Ramón Villares, Terre de Galice. Histoire d’un Finistère Européen. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2019, 505 pp. ISBN 978-2-7535-7798-5
Ramón Villares, Terre de Galice. Histoire d’un Finistère Européen. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2019, 505 pp. ISBN 978-2-7535-7798-5
Texto integral
1Este livro de Ramón Villares (Lugo, 1951) é um avatar bretão de uma obra publicada originalmente em galego, em 1984. Foi traduzida para francês a partir de uma terceira edição, muito acrescida, actualizada e melhorada, que datava de 2016. Terre de Galice abre com um prefácio curto – e condescendente – do historiador Jean-François Botrel, a que se segue um avant-propos do próprio autor, com 15 páginas. Estas são cuidadosas, densas, muito interessantes de ler, e nelas Villares apresenta a sua obra e a Galiza. O autor começa por referir como já na Europa do século XII a Galiza surgia distintamente, prefigurando “um espaço e uma cultura do ocidente ibérico”, à escala da Europa, e aborda mais adiante a sua identidade “muito forte”, “como uma nação cultural”, isto antes de definir o objecto do seu trabalho como “a compreensão do processo através da qual a sociedade galega se exprimiu ao longo do tempo” (pp. 21-25). Terre de Galice também comporta um glossário de termos galegos mais peculiares, entre os quais surge “galeguismo”. Este é dito ser um “movimento cultural e político aparecido por volta de 1840 com a vocação de defender a Galiza e a sua identidade”, uma definição que não fica distante do objecto identificado no avant-propos. Sublinhe-se que esta sobreposição nunca traz desdouro a esta obra de méritos inequívocos e já muito afinada, primando neste livro o bom ofício de um académico consagrado – Villares, que já recebeu todas as honras possíveis – e no auge das suas capacidades.
2Diálogos críticos com os grandes intelectuais galeguistas do passado estão bem amassados neste volume, algo presente em todos os capítulos sem excepção. É uma mistura feliz, e também afectuosa. Duas presenças têm maior destaque, Manuel Murguía (1833-1923), “patriarca” indiscutido do nacionalismo galego e da historiografia galeguista, e Ramón Otero Pedrayo (1888-1976), o autor que tem mais menções neste livro e o seu principal inspirador. “D. Ramón” foi um membro muito carismático – e de longa carreira intelectual e pública – de um grupo de intelectuais constantemente evocado na Galiza, a dita “Xeración Nós”, da qual pelo menos outros dois nomes hão-de assinalar-se pela importância que tiveram no discurso da identidade galega e pelo lugar que este livro lhes concede: Vicente Risco (1884-1963) e Alfonso Daniel Castelao (1886-1950).
3Villares intitulou o capítulo VIII “Culture et Nationalisme”, e a sua leitura é essencial – juntamente com o avant-propos – para perceber algumas das características de Terre de Galice (e até a razão pela qual esta edição provém, curiosamente, de Rennes...). Este oitavo capítulo também terá especial interesse para os leitores interessados nas expressões contemporâneas da cultura galega, que surge sobretudo lastrada pelas objectivações propostas em primeiro lugar por Murguía e depois consolidadas pelos intelectuais galeguistas activos antes da Guerra Civil. Estes reuniram-se em torno da revista Nós (Ourense, 1920-1936), do Seminario de Estudos Galegos (Santiago de Compostela, 1923-1936) e da militância no Partido Galeguista, e foram os primeiros que se identificaram como “nacionalistas galegos”.
4Falta ainda traduzir este trabalho importante para inglês, digo-o pelas razões mais óbvias. No entanto, Terre de Galice tem por trás uma vida editorial longa e intrincada, que não cheguei a destrinçar de forma exaustiva. São três as edições existentes em galego, cada uma delas já muitas vezes reimpressa, sobretudo a primeira, como vamos ver adiante. Para além destas, também já surgiram a partir de 1985 várias versões em castelhano, em Madrid e Santiago de Compostela, e mais recentemente em Buenos Aires. Existem ainda duas edições em português: uma ainda há pouco lançada no Brasil, que também segue a versão galega de 2016; e outra, mais remota, de 1991, lançada em Lisboa pela Livros Horizonte, na qual ainda se traduziu a primeira edição.
5Poderá ser surpreendente para alguns que esta edição francesa de um livro importante surja em Rennes, um lugar que pode parecer periférico, quando olhado a partir de Portugal. Mas há que considerar como as enunciações da diferença da Galiza e dos galegos foram, desde há quase duzentos anos, tão marcadas pela celtofilia. Nesta medida, a aparição de Terre de Galice na Bretanha – e não em Paris, como seria mais esperável e banal – é curiosa e tem um valor simbólico notável; e foi grata ao seu autor, com certeza. Villares não descura a presença persistente do celtismo em Terre de Galice e analisa-a em várias ocasiões, desde logo no avant-propos, e nos capítulos I, “La Formation de la Gallaecia”, no qual debate os seus usos, e VIII.
6 Em 1984, a obra de Villares apareceu sob a forma de um pequeno volume azul, de pouco mais de 250 páginas, que trazia um título lapidar – A Historia – inscrito na metade superior da capa. No rodapé, o nome da colecção – “Biblioteca Básica da Cultura Galega” – vinha explicar o laconismo do título. A Editorial Galáxia, sedeada em Vigo, mantinha a “Biblioteca”, que se tratava de uma instituição cultural com um capital simbólico enorme na Galiza dos anos da Transição, por ter sido o mais importante bastião da resistência galeguista do “interior” sob a ditadura, e que Ramón Otero Pedrayo dirigira desde a sua fundação, em 1950, até 1976. A “Biblioteca Básica” da Galáxia foi lançada no ano-charneira de 1982, quando a Xunta de Galicia – que subsidiou a edição dos 50 títulos que lá couberam – ganhou efectivas competências de governo autónomo. O título de Ramón Villares surgia em terceiro lugar, depois de dois volumes dedicados à geografia, e antecedendo mesmo o Ensaio Histórico da Cultura Galega, de Ramón Otero. Tratava-se da primeira história séria da Galiza escrita em galego, um facto da maior importância simbólica que nada pode apoucar.
7Quando preparou A Historia, Ramón Villares era ainda muito jovem, mas já se doutorara há vários anos e tinha um livro importante – La Propriedad de la Tierra en Galicia 1500-1936 – editado em Madrid (1982), que preparara com base na sua dissertação. O autor usufruíra da renovação do ensino e das metodologias de trabalho implementada nas duas décadas anteriores e podia exercer como historiador universitário a tempo inteiro. O privilégio de Ramón Villares nunca tinha tocado – ou fora roubado ou chegara muito tarde, como no caso de D. Ramón – aos intelectuais galeguistas das gerações anteriores, activos em 1936, que tinham sido assassinados, exilados ou atingidos por represálias ferozes e duradouras. Em cada uma das partes de Terre de Galice foi introduzida a consideração dos resultados da produção historiográfica dos últimos anos. Villares conversa com estes contributos de forma atractiva e segura, “abrindo” o texto, fazendo-o crescer, ao mesmo tempo que o faz com a menção das ideias das grandes figuras do passado.
8Por outro lado, cada um dos nove capítulos surge adicionado de um excurso, um pequeno ensaio sobre cada uma das cidades galegas. Em cada caso, o autor aproxima aquela que percebe como sendo o melhor espelho da época que acaba de tratar. A dimensão daqueles ensaios varia entre as quatro páginas concedidas à Lugo “romana” e as 24 concedidas a Buenos Aires, que o autor diz, com muito acerto, ser a “capital da Galiza” do início do século XX. Recebem ainda atenções extensas, de 12 páginas cada, a Compostela do tempo de Diego Gelmírez ou a Vigo “toute neuve”. Por razões egoístas, posso dizer que esperava maior vibrância e, ainda, textos mais extensos nas aproximações a Buenos Aires ou a Vigo. Em contrapartida, interessaram-me muito, pelo que neles aprendi, os ensaios dedicados a Ferrol e a Pontevedra. Nalguns momentos, cheguei a pensar que faziam falta ensaios sobre a Havana, a Lisboa ou a Madrid dos galegos, ainda que estas duas últimas fossem, por razões diversas, talvez mais difíceis de desentranhar.
9Curiosamente, damo-nos conta de que Villares não considerou nenhuma cidade como epítome do período barroco na Galiza. Se o tivesse feito, só poderia ter sido novamente Compostela, cuja “era” já fora a medieval – no III capítulo –, a do tempo do truculento bispo Xelmírez (e do aparecimento de Portugal, de tantas consequências para o percurso da Galiza, como se reflecte com destaque no avant-propos e neste terceiro capítulo, mas não apenas). Creio que é a Galiza toda a ser percebida com as marcas duradouras do Antigo Regime, barroca na sua essência, uma intuição tantas vezes glosada na obra de Otero Pedrayo. A bagagem de conhecimentos sobre a Galiza do Antigo Regime que Villares já tinha acumulado em 1984 permitiu-lhe valorizar aqueles séculos de uma forma inédita no âmbito da historiografia galeguista. Esta favorecera sobretudo a “Galiza celta” ou a “medieval” e menosprezara – se seguirmos tópicos muito reiterados – os séculos “escuros” da “doma e castração” do país galego, correspondentes à Época Moderna e à centralização da monarquia em Madrid. Villares percebia talvez melhor do que ninguém os desdobramentos do Antigo Regime na Galiza e como as suas sequelas se tinham tornado parte importante e duradoura da explicação da paisagem e da sociedade locais. É no capítulo V – “La Galice sous l’Ancien Régime”, o meu favorito neste livro – que este argumento germina e, a par, crescem possibilidades de afecto pela Galiza, tão marcada pelas ruínas da sociedade barroca.
10Vivi em Santiago Compostela em 1997 e 1998, onde comprei A Historia e também outros títulos da “Biblioteca Básica”, leituras que me foram então importantes quando queria ganhar familiaridade com as propostas de representação da cultura nacional galega. O meu exemplar do livrinho azul de Villares já poderia ser uma décima reimpressão, agora não a encontro em casa. Trato de consultar a Abe Books para avaliar quanto me custaria recuperá-lo e percebo que até mesmo a edição princeps é oferecida por menos de 5 euros, preço que é um indício fidedigno da importância que esta obra deve ter tido na formação das perspectivas sobre o passado da Galiza para muitos galegos. Agora, com 500 e poucas páginas, em formato de bolso e mancha gráfica não demasiado densa – com excepção dos ensaios sobre as cidades, que surgem em corpo mais miúdo (o que os torna a todos minimamente substanciais) –, este livro de história da Galiza é um objecto compacto e bastante portátil. Também é resistente... Usei-o intensamente durante o “confinamento” nesta Primavera de 2020 e resistiu, ainda que as folhas só venham coladas na lombada espessa. Esta obra de Ramón Villares está cheia de ensinamentos sobre a Galiza para quem tenha a oportunidade de a ler de fio a pavio.
11Este é um livro para um grande público, como as histórias de países costumam ser. Quero acrescentar que Terre de Galice é um título muito feliz e sereno, mas que me deixa sempre ouvir o eco de outro título – “Miña Terra Galega”. Este é o nome de uma canção punk-rock muito intensa do grupo galego Siniestro Total, datada de 1984, como A Historia de Villares. Nessa altura, os galegos queriam dizer-se a si mesmos, depois dos anos de ditadura, que “a sua terra era sua” e a veemência dos títulos e das performances era de regra. Estava no título de Villares e na maneira como então escreveu a sua identificação da Galiza, que agora nos surge tão matizada e enriquecida, como já disse, nesta edição em francês.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
António Medeiros, «Ramón Villares, Terre de Galice. Histoire d’un Finistère Européen. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2019, 505 pp. ISBN 978-2-7535-7798-5», Ler História, 76 | 2020, 230-233.
Referência eletrónica
António Medeiros, «Ramón Villares, Terre de Galice. Histoire d’un Finistère Européen. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2019, 505 pp. ISBN 978-2-7535-7798-5», Ler História [Online], 76 | 2020, posto online no dia 30 junho 2020, consultado no dia 12 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/7053; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.7053
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