1A administração das colónias, na generalidade dos impérios europeus, foi feita com dualidades geográficas, dividindo as decisões entre as autoridades coloniais e as metropolitanas. Esta realidade justificou antagonismos entre ministros e governadores, representantes de dois interesses diferentes, um mais global e o outro localizado e mais consciente das realidades em que se inseria; entre eles situava-se também o espaço político-geográfico que existia entre a capacidade de decidir. Não obstante as diferenças adotadas pelos países em relação à forma de colonização, ou os modelos que constituíam, encontram-se frequentemente protestos das autoridades das colónias contestando o que consideravam ser interferências nos seus poderes ou viam como medidas inadequadas de quem não conhecia devidamente as questões em causa (Carland 1985, 39-42; Finn 1995, 58). Esta problemática da conciliação e/ou divergência entre as políticas ultramarinas dos governos metropolitanos e as das autoridades coloniais, confrontadas de perto com a pressão dos interesses e das forças locais, já tem sido também observada e discutida a propósito do império português (Janeiro 2015, 57-58; Dias 2004; Reis 2018). Este artigo vai explorá-la no que se refere especificamente a Macau, tomando como objeto de estudo a arrematação do exclusivo de venda de duas lotarias, a da Santa Casa da Misericórdia e a pacapio, nos anos de transição entre os séculos XIX e XX. A escolha deste período justifica-se por corresponder ao ressurgimento da lotaria daquela instituição de caridade, experimentando problemas comuns com o outro jogo referido.
- 1 Os “chineses” são aqui considerados como aqueles que têm ascendência na China. Por não se conside (...)
2Saliente-se de imediato que a história da Misericórdia e a do jogo não constituem os temas centrais do artigo, não obstante contribuir para que sejam mais bem conhecidos, considerando aspetos como a relação entre a Santa Casa e o poder colonial, ou a incidência das lotarias na vida e na economia local. A análise que se faz aqui constitui antes uma forma de entendimento da capacidade de decisão em questões essencialmente económico-financeiras, que interessavam a Macau, mas também a toda a organização colonial portuguesa. Pretende-se prioritariamente verificar como, perante as tensões, a pretensão a uma afirmação de domínio, soberana, chocava, por vezes, com as forças locais, qualquer que fosse a sua natureza. Neste caso, esbarrava nos interesses económicos dos chineses,1 numa colónia em que estes não só constituíam a maior parte da população como também detinham as atividades económicas (Haberzettl e Ptak 2003; Guangzhi 2015). Além disso, neste território, à semelhança do que acontecia na vizinha Hong Kong, esta presença dos chineses acontecia numa ligação próxima com a China, pela posição que eles desenvolviam entre a colónia e os seus locais de origem (Carroll 2005); esta situação mais geral também ocorria nas atividades que aqui se analisam.
3Além desta, outras questões se colocam: quem assumia a capacidade de resolução e como? Na resposta a estas questões revelam-se linhas de atuação diferenciadas entre a colónia e as várias repartições do Ministério da Marinha e Ultramar. O período que aqui se estuda foi de uma maior centralização da resolução em Lisboa, como se compreende das medidas do ministro Teixeira de Sousa, ou pela ação de Dias Costa, diretor-geral do Ultramar, não obstante em 1904 se ter iniciado um ciclo que pretendia ser de mudança. Todavia, algumas vezes as autoridades locais encontravam formas de ultrapassar essa interferência (Reis 2018).
4A história de Macau conta com diversos estudos relativos à época em questão, nas suas diferentes vertentes (Serrão 1998; Marques 2000; Dias 2004), com destaque para as do relacionamento com a China (Saldanha 1996, 1999, 2006 e 2010), ou do jogo, onde sobressaem os trabalhos de Jorge Godinho (2012, 2013, 2014 e 2015). Mas impõe-se uma análise de aspetos mais específicos e, encontrando-se o cerne deste artigo nas questões administrativas, saliente-se a obra de António M. Hespanha (1995), que permite uma reflexão diacrónica no campo do direito e da administração, enquanto posição de diferentes agentes. A análise fundamental das capacidades de decisão foi também já considerada pela autora, quer na tese sobre a administração das colónias da Índia, Macau e Timor (Reis 2018), quer num aspeto específico relacionado com a extradição (Reis 2015). Este artigo analisa este campo, incidindo sobre decisões de ordem económico-financeira e avançando com aspetos concretos que as motivaram. Trata-se de um estudo que aprofunda a história de Macau, partindo de uma abordagem diferenciada em relação às lotarias, com documentação que ultrapassa o âmbito mais visível das publicações para entrar na produção das diferentes repartições ministeriais, o que contribui igualmente para um melhor conhecimento dos mecanismos de decisão no império português.
5A consecução destes objetivos passa por uma organização do artigo no qual, numa primeira secção, se sintetiza a importância do jogo em Macau, um espaço especial no conjunto das colónias portuguesas. O ponto seguinte é dedicado à lotaria da Misericórdia, a partir do seu ressurgimento na década de 1890, considerando a sua evolução, os problemas que experimentou e a importância que tinha para a economia local. A arrematação da lotaria pacapio constitui a matéria da secção terceira. Ao longo destas diversas partes, a intenção é proceder à análise histórica da administração de uma colónia, o que implica ter de mobilizar áreas diferenciadas, mas essenciais para a compreensão do que se quer alcançar.
- 2 Jogo em que o “banqueiro” toma uma quantidade de moedas e as cobre, enquanto os jogadores fazem a (...)
6A visão de Macau encontra-se hoje, indiscutivelmente, associada ao jogo e aos seus estabelecimentos, na continuação de um percurso antigo. Com efeito, as duras consequências resultantes da fundação da colónia britânica de Hong Kong, em 1841, implicando a perda da posição até aí detida pela cidade portuguesa, em simultâneo com o agravamento das finanças locais devido à separação entre esta província e a de Timor (1850), exigiram novas formas de obtenção de rendimentos (Figueiredo 2000; Serrão 1998, 748-52). Foi neste ambiente que as autoridades da colónia se voltaram para o jogo como uma solução para os problemas económicos e financeiros de Macau. Assim, além da reautorização da lotaria da Santa Casa da Misericórdia, iniciaram-se ou legalizaram-se outras formas de jogo, como a lotaria pacapio e o fantan2 (Cabral e Chan 1997; Godinho 2013, 2014 e 2015, 15-16; Shenghua 2014, 386-88).
- 3 Portaria do Ministério da Marinha e Ultramar, 10-7-1896 e portaria do Governo de Macau, nº 134, 1 (...)
7O jogo colocava Macau num lugar especial no contexto português. Com efeito, os jogos de fortuna e azar, com grande propagação a partir do final do século XIX, eram tema de grande discussão, devido às suas consequências sociais. O início da centúria de novecentos coincidiu com uma fase de repressão desta atividade em Portugal, não obstante as dificuldades na imposição de tal proibição. Depois deste período, as posições das autoridades divergiram entre a tolerância e a interdição, até que, em 1927, a exploração do jogo foi regulamentada (Vaquinhas 2006 e 2014; Laureano 2014). Também nas colónias se assistiu à preocupação com o impedimento deste “vício”, objeto de uma portaria proibitiva de 1896. O governador de Macau alargou-a aos funcionários públicos desta província, proibindo-lhes expressamente o fantan, em todas as ocasiões.3 Contudo, pelo menos alguns anos depois, passou a ser hábito os europeus jogarem nos dias do ano novo chinês; aliás, o próprio governador jogava uma parada para iniciar as festividades (Reis 2003, 402). Esta posição sobre a relação que os portugueses poderiam ter com o jogo transformava-se quando se tratava dos chineses, permitindo-se ultrapassar aqueles aspetos morais (Eadington e Siu 2007, 6-8). A justificação encontrava-se na vida local, na apetência do grupo populacional maioritário em Macau. Em 1901, e apenas como um dos muitos exemplos de textos comprovativos, lia-se na proposta para um decreto que:
- 4 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), SEMU DGU JCU (proc.), cx. 17, doc. 712 (doravante AHU, doc. (...)
a condemnação moral da lotaria, como jogo d’asar que é, não se impõe realmente em um paiz em que tão radicados são os hábitos do jogo, tolerados e sanccionados pela lei local, accrescendo que a maxima parte d’aquele jogo se faz alem da colonia portuguesa, em todos os paízes do Oriente.4
8Esta colónia preenchia também um espaço especial na geografia em que se localizava, com uma visão que se diferenciava. Com efeito, as autoridades de Hong Kong proibiram o jogo em 1871, não obstante a continuação de estabelecimentos ilegais ou a sua aceitação durante o pequeno período de corridas de cavalos; na China, a interdição também foi considerada nas tentativas de reformismo que se implementaram, embora nem sempre efetivadas (Cabral e Chan 1997). Sem qualquer uma destas preocupações, a colónia portuguesa mantinha-se como o espaço privilegiado desta atividade, atraindo visitantes de diversas origens. Com efeito, se aqui chegavam numerosos chineses com essa finalidade, os viajantes de outras paragens também realçavam as casas de jogo, ou a apetência pelo mesmo, nas descrições que publicavam (Reis 2019; Sousa s.d.).
- 5 Diário da Câmara dos Deputados, nº 31, 20-3-1899, p. 39.
- 6 Abreviadamente, o pacapio corresponde a um bilhete com os primeiros 80 carateres do livro Mil car (...)
9A razão para esta opção encontrava-se no papel que o jogo ocupava no rendimento colonial. Em 1899, por exemplo, os jogos explorados pelo estado (fantan e lotarias) representavam 46,7% das receitas, a que acresciam 2,7% recebidos da lotaria da Misericórdia.5 A importância desta renda também ultrapassava o espaço da colónia, contribuindo para o apoio a outros territórios ultramarinos portugueses (Almeida 1917, 80-82). Todavia, esta receita, de par com a do comércio do ópio, significava a exploração de vícios condenáveis, levando ao esboço de novas perspetivas comerciais e turísticas, para alteração da sua economia, particularmente após a Primeira Guerra Mundial (Dias 2004; Reis 2019). Nesta conjunção, as lotarias, de diferentes tipos, tiveram um campo privilegiado. Aquela que era conhecida em Portugal desde finais do século XVIII, semelhante à da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Lopes e Paiva 2008, 14-15, 23, 204-05), partilhava o espaço de Macau com as lotarias chinesas, como a pacapio ou a vaeseng.6 Eram exploradas por privados, sob a forma de exclusivo concessionado pelo governo de Macau, à semelhança do que ocorria com o jogo do fantan e outros setores da economia local: carne de vaca e de porco, salitre, sal, peixe, petróleo, pólvora ou ópio. Estes monopólios foram estabelecidos a partir do final da década de 1840 e, com algumas variações, persistiram ao longo dos anos, sendo considerados a forma preferível de negócio com os chineses, que eram, igualmente, quem os controlava (Figueiredo 2000, 196-205; Godinho 2013, 110).
- 7 AHU, doc. 712, ofício (of) confidencial (conf) do governador de Macau (GM) ao ministro e secretár (...)
10A história destas lotarias é também uma história de relacionamentos, pois elas extravasavam o território local, encontrando compradores num raio muito vasto. A da Misericórdia, por exemplo, segundo a descrição feita em 1900, corria por toda a área de Cantão e portos abertos da China, além de Hong Kong, Japão, Indochina, Sião, Singapura, península de Malaca, Penang, Manila e colónias holandesas.7 Duas localizações eram, no entanto, determinantes. Uma encontrava-se nas Filipinas, que conheceu momentos de expansão e outros de retração – esta pelo crescimento da sua própria lotaria, em alguns momentos, ou pela política restritiva, noutras fases. A China constituía o outro elemento preponderante, não só pela proximidade como também pelo facto de os arrematantes dos seus próprios jogos serem frequentemente os concessionários em Macau. Eram, por outro lado, os detentores do exclusivo chineses que se conseguiam movimentar para conseguirem das autoridades desse país a “tolerância” para a circulação das lotarias macaenses.
- 8 AHU, 1725P 1C MU DGCOr, “Processo acerca da Lotaria Paca-pio e sam-pio” (futuramente, AHU, 1725P) (...)
- 9 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 3-10-1907.
11Neste tipo de exploração, sob regime monopolista, participavam capitalistas chineses, que frequentemente se uniam entre si. Isso mesmo reconhecia o governador, que, em agosto de 1908, constatava a seguinte distribuição: as lotarias pacapio e sampio eram exploradas por Lou Cau e Sio Tang; o fantan estava entregue a Sio Tang e a Lu-Kuong U; a lotaria da Misericórdia estava concessionada a Lu-Kuong U e a Oloc. As conexões que criavam permitiam-lhes afastar a concorrência e obter os contratos de forma mais vantajosa.8 Entre estes nomes aqui destacados encontrava-se o de Lou Cau, o magnata que se estabelecera na colónia e que, entre outras atividades, dominava o jogo; depois da sua morte, o seu filho Lu Lim Ioc continuou com este negócio. Também era usual que nesta exploração interviessem testas de ferro luso-asiáticos, como o conde de Senna Fernandes e seu filho (Guangzhi 2015; Domingues 2017; Cabral e Chan 1997, 158-61). Esta intervenção sentiu-se durante o processo aqui descrito, no qual o governador afirmou que Bernardino de Senna Fernandes recebia uma mesada de Lou Cau e que a sua mãe também usava a sua própria fortuna para a ligação aos arrematantes chineses dos exclusivos, que a ela recorriam em caso de necessidade.9
- 10 Boletim Official…, 21-4-1892; AHU, doc. 712, cópia (c.) do of provedor da Misericórdia (PM) ao se (...)
12A Misericórdia de Macau, com origem no século XVI, teve licença para exploração de uma lotaria semelhante à da sua congénere de Lisboa, em 1810. Todavia, neste mesmo século XIX, a instituição teve momentos de grande perturbação e decadência, que quase a levaram à dissolução. Nesta fase chegou a ver a sua gestão confiada a elementos nomeados pelo governo. Depois disto, em 1891, foi reconstituída como confraria (Sousa 2005, 33; Seabra 2011, 251-52). Alguns meses depois, uma portaria provincial permitiu-lhe o restabelecimento da sua lotaria. No entanto, a Santa Casa solicitou a sua cessação em 1895, dada a progressiva redução das vendas e consequentes perdas financeiras. A justificação encontrou-se na concorrência da lotaria de Manila e nos manejos dos arrematantes da vaeseng, depois de aquela instituição beneficente ter recusado a sua proposta de revenda em exclusivo.10 A fase que se iniciou a partir daqui interligou o governo provincial e a Misericórdia, numa evolução própria das instituições de Macau, levando-a, através da sua lotaria, a contribuir para a resolução de questões gerais da colónia.
- 11 AHU, doc. 712, of GM ao MMU, 18-8-1896 e of diretor-geral do Ultramar (DrGU) ao GM, 3-4-1897. A (...)
13Em agosto de 1896, o governador Horta e Costa (1858-1927) reuniu-se na metrópole com o ministro da Marinha e do Ultramar, Jacinto Cândido (1857-1926), para lhe apresentar um plano de melhoramentos para o porto de Macau. Tratava-se de uma necessidade premente, que estava já estudada, mas que era continuamente adiada devido aos elevados montantes implicados, não obstante esta colónia contribuir para suprir os saldos negativos das outras. A solução para garantir o respetivo financiamento levou-os a acordarem um plano que passava pela apropriação dos lucros desta lotaria, transformando-a em provincial. Nesse sentido, o governador apresentou a respetiva proposta ao ministério, determinando que o montante destinado àquelas obras fosse de cinco sextos do rendimento, cabendo o restante à Misericórdia; deveria ser explorada sob a forma de exclusivo, cuja concessão teria um prazo de dez anos, prevendo-se que pudesse atingir um valor mínimo de 36.000 patacas. A Junta Consultiva do Ultramar (JCU) manifestou-se contra; além disso, ponderou que esta modificação conduziria a uma guerra movida pelos arrematantes das outras lotarias, que só permitiam a da Misericórdia pelo seu fim beneficente.11
14Quando o governador Horta e Costa apresentou a sua proposta, já a Misericórdia estava a tentar relançar a mesma lotaria, que ficou dependente da decisão de Lisboa em relação ao plano governamental. Depois de esta resposta ser negativa, a Santa Casa voltou a solicitar a exploração da lotaria, mas preferindo agora a venda da totalidade dos bilhetes a um único revendedor, para penetrar em mercados mais latos. Sem esperar mais, esta instituição negociou essa exclusividade com o arrematante da vaeseng de Cantão. A possibilidade de este promover a venda dos bilhetes nesta região da China foi, de facto, uma das razões que contribuíram, nessa fase, para o grande aumento das suas vendas. Entretanto, o governador Rodrigues Galhardo (1845-1908) aprovou este sistema de exclusivo em 1897, mas reservando um terço das suas receitas para o governo provincial, com a possibilidade de esta quantia vir a ser aumentada.
- 12 AHU, doc. 712, inf. 1ª rep. DGU, 6-11-1897 (citação) e 25-9-1901. Complemento com c. of PM ao SGM (...)
15Estas decisões locais colocaram algumas reservas no campo da administração, porque contrariavam a legislação em vigor. Assim, ao contrário do que estava determinado, não houvera intervenção do inspetor de fazenda provincial. Além disso, as capacidades de deliberação local, conforme o artigo 15 do Ato Adicional de 1852, não se alargavam à constituição de monopólios, como tinha sucedido; em complemento, assinalava-se também que a possibilidade de o arrematante arrecadar uma parte dos lucros contrariava o princípio desta lotaria, constituída exclusivamente para fins beneficentes. Em consequência destas ponderações, uma repartição da Direção-Geral do Ultramar (DGU) considerou estes atos como “írritos e nulos, por manifesta ilegalidade”. Este organismo ainda reconheceu que era uma das questões em que a distância impunha a consumação de decisões, mas manteve-se irredutível relativamente à necessidade de cancelamento do contrato, por ter sido realizado em consequência das ilicitudes apontadas. Posteriormente, a JCU também se pronunciou contra o mesmo.12
- 13 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 7-12-1900; minuta do telegrama (te) DrGU ao GM, 30-1-1901.
- 14 AHU, doc. 801, consulta, 16-12-1901.
16Em sequência, o ministério enviou para Macau uma portaria régia, de 25 de setembro de 1900, aprovando o restabelecimento da lotaria da Misericórdia, mas também com a ordem para anular o contrato de revenda e impondo a venda pública ou adjudicação em hasta pública por um período de três anos, seguindo as formalidades legais. Horta e Costa, novamente governador, reagiu através de um ofício confidencial, salientando as implicações que decorreriam da portaria (ainda desconhecida no território). A venda livre era, pelos seus argumentos, prejudicial, pela incapacidade de abranger um raio alargado e porque necessitava da complacência dos mandarins de Cantão; o prazo de três anos revelava-se muito curto; justificava a reserva de apenas 8% dos lucros para a Misericórdia presente na contratualização, assim como outros aspetos relativos a uma eventual rescisão. Em conclusão, mostrava que era preferível cumprir o contrato, porque a realização de outro acabaria por cair nas mesmas ilegalidades. O ministério decidiu então manter a situação até “melhor oportunidade”.13 Mais tarde também a JCU reconheceu que a anulação do contrato, que continuava em vigor, “poderia produzir perniciosos efeitos moraes no animo da população chineza, sendo na ocasião mais do que nunca necessário reforçar o prestigio politico do Governo da colonia”.14
17Esta evolução é muito significativa das questões da administração colonial: a distância impunha diferentes formas de olhar, porque a compreensão de Lisboa não era igual à de quem analisava diretamente as questões; a decisão local era passível de ser anulada pelos poderes superiores, não obstante o impacto produzido; o tempo que mediava em todo este processo podia ser longo, mesmo quando estavam em causa questões urgentes – neste caso, um contrato; frequentemente, atendia-se a aspetos formais, que pareciam irredutíveis (quem e como decidia, se a decisão passava pelos diferentes agentes, como o inspetor de fazenda), mas que noutros momentos eram ultrapassados em favor de uma melhor solução; não raramente, todas estas questões conduziam a uma indefinição de qualquer tipo (Reis 2018, 203-08) – neste caso, ao adiamento indefinido de uma solução.
- 15 AHU, doc. 712, acórdão do Conselho de Província, 2-5-1901; Relatório da Santa Casa da Misericórdi (...)
18Entretanto, localmente assistia-se a novas decisões relativamente aos lucros desta lotaria, quer pela sua utilização, à frente considerada, quer pela sua nova distribuição. Em 1901, permitiram que a Misericórdia fizesse um empréstimo ao Leal Senado, destinado à construção de um mercado; no mesmo ano, a repartição dos lucros deste jogo foi já feita em três partes, uma para a Santa Casa, outra para o Leal Senado e a terceira para a Fazenda Nacional.15 Desta forma, por portaria provincial (de 27 de julho de 1901), alterou-se oficialmente a distribuição dos lucros entre estas três entidades: divididos em doze partes, quatro ficavam para o estado (das quais uma parte era enviada para a metrópole, para o Instituto Ultramarino), duas para a edilidade (destinadas a obras de viação, canalização e saneamento) e as restantes para a Santa Casa.
- 16 AHU, doc. 801, consulta, 16-12-1901.
- 17 Collecção Official de Legislação Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1902, pp. 491-92.
19Em Lisboa, tal resolução gerou nova análise. A JCU considerou então que, “por não haver indeclinável exigência de moralidade” que exigisse a extinção da lotaria, ela poderia ainda aumentar o rendimento, impondo-se, para isso, a sua legalização através de um diploma. Do seu exame salientem-se igualmente as observações que, no quadro da solidariedade financeira, também aqui faziam de Macau um contribuinte para o espaço colonial. Além disso, este inseria-se na consideração mais geral de colonizadores e colonizados: a ação da Misericórdia exercia-se sobre a população cristã e, sendo esta muito limitada, havia de acudir (através do Instituto Ultramarino) aos antigos servidores do estado “sacrificados em Macau e Timor […], victimas do clima, da cruesa dos indígenas, e dos azares da guerra”.16 Foi a partir desta consulta que se elaborou e publicou o decreto de 28 de junho de 1902, fixando as condições da lotaria. Aí se liam efetivamente estes princípios, justificando a entrega de 50% dos lucros ao estado, dos quais pelo menos um quinto seria enviado àquele instituto. Dos restantes, 15% cabiam ao Leal Senado e 35% à Misericórdia. O decreto fixava ainda que a adjudicação, por um prazo entre cinco e oito anos, teria de ser realizada em hasta pública e que a percentagem a pagar pelo adjudicatário se situava entre 8 e 10% da importância dos bilhetes emitidos.17
- 18 Desenvolvemos este tema em trabalho em preparação.
- 19 AHU, doc. 712, of GM ao MMU, 22-11-1901; inf 1ª rep, 4-4-1902; inf 1ª rep, 28-7-1903.
20Entretanto, também em 1901, um outro assunto envolveu estes lucros, quando o governo de Macau diligenciou para que a Santa Casa comprasse o hotel Boa Vista, alegadamente para o transformar num estabelecimento de saúde, como forma de ultrapassar o perigo da instalação de franceses em Macau.18 Com autorização de Horta e Costa, a solução que a instituição achou para a obtenção imediata do financiamento foi a prorrogação, por dois anos, do contrato de exclusivo da venda da lotaria. Mais tarde, a análise feita na DGU veio a considerar esta ação ilegal, porque a portaria que regulava os exclusivos, em geral, proibia tal prolongamento e porque a autoridade macaense não tinha capacidade para o permitir; porém, a distância e a morosidade das decisões impuseram novamente o facto consumado, continuando em vigor este novo contrato.19
- 20 AHU, doc. 801, 11-4-1904; AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 8-5-1903.
- 21 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 9-9-1904; c. ata da sessão da mesa, 10-5-1905; of conf GM ao MM (...)
21Seguiu-se a dúvida que resultou deste ato: considerando a dilação do contrato feita em 1901 e a posterior publicação do decreto de 1902, outro governador, Arnaldo Guedes Rebelo (1847-1921), manifestou-se indeciso em relação ao ano em que aquele diploma deveria entrar em vigor, se 1905 ou 1907. A JCU pronunciou-se em favor desta última data, porque, equacionando as consequências, “é indispensável por decoro nacional, para manutenção do bom nome e prestigio de Portugal n’aquella colonia, confirmar embora tacitamente o que se pactuou por modo solemne em uma escritura publica…”.20 Portanto, numa outra fase e num parecer de outras pessoas, as posições apresentavam-se diferenciadas: enquanto anteriormente se possibilitava a anulação de um contrato, este assumia agora um valor superior. Mas, entretanto, um outro ponto veio a ser questionado a partir de 1904 e também relativo ao conteúdo do decreto de 1902. Para o governador, posteriormente com apoio da JCU, não se justificava a existência de um valor máximo a pagar pelo arrematante (10%). Todavia, a Misericórdia propôs alterações ao decreto e aquela autoridade aceitou o valor estipulado.21
- 22 AHU, doc. 712, parecer da comissão encarregada de analisar a remodelação dos impostos de Macau, 1 (...)
- 23 A “Comissão dos exclusivos”, como passamos a designar, era a que tinha de presidir à arrematação (...)
- 24 Collecção Official…, 1905, 501-02.
22A partir daqui o processo, envolvendo os dois assuntos, correu pelas repartições ministeriais e pela análise de uma comissão que estava a estudar a remodelação dos impostos de Macau. Esta propôs novas bases para a concessão e, indo mais longe, mostrou a necessidade de o estado ter maior influência sobre a gestão da Misericórdia.22 Em consequência, e essencialmente com a mão do antigo inspetor de fazenda em Macau, conselheiro Tamagnini Barbosa, a 3 de novembro de 1905 foi publicado um novo decreto. Aí se reconhecia que o sistema de exclusivo era o mais conveniente, pela facilidade das revendas a crédito, mas que não era lícito que os lucros do concessionário ultrapassassem o que era justo; mandava, além disso, que este tivesse de regular os planos de cada série conforme a procura e que o governo fiscalizasse este serviço, através do inspetor de fazenda local. As arrematações, anunciadas pela repartição de fazenda, passavam a ser feitas perante a comissão dos exclusivos;23 as propostas para concessão quinquenal faziam-se em carta fechada, mediante a realização de um depósito. A importância do valor total dos bilhetes de cada série não podia ser inferior a 100.000 patacas e o montante dos prémios que não fossem entregues reverteria para a Misericórdia, entre outros aspetos.24
- 25 AHU, doc. 712, c. of PM ao GM, 6-9-1906; of conf GM ao MMU, 21-5-1907.
23As dificuldades para a venda desta lotaria, principalmente quando foi proibida nas Filipinas, constituíram as justificações para que os concessionários requeressem a redução do número de bilhetes e para que a mesa da Misericórdia oficiasse ao governo de Macau nesse sentido, em setembro de 1906. O deferimento não foi concedido de imediato, já que os planos tinham de ser entregues com uma antecedência de três meses, e a diminuição só ocorreu em novembro, para continuar nos meses seguintes. Assim se chegou a 1907, ano em que estava, finalmente, a terminar o prazo do contrato acrescido da sua prorrogação, sendo o momento para se pôr em prática o decreto de 3 de novembro de 1905. Se o objetivo que tinha presidido à sua publicação fora evitar as ilegalidades marcantes na história desta lotaria, o diploma também impunha novas regras menos vantajosas para os arrematantes, que, por isso, procuraram ultrapassá-las, chamando à sua luta as próprias autoridades da colónia. Entrou-se numa fase de confronto em que também intervieram duas formas diferentes de sentir, a dos responsáveis locais, receosos pelas consequências imediatas de qualquer quebra nos procedimentos e receitas, e a das organizações ministeriais, distantes, mas pretendendo manter a soberania do colonizador. Além deste problema, desde maio que também se suspeitava da conivência de algum membro da mesa da Santa Casa com o arrematante.25
- 26 AHU, doc. 712, of da mesa da Misericórdia ao GM, 1-2-1907, of conf GM ao MMU, 21-5-1897.
24A guerra começou pelo boato, penetrante, predispondo os espíritos. Já em fevereiro, a direção da Misericórdia chamara a atenção do governador para a redução do número de bilhetes, perante a intransigência dos concessionários, que alegavam não conseguirem vender mais. Em maio, ao preparar a arrematação do exclusivo para um novo contrato a iniciar em novembro, o governador deu também conta dos rumores sobre a probabilidade de a praça ficar deserta, embora acreditasse que eles partissem do concessionário, para afastar os concorrentes e conseguir melhores condições. No entanto, Pedro de Azevedo Coutinho (1865-1942) não se ficou por aqui e, entrando antecipadamente num processo de possíveis cedências, alvitrou a alteração de algumas normas do decreto, entre as quais a redução da emissão e a entrega de metade dos prémios não reclamados ao arrematante, em vez de ficarem por inteiro para a Misericórdia.26
- 27 AHU, doc. 712, c. te GM, 27-6-1907, 2 e 8-7-1907; te GM, chegado a 15-7-1907; of conf GM ao MMU, (...)
25De facto, a praça, aberta a 27 de junho, não teve concorrentes, o que justificou o pedido do governador para que, na nova arrematação, fosse autorizado a pôr em prática a sua proposta anterior. Mas, apesar de ele garantir a confidencialidade daquele ofício, a verdade é que, no dia seguinte, os concessionários solicitaram condições semelhantes ao que ali constava, numa notória intenção de ultrapassarem a hasta pública e conseguirem maiores vantagens, como se verifica pelo facto de não se comprometerem a participar na praça que eventualmente se viesse a realizar, mesmo com aquelas cláusulas. A sua posição manteve-se, nitidamente tentando contornar o concurso público e os consequentes depósitos exigidos. O governador, não obstante constatar as verdadeiras intenções, vendo o tempo a passar sem garantia de conseguir uma hasta pública mais vantajosa e receoso da consequente diminuição das receitas num momento em que estava também a braços com a rescisão de contratos de outras lotarias (veja-se infra), pressionou Lisboa para que se pronunciasse em favor das suas propostas.27
- 28 AHU, doc. 712, inf 1ª rep, 15-7-1907 e 24-8-1907. Também inf IGFU, 6, 16 e 22-7-1907, inf 1ª rep, (...)
26No Ministério argumentou-se essencialmente que o decreto nem sequer tinha sido executado, impondo-se o respeito pelo que aí se determinava. Depois, a DGU pronunciou-se de forma mais veemente, lembrando que, além de haver suspeitas de cumplicidades entre pessoas da Santa Casa e os concessionários, a transigência ou cedência perante os manejos dos especuladores “poderá ser inútil, ineficaz e improfícua”. Acrescentava que, com chineses, “o melhor remedio para evitar a victoria dessa espécie de manejos é não mostrar fraqueza, mas força perante a qual cedem sempre, principalmente quando, como no presente caso, a intransigência é contra abusos e fundada na justiça”. Em consequência, a DGU e a Inspeção-Geral de Finanças do Ultramar (IGFU) preferiam que a segunda praça, a abrir segundo o decreto de 1905, ficasse deserta, ou mesmo que se pusesse fim à lotaria, do que ceder através da alteração do decreto. Mandou-se que o governador espalhasse rumores nesse sentido, atendendo à importância deste meio de comunicação, e que abrisse a praça “nos termos da lei”.28
- 29 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 25-7-1907; ata da sessão secreta do Conselho de Governo, 1-9-19 (...)
27O governador e os outros elementos associados a estas decisões interpretaram a ordem de Lisboa para seguir a lei como sendo para cumprir o regulamento da fazenda, de outubro de 1901. Colocava-se, por isso, uma questão de âmbito legal, pela diferença entre este regulamento e o decreto de 1905. Este último estava, sem dúvida, nas mentes governamentais, mas não contemplava a inexistência de concorrentes a uma primeira praça; essa possibilidade encontrava-se no primeiro diploma, de natureza diferente por ter sido publicado com força de lei, onde também se continha que, não se tendo feito adjudicação numa segunda praça, o governador aceitaria o requerimento que lhe fosse feito para concessão de um exclusivo, pelo preço considerado razoável, com a cláusula que este seria a base para uma nova praça por licitação verbal (alínea m) do artigo 157).29
- 30 AHU, doc. 712, te GM, 21-8-1907; of conf GM ao MMU, 22-8-1907, 4-10-1907, te GM ao MMU, 21 e 30-8 (...)
28Em agosto, a praça voltou a não ter concorrentes. Como solução, o governador instou com o Ministério para que aceitasse a sua proposta anterior, mas, com o acordo da comissão dos exclusivos, atuou conforme o decreto de 1901, chamando os arrematantes do contrato em vigor para que eles se comprometessem com ela. Mas, agora, em circunstâncias diferentes, os exclusivistas exigiram mais: a possibilidade de rescisão do contrato, sem indemnização quando em duas lotarias sucessivas não vendessem metade dos bilhetes; a preferência numa praça e redução do prazo desta. Perante a exigência do governador, acabaram por se comprometer a um limite mínimo do valor de cada série, ou à obrigação de pagamento da percentagem correspondente ao mesmo. Foi assim que se publicou o anúncio de abertura de uma nova arrematação.30
- 31 AHU, doc. 712, inf IGFU, 21-8-1907 e 20-11-1907.
- 32 AHU, doc. 712, inf 1ª rep, 22, 23 e 24-8-1907; te MMU ao GM, 29-8-1907.
29À distância, sem acompanhar totalmente as ocorrências em Macau, as posições no Ministério foram diferentes e agora menos consonantes entre si. A IGFU mostrou alguma transigência, pretendendo que se adotassem as providências necessárias para assegurar a receita. Como viria a justificar mais tarde, apoiou as ponderações do governador e a sua interpretação dos decretos. Tratava-se de uma posição claramente favorável a uma maior liberdade de decisão local de quem agia no terreno.31 A 1ª repartição da DGU, pelo contrário, conservou-se firme, preferindo que a lotaria deixasse de existir a ir ao encontro das pretensões dos possíveis arrematantes; as pressões do governador para que se adotassem as propostas destes eram lidas como demonstrando “certa tibieza”, conducentes a um posterior aumento das exigências dos especuladores. Deste modo, o telegrama de 29 de agosto, enviado para Macau, impedia qualquer cedência e mandava fazer circular a notícia de que a falta de licitadores na próxima praça levaria ao fim do exclusivo de revenda, ou mesmo da própria lotaria; ainda mandou substituir os membros da Misericórdia que não fossem de confiança.32
- 33 AHU, doc. 712, te GM ao MMU, 30-8-1907; te conf GM ao MMU, 1-9-19; ata da sessão secreta do Conse (...)
- 34 AHU, doc. 712, of conf, 4-9-1907 (citação), inf 1ª rep, 3-9-1907 e te GM ao MMU, 3-9-1907.
30Neste momento jogou-se a capacidade de decidir, associada à distância e à morosidade das comunicações entre a capital e a colónia. Ao receber esta ordem intransigente, o governador respondeu argumentando contra ela, mostrando que o seu cumprimento corresponderia ao fim da lotaria e que já tivera dificuldade em conseguir que os arrematantes aceitassem a proposta suprarreferida; contudo, afirmou que, se não recebesse novas determinações de Lisboa, faria o anúncio de acordo com estas ordens do ministério. Nos dias seguintes, reuniu-se com a comissão dos exclusivos e marcou uma sessão secreta do Conselho de Governo, onde encontrou concordância com as suas propostas e com a sua previsão de prejuízos, no caso de os arrematantes exigirem futuramente quaisquer compensações pela falta de cumprimento do que estava acordado.33 Nada se alterara, porém, nas perspetivas da DGU, mantendo a sua posição e obrigando o governador a cumprir as ordens anteriormente emanadas. Na justificação que esta autoridade em Macau fez a seguir argumentou que cumprira o que mandara a sua consciência, porque esta estava “absolutamente segura que nesta questão como em todas que tenho tido que tratar como Governador […] só pelas conveniências do governo e das mais corporações interessadas nos lucros da lotaria me haver guiado”. Compreensivelmente, assumiu que sentia a falta de confiança do Ministério, que desconhecia a crise no Extremo Oriente, mas que recusava a sua posição de conhecedor do meio, e, de acordo com os procedimentos habituais neste caso, esperava então a sua exoneração.34
- 35 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 3-10-1907; te GM ao MMU, 20 e 27-9-1907; inf 1ª rep 12-11-1907.
31Passou-se agora a uma nova fase. Não obstante ter sido anunciada uma terceira praça, mas considerando a dilatação do tempo e a possibilidade de tal implicar a suspensão da lotaria, perdendo-se o lucro e a imagem, o governador entendeu que deveria procurar uma nova solução, que chegou por outra via e de forma inesperada, pelo menos na expressão da correspondência: o conde de Senna Fernandes ofereceu os seus préstimos e conseguiu que vários chineses de Hong Kong, exportadores desta lotaria e antigos agentes dos concessionários, se comprometessem a ficar com grande número dos bilhetes quando acabasse o exclusivo, cabendo-lhes percentagem das vendas. Apesar de reconhecida a ligação deste personagem aos chineses que habitualmente exploravam os jogos, foi com esta garantia que o governador publicou a portaria provincial permitindo essa venda por conta da Misericórdia, até à realização de um novo contrato. A partir daí o governador começou a telegrafar para o Ministério, esperando obter a devida licença. Na DGU, no entanto, determinou-se que tal autorização só seria concedida se a terceira praça ficasse novamente deserta; seria acompanhada por outras regras, para impedir que a venda fosse parar à mão dos especuladores que quisessem exercer na prática o exclusivo sem o pagamento dos encargos inerentes.35
- 36 AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 3-10-1904 e 17-10-1907.
- 37 AHU, doc. 712, minutas of conf DrGU ao MMU, sem data; inf da 1ª rep, 12, 14 e 22-11-1907.
32Esta ordem chegou a 28 de setembro e impunha, portanto, a obrigatoriedade de esperar pela praça, a ocorrer em novembro, colocando em causa os esforços realizados e acabando, de facto, por interromper a lotaria. Assumindo a responsabilidade, dizendo que não havia tempo para novas comunicações telegráficas, o governador fez publicar uma portaria provincial autorizando a venda pela Santa Casa, nos meses em que não houvesse exclusivo. Quando procedeu à sua justificação, no início de outubro, argumentou que a correção da sua decisão estava comprovada pela garantia de venda dos bilhetes para os meses seguintes. Congratulando-se posteriormente, esperava que os compradores viessem a aceitar outras condições, o que seria importante também para a arrematação de outros exclusivos, pois “abalou o conluio” existente para os depreciar.36 Neste momento, ao Ministério, particularmente à 1ª repartição da DGU, restava analisar a situação, censurar o governador, recear a especulação e afirmar que tal situação tinha de ser provisória, havendo de vir a ser executado o decreto de 1905. Entretanto, a praça ficou realmente deserta, o que provocou nova informação, bastante crítica, da mesma direção-geral. Mas, além disso, também se considerou toda esta questão sob um novo prisma, a do sucesso da intransigência do Ministério, que permitira o insucesso dos especuladores, o que acabou por levar a que, em contraste com o que ocorrera antes, aprovasse o procedimento do governador.37
- 38 Arquivo Histórico de Macau, MO/AH(SCM/138, fl 87-88v (http://www.archives.gov.mo/webas/ArchiveDet (...)
- 39 Decreto de 16-12-1909 (Collecção Official…, 1909, 806-10).
33A lotaria acabou, posteriormente, por ficar suspensa entre abril e julho de 1908, obrigando à publicação de novas instruções para o seu recomeço.38 Depois dos anos em que este jogo tinha conhecido grande sucesso, permitindo bons lucros à Misericórdia, ao governo e ao Leal Senado, os tempos que se seguiram não se mostraram fáceis. Em dezembro de 1908, publicou-se novo regulamento, justificado com a necessidade de adaptação ao meio, designadamente com a redução do preço dos bilhetes; permitia-se que a venda pudesse ser feita por qualquer um dos sistemas, livre ou por arrematação do exclusivo, embora este fosse preferível.39 Entrava-se, portanto, num outro momento da história da lotaria, adaptada ao devir. Simbólico da diferença que a marcava, na década de 1920 haveria de emitir bilhetes em séries especiais agregada ao Hospital chinês Kiang Wu (Shenghua 2014, 393).
- 40 AHU, 1725P, of SGM ao MMU, 21-11-1902; requerimento de Sio Tang, 1-3-1906, of GM ao MMU, 9-3-1906
- 41 Tabelas de receitas das províncias ultramarinas (Collecção de Legislação Novíssima do Ultramar. L (...)
34A exploração comercial da pacapio, uma lotaria tradicional chinesa, foi permitida em Macau por Ferreira do Amaral, o que correspondeu a uma legalização de um jogo já ali praticado (Godinho 2013, 111-13; Godinho 2015, 15). Era vendida por um arrematante do exclusivo e, apesar de o secretário-geral, em 1902, considerar que a sua importância era pequena, só em Macau existiam cerca de 200 estabelecimentos dedicados à sua venda.40 As tabelas de rendimento da colónia também lhe conferiam um valor não despiciendo: em 1890/91 e em 1900/01 (anos escolhidos aleatoriamente) correspondia a 13% da previsão de impostos diretos a serem cobrados em Macau, o que significava 10% e 8%, respetivamente, do total das receitas.41
- 42 AHU, 1725P, te SGM ao MMU, 17-11-1902, of SGM ao MMU, 21-11-1902, inf IGFU, 22-11-1902, entre out (...)
35A 17 de novembro de 1902, depois da devida publicitação, realizou-se a arrematação desta lotaria. Apresentaram-se oito propostas, das quais a mais elevada foi a do chinês Sio Tang, no valor de 145.200 patacas. A seguinte aproximava-se, mas as restantes estavam muito longe deste valor, pois a mais vantajosa não ultrapassava 106.800 patacas. Realizou-se o contrato provisório com aquele arrematante e o secretário do governo pediu a Lisboa autorização para proceder à assinatura da adjudicação definitiva. No Ministério, o inspetor-geral de Fazenda, Navarro de Paiva, congratulou-se com tal montante, que mais do que duplicava o rendimento anual do contrato anterior, limitado a 70.300 patacas, o que, naturalmente, levou à concessão de licença solicitada. Iniciara-se auspiciosamente esta exploração, mas em breve haveria de mudar.42
- 43 AHU, 1725P, of GM ao MMU, 21-10-1904, atas da comissão dos exclusivos, 16 e 23-7-1904, 8-9-1904, (...)
36Começaram a circular rumores relativos à falta de lucros desta lotaria, que comprometiam as finanças dos arrematantes, o que o governador Martinho de Montenegro (1864-1919) encarou como devido à sua inexperiência, ao preço elevado ou à saída de um dos sócios da sociedade. Mas, mais do que estes murmúrios, em julho de 1904, o concessionário solicitou à comissão dos exclusivos permissão para mais uma extração diária (a terceira), porque estava a acumular prejuízos. Nesse momento não teve uma resposta concreta, porque aquela comissão preferiu analisar as vantagens que ele viesse a oferecer e que não ofendessem interesses de terceiros. O arrematante comprometeu-se, então, a que os eventuais lucros desta nova extração fossem divididos, em partes iguais, entre ele e o governo local, o que foi aceite. Porém, considerando as dificuldades para tal apuramento dos lucros, acabou por ficar consignado o pagamento de mais 200 patacas mensais.43
- 44 AHU, 1725P, consulta, 19-6-1905; inf IGFU, 28-12-1904; nota anexa ao of. IGFU ao GM, 27-6-1905.
37Estas decisões, tomadas pelos responsáveis em Macau, não foram vistas com bons olhos em Lisboa. O inspetor-geral de Fazenda das colónias considerou que não se justificava a concessão da terceira extração, que, no caso de ter sido prevista de início, poderia ter levado a ofertas diferentes por parte dos outros concorrentes; além disso, achou que o valor oferecido era irrisório e sem vantagens para a Fazenda. O processo seguiu para a JCU, que também não se mostrou mais disposta em relação a ela. Esta instituição lembrou que, mais do que para outras colónias, em Macau, devido à proximidade de Hong Kong, “para desarmar os ânimos sempre suspeitoso dos chinas da nossa colonia cumpre que a administração superior se mantenha sempre sem quebras nem desfalecimentos em um plano superior, apoiando-se na formal integridade de procedimentos e no absoluto respeito pela lei”. O ministro concordou com este parecer e a decisão foi comunicada para a província.44
- 45 AHU, 1725P, te GM ao Fazenda Ultramar e ao MMU, 6-9-1905, te GM ao MMU, 5-10-1905; inf. IGFU, 6-1 (...)
- 46 AHU, 1725P, te GM ao MMU, 5-11-1905, of GM ao MMU, 17-11-1905; indeferimento 18-12-1905, of GM ao (...)
38Porém, segundo constava na colónia, o arrematante somava consecutivos prejuízos, vindo a justificar as suas dificuldades com a abertura de uma nova lotaria sampio em Cantão, também vendida em Macau. A alteração seguinte foi a transferência do exclusivo de venda desta lotaria para outra sociedade, autorizada sem problemas por Lisboa. Porém, o governador impôs ao monopolista o cumprimento de uma norma do contrato que o obrigava ao pagamento da diferença de valor que pudesse resultar de uma nova praça, o que ele não aceitou, preferindo rescindir o contrato e perder a respetiva caução. Ao mesmo tempo, este concessionário propôs a realização de um novo acordo, abrangendo as lotarias pacapio e sampio, que afirmava não poderem ser exploradas separadamente. Para tanto oferecia a quantia de 160.000 patacas sem hasta pública e 145.200 como base de licitação, caso o governo optasse por um concurso público. Para o governador, esta última constituía uma proposta aliciante e o inspetor de Fazenda concordou com a hasta pública das duas lotarias.45 Como esperado, obteve-se um bom resultado, tendo a arrematação chegado a 282.000 patacas; o arrematante foi Hu-Kuo-Oi, com quem se fez um contrato que deveria durar de dezembro deste ano a junho de 1911 – levando mesmo o governador, debalde, a propor que o excesso de 136.800 patacas em relação ao anterior fosse aplicado nas diferenças cambiais em beneficio da colónia, onde se sentia fortemente o aumento do custo de vida. Contudo, a congratulação durou pouco, pois o arrendatário deixou de pagar e o contrato foi rescindido em março do ano seguinte.46
39Neste momento entrou no negócio um outro elemento, alterando o padrão de funcionamento em vigor. Tratava-se do anterior arrematante, Sio Tang, que, em negócio com o atual exclusivista, se encontrava a subexplorar a pacapio; agora, com o fim do contrato entre o governo e Hu-Kuo-Oi, perdera o seu negócio. Apresentou um requerimento para continuar esta lotaria, após a rescisão do exclusivista, pagando 5.000 patacas por mês, quantia mais tarde aumentada para 6.000 patacas mensais. Deste modo, embora a sampio tenha ficado sem propostas, foi feita a escritura da concessão transitória da pacapio, abrindo-se, em seguida, uma nova hasta pública (4 de abril). Tal como previsto, não houve concorrentes, pelo que o mesmo Sio Tang conseguiu novamente a adjudicação do exclusivo, igualmente sob caráter transitório.
- 47 AHU, 1725P, of conf GM ao MMU, 9-3-1906, 18-5-1906, requerimentos de Sio Tang, 1-3 e 8, 9, 10 e 1 (...)
40Na nova praça, os valores oferecidos foram muito limitados, desconfiando-se do entendimento entre concorrentes, pelo que a comissão de exclusivos resolveu não arrematar. O que se seguiu foram várias tentativas de obtenção do exclusivo sem praça pública, através dos requerimentos de Sio Tang, por um lado, e de Lu Lim Ioc e Lu-Kuong U, em conjunto. Porém, a decisão ministerial foi para abertura de nova praça de licitação verbal. Depois de novas e infrutíferas tentativas de subversão deste meio, Sio Tang conseguiu nova concessão provisória e a arrematação, concorrendo em conjunto com Lou Cau. Mas o novo contrato também não se mostrou duradouro, pois, em agosto de 1907, os arrematantes pediram a rescisão. A explicação encontrava-se, mais uma vez, nos fatores externos: os prejuízos de que os exclusivistas se queixavam iam sendo suportados pela expetativa gerada pelo anúncio da nomeação de um novo vice-rei para Cantão, contrário à existência destes jogos; todavia, a sua vinda acabou por não se concretizar, desanimando os arrematantes. No entanto, tal como sucedera anteriormente, eles pretendiam continuar a explorar as lotarias até nova praça, mas pagando apenas 6.000 patacas mensais. A arrematação do mês seguinte ficou sem concorrentes e a de outubro, com quatro concorrentes, limitou-se a um valor de 127.000 patacas.47
41Depois desta análise, importa agora salientar algumas linhas mais gerais que dela resultaram. Assim, sem nos termos especialmente dedicado ao estudo da Misericórdia de Macau e de a sua organização e funcionamento exigirem investigações mais específicas, um aspeto relevante desta investigação é a evidência da interligação desta instituição ao poder local. Para além de outras questões, na parte que aqui se verificou, a sua lotaria tornou-se também uma fonte de rendimento colonial, proporcionando ao governo local e ao Leal Senado capacidades para obras que assinalavam como necessárias. Mas a sua dimensão tornou-se igualmente nacional, sob a justificação de contribuição para o Instituto Ultramarino. Continuava-se, através da Santa Casa, um processo em que se colocava Macau como um contribuinte financeiro para o império português (Reis 2018, 90-91).
- 48 Por exemplo, AHU, doc. 712, of conf GM ao MMU, 4-9-1907 e 31-10-1907.
42Os problemas que enfrentaram estas lotarias entroncavam, segundo a explicação local, na crise económica vivida no Extremo Oriente,48 mas associavam-se sobretudo às próprias condições da sua exploração. Como se salientou, a sua difusão estava relacionada com os chineses, que detinham os mecanismos que a permitiam, quer financeiros quer político-sociais, alargando-se a territórios mais vastos. Deste modo, a soberania portuguesa tinha de se desenvolver num quadro de interesses e de manobras, onde lhe fosse possível, ajustando o domínio que pretendia às forças que enfrentava. A uma difícil relação política com a China somava-se, como aqui se viu, a dependência económica e financeira, desenvolvida por aqueles que, provindos de uma geografia próxima, investiam na colónia, ou pelos seus próprios habitantes, fruto de uma conjugação com o império da sua origem.
43Outro dos pontos essenciais das decisões aqui tomadas prende-se com a capacidade para o fazer, considerando os diferentes níveis, entre os governos central e colonial ou outros agentes locais. Afastados pelo espaço, eram-no também pela visão que tinham do contexto em que se moviam. Em Macau, mais próximo, sentia-se a emergência da resolução que impedisse a perda de uma receita, ainda que diminuída, ficando as suas autoridades mais sujeitas aos manejos dos interessados, neste caso, os arrematantes das lotarias. Em Lisboa, pelo contrário, analisava-se mais friamente, exigindo-se maior cumprimento das determinações. E, mesmo assim, o espaço confinado do Ministério dava lugar a diferentes interpretações, conforme se viu para as duas repartições envolvidas. Jogaria aqui, sem dúvida, a influência maior que cada uma delas pudesse ter sobre o ministro, ou sobre outros decisores destacados, como o diretor-geral do Ultramar. Este era, nesta fase, Dias Costa, que se revelou adepto de uma maior força centralizada.
44Para além das questões mais gerais relacionadas com a proposta para nova legislação, um ponto evidente encontrou-se na indefinição relativamente à lei vigente, ou melhor, à sua interpretação. A distância, porém, também potencializava a existência de factos consumados: em algumas situações, as autoridades locais avançavam com decisões que ultrapassavam as suas competências ou que contrariavam alguns aspetos das ordens recebidas, justificando-se com o contexto em que se moviam. A sua anulação era possível, mas nem sempre era a melhor opção quando se consideravam as consequências. A decisão colonial constituía, portanto, uma questão de espaço: de pretensa soberania, num território diferente do seu, mas também da extensão a percorrer pela comunicação, que determinava a ação entre duas entidades diferentes do mesmo poder.