmente, o “nacional-sindicalismo”. Em 1931, o sindicato da hotelaria, hegemonizado pela corrente anarquista, cindia-se. Observando a sua posição minoritária na ACERHL, os nacional-sindicalistas optavam por fundar o Sindicato Nacional dos Profissionais da Indústria Hoteleira e Similares (SNPIHS). Este novo sindicato só aceitava a filiação de nacionais e defendia que o seu objectivo não era “combater outra classe mas […] defender os portugueses contra os maus camaradas estrangeiros” (Nunes 2007, 349). Quando, a 1 de Janeiro de 1934, entrou em vigor o Estatuto do Trabalho Nacional, o SNPIHS foi um dos primeiros três organismos sindicais a aceitar a sua transformação em SN (Nunes 2015). A transição para o regime corporativo não foi, portanto, pacífica. Aliás, dos 754 sindicatos existentes, apenas 57 aceitaram, voluntariamente, a sua fascização (Nunes 2007). Muitos foram encerrados pelo regime, outros cindiram-se e, durante um breve período de tempo, alguns ainda procuraram sobreviver na clandestinidade. O fracasso da greve geral de 1934, convocada pelas três centrais sindicais (a CGT anarquista, a FAO socialista e a CIS comunista), e a repressão política que lhe seguiu derrotaram as últimas resistências do sindicalismo livre e asseguraram a transição para o corporativismo.

25Eliminada a liberdade sindical, o novo projecto político do Estado Novo apenas previa a existência de sindicatos únicos e horizontais (Patriarca 1991; Lucena 1976). Ou seja, os sindicatos deveriam ter por base a profissão e, em cada área geográfica, apenas seria permitida a existência de um sindicato profissional (Patriarca 1991). Os novos SN deveriam alterar os seus estatutos e submetê-los à aprovação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP) (Patriarca 1990). Nos novos estatutos, as associações de classe deveriam rejeitar expressamente a luta de classes, aceitando, em contrapartida, o novo princípio regulador da vida social corporativa: a conciliação de classes (Lucena 1995). Como refere Boaventura de Sousa Santos (1985, 885):

No domínio das relações sociais da produção capitalista institucionalizou-se unilateralmente o consenso (e não o conflito) entre o capital e o trabalho, recorrendo para tal à repressão dos trabalhadores e à inculcação de uma ideologia concentracionária centrada na ideia de harmonia social e na submissão das classes trabalhadoras a interesses miticamente comuns.

26A resistência dos trabalhadores hoteleiros à imposição do corporativismo foi intensa. Os conflitos internos permearam o sindicato da hotelaria durante todo o período do regime fascista. Logo em 1937, a assembleia-geral do SN rejeitava expressamente a assinatura de um Acordo Colectivo de Trabalho (ACT) para os trabalhadores dos cafés, dado que este prolongava o horário de trabalho para as 10 horas diárias (Nunes 2015). No entanto, a direcção assinava-o. Em resposta, a assembleia-geral decidiu demitir a direcção por abuso de poder, elegendo, para o seu lugar, elementos da confiança dos trabalhadores. Dois meses depois, o governo demitia a direcção eleita democraticamente, substituindo-a por uma comissão administrativa nomeada por si e presidida por um membro da anterior direcção. A 20 de Abril de 1940 era novamente eleita uma direcção da confiança dos trabalhadores, mas, em Janeiro de 1941, o governo voltava a destituí-la. Movimento que se repetiria no Verão de 1941, culminando, por iniciativa de uma comissão administrativa sancionada pelo governo, na consagração de Salazar como sócio honorário nº 1 do SN. Em 1945, o SNPIHS elegia, juntamente com outros 50 organismos sindicais, uma direcção anti-fascista. Só a 24 de Fevereiro de 1954, o SN voltaria para as mãos dos partidários do regime, assegurando então uma relativa estabilidade mandatária que se estenderia até 1974.

  • 12 Oficialmente, a transformação em SN ocorreu a 12 de Março de 1934.

27No sector do jogo a transição foi mais pacífica. Aliás, o corporativismo foi recebido com entusiasmo e transformado, rapidamente, em instrumento legitimador das políticas de “closed shop”. Como referia Fátima Patriarca (1990), para muitas associações de classe o corporativismo foi recebido como uma conquista, não como um retrocesso. As críticas de muitos destes organismos, durante o Estado Novo, não visavam o corporativismo, mas as constantes violações do patronato a esse regime. No entanto, a autora também advertia: estas atitudes representavam mais um “constrangimento” do que uma “opção” (Patriarca 1994). Observando a situação dos profissionais do sector do jogo, o histórico da sua informalidade contratual e remuneratória e a ilegalidade da indústria em que exerciam actividade, compreende-se o apelo do corporativismo. Desta forma, a ACECCRL foi uma das primeiras 57 associações de classe portuguesas a aceitar, em assembleia-geral, a sua transformação em SN (Patriarca 1990).12

28O novo Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos (SNEBC), sucessor da ACECCRL, procurou, desde cedo, utilizar os mecanismos legais que o quadro institucional e corporativo do Estado Novo colocava à sua disposição, com o objectivo de controlar o seu mercado de trabalho e restringir o acesso às suas categorias profissionais, em particular à profissão de pagador de banca. O corporativismo providenciava dois instrumentos fundamentais aos SN: a sindicalização obrigatória e a concessão da carteira profissional. Segundo Fátima Patriarca (1994, 811), estes dois dispositivos, impostos a vários sectores de actividade durante a implantação do regime corporativo, visavam “fornecer uma base financeira aos sindicatos e impor o facto sindical aos patrões”. No entanto, serviam também como “instrumento utilizado pelos sindicatos para controlar o mercado de trabalho”, dificultando o acesso à profissão e mitigando a concorrência entre trabalhadores. O regime corporativo permitia, assim, a “cada grupo operário e profissional entrincheirar-se sobre si mesmo”, construir “uma muralha à sua volta, tentando proteger-se, de mil e uma maneiras, da invasão de estranhos […], procurando evitar que aquela invasão viesse a fazer descer os salários” (Patriarca 1994, 813). A principal preocupação dos profissionais do sector do jogo, no entanto, não se prendia com os salários, mas com as gratificações, tanto menores quanto a mais trabalhadores distribuir. Procurando controlar o seu mercado de trabalho, o SNEBC vai usar e abusar destas disposições legais e estatutárias.

  • 13 “Regulamento da Carteira Profissional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Boletim do INTP, nº 2 (...)

29Em primeiro lugar, era o SN que geria a concessão e renovação das carteiras profissionais. O primeiro diploma legal que visava a regulamentação da carteira profissional dos empregados de banca nos casinos data de 13 de Outubro de 1942.13 O artigo 1º deste regulamento estabelecia, pela primeira vez, que a atribuição de uma carteira profissional era condição “indispensável para o exercício efectivo e legal” das funções de empregado de banca. Por sua vez, os artigos 3º e 5º explicitavam os pressupostos corporativos do documento, estipulando que a “determinação da categoria profissional é feita pela direcção do SN de acordo com os elementos fornecidos pelo requerente” e que “a carteira profissional só será considerada válida quando acompanhada da cota do SN do mês anterior”. Apesar desta regulamentação já outorgar a responsabilidade pela concessão/renovação da carteira profissional ao SN, as premissas corporativas seriam altamente reforçadas em 1960, com a revisão deste documento. Segundo o artigo 3º do regulamento da carteira profissional dos empregados de banca nos casinos de 1960:

  • 14 “Regulamento da Carteira Profissional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Portaria nº 17 969. D (...)

O ingresso na profissão só é permitido a indivíduos do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 25 e 35 anos, que tenham bom comportamento moral e civil e não hajam sido condenados em pena de prisão por furto, roubo, abuso de confiança, quebra fraudulenta, falsidade ou fogo posto, nem declarados delinquentes de difícil correcção.14

  • 15 ARQUESOC, 1938, s/p.
  • 16 O SN possuía, inclusivamente, uma lista oficial na qual constavam os nomes dos seus associados de (...)
  • 17 A função de “ficheiro-volante”, entretanto extinta, consistia na venda ambulante de fichas pela s (...)

30Era, portanto, o SN que admitia ou rejeitava a inscrição de novos sócios. Em segundo lugar, a sindicalização era obrigatória, ou seja, as empresas concessionárias estavam obrigadas a recrutar através das listas de associados do SN. Os casinos não poderiam propor novos recrutas. Os novos profissionais teriam, portanto, que se submeter à apreciação do sindicato e, só depois de aprovada a sua sindicalização e atribuída a sua carteira profissional, poderiam iniciar a sua carreira profissional. A 21 de Maio de 1938, uma reclamação enviada ao subsecretário das Corporações e Previdência Social e assinada por Armando Crespo, administrador-delegado do Casino de Espinho, assinala a dificuldade das empresas concessionárias em contratar novos profissionais “competentes”.15 Nesta reclamação, a empresa expõe a intenção de integrar dois novos trabalhadores na carreira de “pagador de roleta” e a consequente rejeição do SN em admitir estes novos recrutas como sócios do sindicato. Segundo a justificação do sindicato, datada de 25 de Junho de 1938, os novos recrutas haviam sido propostos pela empresa, o que se encontrava contra as disposições regulamentares que obrigavam a que os novos associados fossem sugeridos ou propostos por sócios efectivos. Na mesma resposta, o sindicato assinalava que a empresa deveria recorrer aos desempregados que se encontrassem inscritos no SN.16 O sindicato sublinhava também que os dois candidatos não reuniam as competências necessárias para a admissão ao estatuto de associado efectivo, nem para a concessão da carteira profissional, dado que o primeiro era “ficheiro-volante” e o segundo “encarregado do WC”.17

  • 18 ARQUESOC, 1938, s/p.

31As profissões de “ficheiro-volante” e de “guarda das retretes”, nas palavras do sindicato, impediam, em razão do desprestígio simbólico e material das respectivas funções operacionais, a sua inclusão na profissão agora prestigiante dos pagadores de banca de casino. A rejeição destes candidatos demonstra o receio dos pagadores de banca em relação a uma eventual desqualificação e desvalorização profissional, por via da integração de trabalhadores económica e simbolicamente mais vulneráveis. A resposta do INTP, datada de 31 de Agosto de 1938, revelava o poder da lógica argumentativa do sindicato na rejeição dos candidatos segundo o desprestígio da sua função anterior.18 Segundo o INTP, a empresa não poderia acusar o sindicato de não possuir associados “competentes” se pretendia, de seguida, contratar o “ficheiro-volante” e o “encarregado do WC”. Ou seja, o INTP pretendia apresentar, apenas pela nomeação das categorias profissionais dos candidatos, uma evidência incontestável da incompetência dos mesmos. Referia também o INTP que as exigências da profissão obstavam ao recrutamento de principiantes. Segundo o INTP, a “atenção visual e auditiva tem de ser permanente e sustentar-se sem repouso”, o “trabalho dos pagadores, deitadores e carteadores é um trabalho de exactidão e actividades permanentes”, como o “cálculo rápido, a posse de si mesmo, a resistência a sugestões de toda a espécie, memória pronta e fiel e firmeza de carácter”. Reforçava também que era um trabalho caracterizado pela “fadiga muscular” e “mental”. Apesar de atribuir razão ao sindicato, o INTP reconhecia que este, no seu “excessivo zelo”, havia “mantido fechada a profissão” a novos candidatos e recomendava a abertura de uma escola que permitisse o ensino e a formação de novos profissionais.

  • 19 Regulamento da Escola Profissional do Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos. 195 (...)
  • 20 A função de “fiscal de banca”, que sobrevive ainda hoje, compreende os profissionais que supervis (...)
  • 21 Regulamento da Escola Profissional do Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos. 195 (...)

32Ou seja, em 1938, onze anos depois da regulamentação do jogo em Portugal, ainda não existia uma escola para o ensino das competências necessárias ao exercício da profissão de pagador de banca. Aliás, o SNEBC apenas se compromete oficialmente com a criação de uma escola profissional em 1945, aquando da assinatura do ACT com a Estoril-Plage, primeira concessionária da “zona de jogo” do Estoril. Não obstante, o primeiro regulamento da escola profissional do SNEBC apenas foi oficializado a 26 de Março de 1956.19 Mesmo neste caso, o SNEBC não aceitou formalizar o regulamento da escola profissional voluntariamente. Foi a isso obrigado pela Direcção-Geral do Trabalho e das Corporações (DGTC), dado que as políticas sistemáticas de “closed shop” do sindicato haviam resultado numa generalizada “falta de profissionais”. A disputa que conduzira a este resultado iniciara-se em 1952, quando a empresa Espinho-Praia resolvera recrutar um “fiscal de banca” “estranho à profissão”.20 O SN, sem surpresas, rejeitara a sua integração como associado.21 Apesar de ter obrigado o SN a integrar o profissional na categoria de fiscal de banca, a DGTC assinalava que a profissão de pagador deveria manter o princípio de “profissão fechada”:

33Parece-nos lógico e natural que os empregados de banca, e só estes, não devem ser livremente recrutados em meio estranho à actividade, e supomos até que as próprias empresas nisso estarão interessadas, pela sua especialidade, pelos aspectos morais que reveste e pelas dificuldades que lhe são inerentes, só lhes interessam homens com experiência e conhecimentos adquiridos ao longo de vários anos de exercício profissional.

34Tal como Maria Filomena Mónica (1986, 53 e 91) observara em relação ao movimento associativo dos chapeleiros e vidreiros, as associações de classe e os SN “eram organismos destinados a erigir barreiras contra os trabalhadores de fora”, visando “a manutenção do segredo da arte” e não associações de solidariedade internacionalista afectas ao movimento operário em geral. Os mecanismos de “oclusão social” operacionalizados pelo SN pretendiam impedir a democratização, vulgarização e massificação das competências profissionais necessárias ao exercício da profissão de pagador de banca. Desta forma, o SNEBC controlava o seu mercado de trabalho, restringia o acesso à categoria de pagador e protegia os seus privilégios profissionais, isto é, o valor das suas gratificações. A importância das gorjetas na definição desta dinâmica sindical surge, com toda a sua clareza, na assinatura dos ACT da indústria do jogo.

  • 22 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Espinho-Praia e o Sindicato Nacional dos Empregados (...)
  • 23 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Estoril-Plage e o Sindicato Nacional dos Empregados (...)

35O primeiro ACT deste sector de actividade foi celebrado a 17 de Junho de 1944, entre a empresa Espinho-Praia e o SNEBC.22 Em 1945, por sua vez, assinava-se o ACT relativo à “zona de jogo” do Estoril.23 Naturalmente, estes documentos reforçavam o carácter corporativo das relações laborais. O ACT de 1945 garantia que “nenhum profissional poderá, em caso algum, exercer função diversa em que se encontra legalmente inscrito”; o SN “obriga-se a manter uma lista dos profissionais considerados aptos ao desempenho das funções”; e “a empresa só manterá ao seu serviço profissionais que se encontrem em situação regular nos termos deste acordo, das disposições da lei e do regulamento da carteira profissional”. Por outro lado, este ACT estabelece, pela primeira vez, os ordenados dos empregados de banca (1650$), “fiscais de banca” (2000$), “ficheiros fixos” (1200$) e ficheiros volantes (1000$). Para além de garantir, aos trabalhadores, a retenção integral das suas gratificações, este documento introduzia uma novidade: pela primeira vez, era oficialmente reconhecida uma prescrição normativa para a distribuição assimétrica das gratificações. A cláusula 30ª do ACT assinalava: “Os empregados de banca e os fiscais de banca vencerão integralmente as gratificações que lhes são oferecidas pelos frequentadores do casino na proporção de ¾ e ¼ respectivamente, que dividirão igualmente dentro de cada grupo”.

36A partir desta data, o SN vai depositar quase toda a sua energia na constante e sistemática reformulação das regras para a distribuição das gratificações. Mais do que uma luta comum pelo salário, passível de antagonizar grupos dominantes e grupos dominados, o movimento sindical nos casinos caracteriza-se, desde muito cedo, pela fragmentação da sua força de trabalho em categorias profissionais, cada uma procurando apropriar-se de uma maior porção das gratificações. Mais do que uma luta contra o privilégio, esta era uma luta pelo privilégio. As gratificações monopolizavam os interesses de classe destes profissionais e os conflitos verticais eram convertidos em horizontais. Ao mesmo tempo que a empresa saía beneficiada desta dinâmica, dado que as gratificações atenuavam a pressão sindical sobre os salários, o estado, moralmente preocupado com o jogo, procurava sempre legitimar as pretensões dos pagadores de banca.

  • 24 “Despacho normativo: Distribuição das gratificações do pessoal que presta serviço nas salas de jo (...)

37Em 1960, proposto pelo SNEBC e homologado pelo estado, inaugurava-se o Fundo de Assistência dos Pagadores e Fiscais de Banca dos Casinos.24 A criação deste fundo visava complementar a reforma dos empregados das salas de jogos que, descontando apenas sobre os seus salários e não sobre o valor das suas gratificações, sujeitavam-se a uma acentuada desvalorização social e económica na reforma. Assim, o fundo determinava que os empregados das salas de jogos passariam a descontar 15% das suas gratificações. Mas o despacho normativo também estipulava as categorias profissionais autorizadas a receber gratificações e as proporções consignadas a cada uma. Para o efeito, os profissionais seriam divididos em três grupos: o “grupo I”, composto pelos profissionais de banca; o “grupo II”, constituído pelos caixas; e o “grupo III”, que integrava porteiros, contínuos e serventes. Segundo o documento, o “grupo I” receberia 80% das gratificações; o “grupo II” arrecadaria 4%; e o “grupo III” apenas 1%. O despacho introduzia ainda uma diferenciação interna aos “grupos I” e “II”: a “classe A”, composta por profissionais com mais de 10 anos de experiência, receberia o valor correspondente às percentagens anteriores; a “classe B”, formada por trabalhadores com uma experiência profissional mínima de 5 anos, teria direito a 2/3 do valor auferido pela classe anterior; e a “classe C”, constituída por trabalhadores com menos de 5 anos de experiência, receberia 1/3 do valor retido pela “classe A”. Regulamentações posteriores, em 1961, 1983, 1989 e 1990 alterariam as percentagens a atribuir a cada “grupo” e “classe”, mas o modelo de distribuição assimétrica das gratificações sobrevive ainda hoje, beneficiando os profissionais de banca.

  • 25 “Acta de Conciliação relativa ao Acordo Colectivo de Trabalho entre a Sociedade Estoril-Sol e o S (...)

38A primazia das gratificações sobre os salários permanece na década de 1970, quando os ACT da indústria do jogo foram revistos. Nestes novos acordos, assinados entre as empresas concessionárias e o SNEBC, já não constam os artigos relativos aos “ordenados”. Em sua substituição, surgem agora as “retribuições” ou “vencimentos mínimos”. Assim, o ACT de 1973 assinado pela Estoril-Sol, que ganhara a concessão da “zona de jogo” do Estoril em 1958, estipulava as seguintes retribuições mínimas: fiscal de banca – 5000$; pagador de banca com mais de 10 anos de experiência – 4800$; pagador de banca com 4 a 10 anos de experiência – 4200$; pagador de banca com 2 a 3 anos de experiência – 3500$; pagador de banca com 1 ano de experiência – 2500$; caixas com mais de um ano de experiência – 4500$; e caixas com 1 ano de experiência – 3000$.25

39A fórmula das retribuições mínimas não era uma novidade. Outros sectores de actividade consagravam este conceito nos seus respectivos ACT. No entanto, para a maioria da classe trabalhadora nacional, as retribuições mínimas representavam apenas uma outra designação para os salários. Inversamente, nos casinos portugueses, dada a existência das gratificações, elas poderiam assumir um novo significado, isto é, em detrimento de um salário garantido, pago obrigatoriamente pelas empresas concessionárias, os rendimentos destes trabalhadores poderiam agora derivar exclusivamente das gratificações. Tal não constituía uma obrigatoriedade e, em alguns casinos, as retribuições mínimas correspondiam, efectivamente, aos ordenados pagos pelas empresas, aos quais acresciam ainda as gratificações. Mas noutros, as gratificações passaram a ser enquadradas na fórmula das retribuições mínimas. Nestes casos, as retribuições mínimas dispensavam os casinos de remunerar os seus próprios empregados sempre que as gratificações atingissem o valor estipulado.

  • 26 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Sointal e o Sindicato dos Empregados das Salas de J (...)

40O decreto-lei nº 43 044, de 2 de Julho de 1960, já previa que as gratificações pudessem “ser consideradas como ordenado ou salário, no todo ou em parte, para efeito de previdência e abono de família, respondendo neste caso tais gratificações pela percentagem de 50% dos respectivos encargos patronais”. Várias empresas aproveitaram estas disposições para incluir as gorjetas nas retribuições mínimas. O ACT de 1977, relativo aos casinos do Algarve, chegava mesmo a garantir formalmente: “a) as quantias devem ser pagas quando as gratificações a que os trabalhadores têm direito não existam” e “b) parcialmente quando as mesmas gratificações não atinjam o valor da garantia”.26 Da mesma forma, o ACT de 1979, relativo ao casino da Figueira da Foz, assinalava:

  • 27 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Sociedade Figueira-Praia e o Sindicato dos Empregad (...)

Consideram-se incluídas nas retribuições mínimas mensais as garantias de vencimento dadas pela entidade patronal aos trabalhadores mesmo quando não haja o seu efectivo pagamento, total ou parcialmente, em virtude da existência de gorjetas/gratificações a que os trabalhadores têm direito.27

  • 28 Arquivo do MTSSS, 1982, processo TR/2, número 703; 1981-1983, processo TR/2, número 3134.

41A negligência do salário, a primazia das gratificações e os mecanismos de “oclusão social” que visavam a sua protecção são mais bem apreendidos se atentarmos aos seus valores. Dada a informalidade da prática da gratificação, teremos de avançar alguns anos para encontrar informações a este respeito. Numa “nota justificativa” relativa às regras de distribuição das gratificações, redigida pelo gabinete do secretário de estado do Ministério do Trabalho e datada de 21 de Janeiro de 1982, disponibilizam-se os valores das gratificações auferidas pelos trabalhadores do sector do jogo entre os anos de 1974 e 1980.28 Segundo as informações disponibilizadas, em 1974, os trabalhadores dos casinos do Funchal, Espinho, Póvoa de Varzim e Estoril arrecadaram, respectivamente, 3 133 735$, 12 000 000$, 13 000 000$ e 46 504 000$ em gorjetas. Especificamente no Casino do Estoril, entre 1975 e 1980, os trabalhadores do sector do jogo auferiram 804 575 300$ em gratificações. No mesmo documento, o gabinete do secretário de estado do Ministério do Trabalho providencia uma comparação entre as gratificações auferidas pelos trabalhadores e o imposto de jogo cobrado pelo estado às empresas concessionárias. De 1977 a 1981, o imposto de jogo atingiu o valor de 2 010 685 472$ e as gratificações, a nível nacional, alcançaram o valor de 2 006 878 630$.

42Como podemos verificar, os valores das gorjetas eram bastante elevados, não surpreendendo que tenham, desde cedo, monopolizado os interesses de classe destes trabalhadores e conduzido a práticas de “oclusão social” que visavam a sua protecção. Desta forma, as gratificações, ao contrário do que sucedera no sector hoteleiro, funcionavam como um mecanismo de “distinção”, legitimando o distanciamento material e simbólico em relação à restante classe operária. Os pagadores de banca, manipulando as condições de isolamento e exclusivismo a que a indústria do jogo foi sujeita, conseguiram perpetuar os seus relativos privilégios profissionais apelando à intervenção de um estado moralmente preocupado com a actividade. Como tal, os caminhos trilhados pelo movimento sindical nos casinos não pode ser dissociado desta peculiar componente remuneratória: as gratificações.

3. Conclusões

43Boaventura de Sousa Santos (1985, 872) define Portugal como uma sociedade “semiperiférica”, marcada “por uma descoincidência articulada entre as relações de produção capitalista e as relações de reprodução social […], ou seja, as relações sociais que presidem aos modelos e às práticas dominantes do consumo”. A classe trabalhadora, nas sociedades semiperiféricas, depende, em grande medida, de diversos “mecanismos informais compensatórios”, que complementem os baixos salários da produção capitalista. Nos casinos, a descoincidência entre as relações sociais de produção capitalista e as relações sociais de reprodução é representada pelas gratificações. Neste sentido, as práticas de “oclusão social” que restringem o acesso à categoria profissional dos pagadores de banca são mais um constrangimento que uma opção. Elas representam, no âmbito do mercado de trabalho nacional, privilégios profissionais absolutamente decisivos para complementar os baixos salários da produção capitalista.

44Desta forma, a existência das gratificações influenciou, decisivamente, o movimento sindical dos profissionais de banca. Elas impulsionaram o incipiente corporativismo da ACECCRL e, posteriormente, as políticas de “closed shop” do SNEBC. Com o intuito de as proteger, o SNEBC procurou controlar o mercado de trabalho da indústria do jogo e preservar a raridade das competências profissionais dos pagadores de banca. Elas produziram, igualmente, a negligência em relação ao salário e a fragmentação da força de trabalho dos casinos. Em detrimento de uma luta unitária pelo salário, a dinâmica sindical nos casinos caracteriza-se pela luta entre categorias profissionais pela apropriação das gratificações. Por fim, elas funcionaram como um mecanismo de “distinção” material e simbólico, reforçando o isolamento e o exclusivismo da indústria do jogo em relação ao restante movimento sindical e operário.

45Inversamente, o sector hoteleiro procurava alavancar as suas condições de trabalho equivalendo-se à classe operária. Por sua vez, esse objectivo dependia da “abolição” da “esmola vexante” representada pelas gratificações. As gorjetas impediam a sua completa transformação em “trabalhadores assalariados”, excluindo-os da legislação laboral que impunha limites ao horário de trabalho e que garantia um salário fixo. No caso do sector do jogo, a melhoria das suas condições de trabalho estava intimamente relacionada com a protecção das suas gorjetas, mais elevadas que no sector da hotelaria. Dados os valores das suas gorjetas, não importava que os seus rendimentos fossem variáveis e que o seu salário fosse baixo, ou que não existisse de todo. De facto, as gorjetas, produzindo a fragmentação interna dos grupos dominados, convertendo conflitos verticais em horizontais, contribuindo para o achatamento dos salários e atenuando a pressão sindical sobre os mesmos, acabavam por beneficiar os grupos dominantes. Mas, neste processo de “distinção”, de “oclusão” e de protecção das gorjetas, o sector do jogo garantia, igualmente, a reprodução dos seus privilégios profissionais.

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Notas

1 Ver Pedro Guimarães, “Estudo sobre o jogo” (1946). Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Código de referência: PT/TT/AOS/D-G/7/3/20. Cota: Arquivo Salazar, IN-1B, cx. 319, capilha 20.

2 A 30 de Outubro de 1928 nascia, por sua vez, a Associação de Classe dos Empregados dos Clubs e Casas de Recreio da Madeira.

3 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 5. Arquivo Histórico na Área Económico-Social (ARQUESOC). Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social (MTSSS). Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP). Disponível em <http://arquesoc.gep.msess.gov.pt/projecto1/index.htm>.

4 ARQUESOC, 1932, s/p.

5 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 3-8. ARQUESOC.

6 ARQUESOC, 1932, s/p.

7 Relatório de Direcção e Parecer da Comissão Revisora de Contas, 1929, 9-11. ARQUESOC.

8 Estatutos da Associação de Classe dos Empregados dos Clubs e Casas de Recreio de Lisboa, 1924, 3. ARQUESOC.

9 ARQUESOC, 1932, s/p.

10 O Dever, nº 1, 1932, 2.

11 O Dever, nº 3, 1933, 4.

12 Oficialmente, a transformação em SN ocorreu a 12 de Março de 1934.

13 “Regulamento da Carteira Profissional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Boletim do INTP, nº 20, 1942, 490.

14 “Regulamento da Carteira Profissional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Portaria nº 17 969. Diário do Governo nº 222/1960, série I, 2074.

15 ARQUESOC, 1938, s/p.

16 O SN possuía, inclusivamente, uma lista oficial na qual constavam os nomes dos seus associados desempregados, as suas idades e uma avaliação das suas “faculdades físicas”. Alguns são caracterizados como “inválidos”, outros como “vigorosos”. Outros são ainda descritos como “fracos”, “fraquíssimos”, “incompetentes” ou que “nada valem como empregados”. ARQUESOC, 1938, s/p.

17 A função de “ficheiro-volante”, entretanto extinta, consistia na venda ambulante de fichas pela sala de jogos.

18 ARQUESOC, 1938, s/p.

19 Regulamento da Escola Profissional do Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos. 1956-1957. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Código de referência: PT/TT/SAS/003/003/00139. Cota actual: Serviços de Acção Social, cx. 10, proc. 17, s/p.

20 A função de “fiscal de banca”, que sobrevive ainda hoje, compreende os profissionais que supervisionam e fiscalizam as bancas de jogo, incluindo, o trabalho dos pagadores.

21 Regulamento da Escola Profissional do Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos. 1956-1957. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Código de referência: PT/TT/SAS/003/003/00139. Cota actual: Serviços de Acção Social, cx. 10, proc. 17, s/p.

22 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Espinho-Praia e o Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos. Boletim do INTP, nº 13, 1944.

23 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Estoril-Plage e o Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Boletim do INTP, 1945, 4, 11 e 12.

24 “Despacho normativo: Distribuição das gratificações do pessoal que presta serviço nas salas de jogo de fortuna ou azar”. Boletim do INTP, 1960.

25 “Acta de Conciliação relativa ao Acordo Colectivo de Trabalho entre a Sociedade Estoril-Sol e o Sindicato Nacional dos Empregados de Banca nos Casinos”. Boletim do INTP, nº 25, 1973.

26 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Sointal e o Sindicato dos Empregados das Salas de Jogos dos Casinos”. Boletim do Trabalho e Emprego, 44 (21), 1977.

27 “Acordo Colectivo de Trabalho entre a Empresa Sociedade Figueira-Praia e o Sindicato dos Empregados das Salas de Jogos dos Casinos”. Boletim do Trabalho e Emprego, 46 (9), 1979, 83.

28 Arquivo do MTSSS, 1982, processo TR/2, número 703; 1981-1983, processo TR/2, número 3134.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

João Gomes, «O movimento sindical nos casinos em Portugal, 1925-1974»Ler História, 77 | 2020, 107-130.

Referência eletrónica

João Gomes, «O movimento sindical nos casinos em Portugal, 1925-1974»Ler História [Online], 77 | 2020, posto online no dia 30 dezembro 2020, consultado no dia 19 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/7457; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.7457

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João Gomes

Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, Portugal

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