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Estudos

O desenvolvimento do processo conspirativo militar na Guiné até ao 25 de Abril de 1974

Le développement du processus de conspiration militaire dans la Guinée jusqu’au 25 Avril 1974
The development of the military conspirative process in Guinea-Bissau until April 25, 1974
Rui Filipe de Brito Camacho Duarte
p. 53-70

Resumos

A 25 de Abril de 1974, Portugal despertava com um golpe militar depois de um longo período de regime ditatorial, iniciado a 28 de Maio de 1926 e fossilizado sob a forma do Estado Novo. Os militares revoltosos decidiram tomar o poder com vista à mudança do paradigma governativo vigente, que persistia no arrastamento de uma guerra ultramarina sem fim aparente. Este artigo é fruto de uma investigação que procurou averiguar como se desenvolveram, na Guiné-Bissau, vários movimentos de militares contestatários e, posteriormente, conspirativos, cuja acção viria a contribuir para o derrube do governo metropolitano.

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Introdução

1O presente estudo tem por objeto analisar as movimentações políticas que ocorreram na Guiné de 1972 até 25 de abril de 1974, ou seja, desde a proibição imposta por Marcello Caetano ao general Spínola sobre a continuação dos encontros com o presidente do Senegal, Léopold Senghor, com vista à negociação com o PAIGC e subsequente paz naquele território, até ao golpe militar que em Lisboa depôs o governo marcelista e abriu caminho à descolonização.

2O objetivo inicial foi o de aprofundar o conhecimento sobre o processo contestatário, iniciado na Guiné no seio das Forças Armadas Portuguesas, apontado como o «embrião» de um movimento que viria a formar o Movimento dos Capitães, posteriormente o MFA e, desta forma, constituir um marco fundamental do derrube do regime autoritário de direita que vigorou em Portugal até 25 de abril de 1974. O estudo, porém, não se cingiu a este núcleo. Foi minha intenção caracterizar o quadro global dos movimentos de militares, qualquer que fosse a agenda política própria, que se desenvolveram na Guiné nos dois últimos anos de administração portuguesa, parte dos quais arredados da historiografia contemporânea.

3A datação do início e evolução de um movimento político de carácter reivindicativo, que se desenvolve de forma secreta ou, pelo menos, bastante discreta, afigura-se muitas vezes difícil, uma vez que não existe uma publicação ou sequer uma declaração de princípios divulgada abertamente.

4Contudo, no caso da Guiné, a propósito da forma como um pequeno grupo de oficiais se começou a organizar, tendo em vista a discussão política em geral, disse-nos Matos Gomes:

  • 1 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de (...)

«… quando cheguei à Guiné [em 1 de julho de 1972] com o [Jorge Sales] Golias e com o José Manuel Barroso [capitão miliciano, que viria a ser ajudante de campo de Spínola], encontrámos lá já outro pequeno grupo de oficiais que eram também do nosso tempo de Academia. Dois deles eram engenheiros, tinham uma vivência muito intensa da vida do Técnico, um era o Engenheiro [Jorge] Alves, da Força Aérea, e o outro era o Engenheiro do Exército; estava também [a partir de 1973] o [Manuel] Duran Clemente, que era oficial de Administração Militar e que tinha formação [política]. Começámos a juntar-nos de uma forma regular no Agrupamento de Transmissões. Conversávamos e fomos constituindo, informalmente, um grupo que falava politicamente sobre estas situações e começámos nós próprios a falar com outros oficiais»1.

5Da mesma forma, salienta o contributo da imprensa, especialmente do jornal Expresso, no processo de construção de um coletivo de militares politicamente conscientes ao afirmar que:

  • 2 Idem.

«Há um outro aspeto que normalmente não se refere, mas gostava de referir porque penso que também ajudou à consciencialização [política], que é o aparecimento do Jornal Expresso. O Expresso sai, penso que no final de 1972, mas o que acontece é que a chegada do Expresso a Bissau era quase uma festa. Com a chegada do correio esgotava quase de imediatamente porque, pela primeira vez, surgia um jornal que falava da política e colocava os problemas. Isso também ajudou – o discutir à volta do Expresso – a criar uma consciência»2.

6Deste modo, em primeiro lugar, verifica-se que a partir do segundo semestre de 1972 surge na Guiné uma forma embrionária de reunião e de debate político entre elementos das Forças Armadas, que dá origem a um pequeno núcleo que se mantém estável até 1974.

7Em segundo lugar, as referidas reuniões informais contam com a participação de elementos que não são apenas do exército – como é o caso de Jorge Alves – e que possuem um contacto com as movimentações estudantis que caracterizaram a década de 60, em particular no Instituto Superior Técnico.

8Em terceiro lugar, é também de salientar o facto de estas reuniões terem lugar num local que, embora vedado à sociedade civil, nada tinha de secreto. Ou seja, não só o aparelho militar, naquele território, tinha conhecimento da existência destas reuniões de discussão políticas, como os seus participantes não manifestavam grandes preocupações com a falta de secretismo dos seus encontros.

  • 3 Bernardo, Manuel Amaro, Marcello e Spínola: A Rutura, Lisboa, Ed. Estampa, 1996, pp. 68-89.

9Em quarto lugar assume relevância o contributo que a imprensa deu para o evoluir da consciencialização política naquele território, como afirma Manuel Bernardo, ao defender que o jornal Expresso, logo na sua primeira edição, a 6 de janeiro de 1973, agitou política e ideologicamente a metrópole e, sobretudo, a Guiné, com o artigo intitulado «O que a Guiné pediu e obteve em matéria de estatutos»3. Do seu conteúdo resultava a conclusão de que os prazos «autonomistas» do governo marcelista se encontravam ultrapassados e ainda uma referência elogiosa ao discurso do general Spínola, feito na visita ao Brasil, no qual realçou o seu projeto federalista. Por fim, este artigo mencionava o facto de aquela «província» ter obtido, a 22 de dezembro de 1972, um novo Estatuto que não atendia às propostas feitas, nomeadamente: «a designação honorífica de Estado, a criação de Secretarias Provinciais, a eleições por sufrágio direto dos vogais da Assembleia Legislativa e o alargamento da sua competência».

  • 4 Afonso, Aniceto, «O Movimento dos Capitães», in João Medina (dir.), História de Portugal dos tempos (...)

10Por fim, outro aspeto relevante a salientar, como analisou Aniceto Afonso4: o facto destes militares serem oficiais com postos intermédios, o que lhes permite assumir responsabilidades perante os seus superiores, mantendo, ao mesmo tempo, uma forte ligação ao «mato» e aos seus subalternos, através do planeamentos e realização de operações no terreno.

11Estes são os fatores mais importantes e determinantes para a compreensão da forma como se inicia a reunião e a discussão política entre militares, circunstância que, por sua vez, originará diversa produção escrita sobre a situação vivida na metrópole e nas colónias.

  • 5 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «O Exército e a Nação», [Guiné], [1972].
  • 6 Datação referida pelo autor do documento em entrevista.

12É neste contexto que surgem trabalhos individuais onde são abordados temas variados, com especial incidência sobre a conjuntura política de então. Veja-se o exemplo do manuscrito ensaístico intitulado «O Exército e a Nação»5, datado do segundo semestre de 19726, da autoria do então capitão Jorge Sales Golias, no qual se questiona sistematicamente a legalidade do governo e se defende a politização do Exército e a consequente condução por este de um processo revolucionário, como pontos-chave para a alteração do panorama político-social português e a recuperação do prestígio das Forças Armadas.

  • 7 Entrevista ao coronel Jorge Sales Golias, realizada a 20 de outubro de 2009 na Associação 25 de abr (...)

13Sobre este documento, disse-nos ainda o seu autor: «O “Exército e a Nação” foi um documento feito por mim, […] da mesma forma que o Melo Antunes teve necessidade de explicar uma base ideológica que sustentasse o movimento revolucionário. Eu senti isso logo quando cheguei [à Guiné], no dia 1 de julho de 72, quando ia no mesmo avião com o Matos Gomes e com o José Manuel Barroso»7.

14Ora, o manuscrito de Jorge Golias demonstra igualmente de forma clara a emergência de uma politização em torno de teses de cariz revolucionário, ao propor a formação de um núcleo de militares «vanguardistas» responsáveis por «tomadas de posição ou ações de resultado positivo.»

15Não pode, contudo, deixar de se salientar que a existência deste grupo restrito de militares politizados não significa que, ao mesmo, coubesse uma iniciativa oposicionista por motu proprio.

16O processo reivindicativo e conspirativo destes militares na Guiné começou a desenhar-se gradualmente, evoluindo de uma forma isolada (quase como um «clube de cavalheiros»). Porém, com o Congresso dos Combatentes do Ultramar, em 1973, abrir-se-á uma janela de oportunidade para o alargar do descontentamento que já se fazia sentir em alguns setores das Forças Armadas.

O Congresso dos Combatentes do Ultramar e o seu impacto na Guiné

  • 8 Correia, Pedro Pezarat, «O MFA NAS COLÓNIAS – Do Congresso dos Combatentes ao 25 de abril», Comunic (...)

17Pezarat Correia definiu este evento, realizado no Porto entre os dias 1 e 3 de junho de 1973, como uma encenação dos «setores colonialistas mais radicais» que garantiriam a «aprovação de conclusões no sentido da continuação da guerra e da manutenção do statu quo colonial e que, assim, reforçariam os setores radicais, comprometeriam Marcello Caetano, silenciariam a ala liberal, dariam uma imagem de firmeza para o exterior do país e reuniriam forças para combater a oposição»8.

  • 9 Bernardo, Manuel Amaro, Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, Lisboa, Prefácio, 2007, p. 96.

18Na Guiné, os oficiais superiores próximos de Spínola decidem tomar parte na iniciativa de reunir assinaturas de oficiais do quadro permanente (QP) presentes no território, enviando um telegrama de Bissau para o Porto, onde o dito congresso decorreria, condenando a sua realização e os seus organizadores. Também em Lisboa, sem uma lógica estrita de coordenação com outros territórios, se inicia a contestação ao Congresso dos Combatentes do Ultramar, liderada por Vasco Lourenço, Hugo dos Santos e Ramalho Eanes.9

19Assistia-se, pela primeira vez, a uma onda de contestação generalizada dentro das Forças Armadas e que contava já com alguma articulação entre os militares presentes na metrópole e os militares mobilizados nas colónias.

  • 10 Rezola, Maria Inácia, «Do Congresso dos combatentes de junho de 1973 ao Movimento dos Capitães», Hi (...)

20Maria Inácia Rezola faz uma leitura correta do peso que o Congresso dos Combatentes teve no seio dos oficiais mobilizados na Guiné, ao lembrar que «o amplo significado e importância da contestação ao Congresso dos Combatentes do Ultramar» deve-se à mobilização gerada que «deixa patentes as movimentações em curso na Guiné e, sobretudo, o facto de António de Spínola ter aí criado o ambiente propício ao debate sobre a guerra»10.

  • 11 Entrevista realizada por João Paulo Guerra in Descolonização Portuguesa – O Regresso das caravelas, (...)

21Carlos Fabião, coronel do Exército, acrescenta ainda: «Os oficiais que estavam na Guiné tinham capacidade de conspirar à vontade (…) tinham a grande capa do governador [Spínola] a tapá-los»11.

22A questão que fica por responder é a seguinte: o que levava Spínola, um homem do regime, a proteger estes oficiais contestatários?

  • 12 Rezola, «Do Congresso dos combatentes de junho de 1973…».

23Em grande parte devido à incompatibilização com «Caetano, ao ver gorados seus esforços de desenvolvimento de conversações com o PAIGC»12 e, ainda, segundo Carlos Fabião, ao facto de ter recebido o convite da Ala Liberal endereçado por Sá Carneiro para se candidatar às eleições de outubro de 1973, que não se veio a concretizar. Este facto, que abalou profundamente a ambição pessoal de poder do general que, pelo menos desde 1968, tinha construído em torno da sua imagem um mito de político e militar prestigiado, para assim granjear alguma influência junto do governo.

24A contestação iniciada na Guiné resultava igualmente da coesão entre militares. Matos Gomes aponta uma das razões: «Bissau tinha a vantagem de reunir quase todos os quadros da Guiné, embora eles não estivessem fisicamente ali, porque estavam espalhados pelo território. O que acontece é que tinham de ir a Bissau tratar dos seus assuntos militares, tinham de ir a Bissau para tratar dos seus assuntos particulares, tinham de ir a Bissau nas vindas aqui à metrópole.

  • 13 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de (...)

25Havia pontos de reunião relativamente fáceis. Como em Bissau não havia vida social para além das messes e dos poucos restaurantes que tinha, havia esse tipo de contacto fácil.»13

26Desta forma, a contestação ao Congresso dos Combatentes do Ultramar reuniu, por um lado, os oficiais ligados a Spínola, que trabalhavam afincadamente para a construção do seu prestígio e, por outro, os oficiais mais jovens que, como vimos, se reuniam em Bissau, a fim de discutir os problemas sociais, políticos e militares do País.

27Ciente da contestação emergente e temendo situações embaraçosas em pleno congresso, o governo decidiu proibir a participação no evento dos militares em efetividade de serviço.

  • 14 Idem.

28As sementes das manifestações coletivas estavam, então, lançadas entre os militares, sendo que, pela primeira vez, se reuniam na contestação oficiais de diversas sensibilidades políticas. Como recorda Matos Gomes: «O que acontece é que esse grupo dos spinolistas passa também a contestar o Congresso. Nesse grupo está quem? Está o Major Dias Lima, Carlos Azeredo, Almeida Bruno, Manuel Monge. Nesta contestação então, estamos todos juntos, todos aqueles que estavam na Guiné contra o Congresso.»14

O cariz corporativo da contestação iniciada na Guiné

29Pouco tempo depois da mobilização provocada pela resposta ao Congresso dos Combatentes surge a ocasião de testar verdadeiramente a capacidade de união e de reivindicação dos oficiais de patente intermédia e superior (capitães e majores, principalmente).

30O fundamento foi dado pela publicação do Decreto-lei 353/73, de 13 de julho, que visava solucionar a carência de oficiais subalternos e capitães no Quadro Permanente (QP) do Exército, através de um curso intensivo na Academia Militar. A frequência deste curso permitia aos oficiais milicianos integrar o Quadro Especial de Oficiais – quadro paralelo ao Quadro Permanente.

  • 15 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em abril, 4.ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 127.

31Embora a agitação causada pelo decreto se fizesse sentir logo em julho em Lisboa, foi na Guiné que primeiramente se desenvolveu um procedimento contestatário organizado, de cariz corporativista, de que foi informada a hierarquia político-militar local15. Este procedimento assumiu, posteriormente, contornos conspirativos clandestinos associados a pretensões de mudança do paradigma político-social.

32No entanto, as hipóteses de reivindicação nem sempre foram ponderadas tendo em vista uma confrontação direta com o governo. O abaixo-assinado de agosto de 1973 – contestando os decretos-lei que alteravam o estatuto dos oficiais do quadro permanente (QP) – seguiu uma via legalista, revelando uma opção amadurecida, antecedida de uma série de outras hipóteses, de que aqui daremos conta.

  • 16 Carvalho, Alvorada em abril, p. 120.
  • 17 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Sugestões», [Guiné], [1973].

33Quanto às hipóteses de atuação colocadas por alguns militares que desde 18 de agosto se reuniam em Bissau no Clube Militar16, o documento manuscrito intitulado «Sugestões»17, da autoria do capitão Jorge Sales Golias, que cronologicamente se situa após o III Congresso da Oposição Democrática de Aveiro, em abril de 1973 e antes do abaixo-assinado dos oficiais na Guiné contestando o Decreto-Lei 353/73, de 28 de agosto de 1973, revela que existe de um modo inequívoco a intenção de assumir um comportamento político oposicionista por parte de alguns militares colocados na Guiné que transcende questões socioprofissionais.

34Facilmente se pode comprovar que existe uma agenda política que explicitamente defende a criação de «uma ideologia adequada ao Exército» e a sua subsequente divulgação, o início de contactos na instituição castrense e na sociedade civil, ponderando ainda a «participação em atividades ilegais».

  • 18 Idem.

35De igual forma, num outro manuscrito do mesmo autor intitulado «Propostas», se consideraram algumas hipóteses de reivindicação política.18 Estes registos permitem-nos ter a perceção do processo que na Guiné antecedeu o estabelecimento de uma estrutura organizada – através de comissões – com vista à divulgação das reivindicações, inicialmente corporativas e posteriormente políticas e as hipóteses colocadas para dar forma ao descontentamento de uma parte do oficialato. Podemos neles verificar que as hipóteses colocadas já apontam um abaixo-assinado, sem no entanto deixar claro o seu destinatário ou se outras ações seriam tomadas, como a elaboração de uma «declaração de solidariedade» a entregar a um ou mais movimentos oposicionistas, de um «manifesto» dirigido às unidades militares ou ainda uma carta à imprensa estrangeira ou a elites políticas quer fossem exiladas ou não. Ficamos assim com uma ideia do tipo de debate que já existia no seio dos oficiais que se reuniam em Bissau quando foi publicado o decreto-lei 353/73 em julho.

  • 19 Almeida, Diniz de, Ascensão, Apogeu e queda do MFA, I Volume, Lisboa, Edições Sociais, p. 17.

36Consequentemente, nas «Sugestões» e «Propostas», o facto de se mencionar a eventual participação em ações da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, o contacto com movimentos oposicionistas e a participação em «atividades ilegais», entre outras opções de atuação parece corresponder ao momento que Diniz de Almeida caracteriza como «arranque» da contestação, como a noção de infração da legalidade, que abrirá caminho a um golpe militar19.

37É sabido que a opção que viria a ser tomada seria a da elaboração de uma carta a ser enviada às instâncias governativas, com o conhecimento da hierarquia militar superior da Guiné.

  • 20 Carvalho, Alvorada em abril, p. 120.

38É, pois, a 25 de agosto de 1973 que oficiais do Quadro Permanente em comissão de serviço na Guiné aprovaram uma exposição ao presidente do Conselho, ao presidente da República, ao ministro da Defesa Nacional, do Exército e ao Ministro da Educação, protestando contra as disposições do Decreto-Lei 353/7320.

39Este protesto ganharia contornos avultados com a divulgação, naquele território, de uma mensagem apelando à união dos capitães do QP que veio a recolher 51 assinaturas.

  • 21 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Carta de 30 de agosto», [Guiné], [1973].

40Assim, a 30 de agosto de 1973, é difundida uma mensagem apelando à tomada de uma «atitude (…) pelos capitães do Q.P. (os que assentaram praça como cadetes na A.M.) em Comissão neste T.O. [Teatro de Operações] face ao conteúdo do Decreto-Lei 353/73 e principalmente ao resultado da revisão do mesmo (…)» que supunham fosse já do conhecimento geral «dada a repercussão que o caso tem tido entre nós [militares], efetuámos várias reuniões no decurso das quais foi decidido estruturar uma carta a endereçar às mais altas entidades do Governo afetas às Forças Armadas e ainda ao Ministro da Educação Nacional». A referida mensagem adianta mesmo que os capitães presentes nas reuniões concordaram com o seu conteúdo «embora o tivessem considerado demasiado suave» e «deram o seu nome para inscrição e assinatura». O mesmo documento apelava a que qualquer capitão (do QP), mesmo deslocado de Bissau, fizesse «parte integrante do grupo» para que pudesse ter conhecimento do que estava a «ser feito, no sentido de, procurando consciencializar e tornar coeso esse mesmo grupo» tomar uma atitude «reta, perante quem superiormente» dirigia «os interesses das Forças Armadas e dos que as servem» e, também, para manifestar «frontalmente o (…) descontentamento» pelas alterações legislativas que, no seu entender, «aviltam e desprestigiam as Forças Armadas perante a Nação», concluindo que tudo o que daquela «firme atitude» resultasse, se procuraria dar conta para que os assinantes se sentissem «parte integrante do grupo reunido em Bissau»21.

41Esta carta reuniu a assinatura de 45 capitães mobilizados na Guiné e marca o início da contestação corporativa destes oficiais e do que ficaria conhecido como o Movimento dos Capitães (MOCAP).

  • 22 A Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é a mais alta condecoração portuguesa e pode (...)

42Nas semanas seguintes, desenvolver-se-ia na metrópole uma manifestação idêntica após a reunião de Évora (em Alcáçovas), a 9 de setembro de 1973, à qual compareceram mais de uma centena de oficiais, que assentaram enviar através do capitão Lobato Faria, cujo prestígio militar era atestado pela condecoração recebida a 31 de maio desse ano com a Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito22, a exposição à Presidência da República e, por intermédio do capitão Clementino Pais, à Presidência do Conselho de Ministros.

  • 23 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009 na Associação 25 de (...)

43Ainda que na Guiné a manifestação corporativista dos capitães se situe ligeiramente mais cedo do que na metrópole, a articulação entre aqueles dois territórios e os respetivos militares contestatários, torna indissociáveis os dois processos reivindicativos. Como lembra Carlos de Matos Gomes: «Recordo que em julho de 1973, com o José Manuel Barroso, viemos aqui  [a Portugal] e, já nessa altura, eu tive reuniões com o Vasco Lourenço, em casa do Vasco [Lourenço], no Estoril para tratarmos deste assunto [do Decreto-lei 353/73] e para estabelecer ligações.»23

44De Moçambique e Angola são também expedidas exposições ao Governo.

  • 24 Arquivo Histórico-Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto (...)

45A reforçar o pioneirismo do movimento de oficiais na Guiné salienta-se a pronta reação aqui verificada à circular n.º 490/S de 14 de setembro, que visava o esclarecimento dos militares afetados pelos Decretos-Lei. A 20 de setembro, «data em que tomaram conhecimento» da mesma, realiza-se em Bissau nova reunião, em que participam «5 Majores, 30 Capitães e 4 subalternos» que decidem «por unanimidade dar conhecimento ao Comandante Militar do Comando Territorial Independente da Guiné (C.T.I.G.) de que não concordavam com o teor da mesma e [de que] iriam tomar posteriormente as atitudes tidas por convenientes (…)», solicitando que desta resolução fosse dado conhecimento a quem de direito em Lisboa24.

46A circular 490/S de 14 de setembro motiva também uma resposta em Moçambique.

  • 25 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 407-410.

47Em Lisboa, o trabalho feito na Guiné é difundido através da circular da comissão do MOCAP de 23 de outubro de 197325. Apesar de estados de maturação diferentes quanto a posições políticas, os vários núcleos de oficiais na Metrópole, Guiné, Angola e Moçambique convergirão e passarão a contar com uma estrutura bem organizada de difusão de comunicados e circulares para todos os territórios, continental e ultramarinos.

  • 26 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 416-417.

48Durante o mês de outubro ficou visível a verdadeira prova de coesão entre os militares que na metrópole, Angola, Guiné e Moçambique reivindicavam a revogação dos Decretos-lei. Isto porque, quando os capitães que assinaram a exposição de 28 de agosto são confrontados com rumores associados à circular 409/S, de 14 de setembro, que deixavam antever uma eventual punição ao abrigo do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), inicia-se um processo de solidarização através de uma carta indagando a possibilidade dos restantes camaradas se solidarizarem. Para o efeito, iniciou-se um processo de recolha de declarações de solidariedade fornecidas através de uma minuta, na metrópole e nas restantes províncias.26

  • 27 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 418-419.

49A 1 de novembro, o sexto comunicado da Comissão do Movimento dos Capitães de Lisboa dava conta da forma como deveria ser uniformizado o texto de solidariedade para com os capitães da Guiné, além de informar que as comissões de cada território já tinham recolhido mais de seiscentos pedidos de demissão, a serem usados como forma de pressão perante o poder político27.

50Conclui-se, portanto, que entre inícios de setembro e até novembro é posta em funcionamento uma estrutura bem articulada de recolha e envio de informação entre todos os territórios, tendo Lisboa um papel determinante na gestão dessa informação. Por outro lado, verifica-se um endurecer de posições por parte de um número cada vez maior de militares, passando rapidamente de um protesto escrito à recolha de pedidos de demissão.

Sobre a circulação de ideias entre os militares nas colónias e na metrópole

51O coronel Carlos Matos Gomes elucida-nos sobre a circulação de ideias e o modo como as primeiras contestações alastraram à Metrópole e às outras colónias:

«Quando nós na Guiné, a vinte e pouco de maio [i.e. Agosto], fizemos a primeira Carta, que é o primeiro documento das Forças Armadas, do Movimento dos Capitães, logo a seguir, há um grupo que vem da contestação ao Congresso dos Combatentes. A ligação entre o movimento da Guiné e o movimento aqui de Portugal, surge muito naturalmente. Se repararmos, o núcleo que vai dar origem ao MFA [da metrópole] tem uma percentagem elevadíssima de militares vindos da Guiné. Tem todos os spinolistas e tem o Otelo [Saraiva de Carvalho]; o [Salgueiro] Maia, depois vem a seguir outros menos conhecidos de Cavalaria, sendo mantida uma ligação permanente aqui».

52E ainda:

  • 28 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 13 de janeiro de 2010, na Associação 25 de (...)

«Quando vinha alguém da Guiné a Portugal, ia falar com A, B ou C, levava informações, fazia-se uma reunião lá, trocava-se a informação, enviava-se outra vez. Há estas pequenas Comissões informais […] e a informação vai sempre circulando. Nesse aspeto, tem um papel muito importante o Diniz de Almeida, que assumiu quase a função de agência de informação, [porque] ia enviando papéis. Mas o que havia quase normalizado era o contacto de quem vinha a Portugal. Isto já funcionava de um forma relativamente otimizada e estabilizada que permitiu, por exemplo, pedir decisões a Lisboa para ações que podiam ser feitas na Guiné.»28

53Assim, desde cedo existe na contestação deste Movimento dos Capitães uma lógica de articulação entre os vários territórios que vai homogeneizando os procedimentos e os comportamentos a tomar, entre as múltiplas comissões que se iam organizando na metrópole e nas colónias.

  • 29 Entrevista ao coronel Jorge Sales Golias, realizada a 15 de outubro de 2009 na Associação 25 de abr (...)

54Outro aspeto interessante que caracterizou o desenvolvimento de um processo contestatário específico da Guiné foi o facto destas movimentações entre o oficialato serem do conhecimento das autoridades administrativas e militares, o que levou a que houvesse uma tentativa de «domesticação» por parte do poder instituído. A esse propósito, refere Jorge Sales Golias: «(…) o poder, a hierarquia tentou controlar os Capitães, o MOCAP – Movimento de Capitães. Como? Convidando-os [os capitães] para chás às 5h, depois do trabalho, na casa (no palacete) do Brigadeiro Banazol.»29

55No entanto, esta tentativa de domesticação era já um sinal claro de que o regime, através dos seus legais representantes, pouco ou nada podia fazer para impedir um processo de discussão política no seio das suas Forças Armadas.

56Todos estes fatores, em conjunto, demonstram maiores possibilidade no que diz respeito à discussão político-ideológica que, provavelmente, noutros territórios – metrópole incluída – estava vedada.

57A juntar a estes aspetos salienta-se a reduzida dimensão do território, que permitia uma maior facilidade de contacto no interior do corpo militar.

58Assim se percebe a origem e difusão, em grande parte, de ideias «subversivas» na Guiné.

59Porém, um fator determinante para o amadurecimento do MOCAP e da sua passagem ao Movimento das Forças Armadas – aqui entendida como a passagem de um grupo com reivindicações corporativas a núcleo com aspirações políticas explicitadas – prende-se com a partida de Spínola e da sua equipa de oficiais superiores daquela província, a 6 de agosto de 1973, e com o intervalo temporal até à nomeação do general Bettencourt Rodrigues como comandante-chefe e governador da província da Guiné em setembro.

  • 30 Arquivo Histórico-Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto (...)

60Ainda que desde cedo se verifique um tipo de ligação informal entre os oficiais presentes na Guiné e os da metrópole, é a 12 de outubro de 1973 que se pode estabelecer o início de um Movimento com uma lógica de cooperação estruturada entre a comissão metropolitana e os vários territórios, através do primeiro comunicado da Comissão do MOCAP emitido a partir de Lisboa para as províncias ultramarinas, informando sobre a suspensão dos Decretos-Lei 353/73 e 409/73, insistindo na necessidade de reunir o maior número possível de pedidos de demissão como forma de prevenir uma «possível traição do Governo» e de forma a manter a comissão em Lisboa informada sobre o «espírito de unidade»30.

Spínola e a alternativa dentro do regime

61Para muitos oficiais, Spínola representava uma esperança de possível mudança dentro da legalidade do regime. Sobre a reputação do general e as expectativas de alguns oficiais, que viriam a desempenhar um papel fundamental no MFA da Guiné, diz-nos o coronel Matos Gomes:

  • 31 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de (...)

«Quando chegámos a Bissau, todos nós tínhamos uma grande curiosidade. Por um lado, sobre as soluções que o general Spínola estava a procurar [por ser] o único general que representava uma alternativa à continuação da guerra. Mas, paralelamente, representava uma alternativa que não era uma rutura, nem de golpe militar, nem sequer contra a ideologia, e ainda menos contra a teoria militar que as Forças Armadas Portuguesas desenvolviam na Guiné, em toda a Guerra.»31.

  • 32 Silva, A. E. Duarte, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Afrontam (...)

62Desta forma, o chefe político e militar da província guineense assume-se como uma figura tutelar que, a partir do momento em que se desentende – irremediavelmente – com o governo liderado por Marcello Caetano, quanto à solução para o conflito na Guiné32, catalisa a propagação de ideais golpistas.

  • 33 Rodrigues, Luís Nuno, Spínola, Lisboa, Esfera dos Livros, 2009, pp. 167-173.

63A cisão entre Marcello e Spínola consuma-se em 1972, quando o general é impedido de prosseguir as negociações que tiveram lugar em Cap Skiring, a 18 de maio desse mesmo ano, com Léopold Senghor, Presidente do Senegal e que poderiam vir a incluir, num futuro próximo, Amílcar Cabral. Spínola ficou seriamente desapontado com a proibição emitida por Marcello Caetano, que lhe foi enviada a 30 de maio de 1972, cujo fundamento era a necessidade de evitar a abertura de um precedente relativamente aos demais territórios do Ultramar33.

64Esta cisão serviu para reforçar a imagem de Spínola como uma alternativa viável dentro do regime que fosse aceitável por parte da maioria dos meios militares e de alguns quadrantes políticos.

Spínola sai, os capitães ficam

65Paralelamente, a agitação política levada a cabo pelos militares na Guiné começava a apontar para soluções mais radicais.

  • 34 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 131-132.

66A radicalização acaba efetivamente por se consumar com a saída do general Spínola da Guiné, a 6 de agosto de 1973, sendo seus reflexos a exposição enviada, em 28 de agosto de 1973, pelos oficiais da Guiné e, posteriormente, a hipótese de uma alteração da ordem instituída, com recurso à força, aventada pela primeira vez em agosto do mesmo ano.34

67A radicalização emergiu do vazio resultante da saída de Spínola e do seu staff. Como explica Matos Gomes: «há um outro fator, também aqui muito importante, que tem a ver com o facto do general, em maio – nós já sabemos que ele se vem embora – já não ter mais nada que fazer [na Guiné]. Ele vem-se embora e com ele vêm os spinolistas. Vem o Almeida Bruno, vem o Manuel Monge, vem o Fabião, vem o Carlos Azeredo. Todo o seu staff sai. O general Spínola vem no verão [de 1973], vai de férias para o Buçaco [i.e. Luso].

  • 35 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de (...)

68Entretanto, não é nomeado nenhum oficial e durante esse período é este pequeno grupo que continua a animar as hostes. Foi também nessa altura que surgem os célebres decretos – surgem no verão de 1973.»35

  • 36 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeit (...)

69Na sequência do protesto contra o Congresso dos Combatentes – como vimos, a primeira manifestação junto do poder central do descontentamento dos militares – deu-se início, a 18 de agosto, na Guiné, às primeiras reuniões organizadas do MOCAP, tendo sido nesse mês que, numa delas, o capitão Sales Golias (que viria a ser um dos principais líderes do MFA naquele território) acaba por afirmar «que a guerra colonial e o regime ditatorial em Portugal só se resolviam com uma revolução armada»36.

  • 37 Le Monde Diplomatique, «Otelo, Vítor Alves e Vasco Lourenço – os Três do 25 de abril», Entrevista d (...)

70Posteriormente, em Óbidos, na reunião do Movimento dos Capitães, que teve lugar a 1 de dezembro de 1973, Otelo Saraiva de Carvalho esclarece ter sido «abandonada a fase de movimento dos capitães, passa-se à segunda fase, que é a do movimento e oficiais das Forças Armadas. Há a perspetiva de alargamento a outras patentes, a majores, a coronéis, oficiais superiores, até generais».37

  • 38 Idem.

71Na Guiné, porém, a situação era diferente, dado que o alargamento almejado dificilmente seria alcançado, pois o grupo de oficiais contestatários já tinha perdido para a metrópole uma grande parte dos oficiais superiores potencialmente mobilizáveis, com a saída de Spínola daquela província. São de assinalar as exceções, como o tenente-coronel Mateus da Silva, o tenente-coronel Maia e Costa, e, mais tarde, o tenente-coronel Luís Ataíde Banazol. Este último, quando ainda se encontrava em Portugal, manifestara na reunião do MOCAP, em 24 de novembro de 1973, em São Pedro do Estoril, a sua proposta para avançar com um plano de derrube de poder, que se revelara pouco definido e mal preparado38.

  • 39 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeit (...)

72Luís Banazol viria a ser responsável, na Guiné, por um episódio peculiar. Este oficial superior já se tinha deparado com resistências no seio da sua companhia, aquando do embarque para a Guiné, a qual, por esse motivo, teve que ser enviada de forma fracionada.39

73Pouco tempos depois da chegada atribulada à Guiné, onde o seu irmão, o brigadeiro Alberto Banazol, era comandante do C.T.I.G., começou a contactar os jovens oficiais que se reuniam no Agrupamento de Transmissões. Em fevereiro de 1974, propôs-lhes, durante uma reunião em Nhacra, um projeto de tomada do poder na colónia, com um plano para a retração do dispositivo militar português em tempo recorde. O grupo de oficiais declinou o convite para participar na intentona por falta de tempo para delinear a operação, já que Banazol a propusera para daí a uma semana.

74Esta tentativa, mal planeada e mal sucedida, demonstra claramente que a conjuntura propiciava movimentos de índole golpista.

  • 40 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Movimento de Resistência das Forças Armadas», [Guin (...)

75No entanto, Banazol continuou na sua senda revolucionária, fazendo circular, a partir de março, uma mensagem apelando ao «Movimento de Resistência das Forças Armadas» como meio de evitar um «desastre militar iminente» e propondo a «abertura de negociações com a OUA, ONU e PAIGC», o «fim das hostilidades» e o «fim das mobilizações», por forma a prevenir um novo abandono – por parte do Governo – das Forças Armadas «tal como aconteceu na Índia»40.

  • 41 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeit (...)

76Fruto de um desamparo institucional, ao qual a nomeação do general Bettencourt Rodrigues para substituir o general Spínola no comando político e militar da Guiné não soube responder, e entregues à possibilidade de trilhar caminhos ideologicamente mais distantes dos sonhos federalistas do antigo Governador e Comandante-Chefe da Guiné e dos seus mais próximos, verificamos uma crescente politização daquele núcleo de militares em torno de teses mais vanguardistas, repudiando as instruções que o novo governador e chefe militar, desde 21 de setembro de 1973, trazia de Marcello Caetano: «resistir até à exaustão dos meios».41

  • 42 Arquivo Histórico Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto (...)

77Contudo, apesar do distanciamento físico e ideológico que o Movimento dos Capitães ia acentuando em relação ao general Spínola, após a sua saída da Guiné, a 28 de fevereiro de 1974, é expedida de Bissau uma carta da Comissão de Oficiais da Guiné42, apoiando e enaltecendo a análise feita por Spínola na sua obra Portugal e o Futuro, confiando na «tomada de posição absolutamente inadiável perante os perigos de aniquilamento da nação», por parte do general, e reforçando que o mesmo contava com o apoio, que não devia rejeitar, daquela comissão de oficiais.

  • 43 Clemente, Manuel Duran, «Os Capitães de abril...da geração de sessenta à guerra colonial…da conspir (...)

78Além disso, na Guiné, o livro de Spínola veio dar um contributo decisivo para a adesão do comandante do batalhão de Paraquedistas, o major Mensurado, ao movimento de oficiais. Esta adesão, segundo Duran Clemente43, ter-se-á concretizado em fevereiro de 1974, constituía mais um passo importante para a solidificação do esquema de tomada de força naquela província, uma vez que aquele batalhão constituía uma parte significativa das forças de elite com capacidade de intervenção.

79Desta forma, a forte adesão ao Movimento dos Capitães, verificada na Guiné, permitiu que fosse gizado um plano de tomada de poder, viável mesmo em caso de fracasso do golpe metropolitano.

A Movimentação Política das Forças Africanas antes do 25 de abril

  • 44 Afonso, Aniceto; Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, Lisboa, Diário de Notícias, 2000, p. 198.

80Na Guiné, durante o mandato de Spínola, a dinâmica da africanização da guerra ganhou uma nova dimensão, principalmente porque os grupos de comandos africanos – que, até então, existiam integrados em unidades da metrópole – passaram a ser organizados em companhias estritamente constituídas por elementos de recrutamento local, contando apenas com um sargento e um capitão metropolitanos, do quadro permanente44.

  • 45 Afonso e Gomes, Guerra Colonial, p. 334.

81Este fenómeno determinará o surgimento de chefias militares africanas, enquanto oficiais graduados a comandar companhias, levando posteriormente à criação do Batalhão de Comandos Africanos. Neste, apenas o comandante do batalhão e alguns assessores militares eram oficiais metropolitanos45.

82Assistir-se-á assim a uma progressiva ascensão social dos militares africanos, justificada pelo mérito em combate e à passagem de testemunho na condução da guerra para elementos africanos.

83É neste contexto de autonomização da «força africana» que, em 7 de setembro de 1973, se assiste na Guiné à primeira forma de contestação política, social e corporativa de militares, oriundos do recrutamento local, pertencentes às Forças Armadas Portuguesas. A manifestação dos Comandos Africanos tem em vista a melhoria da sua condição sócio-profissional, sendo anterior à célebre «reunião de Évora», ocorrida na metrópole, a 9 de setembro de 1973.

84Em 7 de setembro de 1973, os oficiais e sargentos do Batalhão de Comandos Africanos reuniram-se no quartel daquela unidade para aí elaborar uma exposição que seria enviada ao coronel comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné.

  • 46 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo PIDE-DGS, Pasta GU, fls. 30-33.

85A exposição46 enviada «em nome dos Oficiais, Sargentos e Praças das Unidades Africanas do Exército português na província da Guiné» visava inicialmente a obtenção de melhores condições sócio-profissionais, não se cingindo, no entanto, a este aspeto, mas avançando para reivindicações do foro político, educacional e mesmo económico. Foi assinada por cinco oficiais do batalhão de Comandos (tenente graduado Zacarias Saiegh, tenente graduado Justo Nascimento, alferes graduado Cicri Vieira, tenente graduado Adriano Sisseco e pelo tenente graduado António Gomes), militares todos eles graduados em oficiais e que, pelo seu desempenho em combate, se foram destacando. No entanto, o facto de serem graduados e não promovidos determinava que a sua situação profissional se mantivesse instável, pois a graduação poderia ser retirada a qualquer momento, ao passo que a promoção teria como efeito a impossibilidade de abaixamento da respetiva patente.

86Os autores desta exposição exigiam, ainda, esclarecimentos sobre o seu estatuto no seio do exército português e sobre a sua situação em caso de eventual negociação do Governo português com o PAIGC. Da mesma forma, exigiam condições preferenciais na obtenção de cargos públicos para ex-combatentes e as suas famílias, facilidades na obtenção de empréstimos e de terrenos urbanizados, bem como melhorias no acesso à educação e saúde.

87Relembra-se que nesta data Spínola tinha deixado a Guiné precisamente um mês antes e que Bettencourt Rodrigues – que só tomaria posse a 21 de setembro – não estava ainda em funções.

88Efetivamente faz sentido que seja uma unidade de intervenção, como o batalhão de Comandos Africanos, a revelar primeiramente preocupação com o futuro da Guiné e a intenção de participar ativamente na sua vida política, através de um representante designado para as reuniões de órgãos de soberania como o Conselho do Governo, a Assembleia Legislativa e, mesmo, a Assembleia Nacional Popular.

89Esta proposta assume-se, por isso, como uma forma desta elite combatente se vir a constituir também como elite política e económica, especialmente se se tomar em consideração o quadro de mudança que, em setembro de 1973, as eventuais negociações com o PAIGC trariam.

90A exposição afigura-se também fundamental para o entendimento de mais um fenómeno que caracteriza a Guiné ao longo do segundo semestre de 1973: a movimentação política dos Comandos Africanos. Esta, para além de dar conta do descontentamento daqueles militares, reflete igualmente um programa político associado ao projeto do general Spínola, «Por uma Guiné Melhor» – como aliás fica expresso quando aqueles reclamam, no último parágrafo da exposição, a continuação da «obra de valorização humana e dignificação dos guinéus, promoção sócio económica da Guiné e da população autóctone que o Senhor General Spínola esteve realizando».

91Do processo arquivado no fundo da PIDE/DGS resulta que a exposição elaborada chegou ao conhecimento do Diretor-Geral da DGS, em Lisboa, no dia 25 de setembro de 1973, desconhecendo-se, no entanto, se alguma medida foi tomada em reação ao seu conteúdo «subversivo».

92Além destas reivindicações, é pouco conhecido o envolvimento das tropas africanas no golpe de 25 de abril nas colónias. No entanto, este envolvimento será mais facilmente entendido se for visto como o culminar do descontentamento dos Comandos Africanos, previamente refletido na exposição de 7 de setembro de 1973.

93No rescaldo do «golpe das Caldas», de 16 de março de 1974, houve uma tentativa de despoletar, na Guiné, um golpe de estado estritamente baseado nos Comandos Africanos.

  • 47 Autoria atribuída pela PIDE/DGS uma vez que a mensagem era anónima.

94Assim, na sequência do fracasso deste golpe, na metrópole, o então major de Cavalaria Lourenço Fernandes Tomás47 endereçou um comunicado aos Comandos Africanos guineenses incentivando-os a uma tomada do poder pela força, naquele território.

95O governador da Guiné e comandante-chefe, Bettencourt Rodrigues, recebeu de Alberto Banazol um relatório informando que Fernandes Tomás divulgara uma mensagem subversiva intitulada «Comunicado aos Comandos Africanos-Guinéus», na qual incitava os comandos africanos a organizarem um golpe de surpresa, o que poderia acontecer em 27 de abril ou «quando julgarem conveniente». Esta mensagem continha instruções detalhadas sobre a tomada do poder pela força, como desencadear o golpe, como destruir os principais postos militares portugueses e ainda como comunicar e pedir auxílio à comunidade internacional, sugerindo «a morte em vez de prisão de quem não obedecer».

  • 48 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo PIDE/DGS, Processo 7477-CI (2), fls. 12-14.

96Esta carta foi dirigida ao tenente Justo Nascimento, comando africano, que, por medo ou desconfiança sobre as suas reais intenções, resolveu entregá-la ao seu superior hierárquico. Este, por sua vez, entregou-a ao brigadeiro Banazol e à PIDE-DGS48.

97Verifica-se, deste modo, que os diversos movimentos organizados que fluíam no mesmo sentido, ou seja, na contestação ao regime vigente e na alteração do paradigma instituído, permitem concluir que na Guiné existiu mais do que uma única e exclusiva organização dominada por jovens capitães do QP, com consciência e objetivos políticos.

98Politicamente havia uma série de alternativas que eram discutidas pelos militares na Guiné. Preconizavam-se soluções federalistas, tal como as defendidas por Spínola, que não representavam uma rutura total com o regime; a tomada do poder pela força dos Comandos Africanos com o consentimento de oficiais conotados com Spínola; um plano de tomada do poder pela força e rápida retração do dispositivo militar português liderado pelo tenente-coronel Luís Banazol; e, finalmente, um movimento – constituído maioritariamente por capitães, que se apresentava como o mais estruturado e com maior número de participantes – o qual procurava coordenar o esforço com a metrópole e restantes colónias, por oposição a uma ação estritamente focada na Guiné – embora esta pudesse vir a ser uma alternativa, caso a tentativa de golpe em Lisboa falhasse.

99Deste modo, verifica-se que a Guiné, de 1972 a 1974, funcionou como um cadinho de discussão política ao nível militar que não pode ser ignorado quer como forma de aprofundar o conhecimento sobre a estrutura do Movimento das Forças Armadas quer de outros movimentos conspirativos que acabaram por não singrar.

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Notas

1 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de abril, em Lisboa.

2 Idem.

3 Bernardo, Manuel Amaro, Marcello e Spínola: A Rutura, Lisboa, Ed. Estampa, 1996, pp. 68-89.

4 Afonso, Aniceto, «O Movimento dos Capitães», in João Medina (dir.), História de Portugal dos tempos pré-históricos aos nossos dias, vol. XIV, Amadora, Ediclube, 1993, p. 12.

5 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «O Exército e a Nação», [Guiné], [1972].

6 Datação referida pelo autor do documento em entrevista.

7 Entrevista ao coronel Jorge Sales Golias, realizada a 20 de outubro de 2009 na Associação 25 de abril, em Lisboa.

8 Correia, Pedro Pezarat, «O MFA NAS COLÓNIAS – Do Congresso dos Combatentes ao 25 de abril», Comunicação apresentada no II Colóquio Histórico «Memórias do Quotidiano em História», Centro Regional das Beiras da Universidade Católica Portuguesa, Viseu, 20 de abril de 1999, p. 267.

9 Bernardo, Manuel Amaro, Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, Lisboa, Prefácio, 2007, p. 96.

10 Rezola, Maria Inácia, «Do Congresso dos combatentes de junho de 1973 ao Movimento dos Capitães», História, junho de 2003, pp. 38-43.

11 Entrevista realizada por João Paulo Guerra in Descolonização Portuguesa – O Regresso das caravelas, Lisboa, Oficina do Livro, 2009, p. 56.

12 Rezola, «Do Congresso dos combatentes de junho de 1973…».

13 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de abril, em Lisboa.

14 Idem.

15 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em abril, 4.ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 127.

16 Carvalho, Alvorada em abril, p. 120.

17 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Sugestões», [Guiné], [1973].

18 Idem.

19 Almeida, Diniz de, Ascensão, Apogeu e queda do MFA, I Volume, Lisboa, Edições Sociais, p. 17.

20 Carvalho, Alvorada em abril, p. 120.

21 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Carta de 30 de agosto», [Guiné], [1973].

22 A Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito é a mais alta condecoração portuguesa e pode ser conferida em três casos: por méritos excecionalmente relevantes demonstrados no exercício de funções dos cargos supremos que exprimem a atividade dos órgãos de soberania ou no comando de tropas em campanha; por feitos de heroísmo militar e cívico; ou por atos excecionais de abnegação e sacrifício pela Pátria e pela Humanidade.

23 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes, realizada a 23 de outubro de 2009 na Associação 25 de abril, em Lisboa.

24 Arquivo Histórico-Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto, «Carta//Circular aos Oficiais em Serviço no C.T.I.G.», Bissau, 14 de outubro de 1973.

25 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 407-410.

26 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 416-417.

27 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 418-419.

28 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 13 de janeiro de 2010, na Associação 25 de abril, em Lisboa.

29 Entrevista ao coronel Jorge Sales Golias, realizada a 15 de outubro de 2009 na Associação 25 de abril, em Lisboa.

30 Arquivo Histórico-Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto, «Comunicado N.º 1», Lisboa, 12 de outubro de 1973.

31 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de abril, em Lisboa.

32 Silva, A. E. Duarte, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Porto, Afrontamento, 1997, p. 167.

33 Rodrigues, Luís Nuno, Spínola, Lisboa, Esfera dos Livros, 2009, pp. 167-173.

34 Carvalho, Alvorada em abril, pp. 131-132.

35 Entrevista ao coronel Carlos de Matos Gomes realizada a 23 de outubro de 2009, na Associação 25 de abril, em Lisboa.

36 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de abril da Universidade de Coimbra/Fórum dos Estudantes da CPLP, 2005.

37 Le Monde Diplomatique, «Otelo, Vítor Alves e Vasco Lourenço – os Três do 25 de abril», Entrevista de Ana Sá Lopes e António Melo, disponibilizado eletronicamente a 23 de abril de 2007 em http://pt.mondediplo.com/spip.php?article12.

38 Idem.

39 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de abril da Universidade de Coimbra/Fórum dos Estudantes da CPLP, 2005.

40 Arquivo pessoal do coronel Jorge Sales Golias, «Movimento de Resistência das Forças Armadas», [Guiné], [1973].

41 Golias, Jorge Sales, «A Descolonização da Guiné-Bissau», Intervenção na Mesa Redonda levada a efeito pelo Centro de Documentação 25 de abril da Universidade de Coimbra/Fórum dos Estudantes da CPLP, 2005.

42 Arquivo Histórico Militar, Conjunto de documentação recolhida pelo coronel Alexandre de Sousa Pinto, Carta da Comissão do MOCAP ao general Spínola, Bissau, 28 de fevereiro de 1974.

43 Clemente, Manuel Duran, «Os Capitães de abril...da geração de sessenta à guerra colonial…da conspiração ao 25 de abril», Intervenção «Nos 30 anos do 25 de abril», Oeiras, 2004.

44 Afonso, Aniceto; Carlos de Matos Gomes, Guerra Colonial, Lisboa, Diário de Notícias, 2000, p. 198.

45 Afonso e Gomes, Guerra Colonial, p. 334.

46 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo PIDE-DGS, Pasta GU, fls. 30-33.

47 Autoria atribuída pela PIDE/DGS uma vez que a mensagem era anónima.

48 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo PIDE/DGS, Processo 7477-CI (2), fls. 12-14.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Rui Filipe de Brito Camacho Duarte, «O desenvolvimento do processo conspirativo militar na Guiné até ao 25 de Abril de 1974 »Ler História, 62 | 2012, 53-70.

Referência eletrónica

Rui Filipe de Brito Camacho Duarte, «O desenvolvimento do processo conspirativo militar na Guiné até ao 25 de Abril de 1974 »Ler História [Online], 62 | 2012, posto online no dia 14 abril 2015, consultado no dia 26 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/567; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.567

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Autor

Rui Filipe de Brito Camacho Duarte

ruibritocamacho@gmail.com
Mestre em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE-IUL. Dedica a sua investigação à história das relações internacionais e à história portuguesa contemporânea. Integra o grupo de investigação «Os militares na transição para a democracia em Portugal» do CEHC, ISCTE-IUL.

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