1Seguindo o exemplo dos outros estados-membros da União Europeia, Portugal foi ao longo das últimas três décadas de história alvo da introdução de princípios managerialistas nas sucessivas reformas implementadas no seio da sua administração pública (AP) (Rocha 2009; Madureira 2015a e 2017). A presunção da existência de uma superioridade dos sistemas de gestão privada relativamente aos de gestão pública (Peters e Waterman 1982), a transposição de um “estado administrativo”, essencialmente burocratizado, para um “estado managerial”, assim batizado por Lane (1995), e os princípios do New Public Management (NPM) descritos nas obras de Pollitt (1990), Hood (1991), Osborne e Gaebler (1992) ou, mais tarde e de forma mais atualizada, de Pollitt e Bouckaert (2017), princípios esses que no essencial defendiam a empresarialização do setor público assim como a privatização de alguns dos seus mais importantes recursos estratégicos, estiveram presentes em todas as vagas, programas e medidas da reforma administrativa em Portugal ao longo dos últimos 30 anos.
2Seria injusto não reconhecer que, sobretudo desde o despontar do século XXI, houve também a preocupação de reconhecer que o estado não poderia ser apenas um centro de eficiência e de eficácia (Kikert 1999), devendo olhar para a realidade pública como algo que é determinado pela intersecção das necessidades e vontades de diferentes stakeholders, onde se incluem não apenas o poder político ou administrativo, mas também os cidadãos, as famílias e as empresas, entre outros. É desta forma que nos últimos anos em Portugal, paradigmas como o da Governance (Kooiman 1993; Rhodes 1997 e 2000) ou do New Public Service (Denhardt e Denhardt 2003) ganharam algum espaço na reforma administrativa, tendo obrigado a perspetiva reformista managerial a não ignorar a influência dos diversos atores sociais na definição, na implementação e no ajustamento das reformas. Contudo, foi de facto o paradigma do NPM que mais influenciou a reforma administrativa em Portugal ao longo das últimas décadas (Madureira 2018b, 2017 e 2015a; Rocha 2009).
3Agudizando os efeitos da managerialização, as pressões orçamentais iniciadas com a Troika em 2011, a desregulação das relações de emprego público – dotadas de regras cada vez mais próximas das do setor privado (Lei nº 35/2014), a redução do número dos trabalhadores em funções públicas assim como o seu envelhecimento (Madureira e Rodrigues 2014; Madureira 2018a), o facto de o congelamento dos seus salários e carreiras ter nos últimos anos assumido um carácter quase estrutural e a perda de uma certa dignificação social têm conduzido a uma desmotivação (Meyer-Sahling, et al 2016; Madureira 2015b) difícil de reverter dentro da AP portuguesa. Neste contexto, o presente artigo propõe-se analisar as reformas administrativas ao longo das últimas três décadas, mas também a forma como foi evoluindo o estado-providência português dentro deste contexto. Para levar a cabo este intento começaremos por apresentar, na primeira secção, uma súmula das principais reformas da AP em Portugal nos últimos 30 anos, na segunda secção desenvolveremos o conceito de estado-providência salientando a sua evolução e as suas características na realidade portuguesa, e, por fim, numa terceira secção, procurar-se-á retratar a influência do New Public Management no percurso do estado-providência em Portugal, em particular ao longo da última década.
4O facto de Portugal manter uma tradição administrativa napoleónica (Ongaro 2009, 2010 e 2013) não foi suficiente para suster a managerialização das suas reformas, podendo-se identificar princípios e variantes do NPM no país mais de uma década antes do início do século XXI (Rocha 2009; Madureira 2015a). De acordo com um estudo recente da Comissão Europeia (Madureira 2017 e 2018b), ao longo dos últimos 30 anos a reforma da AP em Portugal foi essencialmente marcada por cinco realidades: a vaga de privatizações, a introdução da empresarialização da administração, a reestruturação da AP central, a convergência das leis e regimes de trabalho públicos e privados e, por fim, a tentativa de reduzir a burocracia e aumentar a proximidade e a transparência na relação entre a administração e os cidadãos.
5Tendo em conta o foco do nosso artigo, centrar-nos-emos, de seguida, apenas nas quatro primeiras. Objeto de grandes discussões e divergências ideológicas nos partidos com assento parlamentar, assim como na sociedade civil, a privatização de recursos estratégicos do estado português teve o seu início nos anos 80 do século passado tendo sido uma constante até ao presente. É durante a primeira maioria absoluta da história democrática do país (governo do Partido Social Democrata, de Aníbal Cavaco Silva) que é dado o pontapé de saída para as privatizações. Com efeito, a lei nº 84/88, de 20 de julho, veio pela primeira vez possibilitar a transformação de empresas públicas em sociedades de capitais públicos, o que permitia a entrada de acionistas privados nestas sociedades devendo, no entanto, o estado permanecer como principal acionista.
6A revisão constitucional de 1989, realizada com o apoio da direita parlamentar assim como do Partido Socialista (PS), anulou o princípio da irreversibilidade das nacionalizações que constava da Constituição de 1976, aprovando-se em 1990 a Lei-Quadro das Privatizações – lei nº 11/90, de 5 de abril, que deu início a uma privatização significativa das empresas públicas, muitas das quais de importância estratégica para o estado português. No resumo realizado por Rosa (2005) podemos encontrar as principais privatizações, assim como as respetivas datas, que ocorreram em Portugal até ao fim do século XX. Entre 1990 e 1995, ainda com o PSD no governo, foram várias as empresas estratégicas privatizadas parcialmente ou na totalidade nos mais diversos setores de atividade como sejam a banca (BPA, BANIF, BESCL), os seguros (Império, Tranquilidade, Bonança, e Aliança Seguradora), os transportes (Rodoviária Nacional, Transinsular), as telecomunicações (PT – Portugal Telecom), a siderurgia (Siderurgia Nacional) e os produtos petrolíferos (Petrogal), entre outros. Entre 1996 e 2001, já com o PS no governo, verificou-se uma intensificação desta vaga privatizadora. Se por um lado se concluíam, através de novas fases, as privatizações iniciadas antes de 1995, por outro encetava-se a privatização de novos setores estratégicos até aí “poupados”, como foram os casos da energia (EDP), dos tabacos (Tabaqueira), da indústria química (Quimigal) ou da gestão das estradas (Brisa).
7No século XXI, manteve-se o ímpeto privatizador. Deste o início do século, 2013 talvez seja o ano mais relevante nesta matéria, uma vez que foi aquele em que, em pleno cumprimento do Memorando de Entendimento (MdE) com a Troika, se privatizou a ANA – Aeroportos de Portugal e os CTT – Correios de Portugal, assim como se venderam a privados os últimos 25,5% da EDP, ainda detidos pelo estado português (Cabrita-Mendes 2017). Entre 2011 e 2015 foi também efetuada mais de uma tentativa para privatizar a TAP – Transportes Aéreos Portugueses, que viria a ser vendida a privados no período da intervenção da Troika, voltando, contudo, 50% do capital a mãos públicas com o governo do PS. Por seu turno, a empresarialização dos métodos de gestão levou a uma aproximação da gestão de recursos humanos (GRH) no setor público às práticas de GRH do setor privado. Se por um lado se reduziram os efetivos da AP, assim como as despesas com os mesmos (ver gráfico 1), por outro foi-se crescentemente recorrendo ao contracting-out (outsourcing) em áreas como a segurança, a gestão das frotas automóveis do estado, a restauração ou a limpeza, assim como a uma compra de serviços a escritórios de advogados (estes custos são dificilmente quantificáveis com rigor) e a parcerias-público-privadas cujo custo-benefício não chegou muitas das vezes a ser sequer avaliado.
Gráfico 1. Despesas com pessoal em % do PIB, 1995-2017
Fonte: Elaboração própria com dados do INE e do BdP.
8No que concerne à diminuição de efetivos, esta apenas se começou a manifestar no decurso da última década e meia. Iniciou-se com o XVII governo constitucional (liderado pelo Partido Socialista), com a introdução da regra do “dois por um”, de acordo com a qual a saída de dois trabalhadores na administração pública só poderia permitir a entrada de um novo (Rato 2013), tendo vindo a ser aprofundada durante a estada da Troika no país (2011-2014). A tendência da redução de recursos humanos no emprego público veio quebrar um ciclo regular e de sentido único no aumento do número de funcionários públicos que se fez sentir desde o início do período pós-revolucionário (final de 1975) até 2005 (DGAEP 2009). Este aumento ficara-se a dever, por um lado, à integração dos funcionários oriundos das ex-colónias e, por outro (sobretudo a partir do fim dos anos 70 do século XX), ao investimento do estado em áreas como as da saúde e da educação (Rocha 2009).
9Durante o período de vigência do MdE com a Troika foi particularmente evidente a redução dos efetivos na AP, que só entre dezembro de 2011 e dezembro de 2014, ou seja, ao longo de apenas três anos, se cifrou em mais de 71 000 efetivos (mais de 10% do número total de trabalhadores em funções públicas em Portugal). Disso nos dá conta Rosa (2015), que salienta o peso da diminuição do emprego público durante este período, muito particularmente no setor da educação (redução de 23 089 educadores de infância e docentes do ensino básico e secundário), assim como nas carreiras que se encontram na base da pirâmide das carreiras gerais da AP portuguesa (redução de 21 841 assistentes operacionais e de 10 892 assistentes técnicos). Contudo, e apesar de o saldo da evolução do número de recursos humanos na AP portuguesa ao longo dos últimos sete anos se manter negativo, o quadro 1 evidencia que a partir de 2016 o emprego público voltou a crescer, ainda que de forma tímida. Ainda assim, Portugal perdeu 6,1% da sua força de trabalho público entre 2011 e 2018.
10No mesmo horizonte temporal, o emprego público nas áreas da saúde e da educação sofreu evoluções diversas. Enquanto a carreira médica se manteve estável e não deixou de crescer em efetivos mesmo durante o período de intervenção da Troika (2011-2014), os enfermeiros sofreram uma diminuição precisamente até o ano de 2014, tendo recuperado uma tendência de crescimento nos anos seguintes. No capítulo da educação é de assinalar uma queda muito severa do número de educadores de infância e de docentes do ensino básico e secundário até 2015, ano em se inicia uma recuperação. Não obstante, entre 2011 e 2018 o país perdeu 11% do seu emprego público nesta classe profissional, tratando-se de uma queda muito expressiva, dificilmente explicável pela quebra demográfica e consequentemente pelo menor número de alunos na escola pública. No ensino superior universitário e politécnico as variações ao longo deste período são menos evidentes, mantendo-se ao longo deste horizonte temporal um saldo de crescimento discreto. Por outro lado, no gráfico 2 pode observar-se uma diminuição do peso do emprego público na população ativa portuguesa (de 13,5% em 2011 passou a representar apenas 12,8% em 2017) e na população empregada em Portugal (diminuição de 15,7% em 2011 para 13,9% em 2017, uma descida de quase 2 pontos percentuais). Os dados apresentados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OECD 2017) apontam ainda para o facto que, tanto no que diz respeito ao emprego total como à população ativa, nos anos de 2009, 2013 e 2015 a percentagem do emprego público em Portugal se encontrou sempre muito abaixo da média dos países-membros da OCDE.
Quadro 1. Evolução do emprego público nas áreas da saúde e da educação em Portugal, 2011-2018
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2011
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2012
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2013
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2014
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2015
|
2016
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2017
|
2018
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Variação numérica
2011-2018
|
Variação percentual
2011-2018
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Total de funcionários/
trabalhadores públicos
|
727 785
|
699 901
|
674 927
|
656 376
|
659 103
|
664 126
|
669 279
|
683 469
|
- 44 316
|
- 6,1%
|
Médicos
|
25 060
|
25 309
|
25 829
|
26 016
|
26 743
|
27 657
|
28 647
|
29 238
|
+ 4178
|
+ 14,3%
|
Enfermeiros
|
42 769
|
42 358
|
41 327
|
40 663
|
41 630
|
43 682
|
44 638
|
46 142
|
+ 3373
|
+ 7,3%
|
Educadores de infância e docentes do ensino básico e secundário
|
151 162
|
137 531
|
129 403
|
128 076
|
129 169
|
132 293
|
134 046
|
134 619
|
- 16 543
|
- 11%
|
Docentes do ensino superior politécnico
|
9694
|
9371
|
8946
|
8895
|
8870
|
9339
|
9724
|
10 120
|
+ 426
|
+ 4,3%
|
Docentes do ensino superior universitário
|
13 997
|
13 851
|
13 871
|
13 708
|
13 970
|
14 338
|
14 686
|
14 949
|
+ 952
|
+ 6,4%
|
Fontes: Adaptado a partir de DGAEP (2018a) e DGAEP (2015). Notas: todos os valores reportados a 31 dezembro de cada ano; os valores de 2018 são provisórios.
Gráfico 2. Evolução do peso do emprego das administrações públicas na população ativa e na população empregada, 2011-2017
Fonte: DGAEP (2018b).
11No que concerne ao emprego público em Portugal importa ainda salientar que, fruto das políticas de contenção no recrutamento, este tem sofrido um evidente envelhecimento. De acordo com os dados da DGAEP (2018b), a 31 de dezembro de 2017 60% dos trabalhadores tinham idade superior a 45 anos. A mesma fonte refere que a idade média estimada para os trabalhadores das administrações públicas era de 47 anos nesta mesma data, tendo aumentado 3,4 anos em comparação com o final de 2011. Se não forem consideradas as carreiras das Forças Armadas e de segurança, a idade média dos trabalhadores em funções públicas atingia os 48 anos de idade. O cenário torna-se mais alarmante quando constatamos que apenas 12,6% dos trabalhadores tinham menos de 35 anos de idade e que este número caía para 7,4% se considerarmos apenas as administrações regional e local.
12No que respeita à restruturação da administração, nas últimas duas décadas o estado português tomou algumas medidas com o propósito de melhorar a sua organização e gestão, de forma a torná-la menos pesada, menos burocratizada e mais flexível (Madureira 2018b). Vários exemplos o demonstram. O Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho da AP (SIADAP) foi criado em 2004 para implementar a gestão por objetivos em toda a AP. Dois anos mais tarde, em 2006, o Programa de Reestruturação da Administração Central (PRACE) foi implementado com o objetivo de introduzir uma nova perspetiva de reforma estratégica e estrutural em toda a administração central. O PRACE procurou reduzir o número de organismos públicos e dirigentes (tanto superiores como intermédios), com a expectativa de reforçar a eficiência.
13Mais tarde, em 2011, com base no Memorando de Entendimento com a Troika (EC, IMF e ECB, 2011), e sob supervisão da mesma, o Plano de Redução e Melhoria da Administração Central (PREMAC) visou aprofundar a filosofia organizacional trazida pelo PRACE. Contudo, a maioria das competências existentes em organismos públicos extintos por ambos os programas (PRACE e PREMAC) foi transferida para outros organismos públicos (alguns dos quais já existiam, tendo outros sido criados de raiz para este fim). De acordo com os dados recolhidos no estudo de Madureira, Asensio e Rodrigues (2013), não existiu uma extinção significativa de poderes e de deveres da AP central, mas sim uma reformulação e redistribuição dos mesmos por um número global menor de organismos públicos.
14Com efeito, apesar da introdução de medidas de reforma de caráter managerialista, a reestruturação da AP em Portugal não abandonou uma lógica antiga de administração burocrática processual. No que concerne às principais mudanças nas características do emprego público, estas operaram-se em Portugal desde o início do milénio. Para estas alterações contribuíram enormemente três leis. A lei nº 59/2008 (que estabelecia o Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas – RCTFP) implementou um regime de emprego de grande proximidade com o existente no setor privado e reservou a “nomeação” (modalidade de emprego público até então comum a todos os funcionários públicos portugueses) a grupos profissionais específicos em áreas como as das Forças Armadas, representação externa do estado, informações de segurança, investigação criminal, segurança pública e inspeção. Por seu turno, a lei 12-A/2008 (que estabelecia novas modalidades de vínculos, carreiras e remunerações na administração e ficou conhecida como LVCR) acabou com a designação de “funcionário público” para dar lugar à de “trabalhador em funções públicas” e fundiu 1715 carreiras diferentes em três carreiras gerais. Com esta lei, as progressões e promoções dos trabalhadores passaram a depender exclusivamente do já mencionado sistema de avaliação do desempenho (SIADAP). Por fim, este diploma legal ainda contribuiu para promover a facilitação do “despedimento” no caso de este suceder numa situação de extinção do posto de trabalho.
15Finalmente, a lei nº 35/2014, de 20 de junho, ou Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), sistematizou o essencial do regime laboral dos trabalhadores em funções públicas, ensaiando uma aproximação das regulações específicas da AP às normas vigentes do Código do Trabalho (Madureira 2018a), desregulando em definitivo as relações de emprego público. Com esta lei, a desregulação das relações de emprego público e a consequente convergência das leis e regimes de trabalho públicos e privados atingiu o seu apogeu. Nesta aproximação entre o emprego público e o emprego privado foi ignorado o facto de o setor público apresentar diferenças relativamente ao privado, não apenas histórica e sociologicamente, mas que decorrem sobretudo do facto de haver uma subordinação da AP não só ao direito administrativo mas, também, ao poder político (Madureira e Ferraz 2010). Por outro lado, importa clarificar que as políticas de reforma do emprego público têm vindo a ser implementadas sobretudo como estratégia de resposta às necessidades de consolidação orçamental (Nunes 2008), mais do que como resultado de uma reflexão aprofundada sobre as necessidades estratégicas de reforma.
16Em conclusão, pode-se afirmar que as privatizações, a empresarialização da gestão pública, a restruturação da administração pública, o declínio do emprego público e dos salários e a desregulamentação do regime de trabalho público têm contribuído fortemente, por um lado, para a desmotivação dos trabalhadores em funções públicas (Madureira e Rodrigues 2015b) e, por outro, para uma crescente dificuldade de resposta dos serviços públicos à sociedade como um todo, e aos cidadãos mais vulneráveis em particular (Kamerman e Kahn 2016; COCOPS, 2013). Este fenómeno é particularmente evidente em áreas como a saúde (Fernandes e Nunes 2016; Asensio e Popic 2019) e a educação (Rosa 2015; Ongaro 2009). No fim da terceira secção, assim como nas conclusões finais, far-se-á uma apreciação mais detalhada das estatísticas sobre estas questões, assim como das consequências que delas decorrem.
17Sociologicamente, a origem do welfare state data do final do século XIX, contudo, é apenas na segunda metade do século XX, após o fim da 2ª Guerra Mundial, que este vai conhecer um crescimento mais acelerado (Pierson 2006). Tendo começado por uma lógica corporativista, estando exclusivamente vocacionado para proteger as classes trabalhadoras, o seu alargamento à generalidade da população viria a concretizar-se nas duas primeiras décadas do século XX. Na sua origem, o estado-providência correspondeu a um movimento que integrou tentativas cronologicamente anteriores que buscavam atender a problemas de natureza social que afetavam os sujeitos em situações de maior vulnerabilidade. Atualmente poderíamos olhar para o estado-providência como o resultado de um processo lento e muito pouco linear de desmercantilização de certas áreas, como a saúde e a educação, com a implicação de uma forte intervenção institucional do estado (Esping-Andersen 1990; Pereira 2012), e com a determinação de que “os deveres da sociedade em relação a cada um dos indivíduos e as formas de solidariedade adotadas são ditadas por considerações de justiça e pela intenção de implementar uma redistribuição da riqueza” (Pereira 2012, 233).
18Por outro lado, vários autores, nomeadamente da área económica, defenderam que o crescimento do peso do estado no início do século XX, o alargamento das suas funções, sobretudo as de carácter social, e o consequente aumento do número de funcionários públicos se ficou a dever, mais do que a uma vontade filantrópica dos governos em socorrer os mais necessitados, a uma pressão crescente dos eleitores (Downs 1957) e/ou a uma vontade dos burocratas de aumentar o seu poder e status que, em face do crescimento da despesa pública, se viam naturalmente reforçados (Niskanen 1971). Pierson (2006) assume que a partir de 1945, com o fim da 2ª Guerra Mundial, se deu a Golden Age do Welfare State, que durou até aos anos 70/80 do século XX. Esta fase caracterizou-se pelo desenvolvimento do universalismo na prestação de serviços aos cidadãos, pela aplicação de medidas económicas de inspiração keynesiana na busca do pleno emprego, assim como por um consenso político alargado sobre os direitos sociais básicos das populações e o dever de institucionalização de um estado-providência capaz de responder às disfuncionalidades resultantes da economia de mercado.
19De facto, têm existido diversos entendimentos sobre as origens, a evolução e o grau de abrangência do estado-providência, não havendo um consenso absoluto na definição conceptual do mesmo. Contudo, no esteio dos contributos de Pereira (2012) e de Esping-Andersen (1990) podemos considerar que o estado-providência se constitui como o conjunto de políticas e de medidas desenvolvidas por um estado tendo em vista a redistribuição de recursos e a resposta aos direitos sociais das populações, nomeadamente nos capítulos da saúde, educação e proteção social, com total independência da influência do mercado.
20Neste sentido, e de acordo com Esping-Andersen (1990), o estado-providência (ou estado social) pode ser liberal (nele se integrando países como o Reino Unido ou os Estados Unidos, nos quais o estado apenas almeja ter como beneficiárias as classes de baixos rendimentos ou classes marginais), conservador/corporativista (modelo que prevalece em países de tradição corporativista, como é o caso da Alemanha ou de França, onde a família e as organizações religiosas desempenham uma parte significativa dos serviços de assistência social) ou social-democrata (de caráter universalista, categoria que inclui os países escandinavos, caraterizados pela universalidade dos direitos sociais assim como pelo alto nível dos serviços prestados pelo estado, integrando no âmbito da sua cobertura as classes médias). Seguindo esta classificação, poder-se-ia dizer que o grau de desenvolvimento de cada estado-providência é definido pelo grau de cobertura e de generosidade que este “oferece” ao cidadão, ao nível do acesso aos direitos básicos (saúde, educação e pensões), sem recurso ao mercado regulado pelas leis da oferta e da procura (Benavides, Declós e Serra 2017). Ainda assim, os autores recordam que a referida classificação deverá sempre fazer-se com prudência, uma vez que, na maioria dos países, a realidade das políticas públicas faz-se, na prática, com recurso a elementos de liberalismo, de conservadorismo e de social-democracia.
21A classificação de Esping-Andersen (1990) foi, no entanto, alvo de críticas, tendo sido proposta uma nova tipologia que dividia em quatro os tipos de estado-providência: “estados-providência liberais”, “estados-providência sociais-democratas”, “estados-providência corporativos” e “estados-providência do Sul da Europa”, nos quais se integrariam os estados português, grego, espanhol e italiano (Silva 2013). Da discussão em torno dos regimes de welfare do Sul da Europa, ou regimes “mediterrânicos”, resultaram duas teses opostas (Alves 2015). Por um lado, aqueles que advogavam que os países do Sul da Europa se constituíam como uma versão subdesenvolvida do estado-providência corporativista, onde inicialmente estavam apenas identificados países como a Alemanha, a França, a Bélgica ou a Holanda. De acordo com os autores que protagonizaram a defesa deste tipo de classificação estiveram Esping-Andersen (1990) e Powell e Barrientos (2004), para quem ambos os conjuntos de países (os do Sul e os do Norte) partilhavam as mesmas configurações ideológicas, institucionais e organizacionais, resultando a diferença entre os dois grupos mais do grau de acesso das populações às prestações sociais do que da diferença de modelos. Neste particular convém ter presente que os países do Sul (Itália, Grécia, Espanha e Portugal) tinham sofrido a presença de ditaduras, as últimas das quais até meados da década de 70, que se revelaram em todos os casos como fator de contenção ao desenvolvimento de regimes de welfare.
22Uma segunda tese, essencialmente protagonizada por Ferrera (1996), argumenta que são muito mais as diferenças do que as semelhanças entre os dois conjuntos de países acima mencionados. Na sua proposta de criação de um quarto tipo de estados-providência, o modelo dos países do Sul da Europa, Ferrera (1996) foi acompanhado por outros autores (Andreotti et al. 2001; Silva 2013). De acordo com o autor, nos países do Sul existem matizes muito mais marcados de diferenciação entre quem tem mais ou menos acesso ao welfare do que nos países do Norte. Para exemplificar esta característica, dá o exemplo das pensões de reforma em que a clivagem entre quem teve uma carreira contributiva típica e quem teve uma carreira contributiva fraca, irregular ou inexistente é muito mais forte nos países do Sul do que nos do Norte. Segundo Ferrera (1996) o welfare no Sul caracteriza-se por ter picos de generosidade com certos segmentos da população que se contrapõem a uma proteção social residual para outros segmentos.
23Estudos mais recentes permitem, contudo, afirmar que os países do Sul já têm programas de proteção ao desemprego muito próximos daqueles praticados nos países de estado-providência conservador/corporativista do Norte da Europa (Ozkan 2014) e que países como Portugal desenvolveram políticas sociais próximas das existentes nestes países, ao nível da saúde, apoio ao desemprego e nos regimes de pensões da terceira idade (Arcanjo, 2011). No que concerne às funções específicas desenvolvidas pelo estado-providência, estas dependerão sempre do modelo/classificação em que o estado esteja inserido. Contudo, e independentemente das idiossincrasias dos países, Mozzicafreddo (2000) assume que, em qualquer dos casos, o conjunto das funções instituídas pelo estado-providência caracteriza sempre uma estrutura de fornecimento de serviços, cobertura de riscos e redistribuição de rendimentos nas áreas: da segurança social, da prestação de serviços na área da saúde e da educação, do fornecimento de equipamentos sociais básicos, das transferências de benefícios pecuniários, dos sistemas de ação social vocacionados para atender especialmente cidadãos económica e socialmente mais desprotegidos e dos sistemas específicos de atribuição de benefícios sociais indiretos.
24Bourdieu (1993, 1994 e 1998) afirmava que o estado se apresenta tanto mais social quanto mais recorra à sua “mão esquerda”, ou seja, aquela que incide diretamente sobre os mecanismos de redistribuição e que exerce as principais funções de prestação de saúde, educativa e social (Botelho et al 2014). Foi precisamente esta “mão esquerda” a mais atacada pela doutrina do NPM que, a partir das décadas de 70/80 do século XX, prevaleceu como paradigma dominante na gestão dos assuntos do estado e das administrações públicas, nomeadamente nos países ocidentais (Peters e Waterman 1982; Hood 1991; Lane 1995, Madureira e Ferraz 2010). Preconizando medidas como a privatização e a empresarialização de setores-chave da economia pública (Pitschas 1993), designadamente em áreas como a saúde e a educação, o NPM foi responsável pelo desinvestimento nas atividades prestadoras do estado. Esta nova perspetiva managerialista do estado encontrou respaldo económico no alegado aumento exponencial das despesas dos serviços públicos, que se tornavam hipertróficas num momento de estagnação económica (Buchanan 1977), assim como noutros fenómenos económicos como foi o da crise petrolífera de 1971 (Self 1993). Do ponto de vista político, no fim dos anos 70, início dos 80 do século XX, Margaret Thatcher, na Europa, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América, foram os rostos mais visíveis na defesa de um liberalismo económico que diminuísse a força do estado quer nas suas tarefas de prestação quer nas de regulação.
25Apesar do surgimento de modelos teóricos críticos desta conceção managerialista da AP, como foram os casos do New Public Service e da Governance (Denhardt e Denhardt 2003), foi o NPM que continuou a marcar ideologicamente a agenda da reforma administrativa até aos dias de hoje. De acordo com autores como Lane (1995) ou Clarke e Newman (1997), com a adoção dos princípios do NPM passou-se do conceito de estado administrativo para o de estado managerial. Se é verdade que esta transformação não implicou o abandono absoluto das políticas sociais pelo estado, não deixou de as condicionar e de incentivar que parte delas passassem a ser financiadas pelo estado, mas prestadas por terceiros (privados). Embora se pudessem considerar no passado como alguns dos pilares mais fundamentais do estado-providência, sobretudo dado o seu caráter de universalidade e de justiça social, as pensões de reforma, os serviços públicos de saúde e os subsídios de desemprego foram aqueles que mais sofreram cortes prolongados e estruturais ao longo das duas últimas décadas na maioria dos países da Europa Ocidental (Bonoli e Natali 2013). No entanto, os autores referem que, em sentido inverso, o estado tem-se preocupado em desenvolver novas valências sociais pouco evoluídas até há 20 anos atrás. Como ilustração desta ideia, Bonoli e Natali (2013) dão os exemplos dos subsídios de inserção social ou rendimentos mínimos de inserção para os mais pobres, as políticas ativas de emprego para as populações desempregadas, as políticas de conciliação trabalho/família e de promoção de igualdade de género, as políticas de desenvolvimento infantil e, finalmente, as políticas de fornecimento de serviços sociais seniores.
26Em Portugal, a constituição do estado-providência teve as suas raízes na fusão das tradições de solidariedade dentro das corporações de artes e ofícios, na viragem do século XIX para o século XX, formalizadas pelo mutualismo em associações de socorros mútuos, com o que podemos designar por “práticas de paternalismo patronal” (Pereira 2012, 266). Apesar do seu caráter voluntário e privado, as associações de socorros mútuos visavam objetivos próximos daqueles que mais tarde viriam a ser os do estado-providência, ou seja, a criação de condições de acesso à saúde e à educação, assim como a construção de um fundo de recursos para usufruto eventual ou futuro (na doença ou invalidez, no desemprego e na velhice). Durante a I República, sobretudo na segunda e terceira décadas do século XX, o mutualismo começou a reclamar o contributo dos patrões e a necessidade de intervenção do próprio estado (Pereira 2012). É desta forma que em 1919, à semelhança do que já vinha acontecendo noutros países europeus, em Portugal se chega à obrigatoriedade dos seguros sociais, o que era já uma expressão do universalismo.
27Recorrendo ao modelo de Esping-Andersen (1990), poder-se-ia afirmar que em 1919-1920 se assiste à criação de um estado-providência liberal, com uma segurança social de recursos modestos, apenas vocacionada para as classes trabalhadoras de rendimentos mais baixos (sobretudo operários industriais) e financiada por trabalhadores e patrões (Capucha et al 2005). Dos anos 30 em diante, com a ditadura, o governo travou a proliferação de associações de socorros mútuos, centrando a ajuda aos mais necessitados nas organizações da Igreja Católica, na caridade privada e no recurso à ajuda familiar, e criando um sistema corporativista (Capucha et al 2005). Assistiu-se à evolução para um estado conservador que tratava de maneira diversa as diferentes classes sociais e status profissionais. O estado passou a ter uma função de subsidiariedade, continuando a sua atuação nos domínios sociais muito influenciada pela Igreja. Com efeito, em Portugal o Estado Novo procurou sempre distanciar-se das experiências de welfare que se desenvolveram, sobretudo no pós-guerra, em vários países da Europa. Em vez disso, o corporativismo continuou a evitar o intervencionismo do estado no que respeitava à criação de mecanismos e de políticas de solidariedade e de proteção aos mais desfavorecidos (Cardoso e Rocha 2003). É exemplo disto a criação do Estatuto da Assistência Social, promulgado em 1944, no qual “a conceção que dominou e acabou expressa no documento final persistia no papel da caridade e beneficência como suporte básico da assistência social” em Portugal (Campos e Rocha 2013, 29).
28Só depois da revolução de 1974 é que houve uma tentativa real do regime se aproximar de um estado social-democrata, com a introdução do princípio do universalismo (designadamente em áreas como a saúde, a educação e a proteção/segurança social), que fez com que se incluíssem as classes médias na determinação das políticas sociais, e com a desmercantilização sobretudo dos serviços cujo acesso pressupunha o referido carácter de universalismo. Esta fase de construção do estado-providência em Portugal foi determinante para se abandonar a perspetiva de um estado apenas preocupado com a resposta às necessidades dos mais carenciados e se enveredar por um modelo apostado em promover a igualdade e a igualdade de oportunidades a um nível mais exigente, abarcando a população como um todo (Pereira 2012). As medidas implementadas em áreas como as do trabalho, educação e saúde produziram um crescimento significativo na despesa pública, mas possibilitaram uma redistribuição de rendimentos e uma proteção social de caráter universal nunca antes experimentadas no país (Capucha et al 2005).
29Contudo, a partir de 1987, as influências do NPM fizeram-se sentir em Portugal quando foi eleito o primeiro governo de maioria absoluta do pós-25 de Abril. As privatizações, o recurso ao outsourcing e a empresarialização de alguns setores-chave da economia sucederam-se pela década de 1990, contribuindo para uma reforma administrativa confusa na qual coexistiram o modelo estatutário, o modelo político e o modelo managerial (Madureira 2015). Esta tendência contribuiu para uma diminuição das funções do estado, existindo fortes pressões ideológicas para que o mercado fosse retirando, aos poucos, da esfera do estado, tarefas de prestação social em áreas nucleares como as da saúde ou da educação. Estes fenómenos de transferência contribuíram para um enfraquecimento do papel do estado-providência na sociedade portuguesa. Ainda assim, no que respeita à evolução do estado-providência entre os anos 80 do século passado e o ano de 2008 (ano da crise dos subprime), podemos afirmar que Portugal veio gradualmente convergindo com a Europa comunitária em áreas-chave de proteção social como sejam as da saúde, combate à pobreza, acesso ao ensino ou proteção no desemprego (Alves 2015). Ainda assim, e mesmo antes da intervenção da Troika no país, os dados existentes sobre a desigualdade continuam a permitir rotular Portugal como um dos países mais desiguais quer na União Europeia quer na OCDE (Silva 2013).
30Apesar dos resultados de um estudo recente do COCOPS (2013) salientarem que existe uma evidência de impacto negativo dos princípios do NPM na solidariedade social e no grau com que se aplica sobretudo aos mais vulneráveis e da demonstração, através de estudos de caso, da inadequação das privatizações em massa no setor público, e do perigo que representam para a manutenção de um estado-providência resiliente (Kamerman e Kahn 2016), de um modo geral a literatura é escassa em estudos que relacionem os modelos de reforma da administração pública e as tendências de desenvolvimento do estado-providência enquanto conjunto de políticas e de medidas desenvolvidas tendo em vista a redistribuição de recursos e a resposta solidária aos direitos sociais das populações, nomeadamente nos capítulos da saúde, educação e proteção social. Ou seja, embora já se possa afirmar que existem evidências de que a prevalência do paradigma do NPM na maioria dos países ocidentais contribui para uma diminuição do papel do estado-providência e das suas políticas sociais, são necessárias mais investigações sobre esta relação no sentido de a conhecer melhor.
31Em Portugal, no que concerne ao setor da saúde, Fernandes e Nunes (2016) reconhecem que ao longo dos últimos 30 anos (este horizonte temporal coincide com o da entrada dos princípios do NPM na gestão pública portuguesa) foi-se desenvolvendo uma relação cada vez mais marcada entre setor público e setor privado, tendo o crescimento da oferta do setor privado aparecido como consequência de um aumento da procura gerado, em grande parte, por uma maior limitação da oferta pública. Admitindo o decréscimo do número de hospitais de direito público e o crescimento dos hospitais privados ao longo dos últimos anos, os autores alertam para o facto de, no fim de 2012, já haver quase tantos hospitais privados (104) como hospitais públicos (110). Para além disto, nos últimos anos (2011-2018), e em parte como consequência da pressão orçamental, o setor da saúde em Portugal foi alvo de cortes financeiros significativos (Marques e Macedo 2018), passando de 6,2% do PIB em 2012 para apenas 4,5% em 2017 (Pordata 2019), o que agravou os problemas do Serviço Nacional de Saúde. Ao nível da educação, as despesas do estado português em percentagem do PIB têm sofrido uma oscilação evidente. Tendo obtido o valor mais alto em 2002 (5,1% do PIB), as despesas com a educação desceram quase ininterruptamente desde 2009, atingindo em 2017 apenas 3,7% do PIB. Esta descida apresenta-se consonante com os dados do quadro 1 que apontavam para uma quebra de 11% no número dos educadores de infância e dos docentes do ensino básico e secundário. Durante os anos da Troika, os cortes em matéria de educação foram especialmente pronunciados. Entre 2011 e 2014 a despesa pública com a educação pré-escolar e o ensino básico e secundário diminuiu 23,6%. Estes cortes também foram substantivos em matéria de educação especial (15,3%), tendo tido consequências imediatas na vida de populações extremamente vulneráveis (tanto os utentes como os cuidadores).
32Apesar de ter voltado a haver um aumento da despesa pública em saúde e em educação a partir de 2015/2016, os valores apresentados pelo quadro 2 dão-nos conta de uma diminuição global acentuada das despesas do estado com a área da saúde (-9%) e da educação (-13,4%) ao longo dos últimos nove anos. No que concerne ao desinvestimento público na área da saúde, de acordo com Asensio e Popic (2019), as pressões externas decorrentes da crise financeira de 2011-2014 mais não fizeram do que facilitar decisões domésticas de aplicação de políticas de austeridade e de diminuição dos custos com o setor da saúde, previamente traçadas pelos tradicionais partidos de poder (PS, PSD e CDS). Por outro lado, o estudo recente de Popic, Schneider e Asensio (2019) mostra que as perceções da população portuguesa sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) pioraram com particular severidade a partir de 2011, depois de introduzidas as principais medidas de austeridade no setor da saúde. Os grupos sociais mais críticos foram também os tradicionalmente mais vulneráveis (idosos/reformados, doentes crónicos e cidadãos de baixas qualificações e baixos rendimentos).
- 1 O conceito de proteção social abarca toda a intervenção estatal com vista a minorar riscos ou neces (...)
33Ainda de acordo com os dados da Pordata (2019), em matéria de proteção social,1 entre 1995 e 2016, as despesas em Portugal subiram de 20,1% para 25,1% do PIB, estando contudo ainda aquém da média da UE (28,1% em 2016). Importa referir que, numa leitura dos dados ano a ano, não se identificam quebras significativas de crescimento nem sequer em momentos como o período de cumprimento do Memorando de Entendimento com a Troika (2011-2014). No que concerne às despesas do estado com proteção social em matéria de pensões, apenas se verificou uma diminuição das mesmas entre 2011 e 2012, tendo-se a partir desse ano retomado um aumento anual das despesas (ver quadro 3).
Quadro 2. Variação das despesas do estado com saúde e educação, 2010-2018 (milhões de euros)
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Saúde
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Educação
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2010
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9776,5
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8559,2
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2011
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9171,7
|
7878,5
|
2012
|
10403,5
|
6622,4
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2013
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8588,8
|
7108,4
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2014
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8332,1
|
6945,0
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2015
|
8518,4
|
6755,8
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2016
|
8811,5
|
7177,1
|
2017
|
8757,7
|
7288,9
|
2018
|
8897,8
|
7408,2
|
Variação 2010-2018 (%)
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- 9%
|
- 13,4%
|
Fonte: adaptado a partir de DGO (2019).
34Relativamente à sustentabilidade da Segurança Social em Portugal, Silva e Pereira (2015) referem que esta questão se tem revelado como um dos temas que maior desconfiança tem criado relativamente à possibilidade da manutenção do estado-providência. Contudo, como referem, se por um lado a diminuição do emprego, a desvalorização dos salários, a emigração e o aumento do desemprego para patamares elevados têm contribuído para carreiras contributivas mais fracas, e consequentemente para uma quebra de receitas, por outro, contribuem também para que no futuro as prestações sociais pagas pela Segurança Social sejam menos pesadas. É ainda de salientar que os indivíduos no mercado de trabalho no futuro poderão sempre suportar descontos acrescidos para financiar a despesa do sistema previdencial, não tendo para tanto que sofrer qualquer corte no seu rendimento. Para tal basta que se consiga aumentar a taxa de produtividade do seu trabalho. Com efeito, a capacidade de os trabalhadores futuros conseguirem suportar, sem um esforço suplementar, os pensionistas e reformados está intimamente ligada ao PIB per capita que então se consiga obter. Uma maior eficiência na gestão dos recursos será, pois, fundamental para a sustentabilidade da Segurança Social no médio e longo prazo.
Quadro 3. Variação das despesas do estado com proteção social em pensões, 2010-2017 (milhões de euros)
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Pensões
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2010
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24564,7
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2011
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25281,7
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2012
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24465,8
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2013
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26692,7
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2014
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26983,6
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2015
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26855,3
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2016
|
27226,4
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2017
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27766,9
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Variação 2010-2017 (%)
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11,5%
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Fonte: adaptado a partir dos dados do INE (2019). Nota: inclui pensões de invalidez, velhice, sobrevivência e pré-reforma por motivos de mercado de trabalho.
35Independentemente da existência de teses contraditórias sobre a desejabilidade e a sustentabilidade do estado-providência, certo é que, de acordo com a evolução económica, legal, política e social dos estados, este vai sendo influenciado por reformas, tendo necessidade de rever as suas dimensões constitutivas, assim como de reorganizar as suas valências sobretudo em função da transformação das instituições e dos interesses e necessidades dos cidadãos (Mozzicafreddo 2000). No caso concreto de Portugal, a introdução dos princípios do NPM na AP nos anos 80 e a estada prolongada da Troika no país, assim como as suas exigências relativamente a reformas a implementar no setor público, tornaram “obrigatória” uma análise sobre a influência das recentes reformas no estado e na AP quanto à capacidade prestadora do estado-providência.
36Em Portugal, os últimos 30 anos de reforma administrativa foram dominados por princípios managerialistas que contribuíram para as sucessivas vagas de privatizações, para o declínio e envelhecimento do emprego público, para a empresarialização e reestruturação da AP, assim como para a convergência das leis e regimes de trabalho públicos e privados. A presença da Troika entre 2011 e 2014, e o cumprimento do Memorando de Entendimento, também contribuiu fortemente para uma pressão orçamental na AP com consequências nas políticas sociais do país. Terminada (em teoria) a sua intervenção, mantêm-se evidentes as suas marcas de continuidade tanto no tecido administrativo como no tecido social. De facto, as políticas de contenção e mesmo de corte da despesa pública continuaram a produzir efeitos muito palpáveis tanto no seio da administração pública como no da sociedade em geral. Os trabalhadores em funções públicas mantêm o seu trajeto de empobrecimento (a este propósito importa recordar que o último aumento de salário real destes trabalhadores foi em 2009) enquanto, em termos globais, o investimento público em domínios sociais continua a ser insuficiente, como o demonstram os problemas crónicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou da escola pública. Com efeito, pese embora tenha voltado a crescer o número de efetivos em áreas como as da saúde e da educação a partir de 2014 (rever dados do quadro 1) estas mantêm-se como áreas de carência de investimento do estado.
37Se é verdade que a reforma do estado-providência não pode eximir-se a enfrentar a realidade da nova ordem económica, não deve deixar de tomar por fundamental a manutenção de princípios como os da universalidade ou da solidariedade social, assim como dos direitos civis, sociais e políticos que em Portugal só foram conquistados depois de 1974. Como vimos, embora seja ainda escassa a literatura sobre os efeitos das reformas da administração pública no estado-providência, já existem estudos como os de Kamerman e Kahn (2016) ou do COCOPS (2013) que dão conta do perigo que os princípios do NPM representam nos sistemas de solidariedade social e para o estado-providência.
38Em Portugal, verifica-se alguma contradição na evolução de certos indicadores sobre a evolução do estado-providência. Na saúde, os dados são suficientes para afirmar que a maior limitação da oferta pública abriu as portas a um aumento do setor privado ao longo das últimas décadas. No que concerne ao peso das despesas de educação no PIB, estas não pararam de diminuir desde 2009. Da mesma forma, o emprego público nesta área desceu 11% ao longo dos últimos 8 anos. Estes dados confluem no sentido da demonstração de um desinvestimento claro em matéria de educação. Pelo contrário, os dados observados nos últimos 20 anos acerca da proteção social registam que as despesas para este fim subiram sustentadamente, não se verificando quebras de crescimento nem sequer em momentos como o da intervenção da Troika (2011-2014).
39Fica claro que esta disparidade de dados nas suas diferentes valências não permite afirmar a existência de um estado-providência com uma evolução sustentada em todas as suas dimensões. Tendo iniciado o período de desenvolvimento de um estado-providência de caráter realmente universalista tardiamente (só depois de 1974), Portugal teve muito pouco tempo para o afirmar, uma vez que os princípios do NPM influenciaram a economia e a sociedade portuguesas a partir de meados da década de 80 do século passado. Não obstante, e apesar de todas as ambiguidades na sua evolução, podemos afirmar que existe um estado-providência em Portugal que cumpre, em parte, os seus desígnios universalistas. As escolhas ideológicas e os paradigmas de reforma do estado e da AP serão determinantes, num futuro próximo, para a reafirmação do estado-providência português ou para intensificar o seu esvaziamento.