1Este estudo tem como objeto central os impactos da lei escrita, da justiça codificada, numa região onde imperava a lei dos costumes coletivos. O aparelho jurídico-administrativo configura-se de maneira diversa nas regiões remotas, uma vez que a estruturação racional dos seus dispositivos legais e punitivos demandou mais tempo para se organizar. Em lugares onde antes vicejava a lei do costume, a regulamentação escrita demandaria submissão dos iletrados a princípios e regras alienígenas, estranhas à experiência. Nesse hiato entre o costume e a lei, formou-se a cultura jurídica no Brasil, particularmente nas partes centrais do território, distantes da capital do império. Além disso, naquela imensa extensão territorial, a administração provincial encontrava dificuldades de atuação em muitas comarcas que jaziam isoladas, fora do alcance dos dispositivos de governo. Nas últimas décadas do século XIX, já havia um corpo de funcionários encarregado de arrecadar os impostos, organizar a administração das comarcas, ajustando-as ao mesmo movimento funcional do governo do estado e da corte. No entanto, esses agentes do judiciário eram homens sem formação jurídica, a maioria com escolarização básica apenas.
2O interior do Brasil não atraía homens dispostos aos encargos e riscos de tais empregos públicos. A administração da justiça nas regiões centrais ficou entregue aos subalternizados, que, apesar da investidura oficial, submetiam-se aos poderes locais sem se libertarem da condição social anterior. A partir da documentação procura-se compreender o processo de implantação do judiciário, considerando o analfabetismo, a incapacidade dos sertanejos de compreender os obscuros meandros das leis e regimentos citados pelas autoridades. Produzidos por um braço do estado, o poder judiciário, além de guardar em si um poder, constituía um mecanismo, um procedimento e um registro de poderes, síntese de um conjunto de relações das quais a produção escrita retira o essencial (Bourdieu 1996, 113-124). O documento, uma abstração do “real”, um fragmento de orientação e dependente de contextualização, trazia em si as marcas daquele tempo (Adorno 1988, 71).
3No processo de interpretação das fontes, mirou-se identificar os protagonistas envolvidos diretamente nos autos, o papel dos agentes do jurídico-administrativo e dos homens da região. São todos indivíduos singulares, representantes de proprietários, posseiros, comerciantes e à sua volta circulavam vaqueiros e roceiros, ligados pelo trabalho com o gado, a produção de alimentos, remeiros e frentistas da navegação comercial pelos rios. Não faltavam grupos heterogêneos interessados no apossamento de terras, razão de rixas e conflitos entre antigos e recém-chegados. Esses agrupamentos habitavam o alto Tocantins e seus pequenos braços, onde formavam currais, fazendas e roças e faziam crescer os arraiais, povoados e vilas. Os juízes bacharéis, escolhidos para as funções jurídicas nas comarcas e nomeados pelo imperador, permaneciam três ou quatro meses no cargo, período em que a lei lhes facultava solicitar licenças, e raramente retornavam.
4Além de inexperientes, os bacharéis recém-formados mantinham soberano desconhecimento da cultura local. Somados as distâncias, a precariedade e o fracasso das ações do poder público, comprometia-se a justiça (Lemes 2013, 35). De fato, ela ficava a cargo de proprietários, comerciantes, homens de bem e de famílias estabelecidas na região. Parte significativa deles cerrava fileiras na guarda nacional, criada em 1831, durante a regência, para combater reações contra a independência. Nela eram agraciados com os títulos de alferes a coronel com mais poder de mando pessoal e familiar. Nas comarcas afloravam ressentimentos entre famílias, parentes e agregados dos clãs, que, não raro, terminavam em violência e morte ou em desproteção legal contra os adversários destituídos. O Correio Oficial publicava iniciativas da administração, leis, normativas, prestação de contas da província. No entanto, o que engrossava suas páginas eram as cirandas de nomeações e exonerações ao sabor das idiossincrasias dos ministérios liberal ou conservador do governo imperial. As destituições geravam rodadas de nomeações, contendas, denúncias, reclamações.
5A expansão da fronteira em direção ao oeste sertanejo foi motivada pela busca de terras devolutas em regiões despovoadas de brancos dispostos a civilizar o sertão. Eram homens de poucos recursos, interessados em amealhar terras, posterirormente legalizadas, muitos dos quais aventureiros, que se tornaram proprietários de grandes extensões. Para isso contavam com os homens da lei, garantidores incontestes do direito à propriedade. Os indígenas eram entraves à posse, permanência e produção em terras tidas por “espaços abertos” à conquista. Os aldeamentos constituíam reserva de mão de obra indígena aos novos povoadores, que habitualmente não respeitavam os limites das terras ocupadas pelos aldeados de quem destruíam as roças cultivadas. O governo provincial registrava as reclamações dos indígenas, mas pouco ou nada fazia para conter os abusos. O gado era o produto cujo comércio gerava renda ao governo e aos criadores. Eram os aldeados e negros forros que, em grande parte, dedicavam-se à agricultura alimentar. Os aldeamentos eram “tecnologia política” (Herzog 2018) de controlo dos “selvagens” que atacavam as “propriedades”, deixando atrás de si um rastro de destruição (Volpato 1987; Campos 2005, 343-344). As denominadas “terras livres” eram a maneira de os recém-chegados afirmarem a liberdade de ocupar, ignorando a presença e o conhecimento indígena da fauna e da flora locais.
6A província de Goiás era um imenso território no centro do Brasil cujas fronteiras ficavam desguarnecidas e entregues ao arbítrio dos homens de comércio e dos “malfeitores”. Terras devolutas eram apropriadas pelos antigos habitantes conhecidos na região por posses a perder de vista. No fim de oitocentos começaram a entrar no território novos colonos, “pioneiros” não interessados em ouro ou no aprisionamento de índios, como as bandeiras sertanistas, mas em ocupar aquele “vazio” em busca de terras para criação de gado e roças, ignorando a presença dos indígenas. A compreensão desses elementos depende de complementos externos ao processo que lançam luz sobre o organismo das relações sociais dos protagonistas. Sob o ponto de vista formal da peça, de um lado estão magistrados, escrivães, oficiais de justiça e jurados; de outro, réu, vítima, testemunhas. São indivíduos, no entanto, que transitam pelos mesmos caminhos, arraiais e vilas e relacionam-se entre si, interdependência essa imposta pela vida prática que desfaz qualquer hierarquia. Os depoimentos – acusação e defesa – “permitem a reconstrução desses relacionamentos (sobre os quais pouco se sabe) entre as vidas individuais e os contextos em que elas se desdobram” (Ginzburg 2010, 35).
7O processo-crime e os dois inventários que constituem a base documental essencial deste artigo funcionam à maneira de um molde estruturante. “As normas jurídicas apenas podem ser entendidas se integradas nos complexos normativos que organizam a vida social” (Hespanha 2005, 35). No século XIX, a estrutura político-institucional formava-se desconsiderando os grupos de “anônimos” que viviam no sertão. Eles aparecem na documentação porque, a um dado momento, são chamados a prestar contas de suas ações ao sistema judiciário como réus, vítimas ou testemunhas, oportunidade em que falam do que sabem sobre os fatos. Os depoimentos chegam carregados de informações acerca da convivência entre vaqueiros, criadores e agregados e o espaço de produção da vida material e social. Trata-se de crimes, interrogatórios e julgamentos de lavradores analfabetos, roceiros, pequenos criadores, donos de roça, vaqueiros, gente miúda, sem relevância. Ao historiador, exigente e crítico, cabe dar sentido histórico a esses excluídos de “cultura pobre”, a civilização do couro, e dar significado à estrutura social, à dinâmica política e institucional materializadas no “papel selado”. A civilização do couro dominou o sertão a ponto de ter se tornado a moeda símbolo do estado, uma vez que servia às grandes e pequenas transações comerciais. Essa tarefa exige intensiva pesquisa nos jornais da província de Goiás, a fim de restabelecer os fatos constantes nas fontes, bem como rastrear nomes e situação funcional dos envolvidos. Feito isso, se poderá caracterizar e discutir a experiência dos agentes do sistema judiciário e suas relações com os moradores das comarcas da região norte de Goiás, no século XIX.
8Os estudos de António Hespanha (1982, 1997, 2005) constituem a base de sustentação teórico-metodológica da história do direito, assim como o de Faoro (2001) é um clássico nos estudos centrados na história das instituições. Maria Franco (1969) foi pioneira no estudo de uma pequena área rural à luz de processos-crimes – validou o uso das fontes e ampliou as possibilidades do método interpretativo. No Brasil, Eisenberg (1987) estudou os usos de processos de alforria e Klein (1978) os de forros reduzidos à escravidão. Sobre o Brasil central, são raros, mais ainda os fundamentados em fontes primárias, por razões que vão do analfabetismo à precariedade dos arquivos. Apesar da proximidade temática e documental, este estudo atém-se à originalidade das fontes e à particularidade do processo histórico de constituição do sistema judicial no sertão. Procura também forjar um método que aponte as potencialidades de conhecimento histórico à luz da documentação disponível e dos aspectos da formação do estado judicial na periferia. O papel dos funcionários e as peripécias dos administradores ficam longe da suposta neutralidade racional apregoada pelo pensamento jurídico-político novecentista. A fim de restabelecer os fatos constantes nas fontes, bem como rastrear nomes e situação funcional dos envolvidos, fez-se intensiva pesquisa em jornais publicados na província de Goiás.
9Os três processos analisados neste artigo giram em torno dos descendentes do primeiro Canguçu, morto em 1861, e de seus filhos, Elizeu Inocêncio (1836-1907) e Bernardino (Augusto) Pinheiro Canguçu. Na primeira seção discorre-se sobre o processo de assassinato do vaqueiro Francisco Pereira Lobato a mando de Bernardino Pinheiro Canguçu, comerciante e criador de gado. Nela, analisam-se os depoimentos dos familiares da vítima e dos vaqueiros e a movimentação do processo. Na segunda seção, os Canguçu representam os homens ligados ao comércio do couro e à criação de gado, atividades comuns aos mais abastados, ligados por laços frágeis de solidariedade, senão quando se tratava de roubo de gado. É o caso do processo analisado na primeira seção e retomado na quarta. A terceira seção encarrega-se do porquê de o patriarca do clã Canguçu ter deixado a região baiana para se estabelecer no norte de Goiás. A saga da luta sangrenta das famílias Castro, Moura e Medrados contra os Canguçu está narrada em prosa por Afrânio Peixoto (1976), Euclides da Cunha (1989) e Jorge Amado (2010). Nessa atmosfera nasceu Castro Alves (1847-1871), insigne poeta romântico brasileiro, que em verso registrou as memórias daquele tempo. Todas as seções tratam da justiça, dos códigos e da lei, bem como das dificuldades em estabelecer no sertão o sistema judiciário. A conclusão justifica a relevância da reconstituição histórica da região norte de Goiás, atual estado de Tocantins, criado sob a égide do esquecimento, da pobreza e do abandono pelos poderes governamentais.
10Francisco Pereira Lobato e Abrahão eram vaqueiros e amansadores de cavalos e prestavam serviço a Bernardino Augusto Pinheiro Canguçu, acusado de encomendar o crime. A cizânia foi semeada quando Lobato discordou da partilha em pagamento pelos serviços prestados nos currais de Canguçu. Era estabelecido que certa quantidade de reses seria entregue ao vaqueiro quando terminasse o período de cuidados com o rebanho. Essa prática permitir-lhe-ia “amealhar certo pecúlio” e tornar-se também possuidor de rebanho (Prado Jr. 1972, 186 ss). Sentindo-se lesado, Lobato “pegou” no pasto a parte que julgou ser de seu direito, o que Canguçu tomou por roubo (Melo 2013, 18). Consolidado o desentendimento, Lobato resolveu roçar um pedaço de terra às margens do rio Tocantins. Mas o terreno “ocupado” pertencia à fazenda Jacaré, propriedade de Canguçu, lugar de pasto e água do seu rebanho. A “abertura da roça” agravou a rixa entre os dois e a “suspeita” de que Lobato intencionava “partir” aquela fazenda ao meio.
- 1 Processo-crime Bernardino Augusto Pinheiro Canguçu versus Francisco Pereira Lobato (1889-1893), dis (...)
Aí por essa ocasião diversas vezes aquele Canguçu em presença das pessoas que ficam mencionadas dissera ao informante [Abrahão] que o que houvesse entre ele Canguçu e seu irmão, o assassinado, ele informante não se metesse no meio porque ele, o informante, e Canguçu tinham filhos para criarem, e que já lhe constava que o assassinado tencionava partir a sua fazenda do Jacaré no meio.1
11Abrahão negou tal intenção do irmão e respondeu a Canguçu [...] “que não fosse homem de primeira informação, que assuntasse as cousas primeiro, prometendo-lhe que se seu irmão lhe gastasse uma rês que fosse ele auxiliaria no pagamento”.2 “Que não fosse homem de primeira informação” indica uma conversa tensa, mantida à “altura”. Dispor-se a “auxiliar” o irmão ou a ressarcir eventual prejuízo significa certa “condição” material e moral de reconhecer implicitamente o roubo de Lobato, bem como uma maneira de não “ficar a dever” e impedir que Canguçu fosse às vias de fato. Depois de feitas, no entanto, as ameaças tornavam-se questão de honra. Declarar que ambos, ele e Canguçu, tinham filhos que pudessem perder os pais estabelecia, além de uma ameaça de morte explícita, certa igualdade de condição: a orfandade dos filhos seria ruim para ambos.
- 3 O Correio Oficial (6 jul. 1889).
12O processo criminal sob análise aponta Bernardino Augusto Pinheiro Canguçu como mandatário do assassinato do vaqueiro Francisco Pereira Lobato. Um dia após o assassinato, Canguçu foi nomeado subdelegado da comarca do Peixe, onde residia.3 Conhecido pela alcunha de Caxeado ou Cacheado, chamado o cangaceiro do século XVIII, escondia os cabelos crespos e desgrenhados com um chapéu; sem ele, aparecia um grande topete. Esse sinal, talvez, tenha cristalizado a expressão “ter topete”, “ser topetudo”, característica de jagunços e cangaceiros, os “cabras”. “Nesse tempo, não se chamavam jagunços cangaceiros os cabras ‘famanazes’ e os bandidos: eram os cacheados” (Souza 1939, 62).
O promotor Público da comarca vem presente a v. senhoria denunciar a Bernardino Pinheiro Augusto Canguçu, Manoel vulgarmente conhecido por Orelha, Joaquim Bala, Cypriano Muniz de Araujo e Antonio José de Carvalho, moradores no distrito do Peixe, do termo e comarca da Palma, pelo fato que passo a referir: No dia 5 de julho do ano fluente em uma roça defronte do porto das Ipoeiras, nas margens do rio Tocantins, pouco acima da Itália, onde trabalhavam manço e pacificamente Francisco Pereira Lobato com dois companheiros, os quatro últimos denunciados agrediram a Lobato e desferindo-lhe tiros de arma de fogo o assassinaram, fato que com o maior cinismo declararam antes e depois haverem praticado a mandado do primeiro denunciado Canguçu.4
13As testemunhas contam que Canguçu procurava um “matador” para dar cabo de Lobato, que, avisado por conhecidos, andava receoso e desconfiado de “traição” por parte de outros vaqueiros e “camaradas”.
[...] que Manoel Lopes Sampaio havia dito [...] que aquele Canguçu o havia peitado para o matar, oferecendo-lhe dinheiro e pólvora, mas que ele somente havia aceitado a pólvora para caçar seus bichos e que este aviso fora dado no dia se Santo Antônio.
[...] que Luiz ex-escravo [...] disse ao depoente que encontrando-se em Brejinho com Canguçu, este lhe convidara para matar o Caxeado, mostrando-lhe por esta ocasião porção de dinheiro e o mesmo Luiz lhe dissera que não costumava ganhar dinheiro desse serviço.
[...] um rapazinho do Jacaré, fazenda de Canguçu, contou que o Caxeado, estava em véspera de morrer, notícia esta que Lourenço recomendou para ele [Eugênio] não andar [com Caxeado].
[...] que antes da morte de Caxeado era tão notório que ele ia ser assassinado por mandado de Canguçu que os vizinhos de Caxeado tinham medo de tê-lo em casa ou encontrá-lo, [...] que o tenente Victor Ferreira de Sena vagando por cerca de uma hora com o mesmo Caxeado, sentia muito medo de qualquer barulho.5
14A relação entre vaqueiros e criadores pautava-se pela interdependência de interesses mútuos. Eles necessitavam de homens para cuidar dos rebanhos, proteger as fazendas e a si mesmos das incursões de “bandidos”. Entre vaqueiros e serviçais, o interesse em amealhar rebanho e terras próprios fazia desses “prestadores de serviço” trabalhadores esperançosos, reféns da expectativa de se tornarem também portadores de um título de propriedade (Silva 1997, 20 ss). Essa sobrevivência interessada, pautada por códigos de honra e empenho da palavra honrada, passava ao largo do controle do estado, dos códigos escritos, da racionalidade administrativa. Era também uma maneira de conquistar certa respeitabilidade do grupo superior de quem se esperavam contrapartidas, reconhecimento e favores pessoais, não sem desconfiança e vigilância mútua (Prado Jr. 1977; Mott 1986). Uma relação ambígua e tensionada por códigos rígidos reguladores em lugares ermos, onde homens e gado vagam por extensas terras sem cercas (Silva 1997, 20 ss)
15Não se tratava, pois, de estabelecer de pronto o princípio da violência como característica fundante da convivência, mas de evitar o rompimento daqueles laços, que, se desfeitos, instalaria a violência entre os indivíduos e acenderia as latentes rixas entre grupos de maior ou menor poder de barganha. A pesquisa das fontes produzidas pelo judiciário, no entanto, particularmente os processos-crimes, leva à materialização da violência intragrupo de sertanejos, nos quais as relações fundamentavam-se na confiança mútua. Instalada a dúvida sobre a conduta do proprietário ou do vaqueiro, rompia-se o fio desse código e a convivência pessoal voltava ao estado originário: a morte de um ou de outro lado do fio rompido. Só a violência explícita restabelecia a “integridade do agravado” e a obrigatoriedade da observância das regras. À fragilidade das instituições normalizadoras restava a criação de normas e regras validadas pelos costumes.
- 6 Goyaz, 15 jan. 1893.
- 7 Goyaz, 6 jul. 1890.
16O processo foi produzido/escrito por vários autores – juízes, promotores, escrivães, delegados – e, indiretamente, pelos muitos depoentes que contavam as versões dos fatos. Os manuscritos dão a conhecer data e lugar, nomes de quem escreveu e pessoas envolvidas. A seu modo e em razão do tempo em que ficou esquecido nalguma gaveta, o registro das idas e vindas quer desvelar o movimento no interior das instituições. A grafia das letras, trêmulas e desenhadas com esforço, a redação e as assinaturas denunciam o baixo grau de hábito e habilidade na escrita e uma alfabetização claudicante de seus autores. No interior, a narrativa é encarnada nos envolvidos em circunstância; na forma, o tempo, a duração, a cronologia quase nunca referenciados no código processual e penal (Ginzburg 2007, 23). “O processo judicial e tribunal são ritos, cerimônias e fórmulas, modelo do exercício do poder político” (Hespanha 2005, 38). O processo menciona a participação de “assassinos profissionais”, entre eles Joaquim Bala, matador profissional cuja fama alcançou os jornais de Goiás, Maranhão, Piauí e Pará,6 que andava com outros jagunços – como Felix Seraphim de Belém, Ignácio de Carvalho Araújo, Abílio Araújo ou Roberto Dourado. As notícias dão conta de suas façanhas e violência praticadas contra mulheres, crianças e velhos e pedem ação do estado, a fim de coibir os bandos de jagunços armados que perambulavam pelo território e pelas fronteiras. Em 1895, Joaquim Bala foi executado juntamente com mais dez “bandidos” num lugar chamado Olhos d’Água, no extremo norte.7
17Terminado o inquérito policial, o processo arrastou-se até novembro de 1893, quando, apressadamente, sem as formalidades do código, teve início o julgamento, com os nomes dos jurados já constituídos e publicados no diário oficial da província, mas sem o devido registro nos autos. Bernardino Canguçu, cujo nome aparece na inicial e assim é referido pelas vinte testemunhas no inquérito, surge como Elizeu Canguçu. Em seu depoimento, nenhuma referência a Bernardino. Por que Elizeu, irmão de Bernardino, compareceu para ser julgado em vez do próprio não foi explicado. No depoimento consta apenas que Elizeu Pinheiro Canguçu nascido na Bahia (1836), solteiro, contava 57 anos, era criador de gado e residia na fazenda Dois Irmãos e na vila de Porto Imperial. O processo encerra com a declaração de inocência.
18Nos primeiros meses de 1889, Bernardino Canguçu embarcou levando couro e gado para vender no Pará, onde comprou suprimentos para as fazendas e currais: sal, panos, ferramentas e mercúrio. No retorno, foi atacado por “piratas”, homens acostumados a tomar de assalto os botes que subiam o rio Tocantins e a roubar as mercadorias. No combate com os “roubadores”, Canguçu e o remeiro foram feridos “de faca”. Nesse mesmo tempo, aparecem notícias das “proezas dos ladrões de gado e cavalos” dos quais Canguçu era a “principal vítima dos bandidos”.
O vaqueiro d’esta fazenda, Antonio José da Silva Junior, aproveitando-se da ausência de seu patrão Canguçu, que se acha em viagem para o Pará, tem roubado ou furtado grande ou quase maior parte do gado da mesma fazenda, que tem vendido e gasto, e ultimamente conduziu 60 e tantas cabeças de gado.8
- 9 Relatório que à assembleia legislativa de Goyaz apresentou o exm. presidente da mesma província, Jo (...)
19Como as viagens alongavam-se em média seis meses, a depender do período de seca ou de chuva, os donos de rebanhos contavam com homens de “confiança”. Porém, na ausência do “patrão”, o acordado entre eles perdia força e esses homens de “confiança” descuidavam das “obrigas” mútuas e da vigilância dos currais (Mott 1986, 29-36) Era necessário estabelecer limites e punir os criminosos, uma vez que os proprietários de currais eram também comerciantes dependentes de laços de confiança estrita entre eles e os “camaradas” seus ajudantes. Os jornais da capital publicavam com frequência notícias sobre roubo de gado, invasão de fazendas e vilas para conhecimento de todos e das autoridades. A comarca da capital acionava delegados, promotores e a polícia por ofícios publicados e respondidos no diário oficial. Assim se materializava a administração no papel selado e publicado nos jornais. Os privados, fundados e mantidos por homens de partido – liberal ou conservador –, eram livres para nomear e escarafunchar os fatos delatados; deslindavam-nos, ora denunciando agentes do governo, ora acusando rivais e desafetos. Se se tratasse de “ataques à propriedade”, no entanto, os “criminosos” eram tidos como “inimigos da prosperidade do pacífico fazendeiro, que de vós [governo] espera a justa proteção”.9 Aos “roubadores” e “ladrões”, aos “vadios”, aos “preguiçosos” reservavam o rosário do discurso liberal: prisão e trabalho forçado. Num território com tais dimensões, no entanto, a força policial era insuficiente para coibir os “malfeitores” e “vagabundos”, avessos aos discursos.
20No Brasil, o percurso por que passou a concepção do trabalho de atividade negativa e degradante para a de positiva foi longo. Paralelamente aos discursos realimentados pela necessidade e dignidade do trabalho, os trabalhadores também seriam alvos de práticas repressivas (Franco 1969). Os criadores de gado, contando com forças próprias, avançavam sobre o plantio, destruíam as roças, expandiam a pecuária e seguiam atrás da boiada, deixando para trás a pregação moral dos agentes do governo e dos poucos que sabiam ler e escrever. Eram instruídos a valorizar o labor, positivar a ambição respaldada no trabalho honesto, a garantir a propriedade, sustentar a legitimidade dos tribunais e apoiar as ações policiais, fundindo os poderes político e econômico. A largueza do território refletia-se na frouxidão dos laços de trabalho e na autodisciplina, vez que, à abundância de terra, somava-se a escassez de gente disposta ao trabalho regular e disciplinado (Lima 2005).
- 10 Goyaz, 18 abr. 1889, p. 2.
- 11 Goyaz, 1 fev. 1889, p. 2.
21A tarefa de organizar o estado, afeta aos presidentes e administradores das comarcas, emperrava em razão da precariedade da polícia e do aparato jurídico e favorecia a violência privada entre antigos e novos colonizadores em busca do apossamento e da expansão de terras, acobertados pelo judiciário. Assim, o Brasil “profundo” regionalizava o poder e garantia a ocupação e a expansão dos domínios territoriais. Em 1889, quando pipocavam ataques na região, um anônimo denunciava a falta da força policial para “afugentar os bandidos”, se bem “nas épocas eleitorais não faltavam soldados para os destacamentos”, que vinham “violentar o voto e vexar o povo do sertão”.10 Autoridades faziam “brotar do chão” eleitores que desapareciam dos registros após os pleitos. Os “poderes públicos” descuravam dos deveres, largando o povo “entregue a sicários e turbulentos”, autores de crimes denunciados nos jornais e comentados nos vilarejos.11 Os discursos morais em favor de um projeto civilizacional estavam longe de alcançar e disciplinar as relações sociais. A realidade objetiva das instituições – território, população, estado – constituía uma pálida representação desse projeto.
- 12 O extremo Norte de Goiás foi rapidamente ocupado por contingentes populacionais durante as lutas pe (...)
22Em meados do século XIX, o novo movimento migratório coincidiu com a pretensão do governo imperial de criar as condições políticas de organização das fronteiras e da propriedade da terra (Bicalho e Ferlini 2005).12 A intenção, de fato, era controlar o vasto território, entregue à própria sorte, ordenando o registro das terras “efetivamente ocupadas” pela Lei de Terras de 1850, que visava “normalizar o acesso à terra”, regularizar as posses e impedir ocupações arbitrárias. Terras devolutas ou públicas só poderiam ser adquiridas mediante compra depois de três décadas de livre ocupação (Silva 2008, 18-19). A regulamentação dos “terrenos da província” preocupava os administradores, desejosos de assegurar as posses existentes e impedir que “os vagabundos” entrassem pelo sertão afora e demarcassem “arbitrariamente posses” que depois pudessem vender a “diligentes” fazendeiros. Os “novos”, os “estranhos”, apareciam aos guardiões das localidades concorrentes em busca de terras, que eles próprios cobiçavam. Expandir os domínios fortalecia o clã familiar em proveito dos filhos, netos e aderentes.
- 13 Inventário de José Antonio da Silva Junior (1892-1894), disponível no setor de arquivos da Esmat, c (...)
- 14 JASJ, 1892-1894, caixa 10, pasta 4.
23Os roubos resultaram no inventário que trata do arrolamento dos “ficados” e das dívidas do vaqueiro José Antonio da Silva Junior (JASJ), acusado de saque às fazendas Serra Dourada, de Bernardino e Elizeu Canguçu, para quem trabalhava.13 Em 1892, três anos após os roubos, JASJ foi assassinado “sem que deixasse na terra quem legitimamente deva suceder; e sendo muito provável que se dê a delapidação nos ficados, julgo de muita conveniência que se tome[m] as devidas precauções”.14 O processo de arrolamento e a avaliação dos bens do vaqueiro foi feito pelos homens da comarca de Porto Imperial, interessados em receber as contas “a prazo”, supostas dívidas de JASJ. No entanto, os irmãos Canguçu haviam recolhido e posto sub judice os ficados do vaqueiro. O pai dele, no entanto, em desobediência à autoridade judicial, furtou e vendeu a criadores locais 116 rezes, no valor de 2.320$000 (dois mil, trezentos e vinte réis). Segundo consta, o próprio vaqueiro havia deixado “entre livros de assentos” a relação dos credores, moradores de Palma-Peixe-Pilar-Amaro Leite. O lugar conhecido ainda hoje como região do Peixe era o centro mais populoso e movimentado do Alto Tocantins. Dele partiam batelões com toneladas de couro para Belém, de onde voltavam com produtos que abasteciam as comarcas próximas (Paternostro 1945, 251). A cidade de Porto Imperial, no entanto, possuía um corpo jurídico-administrativo constituído, razão que explica a prioridade dos comerciantes locais na repartição do espólio de JASJ. Mesmo as dívidas tendo sido contraídas após os saques às fazendas dos irmãos Bernardino e Elizeu Canguçu.
- 15 Inventário de Inocêncio Pinheiro Canguçu (1907), disponível no setor de arquivos da Esmat, caixa 10 (...)
24Os roubos praticados nas fazendas dos Canguçu, cujos “furtados” foram comprados por criadores do entorno, são indícios fortes das dificuldades interpostas aos que adentravam o território dos estabelecidos. O conluio, se não destruía uma possível agregação dos novatos, instalava uma fronteira de violência entre os antigos e os recém-chegados. Os estabelecidos pelo enraizamento pessoal e familiar na região, cujos direitos sobre as terras estavam protegidos pelo tempo de posse, não eram exemplo de “honestidade” e “honradez”; agiam visando proteger o lugar dos “forasteiros”, dos “novos” colonizadores. Os Canguçu não pertenciam ao lugar nem eram “homens de família”. Elizeu Pinheiro Canguçu era solteiro aos 56 anos. Ana Dias Furtado herdou os bens do filho Inocêncio (n.d.-1907), falecido solteiro e sem descendentes.15 Os recém-chegados quebravam a ordem interna fundadora da comunidade, por isso tomados por invasores sem os direitos dos “costumes”.
25Os “inimigos da prosperidade do pacífico fazendeiro” eram colonizadores nacionais, que chegaram para também ocupar as terras devolutas. Os estabelecidos resistiam das mais variadas formas às ordenações administrativas “alienígenas”; não raras vezes usavam de violência e brutalidade expulsando os cobradores de impostos e taxas e os representantes da ainda frágil ordem jurídica sertaneja. Mas os juízes municipais, delegados e escrivães eram gente da terra, conhecidos entre si, cientes da hierarquia, da subordinação às práticas costumeiras do lugar. Faziam tábula rasa dos códigos e da legislação que, se sabiam da existência, não se esforçavam por compreendê-la e aplicá-la. Nesse contexto, o rigor da lei era de somenos importância. De praxe, a sentença terminava na primeira instância da comarca. Raros eram os casos em que se recorria ao tribunal da relação na capital da província.
26Por último, analisemos o caso de Elizeu Inocêncio Pinheiro Canguçu.16 Falecido em novembro de 1906, “sem deixar herdeiros descendentes”, era filho de Sara Dias Furtado, única herdeira e sucessora do espólio e inventariante, que requereu de imediato a avaliação dos bens para pagamento dos impostos. Inocêncio possuía 480 cabeças de gado, 36 éguas, 22 cavalos e três burros distribuídos pelas fazendas Água Branca e Jacaré, ambas situadas no vale do rio do Peixe. Nessa propriedade deixou uma casa de telha, currais cercados, 20 sacas de café, instrumentos de trabalho – enxadas, foices e facões – e inúmeros apetrechos de cavalaria. Se, em vez de taipa com telhados de sapé, as taperas, a casa deixada por Inocêncio Canguçu era de telha, tratava-se de forte indício de que ele desejava criar raízes nas terras que lhe pertenciam por direito. Ao final, era proprietário da fazenda Jacaré; as outras terras citadas eram apossamento. Por lei provincial de 1893, foi permitida a revalidação das terras de sesmarias e posses cujas concessões fossem legítimas e cultivadas.
- 17 Jornal de Notícias, 15 maio 1956, p. 3.
27Portanto, as três últimas fazendas eram de sesmarias e não foram revalidadas naquele ano, razão pela qual não constam no inventário do tenente-coronel Elizeu Augusto Pinheiro Canguçu. Sem revalidação, as terras voltavam ao domínio do estado. Em 1956, o inventário de Elizeu serviu de prova, contestação e negação de título de posse a um fazendeiro da região do Peixe. O defensor do estado argumentou e provou que, se Elizeu Canguçu fosse o titular das demais fazendas, além da Jacaré, elas teriam sido arroladas no inventário de 1907. De fato, as tais fazendas eram pastos e currais assentados em terras devolutas. “Não concebe que aquele rico e valente fazendeiro tivesse ocupado fazendas e terras e propriedade privada, tão poderoso foi seu domínio naqueles tempos, que mereceu seu nome ficar ligado a peixe do Canguçu, como é até hoje por muitos pronunciado”.17
28Família poderosa, os Pinheiro Pinto tornaram-se proprietários de fazendas na “caatinga baiana”, região do Brejo do Campo Seco, posteriormente Bom Jesus dos Meira e hoje município de Brumado, BA. Lycurgo Santos Filho foi o primeiro a retratar, em 1755, uma fazenda de pastoreio na região do Brejo Seco, fundamentado nos livros de assentamentos e no volumoso repositório de centenas de papéis e documentos preservados pelos descendentes dos Pinheiro Canguçu (Carneiro e Oliveira 2015). Inocêncio José Pinheiro (Pinto) Canguçu (1795-1861) nasceu em Bom Jesus do Brejo Seco, único filho varão de Antonio Pinheiro Pinto (1748-1822) e neto do Familiar do Santo Ofício Miguel Lourenço, nascido em Lisboa (Santos Filho 1956, 5-32). O sobrenome Canguçu foi acrescentado a partir de 1830, motivado pelo nativismo pós-independência que levava os lusófobos a se despojarem de nomes portugueses adotando os da terra. Ao deixar a fazenda Sobrado do Brejo do Campo Seco, Inocêncio José Pinheiro levou consigo o sobrenome Canguçu pelo qual seus descendentes legítimos são conhecidos, bem como os dez ilegítimos, filhos de mães brancas, pretas e mulatas (Santos Filho 1956, 49).
- 18 Ver também Calmon (1935) e Santos Filho (1956, 149-177).
29A luta entre os clãs baianos, Moura e Castro e Pinheiro Canguçu, ligados por “laços sanguíneos muito estreitos, respeitáveis fazendeiros do Rio de Contas, cujos filhos tornar-se-iam homens de estado na Bahia”, começou no ano de 1844. Leolino Pinheiro Canguçu (1826-1847), segundo filho de Inocêncio, impediu Pórcia Carolina da Silva Castro de deixar o Sobrado dos Canguçu onde o pai, José Antonio da Silva Castro, pedira pouso para a família. Leolino, “aventureiro como o pai”, permaneceu sozinho com Pórcia por três semanas, quando, ao fim desse tempo, os homens e “cabras” invadiram a sede da fazenda em busca da moça. O episódio desencadeou a rivalidade entre as famílias e fez de Pórcia a “heroína do mais dramático idílio do sertão”, menos pelo “rapto” e mais porque viria a ser tia do poeta mais famoso daquele tempo, Castro Alves (Amado 2010).18 O acontecimento jogou os Castro, os Moura e os Medrado, “donos do sertão e zeladores do seu código de honra”, contra os Canguçu. Depois de a família resgatar Pórcia, Leolino respondeu à invasão do Sobrado. Entrou na fazenda Boa Sentença e esfaqueou Manoel Justiniano, cuja mãe era tia e sogra de Exupério Pinheiro Canguçu, o primogênito do primeiro Inocêncio Canguçu. Em seguida, na fazenda Santa Rosa, assassinou Antonio Martiniano Moura.
30Os assassinatos desferidos por Leolino desmembraram as famílias e acirraram a sanha de vingança e morte entre elas. Essa hostilidade crescente explica em parte o fato de Inocêncio, o primeiro Canguçu, ter deixado a família e as propriedades, na região do Brejo do Campo Seco, BA, aos cuidados do filho Exupério. Ele passou a cuidar dos interesses da família e se fixou no vale do rio são Francisco como proprietário de terras e gado. “Em 1859, encontrava-se foragido, com os filhos, nas cercanias do arraial de São Miguel”, no Vale do Jequitinhonha (Santos Filho 1956, 47-56). Inocêncio Pinheiro Canguçu faleceu em 1861, na fazenda da Ilha do Pão, MG, aos 66 anos de idade, e foi enterrado no Arraial de São Miguel. Segundo Jorge Amado, o rapaz foi cantado em verso e prosa como representante das belezas e dos sentimentos dos sertanejos, homens valentes, defensores da honra; “um código de honra nascera no sertão” depois das façanhas de Leolino Canguçu, “e ainda hoje, cem anos quase passados sobre essa história, ele existe no coração dos senhores das fazendas e no coração dos cangaceiros” (Amado 2010, 37).
- 19 Relatório do Presidente de Província Leite Moraes, Joaquim de Almeida, apresentado à assembleia ger (...)
31A formação do corpo de funcionários do judiciário nas províncias foi desde cedo marcada pela ideia de “corporação”. Em 1881, o Ministério da Justiça foi consultado sobre a compatibilidade do promotor que, sendo “amigo íntimo municipal”, atuava junto numa “causa crime”. A resposta do ministro foi: “a amizade íntima não é motivo para o promotor dar-se de suspeito em causa crime, nem o torna incompatível com as autoridades locais”. Sugerindo ainda: “muito convém que as autoridades locais procurem o mais possível harmonizar-se em bem do serviço público”.19 Seria um anacronismo dizer que se confundiam o público e o privado. Não. Apesar das normas e dos códigos, não fazia parte da experiência a diferenciação dos negócios públicos e privados; bem como os poderes não eram separados: o intendente exercia o cargo de juiz, de promotor, delegado. O juiz não só julgava, também denunciava crimes de qualquer ordem, cumprindo o papel que cabia ao promotor. Não havia uniformidade nem simetria nas administrações menos ainda no judiciário. A anarquia de competências e de jurisdição era a norma, não a exceção.
- 20 O Publicador Goyano, 7 ago. 1886, p. 2.
32Crimes e delitos praticados por vaqueiros, prestadores de serviços, plantadores de roças e libertos eram tidos por atos de bárbaros. Não só os vadios, as “hordas de bandidos”, os “homens sem ocupação útil”, os ladrões de gado eram responsáveis pelo “fraco adiantamento” da província. Os funcionários da administração, distantes do poder central, também eram acusados de insubordinação e crimes contra a administração. Muitos deles, exonerados “a bem do serviço público”. Soldados desertavam unindo-se aos “criminosos”; delegados faziam vistas grossas às contravenções de “homens de bem”, de coletores de impostos devidos por eles. Desse modo, os crimes e as contravenções de proprietários de terras, comerciantes e agenciadores públicos eram parte constitutiva da experiência histórica, enraizada na mentalidade dos descendentes desde os tempos da mineração, bem como o ódio devotado ao fisco e à arbitrariedade dos arrecadadores. A maleabilidade das fronteiras permitia que escorregassem de um lado para outro do território, induzidos pela má vontade devotada aos representantes da coroa, prática que avançou no tempo do império, continuou na república e alcançou nossos dias. São recorrentes os pedidos das autoridades locais aos presidentes da província o envio de delegados “enérgicos”, que viessem acompanhados de praças, a fim de pôr termo à impunidade dos criminosos nas comarcas.20
33O escrivão era responsável por organizar e movimentar o processo, escrevendo datas, vistas, juntada, conclusão, recebimento e termos de publicação. O conjunto dos depoimentos são os termos escritos durante as audiências, assinados pelo juiz, pelas partes e pelo escrivão. Os juízes de comarcas mal liam e escreviam, sobrava para o escrivão a parte deles e dos demais – delegados, oficiais de justiça etc. Portanto, é inegável a importância do escrevente numa região onde os agentes da administração, escolhidos por títulos da guarda nacional e renda, eram de poucas letras, muitos tendo frequentado apenas os primeiros anos da escola que ensinava aritmética e leitura básicas. Os moradores sem titulação e renda formavam o grosso dos iletrados, das testemunhas, cujos relatos eram assinados, a rogo, por um oficial qualquer presente no tribunal. O escrivão organizava os processos, registrando com palavras próprias os falares característicos de roceiros e vaqueiros (Ginsburg 1987, 45). Ao desnaturar esses falares, suprimia informações tidas por costumeiras, irrelevantes. Mas, por outro lado, reparando-se em tal “intromissão” seletiva e observando as repetições, encontra-se um significado na ação do escrivão (Ginsburg 2007, 290).
34Chama a atenção o esmero do escrivão em anotar a raça e a cor dos muares, as arreaduras dos cavalos, os aparatos de montaria, todos eles significantes de algum prestígio social. Assim também fazia com o registro pormenorizado dos lugares, nomes dos pequenos rios, córregos, morros e as distâncias percorridas entre eles e os povoados e vilas. Esse cipoal de nomes associado às terras e respectivos proprietários anotados pelo escrivão acabou por certificar os futuros proprietários das terras apossadas por aqueles ditos donos. Ao validar a posse das terras devolutas, o escrivão dava fé pública, tornando-as propriedade de beltrano ou sicrano. De maneira que, a memória dos sem-terra, dos “camaradas”, dos prestadores de serviço nas roças e currais era um dos mecanismos de prova oferecido pelas comunidades locais. O escrivão registrava em papel selado a dimensão das terras e os respectivos proprietários, isto é, ele registrava e certificava aquelas terras, tornando-as propriedades oficialmente reconhecidas pelos demais. Os depoentes, homens com ou sem recursos, deixavam nesses registros o reconhecimento histórico oficial de que as áreas nomeadas por eles “pertencem” a tal pessoa, ou seja, nomear a fazenda, a localidade e o proprietário constituía um documento de posse e garantia de legalização posterior. Dessa maneira, o depoente, muitas vezes vítima de violência, acabava por ratificar a propriedade do réu ou do denunciante. A memória dos espaços ficava registrada e validada pelos testemunhos das vítimas.
35A violência era frequente entre os oficiais de baixo escalão; que não raro eram assassinados por criminosos foragidos da justiça. Não sem razão histórica, o sertão foi considerado o lugar dos fora da lei. O mensageiro da justiça, a quem o juiz municipal delegava a função de prender criminosos, recebia a menor parte do valor constante nos autos. As vacâncias nos ofícios de baixo escalão justificavam a negligência em agir conforme as normativas reguladoras dos deveres do cargo. Uma das dificuldades era encontrar “quem se [prestasse] a exercer o cargo de oficial de justiça”, cuja função exigia percorrer a galope ou a pé longas distâncias e correr o risco de morte. Além disso, o fato de os cargos serem preenchidos por qualquer “analfabeto” explica por que eram nomeados pelo primeiro nome e tinham os menores rendimentos, conforme descrição dos valores recebidos por função constante nos processos analisados.No processo-crime Canguçu versus Lobato estão registrados os valores partilhados aos agentes por função. Enquanto os três escrivães ganharam 64$500 réis e os juízes 32$250, quantias comparáveis a 60 e 30 cabeças de gado, respectivamente, os dois oficiais de justiça apenas ganharam 6$500 réis. No inventário do vaqueiro (JASJ, 1892-1894), o escrivão Manoel S. Brabo recebeu sozinho a quantia de 68$880 réis. Por exemplo, o credor capitão André Ayres da Silva, comerciante local, aceitou receber, em julho de 1892, uma vaca e um garrote no valor de 13$000 réis em pagamento parcial da dívida de 230$570 réis. A discrepância entre o valor das mercadorias vindas de outras regiões e o preço do gado explica-se pelas distâncias e ausência de investimentos em estradas, pontes e comércio fluvial eficientes. A melhoria da comunicação terrestre e fluvial, na voz dos interessados em concessões e esperançosos de subsídios, atrairia os “habitantes inativos” das províncias vizinhas e a imigração estrangeira interessada na riqueza natural e agrícola. É plausível supor que os criadores desfalcavam o rebanho enquanto o vendeiro seguia agregando as duas atividades, do comércio e da pecuária, e acumulando margem maior de propriedade e capital.
36Os homens da burocracia jurídica e administrativa das comarcas tornavam-se aos poucos “proprietários” de terras e juntavam nelas seus rebanhos. A identificação com os homens da localidade facultava a apropriação dos grupos locais que se identificavam com os do comércio. Ao se tornarem proprietários de terras e currais, ligavam-se às famílias locais, a grupos de interesses privados, locupletados com os “chefes” das comarcas. Foi essa identificação de “interesses comuns” que facilitou a demarcação de terras a perder de vista, legitimando a particulares as terras públicas. O direito de propriedade une os grupos locais, fortalecidos pelo judiciário e pelos agentes da administração, que alcançam o estado e definem-se como grupos hegemônicos. A província, por intermédio de suas comarcas, poderia até ser um locus de disputas por cargos, ambições pessoais, que separavam grupos e famílias, mas, no campo da propriedade e do domínio do estado, a beligerância desaparecia.
- 21 O Publicador Goyano, 2 ago. 1886, p. 2.
37Processos de denúncias de ferimentos e assassinatos eram ignorados por promotores e juízes se neles faltasse o “auto de corpo de delito”. Um juiz foi denunciado por haver “despronunciado mandante e mandatário de um bárbaro assassinato perpetrado no Peixe”. No entendimento do denunciante, o juiz deveria considerar que, “em um sertão vasto, onde os crimes se dão quase sempre em lugares despovoados e ermos, é difícil se não impossível conseguir um corpo de delito; portanto, aquela doutrina [do juiz] vem servir de amparo dos criminosos contra a ação da justiça”.21 Até os presos que ameaçavam a vida de delegados e de policiais envolvidos na “investigação” eram postos em liberdade com esse argumento. Na ausência do corpo de delito, as circunstâncias e detalhes da ocorrência eram reconstituídos no inquérito policial, quando as testemunhas nomeadas e referidas contavam as versões do crime.
38Os acusados, por sua vez, quase nunca eram encontrados nos locais indicados, quando havia quem se dispusesse a intimá-los ou buscá-los. Parentes e conhecidos também não esperavam as autoridades, logo enrolavam em panos o corpo da vítima e enterravam-na em lugar próximo ao do crime ou da morada dos familiares, sobre a qual fincavam apenas uma estaca em forma de cruz. Em 1889, o promotor Domingos Baptista de Araújo justificou por que não constava no processo de assassinato do vaqueiro Lobato o corpo de delito: “a distância entre o local do crime, ocorrido em lugar ermo e... a polícia da comarca andava acéfala” (Melo 2015, 275). O mesmo promotor também foi acusado de prevaricar ao ignorar a denúncia de Mércias, espancada e estuprada por alguns homens. Declarou nos autos “que o único delegado de polícia existente na localidade era um dos agressores da pobre mulher” e anexou a declaração do delegado: “todos os lugares de suplentes de delegado e de subdelegado e seus suplentes têm-se conservado vagos, e que o mesmo atestante tem pedido demissão do cargo, que com sacrifício tem exercido” (Melo 2016, 49-69).
39Este estudo é resultado parcial de pesquisa com documentos jurídicos referidos à província de Goiás. Em 1988 foi dividida ao meio e sua parte norte, Tocantins, tornou-se o mais jovem estado da federação brasileira. Nesse processo de inauguração de um novo estado, o passado que aparecia aos contemporâneos como um tempo a ser superado e esquecido materializa-se nas políticas de apagamento de memória. As dificuldades de acesso somadas à desorganização dos arquivos desanimam os estudiosos do período. Em decorrência disso são poucos os estudos sobre o século XIX na região norte de Goiás. A fundação do estado do Tocantins tornou-se o ato oficial de criação do novo e os estudos históricos têm-se prendido a esse marco inaugural. O esquecimento do passado, uma fuga da história, garantiria um discurso modernizante sem as amarras de um passado de atraso e pobreza. O resultado desses anseios reflete-se na carência de estudos transversais à moda dos realizados sobre a formação das famílias na América portuguesa e no Brasil do século XIX, por exemplo, bem como estudos sobre a ocupação territorial, particularmente os referidos à posse de terras e posterior regularização das propriedades, processo esse iniciado após a Lei de Terras de 1850.
40Governo e instituições descuram dos arquivos. Os registros de batizados, casamentos e óbitos permanecem sob a guarda das paróquias locais. Os registros cartoriais estão onde foram produzidos, sem tratamento e organização, constituindo entrave aos estudos históricos sobre a administração fundiária, sobre os negócios de compra e venda de terrenos e de transmissão de bens familiares. Os fóruns das cidades do interior guardam uma quantidade considerável de processos-crimes, testamentos e inventários, documentos igualmente sem organização. Manuseá-los foi uma empreitada que demandou mais de ano. Essa experiência permite afirmar que o fazer histórico nas regiões “fronteiriças” é particularmente espinhoso em razão da ausência de registros contínuos e seriados. Mesmo os registros oficiais são poucos. A isso se soma o negligente desinteresse por aquele presente pobre, desmerecedor de projeção num futuro que se deseja menos pobre, mais promissor. Este trabalho resulta desse esforço de utilizar fontes primárias esquecidas nos porões das instituições.
41No século XVIII, o povoamento da região resultou da descoberta das minas de ouro, que animou o governo português e uma leva de homens a adentrar o sertão e a dilatar a burocracia fiscal e sua correlata estrutura administrativa e jurídica. As minas de Goiás atravessaram aquele século com altos e baixos de arrecadação dos quintos e encerraram o ciclo do ouro nas primeiras décadas do XIX. Esse longo processo de queda irreversível foi caracterizado pelo abandono da região e de parte expressiva da população. Aqueles que resistiram à precariedade da vida social e econômica criaram códigos próprios de repartição da terra, comerciando sem a intervenção de normas e leis do estado. Essa estrutura da civilização do couro, enraizada em solo rude, moldará as práticas da civilização do papel selado, com seus dispositivos jurídicos nas mãos de quem o direito era a formalização da vontade de alguns homens. Será esse grupo, o terceiro escalão, os da terra, pois, os representantes da cultura e do poder local, conhecidos e temidos pelos moradores das comarcas. Os agentes relacionavam-se entre si, construindo uma intrincada rede de transmissão de interesses político-econômicos, de motivações subjetivas e animadoras de práticas que ignoravam as formalizações legais. Nesse ambiente transitavam com desenvoltura e exerciam suas funções de ofício, imersos na cultura local, agindo por dentro da ordem costumeira.
42O cotidiano dissolvia as hierarquias. A ordem jurídica foi, assim, plantada sem a presença de juízes bacharéis, sem conhecimento dos códigos, de maneira que, em terras longínquas, as práticas judiciais foram aplicadas conforme entendimentos particulares ao grupo de poder. A justiça nasceu, portanto, em descrédito. Os leigos ocuparam os cargos da magistratura por décadas, serviram a ordem instituída, revestida de legalidade e conformada às práticas costumeiras. A ação de semelhantes juízes de direito, escrevia o presidente da província, punha em dúvida o júri e o código do processo. A aplicação mui controvertida do direito fez dos municípios foro bárbaro e governo do arbítrio. A autoridade pública era fraca, corrupta e atrasada, do que se conclui ser facilmente seduzida pelos grupos locais, aos quais se ligava e dava guarida. Todos interessados não somente em proteger a propriedade, mas em se tornarem eles próprios proprietários.