Fátima Sequeira Dias – Contributos para a História dos Açores
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O historiador como tributário do seu tempo e da sua condição de cidadão
1Fátima Sequeira Dias (1958-2013) foi uma empenhada historiadora e professora universitária com uma atividade cívica que deixa uma marca na memória e na vida de muitos que com ela conviveram. A historiadora Fátima Sequeira Dias permaneceu ao longo da sua vida como a rapariguinha da freguesia de S. José em Ponta Delgada, apaixonada pela vida, pela sua terra, pela História dos Açores e pelas estórias das ilhas. Como poucos da sua geração sentia-se igualmente honrada quando convidada para falar da história da sua freguesia e da sua cidade como para proferir uma conferência de História Económica.
2Nas provas académicas de agregação, para surpresa do júri e da assistência, ela abre a sua lição com uma adivinha sobre o ananás: O que é que tem coroa e não é rei? O que é que tem escamas e não é peixe? A rapariguinha e a académica associaram-se nesse dia para nos brindar com uma divertida e sólida lição sobre a reconversão das culturas agrícolas no fim do ciclo da laranja.
- 1 Dias, Fátima Sequeira (1999), «Ponta Delgada de Ermo a cidade. Agenda para uma reflexão sobre a his (...)
3Na comemoração dos 450 anos da cidade de Ponta Delgada1 ficou registado o seu entusiasmo com as hipóteses de trabalho sobre o comportamento empresarial dos seus habitantes, o património das famílias, a riqueza da documentação sobre a construção e o movimento comercial do porto, a entrada e saída das embarcações e o comércio de import-export e com a possibilidade de integrar a história da sua cidade na historiografia nacional e estrangeira.
4Os historiadores dividem-se entre o grupo de contadores de pequenos contos ou o grupo dos romancistas peritos em construir um enredo mais longo. Sequeira Dias foi sobretudo uma escritora de pequenos, detalhados e personalizados contos sobre a história das ilhas. Acima de tudo era uma conversadora com um sentido de humor nato. Detesto a ideia que não poderei mais conversar com ela e trocar pequenas estórias sobre o passado e o presente.
As novas elites e os novos empreendedores
- 2 Dias, Fátima Sequeira (1999), Uma estratégia de sucesso numa economia periférica: a casa Bensaúde e (...)
- 3 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Uma economia ao sabor das circunstâncias», in História dos Açores. D (...)
- 4 Dias (2008), «Uma economia ao sabor das circunstâncias…».
5O interesse pelas novas elites e pelos empreendedores começa com a sua tese de doutoramento sobre a família Bensaude2. O títu- lo, Uma estratégia de sucesso numa economia periférica, liga duas das suas preocupações transversais, o desenvolvimento das ilhas e os agen- tes motrizes desse desenvolvimento. Como refere David Justino no prefácio da tese, a análise do desenvolvimento à escala micro leva a au- tora a tentar compreender o bom desempenho empresarial numa economia regional relativamente atrasada, bem como o contributo da cultura e de valores diferentes para a rutura com práticas dominantes. Em «A economia ao sabor das circunstâncias»3 vai sistematizar contributos dispersos por outras publicações, afirmando que «cada época tem os seus próprios empresários». Ensaia mesmo uma periodização associando a cada fase do ciclo da laranja grupos de empresários estrangeiros, empresários locais e a evolução para a formação de companhias exportadoras a partir de 1845. Na primeira fase do ciclo da laranja, são os comerciantes estrangeiros, sobretudo ingleses, americanos e judeus provenientes do Norte de Marrocos, que apostam no comércio de importação e que, pelo exemplo e sucesso dos seus negócios, contribuem para o envolvimento de comerciantes locais e, numa terceira fase, para o desenvolvimento de companhias exportadoras.4
- 5 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Clemente Joaquim da Costa:o homem, o empresário e o notável (1819-19 (...)
- 6 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Que foi feito dos ingleses do ciclo da laranja na ilha de S.Miguel? (...)
6Esta preocupação com os novos empreendedores leva-a a identificar a necessidade de uma obra de síntese, uma «prosografia da elite empresarial de oitocentos», que permita caracterizar e identificar diferen- ças entre a conduta dos empresários autóctones e as dos de fora, averi- guar as diferentes estratégias de investimento antes e depois da consolidação dos negócios. A lista desses empresários seria gerada por dois traços comuns: pertencerem à Associação Comercial de Ponta Delgada, cria- da em 1835, e estarem inscritos no Tribunal de Primeira Instância de Ponta Delgada, fundado em 18505. Deste projeto saem por exemplo os artigos sobre Clemente Joaquim da Costa, Ernesto do Canto, Salo- mão Bensaúde, Moisés Sabat, Elias Bensaúde, José Bensaúde. A pesquisa sobre o percurso dos estrangeiros nos Açores e o seu cruzamento com os comerciantes registados no Tribunal Comercial de Ponta Delgada leva-a a identificar uma lista de 11 comerciantes com nomes estrangeiros6 e a seguir os seus percursos.
7Os casos de sucesso como os casos de insucesso fornecem-lhe pistas mas sobretudo permitem-lhe identificar questões. O que teria levado alguns desses comerciantes a abandonar os Açores? O declínio do comércio da laranja ou o declínio dos Açores como elo de ligação entre a economia inglesa e a economia norte-americana, como parece ser o caso das famílias Hickling e Dabney? O percurso de alguns deles, a sua integração na sociedade açoriana pelo casamento ou a escolha de outros destinos no império britânico permite-lhe identificar através destes estudos de caso o fluir das redes de negócio e a mutação dos negócios.
- 7 Lopes, Fernando e Dias, Fátima Sequeira (2011), «O comportamento das instituições financeiras na pe (...)
- 8 Dias, Fátima Sequeira (1999), «O papel dos Bensaúde na saída de moeda da região. Usurários, cambist (...)
8A perda do mercado inglês de citrinos vai levar, na década de 70 do século XIX, alguns destes comerciantes estrangeiros a entrarem no negócio financeiro, seja informalmente seja pela representação de bancos nas praças açorianas e, em particular, em S. Miguel7. Estes casos contrastam com o envolvimento da casa Bensaude no negócio de câmbios e no saque de letras como forma de assegurem a circulação de meios monetários entre os negócios implantados nas várias ilhas açorianas e o mercado inglês8.
9Esta integração do circuito de comércio e dos negócios com dinheiro que caracterizam a primeira geração da família Bensaude irá levá-los ao envolvimento posterior no projeto do Banco Açores e Lisboa no fim do século XIX e mais tarde, no século XX, à entrada no capital do Banco Micaelense.
10Uma síntese destes percursos individuais e da sua influência para o desenvolvimento dos Açores é ensaiada no seu contributo para a História dos Açores:
- 9 Dias (2008), Os Açores na História de Portugal…, p. 46.
«Em meados de Oitocentos, na ilha de S.Miguel, os ingleses tinham partido ou estavam singrando em carreiras de notabilidade local, graças a uma eficaz estratégia matrimonial junto das famílias possidentes insulares. Quanto aos judeus, os patriarcas da emigração estavam velhos ou tinham morrido, enquanto os descendentes eram portugueses... Entre os que ficaram, os herdeiros Bensaude, José (1835-1922), Abraão (1840-1911), Walter (1850-1920) e Henrique (1835-1924), vão ser protagonistas de todos os investimentos de sucesso...».9
A reconversão agroindustrial e a nova geração empresarial
11Integrados na sociedade local, muitos destes novos empresários estarão envolvidos nas reivindicações da sociedade açoriana por melhor governo, um regime pautal mais eficaz e na defesa do projeto do porto de Ponta Delgada.
12Com o livro Em Defesa dos Interesses da Ilha de S. Miguel, a historiadora recupera dos arquivos da Câmara de Comércio de Ponta Delgada as Súplicas da comunidade empresarial endereçadas aos sucessivos monarcas entre a sua fundação em 1835 e 1910. A elite empresarial micaelense associada na Associação Comercial de Ponta Delgada, fundada em 1835, será o «necessário elemento de modernização», o agente dinamizador e o parceiro dialogante nas relações com o governo de Lisboa. Como refere no preâmbulo, as súplicas elaboradas nos períodos de prosperidade diferem das que se redigiram em tempo de contração económica, e vão dos excessivos direitos alfandegários, ao funcionamento da alfândega, aos problemas monetários, à necessidade dum porto de abrigo em Ponta Delgada, à concorrência de «mesquinhas fábricas existentes no continente do reino», a medidas de fomento e saneamento económico. O sentimento de decadência no início da longa recessão dos anos setenta leva estes empresários a pedirem medidas protecionistas mas também vai levar outros a enveredar por novos projetos.
- 10 Dias, Fátima Sequeira (2004), «José Bensaude: um self made man (1835-1922)», in Indiferentes à dife (...)
- 11 Dias, Fátima Sequeira (1997), «Uma abordagem à estratégia comercial da Fábrica de Tabaco Micaelense (...)
13Alguns, como José Bensaude, Clemente da Costa e João Melo Abreu, irão também estar envolvidos nos projetos agroindustriais ligados às novas culturas introduzidas com o declínio da exportação da laranja, os projetos do tabaco, do linho, da espadana, do chá, do ananás, na oferta de serviços de navegação e em novos serviços bancários. A biografia de José Bensaude10, administrador de importantes casas agrícolas e industrial, fundador da Fábrica de Tabaco Micaelense em parceria com José Jácome Correia e Clemente Joaquim da Costa, identifica-o como um empresário inovador, promotor da organização fabril moderna, mas simultaneamente com uma visão social e educativa. As características modernas deste empresário são objeto de análise mais detalhada em «Uma abordagem à estratégia da Fábrica de Tabaco Micaelense durante a gerência de José Bensaude»11 trazendo a história empresarial micaelense para um novo patamar.
- 12 Dias, Fátima Sequeira (1995), A Fábrica de Tabaco Micaelense, Edição da Fábrica de Tabaco Micaelens (...)
- 13 Dias, Fátima Sequeira (1997), Diário de Navegação, Edição comemorativa do 50.º Aniversário, Ed. SAT (...)
- 14 Dias, Fátima Sequeira (1998), «Monumentais obras do porto de Ponta Delgada», Porto de Ponta Delgada(...)
14Ao lado das biografias individuais e institucionais, e da recuperação e compilação de fontes, a historiadora irá contribuir com vários estudos de casos no âmbito de várias publicações memorialistas. As monografias da Fábrica de Tabaco Micaelense12, da SATA13, do Porto de Ponta Delgada14 levam-nos pelo século XX adentro e por outras gerações de empresários. Alguns desses projetos ela não chegou a ver publicados, como a nova monografia sobre o Porto de Ponta Delgada e o projeto sobre a introdução da eletricidade nos Açores e a criação da Empresa de Eletricidade dos Açores.
15Recuperar dos arquivos empresariais, relatar e explicar a história das empresas durante períodos longos, do século XIX ao século XX, é uma das linhas condutoras da sua obra e um grande contributo de Fátima Sequeira Dias para uma moderna História dos Açores.
Notas
1 Dias, Fátima Sequeira (1999), «Ponta Delgada de Ermo a cidade. Agenda para uma reflexão sobre a história dos Açores com particular incidência no exemplo micaelense», Arquipélago História, 2.ª série, vol. III.
2 Dias, Fátima Sequeira (1999), Uma estratégia de sucesso numa economia periférica: a casa Bensaúde e os Açores 1800-1873, Ponta Delgada, Edição de Jornal de Cultura.
3 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Uma economia ao sabor das circunstâncias», in História dos Açores. Do descobrimento ao século XX, 2.º Vol, Ponta Delgada, Instituto Açoriano de Cultura
4 Dias (2008), «Uma economia ao sabor das circunstâncias…».
5 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Clemente Joaquim da Costa:o homem, o empresário e o notável (1819-1906)», in Os Açores na história de Portugal. Séculos XIX-XX, Lisboa, Livros Horizonte.
6 Dias, Fátima Sequeira (2008), «Que foi feito dos ingleses do ciclo da laranja na ilha de S.Miguel? Factos e Hipóteses», in Os Açores na História de Portugal. Séculos XIX-XX…
7 Lopes, Fernando e Dias, Fátima Sequeira (2011), «O comportamento das instituições financeiras na periferia açoriana entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial», in Atas do Colóquio O faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX.
8 Dias, Fátima Sequeira (1999), «O papel dos Bensaúde na saída de moeda da região. Usurários, cambistas ou banqueiros-comerciantes?», in Dias, Uma estratégia de sucesso numa economia periférica...
9 Dias (2008), Os Açores na História de Portugal…, p. 46.
10 Dias, Fátima Sequeira (2004), «José Bensaude: um self made man (1835-1922)», in Indiferentes à diferença. Os judeus dos Açores no século XIX e XX, Edição Ceepla / Universidade dos Açores.
11 Dias, Fátima Sequeira (1997), «Uma abordagem à estratégia comercial da Fábrica de Tabaco Micaelense durante a gerência de José Bensaude (1866-1922)», Arquipélago, 2.ª série, volume II.
12 Dias, Fátima Sequeira (1995), A Fábrica de Tabaco Micaelense, Edição da Fábrica de Tabaco Micaelense.
13 Dias, Fátima Sequeira (1997), Diário de Navegação, Edição comemorativa do 50.º Aniversário, Ed. SATA.
14 Dias, Fátima Sequeira (1998), «Monumentais obras do porto de Ponta Delgada», Porto de Ponta Delgada, revista da Junta Autónoma de Ponta Delgada
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Referência do documento impresso
Fernando Lopes, «Fátima Sequeira Dias – Contributos para a História dos Açores», Ler História, 64 | 2013, 181-185.
Referência eletrónica
Fernando Lopes, «Fátima Sequeira Dias – Contributos para a História dos Açores», Ler História [Online], 64 | 2013, posto online no dia 11 novembro 2014, consultado no dia 23 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/641; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.641
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