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Assistência e Previdência no mar português

A ação social das Casas dos Pescadores (1933-1968)
Assistance et prévoyance dans les mers portugaises. L’action des «Casas dos Pescadores» (1933-1968)
Assistance and welfare at the Portuguese sea. The social welfare action of the «Casas dos Pescadores» (1933-1968)
Álvaro Garrido
p. 7-29

Resumos

Apoiado numa ordem política autoritária e definindo o corporativismo como a ideologia oficial do Estado, o regime de Salazar abordou a «questão social». Apesar de modestos, são definidos benefícios sociais atribuídos no âmbito da chamada previdência corporativa. Alertando para as cautelas metodológicas que a abordagem da questão exige, este artigo analisa um particular organismo corporativo determinado para o mundo marítimo, definido na lei de bases da previdência corporativa como «instituições de previdência»: as Casas dos Pescadores.

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Introdução

1O conhecimento histórico das experiências corporativistas que diversos regimes autoritários e totalitários europeus instituíram na primeira metade do século XX coloca problemas de método e desafios de discurso.

  • 1 Para uma síntese crítica sobre a pluralidade de experiências históricas do corporativismo, entre ou (...)
  • 2 Sobre este período, veja-se a súmula recentemente organizada por Didier Musiedlak (dir.), Les Expér (...)

2Por se tratar de uma doutrina social com uma inegável pluralidade, expressa em historicidades diversas1, mas sobretudo de uma ideologia que no tempo histórico de entre as guerras ganhou evidência por se ter imbricado no sistema político dos fascismos2, o corporativismo é um facto social que recomenda especiais precauções analíticas. Desde logo, porque as fontes mais comuns para o estudo da ideia e da prática corporativas são, em rigor, meta-fontes – discurso de propaganda e doutrina, textos legislativos e toda uma memória documental das instituições corporativistas que, em regra, supõe racionalidade burocrática e eficácia dos organismos que a produziram.

  • 3 Cf. Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia, Lisboa, Imprensa de Ciências So (...)

3Ao historiador interessado em caminhar neste terreno movediço colocam-se, assim, desafios hermenêuticos redobrados. Desde logo, porque as instituições corporativas e a vida social que elas cooptaram ou animaram são, reconhecidamente, criações históricas de baixa autenticidade, marcadas por nítidas diferenças entre o discurso e a ação. Numa fecunda caracterização do sistema corporativo instituído pelo Estado Novo português, regime autoritário que se declarou corporativo e que vigorou entre 1933 e 1974, Philippe Schmitter admitiu que se trata de uma construção fraudulenta. Mas precisamente por isso, o autor norte-americano também advertiu que importa estudar a longa experiência corporativa portuguesa, sem esquecermos que se trata de um sistema multidimensional, por um lado, e de uma realidade histórica feita ao sabor da praxis política do regime, por outro3.

  • 4 A propósito dessa consciência de crise do capitalismo, muito anterior à grande depressão que deflag (...)

4Para justificar o acento historicista do sistema corporativo que o Estado Novo lentamente erigiu, a doutrina comum sublinhava que esse aparelho de organização social e económica não fora definido em abstrato. Pelo contrário, em Portugal como noutros estados-nação onde o Estado liberal dera lugar a Estados autoritários e totalitários, a «era corporativa» seria fruto de uma tendência inelutável de aperfeiçoamento do capitalismo, cuja crise institucional era uma evidência muito discutida nas décadas de vinte e de trinta4. No plano ideal, a «terceira via» corporativa tanto recusava o atomismo social como o estatismo absoluto. No caso português, instituir o corporativismo em pleno século das modernidades dissolventes e sob o espetro da revolução social comunista significava recuperar todo um património de experiências corporativas que o demoliberalismo fizera perder.

  • 5 Cf. António da Silva Leal, «Os Grupos Sociais e as Organizações na Constituição de 1976 – a Rotura (...)

5Fazendo uso de argumentos essencialistas e historicistas, inúmeras vulgatas de propaganda e a maioria dos textos doutrinários sobre a organização corporativa asseveram que o Estado Novo devolvia à Nação o seu carácter «orgânico». Essa «revolução corporativa», muitas vezes identificada com a «revolução nacional» que o derrube da I República teria exigido em 1926, consumar-se-ia na ação social de um conjunto de instituições corporativas cujo enraizamento na história lhes garantiria a autenticidade, ou seja, uma institucionalização natural e essencial da vida económica, das profissões e tradições associativas nacionais. Segundo esta utopia reacionária, a nação orgânica, anti-individualista e anti-contratualista, exigia que o Estado instituísse as sociabilidades naturais e históricas da nação. Na prática, a organização corporativa portuguesa ficou-se por um ordenamento parcial da vida económica, mas interveio de forma totalizante nas relações sociais, em especial do lado do trabalho5.

  • 6 Marcello Caetano, O Sistema Corporativo, Lisboa, Jornal do Comércio e das Colónias, 1938, p. 77.

6Invocando repetidamente a natureza «orgânica» do sistema corporativo de modo a justificar o perfil das instituições que já haviam sido criadas – incluindo os controversos organismos de coordenação económica, alegadamente pré-corporativos porque dariam lugar às Corporações, promessa legal que não se cumpriu –, em 1938 Marcello Caetano advertia que na organização corporativa era necessário evitar a tendência para as «soluções geométricas»6.

7Neste e noutros textos de doutrina deteta-se a opção de fundo do regime quanto ao enquadramento de certos meios sociais e profissionais, a exemplo da agricultura e da pesca, na anunciada «ordem social corporativa»: a recusa de qualquer solução de tipo sindical capaz de consentir, mesmo num Estado autoritário, a formação de aglomerados classistas em comunidades que, segundo a doutrina, eram dotadas de laços imanentes de cooperação e solidarismo. Qualidades naturais que conviria exaltar no sentido de reprimir identidades de classe e movimentos sociais hostis.

8Com que discursos e cautelas jurídicas e políticas o Estado Novo tratou de enquadrar os pescadores em instituições corporativas? Qual o figurino de enquadramento social das gentes do mar na «ordem corporativa»?

A organização corporativa do «trabalho nacional»

  • 7 Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo…, vol. II, pp. 631-654.

9Alguns estudos recentes, com destaque para os de Fátima Patriarca, têm vincado a ideia de que, além de um instrumento de dominação de classes e de imposição autoritária de uma colaboração orgânica entre atores sociais diversos, o Estado Novo português pôs em marcha algumas realizações sociais de inegável alcance7.

  • 8 Dois artigos permitem sintetizar a transição entre os dois modelos: Miriam Halpern Pereira, «As ori (...)

10Pese a assimetria do sistema corporativo de representação de interesses e a modéstia dos benefícios sociais atribuídos pela chamada previdência corporativa, o regime de Salazar abordou em profundidade a «questão social». Fê-lo apoiado numa ordem política autoritária que declarou a «terceira via» corporativa a ideologia oficial do Estado. Doutrina social que era apresentada como a alternativa do século, quer ao liberalismo individualista quer ao socialismo coletivista. Ao Estado Providência liberal que a I República ensaiara, sucedia um Estado corporativo e conservador, fortemente hierarquizado e burocrático8. Na prática, o corporativismo português mostrou ser um realismo social tutelado politicamente pelo governo e guiado pelo pragmatismo reacionário do seu chefe.

11A natureza corporativa do Estado e a mobilização da ideologia corporativista para impor à nação um sistema económico e social fortemente institucionalizado foram princípios acolhidos na Constituição de 1933. A adoção do corporativismo como doutrina oficiosa da «revolução nacional» teria propósitos políticos eminentemente instrumentais: reforçar o poder do Estado nas suas relações com os grupos sociais e interesses organizados; garantir uma paz social compulsiva, quer por meio da inibição da liberdade sindical do trabalho, quer através da institucionalização de uma convergência artificial entre o «capital» e o «trabalho».

  • 9 Sobre a ideologia económica do corporativismo, vide Carlos Bastien e José Luís Cardoso, «From homo (...)

12Do mesmo modo se compreende a inscrição, também ela constitucional, da ideia de «economia nacional corporativa», a economia dirigida ou o «capitalismo de organização» que o Estado deveria instituir no sentido de criar uma «economia nova»9. Veleidade teórica que, na realidade, significou o uso da doutrina económica corporativa para reorganizar alguns setores da economia em dificuldade, para deter a conflitualidade dos interesses e evitar polarizações classistas.

  • 10 Cf. Diário do Governo, Lei n.º 1884, de 16 de março de 1935.

13Em matéria de seguros sociais, a Constituição de 1933 enunciava muito vagamente as responsabilidades do Estado. Quase dois anos depois do plebiscito constitucional foi publicada a lei de bases da previdência corporativa. Diploma que embora explicitasse os vários regimes de seguro social da ordem corporativa, limitava-se a definir as futuras Casas dos Pescadores como «instituições de previdência». Nada se dizia, porém, quanto às demais atribuições desses singulares organismos corporativos. Com certeza porque a matéria era delicada e continuava por decidir10.

  • 11 P. Teotónio Pereira, Memórias. Postos em que servi e algumas recordações pessoais, vol. I, 2.ª ed., (...)
  • 12 Em registos divergentes na interpretação, vide Fernando Rosas, O Estado Novo nos anos Trinta. Eleme (...)

14Referindo-se ao problema da previdência, em jeito de justificação Teotónio Pereira diria mais tarde: «Num país como o nosso só havia um caminho: a organização parcelar e progressiva à medida que o económico fosse permitindo a consolidação do social»11. A «disciplina corporativa» – expressão muito comum nos textos legais, que significa uma intervenção estatal de sentido dirigista – dos setores económicos cuja reorganização e fomento protecionistas mais interessavam ao Estado constituíra a tarefa preliminar12.

  • 13 P. Teotónio Pereira, A Batalha do Futuro. Organização Corporativa, 2.ª ed., Lisboa, Livraria Clássi (...)

15Em lugar de uma «caixa burocrática» alimentada pelos dinheiros públicos e em detrimento do mutualismo livre que, a partir de 1933, foi fortemente vigiado e reprimido pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP), Pedro Teotónio Pereira anuncia a organização de uma «previdência corporativa», modelo que se não pode confundir com o de Estado-Providência que as democracias do segundo pós-guerra haviam de pôr em prática. Explicitando a lógica de seguro social do Estado Novo corporativo, Teotónio Pereira asseverou que o trabalhador passaria a «olhar a organização de previdência do seu agregado profissional como uma obra sua, a que tem ligados o seu sacrifício, a sua responsabilidade e a sua esperança»13.

  • 14 Vide Patriarca, A Questão Social no Salazarismo…., vol. I. Numa perspetiva de história comparada, v (...)

16Em setembro de 1933, o governo começou a traçar o regime jurídico da organização profissional e da previdência dos setores mais expressivos do «trabalho nacional». A agenda política desse processo consistia em impor a transição do sindicalismo livre para o sindicalismo corporativo14. Servido por bons juristas e atuários, o governo chefiado por Salazar submete o mundo do trabalho a organizações sindicais tuteladas pelo Estado, por um Estado que se reclamava novo, precisamente porque se definia corporativo.

A questão da pesca e dos pescadores: certezas e hesitações

17Isentos das características socioculturais da indústria e do comércio, o mundo rural e o mundo marítimo foram subtraídos às soluções sindicais. A agricultura e a pesca deram origem a organizações distintas dos restantes sindicatos nacionais que o Estado criou para enquadrar os trabalhadores do comércio e da indústria de forma a conter a sua proletarização.

18Quer as Casas do Povo quer as Casas dos Pescadores eram organismos mistos, instituições onde estava o «trabalho» mas também o «capital». Daí que os doutrinadores insistissem nas suas sugestões interclassistas e na veracidade do «abraço corporativo» que nelas se concretizaria. Este traço de corporativismo cristão era muitas vezes invocado para declarar que ambas as instituições corporativas promoviam a institucionalização de solidariedades vivas e que, por isso, ambas acrescentavam autenticidade à representação orgânica da Nação.

  • 15 P. Teotónio Pereira, Memórias, p. 312.

19Nas suas Memórias, Pedro Teotónio Pereira recorda que, desde que Salazar o incumbira de dirigir as Corporações, em 1933, fizera planos «de criar para os pescadores uma norma de organização sindical que lhes permitisse realizar inteiramente os seus fins económicos e sociais através dum tipo de organismo para eles criado»15. Na perspetiva do Estado Novo em construção, a «questão das pescas» implicava uma organização corporativa vertical, ou inteiramente subordinada à vontade estatal, na medida em que o consumo de pescado era, depois do trigo, o principal problema que se punha à gestão política das subsistências.

20Sensível à questão das pescas e querendo que as campanhas de fomento da produção nacional de recursos do mar fossem antecedidas da resolução preventiva da «questão do trabalho», a elite governamental do Estado Novo em especial Pedro Teotónio Pereira, devido às suas responsabilidades na construção do edifício corporativo e ao conhecimento que tinha das questões marítimas , atribui aos pescadores um lugar específico no plano estatal de organização dos chamados elementos primários da organização corporativa, o «capital» e o «trabalho». No entanto, o Estatuto do Trabalho Nacional, documento magno equivalente à Carta del Lavoro do fascismo italiano, nada definia relativamente ao enquadramento social dos pescadores.

  • 16 Cf. id., ibidem, p. 169. Veja-se, também, Dez Anos de Política Social. Casas dos Pescadores, Lisboa (...)
  • 17 Processo de transição analisado na seguinte dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Sécu (...)

21Embora tenha ponderando cautelosamente a questão dos pescadores, o Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social não solicitou qualquer estudo a etnógrafos de serviço no sentido de legitimar a opção que andava a definir. Qual antropólogo andarilho, em 1933 o próprio Teotónio Pereira terá percorrido a costa algarvia para verificar o que sobrava dos velhos compromissos marítimos. Como relata o antigo responsável das Corporações e Previdência, nesse afã de resolver a questão da pesca e dos pescadores, ele próprio bateu as praias do litoral, compondo uma espécie de inquérito naturalista do qual, obviamente, não há registo16. Deambulação que supõe uma observação atenta do património mutualista que persistia em certas comunidades piscatórias. Dinâmicas locais que o Estado acabaria por cooptar. Assim sucedeu com o Compromissso Marítimo de Olhão, no Algarve, extinto em 1937, quando por força de lei deu lugar à Casa dos Pescadores local17.

22Real ou imaginário, o inquérito a que se refere Teotónio Pereira exprime a intenção de legitimar a fórmula corporativa de enquadramento das populações marítimas. Confirma também que o Governo verificou, primeiro, se seria prudente autorizar a criação de sindicatos corporativos ou se, de outro modo, seria preferível optar por instituições semelhantes às Casas do Povo, organismos de previdência rural que haviam sido criados no primeiro fôlego da organização corporativa, em setembro de 1933.

23Sinal das muitas indecisões de um processo político que convocou não só a retórica jurídica como a etnológica e que se deteve no tempo devido a hesitações de forma e ao sobressalto criado por movimentos sociais diversos, só quatro anos depois dos primeiros estudos seria autorizada a instituição das Casas dos Pescadores.

  • 18 Vide A. Garrido, «Os bacalhoeiros em revolta: a greve de 1937», Análise Social, vol. XXXVII, 2003, (...)

24Por pouco tempo, e apenas numas poucas localidades, Salazar admitiu a criação de sindicatos de pescadores. Entre 1933 e 1934 foram criados três: um em Setúbal (de âmbito distrital, com sede provisória no Seixal), outro na Nazaré e o terceiro em Buarcos (Figueira da Foz). Todos seriam extintos em fevereiro de 1938, com suspeitas de participação insidiosa na greve dos bacalhoeiros do ano anterior. As ações de protesto que se registaram em diversos meios piscatórios entre 1933 a 1937, em especial as greves dos sardinheiros de 1934 e 1935 e a «greve da matrícula» dos pescadores de bacalhau18, apressaram o governo a declinar de vez qualquer solução de tipo sindical para os pescadores.

25Mais do que noutros domínios da política social que o Estado Novo empreendeu, a propaganda declarava que corporativizar as pescas significava promover o reencontro da nação com uma singular tradição corporativa, uma herança de fundas raízes nas populações marítimas portuguesas. Ao reabilitar essa mitificada tradição, o Estado reafirmava a sua rutura com a treva liberal, regime de fundo racionalista que interpretando mal o ethos orgânico da nação, pusera termo às corporações, tal como haviam feito outros Estados liberais. A exaltação da «era corporativa» instituída pelo Estado Novo tinha, também, o propósito explícito de condenar o modelo estatista e socializante dos seguros sociais obrigatórios que a República implantara em 1919.

A construção doutrinária de um modelo de enquadramento corporativo

  • 19 Álvaro Garrido, Henrique Tenreiro – Uma Biografia Política, Lisboa, Temas & Debates/Círculo de Leit (...)

26Na propaganda da organização corporativa, em especial na que era emitida pela organização das pescas – que teve um domínio próprio, muito marcado pela personalidade de um chefe-oligarca, o oficial de Marinha Henrique Tenreiro19 –, os corporativistas preferiam enunciar elementos de recusa quanto ao modelo de enquadramento social a impor aos pescadores a definir com clareza o perfil das instituições a criar.

  • 20 Veja-se, por exemplo, o Jornal do Pescador, revista ilustrada publicada pela primeira vez em 1939, (...)
  • 21 P. Teotónio Pereira, A Batalha do Futuro…, p. 139.

27Dessa longa série de textos de propaganda, amiúde ilustrados por imagens estereotipadas de pescadores rematadas por apelos a uma ética nacionalista do trabalho20, releva a ideia de que as relações sociais, no campo como no mar, formam «meios sociais». Deste modo, declara-se que a agricultura e a pesca organizam-se em comunidades de homens de diferentes classes e profissões que, em função da sua vida coletiva, das suas tradições e património espiritual, deveriam ser objeto de um modelo de enquadramento cooperativo e jamais inseridas em organismos de base profissional ou classista, mesmo que fossem sindicatos nacionais ou corporativos. Numa expressiva metáfora, Pedro Teotónio Pereira chamou às Casas do Povo «uma família de famílias»21.

28Relativamente à pesca e às profissões marítimas, argumenta-se repetidamente que os impulsos de solidariedade do mundo marítimo e a frequente indistinção entre os proprietários dos meios de produção e os assalariados – mais comum nas pescas artesanais –, justificavam um enquadramento institucional peculiar. Não por acaso, as Casas dos Pescadores viriam a ter o estatuto de organismos de cooperação social. Optando por esse modelo, segundo a retórica doutrinária o Estado evitava separar o que a tradição unira. Na prática, escusou-se a ceder à lógica do sindicalismo de classe.

  • 22 Do ponto de vista do discurso ideológico, interpretámos as semelhanças e diferenças entre «maritimi (...)

29Embora o discurso oficioso usasse mais amiúde a expressão «populações marítimas» para designar os pescadores – designação que teria a vantagem de aglutinar os vários perfis profissionais e as múltiplas atividades que caracterizavam as fainas marítimas –, na doutrina corporativa portuguesa as pescas colhem uma abordagem autónoma em relação a outros domínios da vida social e económica, mesmo relativamente ao mundo rural22. A pesca e os pescadores, embora pouco invocados nos textos doutrinários, são objeto de uma visão idílica, feita de retratos lendários da «gente do mar» e de uma épica desprovida de drama.

  • 23 Mais precisamente, 39 414 indivíduos (os números referem-se apenas a «empregos diretos» nas pescas (...)

30Nas vésperas do Estado Novo, a pesca era a atividade económica mais expressiva do «meio social marítimo»: em 1930 ocupava cerca de 40 000 pescadores, somando o continente e as ilhas adjacentes23. A pesca significava apenas uma ínfima percentagem da população ativa do país. Dela dependiam, porém, populações socialmente expressivas, dado que a maioria dos pescadores vivia em aglomerados pequenos e muito concentrados, embora demograficamente instáveis devido a mobilidades sazonais.

31Segundo os artífices da organização corporativa, os pescadores eram «gente arisca» e de complicado enquadramento legal; populações com alguma tradição de ação coletiva, dada a contingência do trabalho no mar e as suas miseráveis condições de vida. Visão que, embora conveniente para legitimar um modelo paternalista de enquadramento social, não era totalmente fantasiosa.

  • 24 São diversos os estudos históricos e antropológicos sobre o grupo socioprofissional dos pescadores. (...)
  • 25 Os Pescadores, 3.ª ed., Lisboa, Ulisseia, 1995, p. 92. A primeira edição é de 1923.

32No mundo da pesca, a dependência dos homens face aos recursos marinhos sedimenta relações sociais que oscilam entre a competição e a cooperação. Os pescadores compõem, em regra, populações de delicado enquadramento normativo e de difícil adaptação a componentes institucionais da vida social (regulamentos, normas jurídicas e interdições). Ontem como hoje, trata-se de comunidades que assentam o seu sistema de organização social numa interação constante entre homogeneidade cultural — conferida pela relação com o mar, daí as expressões genéricas de «marítimos», «homens do mar», «trabalhadores do mar», «gente do mar» — e a diversidade social que decorre do seu modo de ocupação e das próprias hierarquias profissionais que prevalecem a bordo e se reproduzem em terra24. É conhecida a precariedade da vida material dos pescadores. O subemprego crónico e o sobressalto do trabalho quotidiano, a variabilidade de rendimento, a omnipresença do perigo e a expectativa de perdas humanas e materiais, tornam o pescador pouco previdente. «A pesca é como um jogo, uma questão de sorte, um dia fortuna, noutro a miséria»25, escreveu Raul Brandão no seu impressivo fresco das comunidades de pescadores.

  • 26 25 Anos de Assistência à Gente do Mar…, p. 3.

33O Estado Novo em formação deparou-se com tudo isto e tudo parece ter considerado. As hesitações quanto ao modelo de enquadramento social dos pescadores não denotam desconhecimento, mas uma observação atenta ao pormenor. Ponderação política que procurou tomar o pulso à ação dos três sindicatos que haviam sido criados, receando institucionalizar por excesso ou por defeito. Procurando prevenir a agitação social, os responsáveis do INTP diriam que a preocupação do governo fora «combinar com prudência o mecanismo de integração (…) de uma comunidade de homens teimosamente alheia ou avessa aos mais rudimentares princípios e benefícios da organização»26.

34Cartelizada a indústria de conservas de peixe ainda durante a Ditadura Militar (1926-1933), lançadas as bases da «campanha do bacalhau» em 1934-35 e do regresso a África em barcos de pesca de arrasto a partir de 1936, nas pescas a primeira preocupação do governo foi organizar o «trabalho»; contê-lo dentro de instituições tuteladas pelo Estado de modo a que a organização patronal, que veio a seguir, se fizesse sem comprometer as políticas de fomento da produção interna de pescado.

  • 27 Analisámos a institucionalização corporativa e estatal da «campanha do bacalhau» em O Estado Novo e (...)

35Pôr em marcha a «campanha do bacalhau», programa de autarcia económica semelhante à «campanha do trigo», impunha deter a incerteza do recrutamento e a diferenciação salarial entre navios – velhos fatores de perturbação da pesca e do próprio rendimento das empresas. O fomento da pesca portuguesa nos mares da Terra Nova e da Gronelândia implicou instituir mecanismos compensatórios do sistema de exploração intensiva do trabalho: a assistência material e religiosa e alguma previdência, amparos para os quais as Casas dos Pescadores concorreram ativamente, não fosse o princípio da solidariedade entre os organismos corporativos uma prática imposta a toda a organização das pescas27.

36No processo de corporativização do «trabalho nacional» que o Estado Novo empreendeu, as Casas dos Pescadores foram das primeiras instituições corporativas ponderadas pelo governo e as últimas a serem criadas. A unanimidade dos princípios gerais de organização das populações marítimas contrasta com as hesitações do Estado quando tratou de definir em lei o figurino dos organismos de enquadramento social dos pescadores e suas famílias – a «gente do mar», como lhes chamavam os propagandistas arvorados em etnógrafos.

37Significativamente, os pescadores não disporiam de qualquer autonomia representativa, nem em sindicatos próprios nem nas Casas dos Pescadores que o Estado lhes destinou a título de pertença obrigatória. Tal como sucedeu com as Casas do Povo, o desequilíbrio entre o capital e o trabalho foi estrutural e ostensivo. As Casas dos Pescadores não dispunham de Assembleia-Geral nem tão-pouco de direções eleitas. Eram organismos absolutamente anti-associativos e antidemocráticos. Na maioria dos casos, as Casas eram também pouco efetivas, na medida em que os seus meios financeiros se confirmaram escassos. Em muitas comunidades de pescadores, estas pequenas instituições corporativas só foram vividas enquanto locais de recreio e lugares de assistência, em especial as que tinham posto médico.

38Ainda assim, devido à dinâmica atribuída às Casas dos Pescadores, a organização corporativa das pescas foi o domínio infra-estatal que mais projetou a espessura social do Estado Novo. Apesar da discutível autenticidade da decantada obra social das pescas, conduzida por Henrique Tenreiro, esse edifício de propaganda e realidade exprimiu-se num vistoso programa de assistência à «gente do mar». Obra social que o regime sempre apresentou, em Portugal e no estrangeiro, como emblema de um desacreditado sistema corporativo.

39Como se explica este paradoxo? E como se compreende que as Casas dos Pescadores tenham funcionado com severas limitações de autonomia associativa e, ainda assim, tenham concretizado uma obra de assistência e previdência muito saliente no sistema corporativo português?

As Casas dos Pescadores: definição jurídica e atribuições institucionais

40O debate e o discurso legislativo gerados aquando da aprovação da lei orgânica das Casas dos Pescadores, em 1937, contêm vários indícios da solução instrumental que o Estado Novo acabou por encontrar.

  • 28 Diário das Sessões, suplemento ao n.º 100, 11 de janeiro de 1937, p. 152-D.

41Por finais de 1936 Salazar remetera à Assembleia Nacional a proposta de lei sobre o regime jurídico das futuras Casas dos Pescadores. O conteúdo pouco se afastava do texto final que seria vertido na Lei n.º 1953, de 11 de março do ano seguinte. A proposta de lei começava por sublinhar o perfil e a vocação originais das Casas dos Pescadores: organismos de previdência destinados a garantir o seguro corporativo contra acidentes de trabalho, bem como a assistência material, moral e religiosa. No plano da assistência, a formulação era menos concreta e ainda mais doutrinária: «As Casas dos Pescadores têm por dever conservar e acarinhar todos os usos e tradições locais, especialmente os de natureza espiritual, que estejam ligados à formação dos sentimentos e virtudes da gente do mar»28.

42De entre as largas dezenas de diplomas relativos à organização corporativa das pescas, apenas o das Casas dos Pescadores foi sujeito a parecer da Câmara Corporativa, facto que denota as hesitações do processo legislativo e confirma a importância que o governo atribuiu à questão dos pescadores.

  • 29 Domingos Fezas Vital (1888-1953), professor de Direito das universidades de Coimbra e Lisboa, colab (...)
  • 30 Decreto n.º 2077, de 24 de novembro de 1915. A Caixa foi extinta em janeiro de 1938. Os seus ativos (...)

43Pleno de ideologia e de expressões de crença no corporativismo, o Parecer da Câmara Corporativa, cujo relator principal foi Domingos Fezas Vital29, começa por vincar a pretensa superioridade da «nova ordem» para, de seguida, denunciar a fraqueza das instituições de seguro social criadas pela «República liberal». Em especial, o Parecer verbera a Caixa de Previdência e Crédito Marítimo (Caixa de Protecção aos Pescadores Inválidos) que fora constituída em novembro de 1915, por iniciativa do governo presidido por José de Castro30.

  • 31 O debate decorreu nas sessões de 21, 22 e 23 de janeiro de 1937. Cf. para os respetivos dias, Diári (...)

44Quer o Parecer da Câmara Corporativa quer o debate da proposta de lei que teve lugar na Assembleia Nacional31 detêm-se a justificar as limitações de autonomia associativa das Casas dos Pescadores. A argumentação centra-se no ponto mais delicado do processo legislativo: a constituição e funcionamento da Direção dos pequenos organismos corporativos. Retomando a retórica etnológica e procurando exprimir uma leitura sensível, quase essencialista, da índole do «mundo marítimo», os relatores procuram justificar as razões pelas quais o projeto de lei declinava quaisquer possibilidades de serem os sócios a eleger a Direção das Casas dos Pescadores, quando tal se consentia nas Casas do Povo e nos sindicatos nacionais.

  • 32 Diário das Sessões, suplemento ao n.º 100, 11 de janeiro de 1937, p. 152-D.
  • 33 Vide Garrido, Henrique Tenreiro…, pp. 133-251.

45Parecem claras as finalidades da opção legislativa do Estado. Insistindo numa argumentação culturalista, dizia o Parecer da Câmara Corporativa que, «(…) para quem conhece o modo de vida dos nossos pescadores, essa autoridade paternal — sem dúvida mais esclarecida do que os humildes pescadores, é a solução ideal para fazer das Casas dos Pescadores autênticos organismos corporativos»32. Referia-se o relator à decisão de confiar a presidência da Direção ao capitão do porto, ou seja, ao sistema de autoridade marítima tutelado pela Marinha. Alegava-se, também, que a escolha dos restantes membros da Direção das Casas deveria pertencer ao presidente de cada organismo e recomendava-se que, de ora em diante, o Governo vigiasse de forma cuidada a nomeação dos capitães dos portos e delegados marítimos. Afinal, não se tratava apenas de uma autoridade marítima, mas de um agente da política social do Estado Novo. Trabalho político que, fazendo uso de poderes eminentemente fácticos, Henrique Tenreiro chamou a si, cooptando a maioria das capitanias e delegações marítimas para a sua esfera de influência e comprometendo a Marinha com a organização corporativa das pescas33.

  • 34 Cf. Diário das Sessões, 21 de janeiro de 1937, p. 243; 22 de janeiro de 1937, pp. 291-292.

46No debate da proposta de lei, alguns deputados eleitos por círculos eleitorais onde havia portos de pesca importantes foram os mais entusiastas na defesa das Casas dos Pescadores e os mais prolixos em justificações sobre os limites a impor à liberdade associativa da «gente do mar». Destacaram-se as intervenções de Álvaro de Freitas Morna, deputado pela Figueira da Foz, e de Querubim Guimarães, eleito por Aveiro34.

47Considerando todas as advertências sobre a índole conflitual do pescador, o Estado chama a si o direito de impor às Casas dos Pescadores um presidente de Direção nomeado pelo Governo, uma autoridade estranha ao «capital» e ao «trabalho», figura tão paternal que não precisasse de ser repressiva. Ao impedir que as Casas tenham uma assembleia-geral, o legislador limita quaisquer princípios de autogestão, institucionaliza a colaboração ordeira dos pescadores com os patrões, impõe a cooperação entre uns e outros no financiamento das obras de assistência e previdência. Processos típicos de um corporativismo de Estado.

48Entre os chamados organismos corporativos do trabalho, as Casas dos Pescadores foram os únicos cujas direções não podiam ser eleitas pela base. Num procedimento hábil, o Estado asseverava verter o costume em lei e colocava as autoridades marítimas locais ao serviço do sistema corporativo de enquadramento social dos pescadores. A solução seria eficaz e agradaria à Marinha que, embora maioritariamente reviralhista, tinha nas pescas um setor importante do sistema de autoridade marítima, que significava carreiras e lugares.

49Conforme a lei orgânica das Casas dos Pescadores de 11 de março de 1937, os sindicatos e associações de classe que havia, incluindo os velhos compromissos marítimos, deveriam organizar-se em Casas dos Pescadores no prazo de noventa dias após a publicação do diploma regulamentar. Assim se punha termo às imprudentes experiências sindicais de 1934 e assim se demoliam os últimos vestígios de associativismo liberal. Após diversos avanços e recuos e uma longa ponderação legislativa, a ordem corporativa foi imposta às «gentes do mar».

  • 35 Diário do Governo, I série, Decreto n.º 27978, de 20 de agosto de 1937.

50Segundo o decreto regulamentar de agosto de 1937, as Casas dos Pescadores formar-se-iam por iniciativa dos interessados em todos os centros piscatórios do litoral português, ou seja, nos aglomerados populacionais onde predominassem as profissões ligadas à pesca35. Retórica de sugestões associativas que a prática nunca confirmou.

51A lei orgânica destes pequenos organismos corporativos distinguia duas categorias de associados: os sócios efetivos e os sócios protetores (ou contribuintes). Os primeiros incluíam pescadores e auxiliares, isto é, todos quantos viviam das lides do mar desde que tivessem cédula de inscrição marítima. Excetuavam-se os capitães e outros oficiais náuticos (pilotos, imediatos), eletricistas e maquinistas, que tiveram sindicatos próprios, de âmbito nacional. Os sócios protetores seriam todos os interessados nas atividades ligadas à pesca, voluntários ou obrigatórios. Nesta última sub-categoria contavam-se as «empresas de pesca e os armadores e proprietários de embarcações de pesca em relação ao local de armamento» ou, dizendo de outro modo, o «capital».

  • 36 Em 1938 estavam a funcionar 13 Casas dos Pescadores, cerca de metade do número que a rede viria a a (...)

52A 23 de fevereiro de 1938 foram concedidos alvarás autorizando a criação e funcionamento das Casas dos Pescadores de Buarcos (capitania do porto da Figueira da Foz), de Aveiro e da Nazaré. Como sabemos, fora precisamente em Buarcos e na Nazaré que o governo consentira a criação de sindicatos de pescadores, que agora extinguia para pôr em seu lugar organismos corporativos de cooperação social. Ainda em 1938, entraram em funcionamento mais dez Casas e as respetivas delegações, cobrindo os centros piscatórios de maior densidade populacional. Notoriamente, o governo deu prioridade às localidades chegadas aos principais portos sardinheiros e bacalhoeiros, as pescas de tipo industrial que contavam maior número de ativos e cujas relações sociais mais importaria submeter à ordem corporativa36.

53Conduzida pela respetiva Junta Central, a implantação da rede de Casas dos Pescadores depressa atingiu as principais localidades costeiras do continente e os centros de pesca das ilhas adjacentes. Em 1946, já funcionavam 24 Casas, além das secções do Seixal, Caparica e Ericeira. Em 1953, a rede estava concluída: compunham-na 28 instituições, distribuídas pelo continente e pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Nenhum pescador ficara por integrar.

  • 37 Para o caso espanhol, vide Jesús Giráldez Rivero, Crecimiento y transformación del setor pesquero g (...)

54Pese o seu enraizamento num meio social singular – de notar que os estatutos das Casas eram adaptados a cada centro de pesca –, no entender de Marcello Caetano as Casas dos Pescadores assumiam um carácter vincadamente profissional que as distinguia das suas congéneres do mundo rural. Sendo estas de natureza territorial, estavam por isso obrigadas a colaborar nos «progressos locais» e a funcionar como pequenas caixas de crédito. O mesmo não sucedia com as Casas dos Pescadores. Ao contrário do que acontecia noutros países, nos quais as confrarias de pescadores e outras instituições associativas de crédito marítimo tiveram um papel importante na renovação dos fatores de produção da pesca37, em Portugal essas instituições sempre foram poucas e nem sempre assumiram funções de crédito.

  • 38 Sobre estas questões, vide A. Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau…, pp. 170-196; Id., « (...)

55Com o advento da organização corporativa imposta pelo Estado Novo, além do financiamento público da marinha mercante, o crédito marítimo foi dirigido para o fomento das pescas industriais, que era atribuído diretamente pelos respetivos grémios, e indiretamente pelas mútuas de seguros38. Destituída da pouca tradição associativa que tinha, a pequena pesca ficou, assim, muito dependente do assistencialismo da Junta Central das Casas dos Pescadores e subordinada ao Estado, mesmo no âmbito das próprias Casas.

56Ao imputar às Casas dos Pescadores fins de representação profissional semelhantes aos que atribuíra às Casas do Povo, o Estado procura fazer delas parceiros dóceis da relação salarial que pretendia dirigir, no sentido de livrar os armadores de incertezas no recrutamento de mão de obra e conter os custos do fator trabalho. Representando os seus sócios efetivos, as Casas dos Pescadores podiam celebrar contratos ou acordos coletivos de trabalho. As condições eram analisadas com minúcia pela Junta Central e pelo INTP e, de seguida, propostas aos grémios segundo processos de concertação confinados à oligarquia corporativa. Mutilada a autonomia social dos pescadores, o Estado negociava consigo próprio.

57No domínio da ação educativa pertencia às Casas dos Pescadores pro-
mover a criação de escolas de pesca e de postos de ensino (rudimentar, elementar e profissional). Esses estabelecimentos deveriam proporcionar aos rapazes e adultos o ensino elementar, a primeira instrução profissional e o aperfeiçoamento da arte. Rudimentos de instrução que seriam reforçados pelas Casas de Trabalhos Manuais e de Ensino Doméstico destinadas às filhas dos pescadores.

58Em matéria de previdência e de assistência, a lei previa que as Casas dos Pescadores cobrissem diversas modalidades: a assistência médica, a atribuição de subsídios por nascimento de filhos, por doença, invalidez e velhice. Antevia, também, a atribuição de subsídios ou pensões por morte às famílias, caso os recursos financeiros dos organismos o permitissem. O auxílio material ou a concessão de subsídios às famílias em «épocas de crise no trabalho ou invernia», também não escapou ao legislador.

59O facto de as Casas serem, por definição e estatuto, organismos de previdência, explica por que o Estado decidiu impor a inscrição obrigatória de pescadores e armadores. Só o agrupamento massivo e compulsivo de trabalhadores «imprevidentes» mas sujeitos aos mesmos riscos – evidência que permitiu tratar a questão segundo a lógica matemática do seguro, que Pedro Teotónio Pereira conhecia bem como atuário e por negócio de família – tornava possível realizar umas poucas modalidades de previdência corporativa. A lógica de funcionamento destes organismos assemelhou-se, por isso, à das mútuas corporativas de seguros e replicou o sistema de «mutualismo institucionalizado» que dominou toda a organização corporativa das pescas.

O papel da Junta Central das Casas dos Pescadores: previdência corporativa ou assistencialismo de Estado?

60A fim de garantir a coordenação e fiscalização das Casas dos Pescadores e de as prover de meios financeiros, o Estado Novo optara por federá-las. Com esse propósito, a legislação de 1937 criara a Junta Central das Casas dos Pescadores, alojando-a bem perto do poder central – adstrita ao Subsecretariado das Corporações e Previdência Social. Como já notámos, a Junta foi o vértice de toda a obra social das pescas: pertencia-lhe administrar o fundo comum das Casas dos Pescadores, coordenar e fiscalizar o funcionamento das Casas e promover diversas realizações de natureza social.

61Entre outras obras sociais, cabia à Junta Central das Casas dos Pescadores a assistência aos ativos das pescas não agremiadas; a cobertura de riscos profissionais através de regimes especiais de previdência capazes de garantir pequenas modalidades de seguro social; a construção de casas económicas para pescadores, escolas de pesca, colónias de férias, postos médicos e de puericultura; a coordenação de um serviço especial de assistência aos pescadores de bacalhau nos mares da Terra Nova e da Gronelândia, que teria na construção de um novo navio-hospital, o Gil Eannes, a sua principal realização.

62Deste modo, as Casas dos Pescadores protagonizaram um sistema de previdência assente num regime contributivo muito dependente da iniciativa política da respetiva Junta Central. Para impedir que a contribuição dos beneficiários se tornasse pesada e difícil de impor, num procedimento menos corporativo do que seria de supor o Estado deixou a si próprio boa parte do financiamento do sistema.

63Através da Junta Central seriam concretizados alguns dos empreendimentos mais difíceis e dispendiosos que a lei atribuíra às Casas dos Pescadores sem que estas o pudessem fazer nos limites apertados das receitas próprias. Tudo o que interessava ao Governo concretizar em matéria de assistência e previdência e não podia sê-lo por via corporativa – por iniciativa e responsabilidade financeira dos próprios interessados, como garantia a doutrina –, pertenceu à iniciativa direta do Estado, por meio da Junta Central das Casas dos Pescadores. Por imposição superior, desde 1942 a Mútua dos Pescadores, a mais pequena das mútuas criadas no âmbito da organização das pescas, colaborava em tudo isto, explorando os seguros de acidentes de trabalho e de acidentes pessoais. Assim se conseguia subtrair às Casas dos Pescadores a cobertura de certos encargos de previdência que, embora implicassem formas elementares de seguro social, aquelas não podiam suportar.

64Na realidade possível de interpretar através dos registos produzidos pela própria organização corporativa, a ação institucional das Casas dos Pescadores evidencia que as fronteiras entre a assistência e a previdência eram pouco nítidas. A própria lei não as distinguia com clareza e a prática muito menos. Era o caso da proteção na doença, cujos subsídios pecuniários a lei integrara na previdência dos organismos, embora a prática tenha demonstrado que essa forma de seguro social tinha apenas um carácter assistencial.

65As receitas das Casas dos Pescadores previstas na legislação que as criou e regulamentou eram de dois tipos:

  1. O fundo comum, gerido pela Junta Central, composto por contribuições fixas do Ministério da Marinha, por donativos e taxas cobradas pelos grémios das pescas sobre a produção e transação do pescado que, na qualidade de receitas consignadas, revertiam para os fundos de previdência dos organismos patronais (grémios);

  2. O fundo privativo das Casas, constituído pelo produto das quotas pagas pelos sócios efetivos e protetores, pelo produto das caldeiradas, quinhões ou partes, consoante os usos locais e, também, por uma dotação inicial do Estado de vinte contos por cada organismo que se constituísse.

66No seu conjunto, o movimento contabilístico do seguro social assumido pelas Casas dos Pescadores evidencia uma marcada manipulação política da receita e da despesa que, muitas vezes, surge consignada a «fins patrióticos».

  • 39 Cf. Junta Central das Casas dos Pescadores – Relatórios (1938-1967). Os exercícios da segunda metad (...)

67Os relatórios da Junta Central das Casas dos Pescadores demonstram que o fundo comum foi bem mais decisivo no financiamento da ação das Casas do que os modestos fundos privativos39. Anos houve em que os donativos dos grémios da pesca, das mútuas corporativas e da própria Comissão Reguladora do Comércio de Bacalhau – um poderoso organismo de coordenação económica situado fora da organização corporativa – a reverter para o fundo comum eram verdadeiramente generosos, somando mais de um milhar de contos. Ao sabor desta gestão política das receitas previstas em lei que, usando de maior ou menor pressão, Henrique Tenreiro obtinha do orçamento do Ministério da Marinha ou impunha que se transferissem de uns organismos para outros, parte das despesas de assistência e de previdência atribuídas às Casas dos Pescadores a título individual foram assumidas pela Junta Central. Em especial de 1950 em diante. Os registos contabilísticos da Junta, embora sombrios dado que as rubricas surgem inscritas de forma muito agregada, permitem uma periodização geral das dinâmicas de assistência e previdência das Casas dos Pescadores.

  1. De 1937 ao termo da Guerra – em 1946 Tenreiro ascende a presidente da Junta Central das Casas dos Pescadores e o Estado atribui ao organismo a possibilidade de contrair crédito para incrementar a previdência da «gente do mar» –, os benefícios de previdência concedidos pelas Casas dos Pescadores são praticamente nulos. Durante este período atribulado, é notório que o Estado preferiu exprimir a dimensão social do sistema através de uma ação assistencial imediata a avançar para esquemas de previdência mais dispendiosos e, por certo, não tão eficazes do ponto de vista do enquadramento social das populações marítimas. Não por acaso, poucos anos depois da inauguração das primeiras Casas, a obra de assistência já evidenciava resultados tangíveis: em 1944, 81% das Casas dos Pescadores já tinham posto de socorros, 52% contavam com postos de puericultura e todas estavam providas de médico e enfermeiro. As infraestruturas de ação educativa também se desenvolveram rapidamente porque o Estado as considerou prioritárias.

  2. De 1946 a 1950, data em que o Governo revê o Estatuto das Casas dos Pescadores e concentra na Junta Central deveres de assistência e previdência, notam-se algumas mudanças. Mercê do voluntarismo político do comandante Tenreiro, da relação privilegiada que mantinha com o ministro da Marinha, Américo Tomás, e do aumento de receitas, a assistência às «populações marítimas» atinge o apogeu, quer em concreto, quer na propaganda que dela é feita além-fronteiras. A assistência médica e os serviços de ação educativa das Casas dos Pescadores conhecem um notável desenvolvimento. Além dos postos médicos e de puericultura, multiplicam-se as creches, as maternidades e lactários, as «escolas de mães» e os asilos para velhos. A organização corporativa constrói lares para pescadores idosos e farmácias privativas em diversos centros de pesca. Beneficiando do crédito público concedido pela Caixa Geral de Depósitos à Junta Central, em 1952 os bairros de pescadores são 25, num total de 1 370 moradias. Permanecem modestos, porém, os benefícios de previdência atribuídos à «gente do mar». Porque constituíam mais de dois terços do total de ativos do setor das pescas, os pescadores de sardinha continuaram excluídos de quaisquer benefícios de previdência até 1963. Embora o número de pescadores matriculados na pesca da sardinha implicasse encargos significativos de previdência, nessa altura o Estado atribui-lhes as primeiras reformas de velhice e aumenta os abonos. Medidas que decorrem da reforma da previdência corporativa definida em 1962 e que não são alheias às dificuldades de recrutamento de mão de obra que então se registam, devido aos apelos da emigração.

    • 40 Diário do Governo, I série, Decreto-Lei n.º 37 750 (Art.º 2.º).
    • 41 Carlos Affonso de Carvalho, «Previdência Social na Pesca», Separata do Boletim da Pesca, n.º 30, ma (...)

    c) Entre 1950 e 1968, é possível identificar uma terceira fase na evolução dos esquemas de seguro social. Um diploma de 4 de fevereiro de 1950 incumbe a Junta Central de organizar e dirigir «os serviços de abono de família e de pensões de reforma dos sócios efetivos das Casas dos Pescadores»40. A opção do governo de exaltar as Casas dos Pescadores como organismos de previdência merece comentários ásperos, mas realistas, de um destacado dirigente da Junta Central: «Sabe-se, todavia, que essa ação de previdência (…) é um mito. Não é a previdência mas sim a assistência o grande campo de ação daquelas instituições»41. Reforçava-se a ambiguidade entre aquilo que pertencia às Casas dos Pescadores, de per si, ou à Junta Central. Afinal, um simples reflexo de toda a construção da previdência e organização corporativas, com o Estado a tomar o lugar dos organismos sempre que a importância política e social dos setores económicos o recomendava.

68Como se observa no gráfico I, as próprias estatísticas da organização corporativa publicadas pelo INE refletem as ambiguidades da ação social das Casas dos Pescadores. Sendo difícil distinguir as despesas de assistência das de previdência, tanto mais que certas modalidades eram híbridas, optámos por compará-las sem contabilizar os gastos assistenciais exclusivamente suportados pela Junta Central, dado que a fonte não permite desagregar esses números. O que significa que os valores das despesas de assistência estarão substimados, ao passo que os gastos de previdência oferecem maior rigor.

Gráfico I: Evolução comparada das despesas de assistência e previdência das Casas dos Pescadores (1938-1967)

Gráfico I: Evolução comparada das despesas de assistência e previdência das Casas dos Pescadores (1938-1967)

Obs: Ambas as rubricas de despesa incluem gastos de administração.
As despesas de assistência integram os subsídios na doença, por nascimento de filhos, morte, perda de barcos e apetrechos, assistência médica e “extraordinária” e outras modalidades.
As despesas de previdência englobam as pensões de reforma e os abonos de família.

Fonte: Estatísticas da Organização Corporativa (e Previdência), INE, 1938-1967.

69Confirma-se que os benefícios estritamente previdenciais tardaram a aparecer e que nunca se traduziram numa ampla cobertura. Apenas de 1950 em diante é possível arrolar despesas de previdência — que existiam desde 1939, embora em escala muito reduzida, como foi dito — suportadas na totalidade pela Junta Central e não pelas Casas dos Pescadores. Em 1953, as despesas assistenciais ainda ultrapassavam as de previdência. As segundas só avultam sobre as primeiras em 1954, 1955 e 1956; e voltam a fazê-lo, com uma ligeira diferença de valores, nuns poucos exercícios da década de sessenta.

  • 42 Após diversas insistências de H. Tenreiro, os fundos de reforma dos pescadores de bacalhau e do arr (...)

70A instituição dos fundos de reforma e dos abonos de família não só se destinou, antes de mais, aos pescadores de bacalhau e suas famílias, como foi na “grande pesca” que esses benefícios de previdência atingiram maior número de beneficiários. Números todavia modestos, mesmo que os comparemos com as demais categorias de pesca42. Em 1950, cerca de 68% do total de beneficiários de pensões de reforma e abonos eram ou haviam sido pescadores de bacalhau. Em 1959, as parcas modalidades de seguro social financiadas pela Junta Central das Casas dos Pescadores continuavam a privilegiar os bacalhoeiros: 65% do total. A média do período para o qual dispomos de dados – 1950 a 1965 – é de 61%.

71Trata-se de benefícios de previdência de âmbito restrito e limitados pelo interesse do Estado em estimular a produtividade da mão de obra em regimes de utilização intensiva do fator «trabalho», condição essencial ao modelo protecionista de fomento das pescas nacionais.

72O regime contributivo dos fundos de reforma e abonos de família não obedecia a quaisquer princípios de universalidade. O caso dos bacalhoeiros é elucidativo. Só os melhores pescadores podiam beneficiar de abonos de família. Caso o fossem por diversas vezes, podiam esperar uma pequena reforma, quando largassem a vida no mar. Em 1962, momento em que a ação previdencial da Junta Central já estabilizara, a pensão de reforma atribuída aos bacalhoeiros era de 400$ mensais e os subsídios de abono de família eram de 40$ por descendente e de 30$ por ascendente. Ambas as modalidades previdenciais excediam os limites de tempo dos contratos de trabalho, cobrindo onze meses por ano. O armador concorria com 13% sobre o valor das soldadas fixas e complementos de soldada, a parte do salário equivalente aos registos da pesca efetuada; todos os pescadores concorriam para os mesmos fundos, com 3% sobre o valor global do salário.

73Significa que contribuíam todos para beneficiar alguns. Sistema cruel e pouco coerente com a retórica social que povoa os discursos oficiais sobre a previdência corporativa oferecida às «gentes do mar».

Conclusões

74O enquadramento social das populações marítimas assentou em dois eixos contraditórios: criar instituições ainda mais cerceadas na sua autonomia associativa do que as congéneres rurais, mas dotá-las de alguns meios financeiros capazes de garantir apreciáveis benefícios de assistência e alguma previdência.

75Os traços antropológicos das comunidades piscatórias foram atentamente diagnosticados pelo Estado Novo que, retoricamente, os usou para recusar a sindicalização dos homens do mar. Daí o paradoxo que se deteta na construção dos organismos de enquadramento social dos pescadores: a evocação elegíaca dos seus impulsos de solidariedade e tradição corporativa e a avisada denúncia dos riscos de qualquer modelo de organização que não cuidasse de prevenir a conflitualidade dos pescadores e certos vícios da sua vida social e profissional.

76As sugestões de um corporativismo puro ou de associação cediam o passo a uma solução empírica capaz de garantir a aquietação social dos centros piscatórios e uma colaboração estreita do «trabalho» nas políticas de fomento a impor aos armadores. Ainda que definidos e impostos numa base supostamente mais fiel a um corporativismo cristão e à escola corporativa católica (a que Salazar pertencia), as Casas dos Pescadores foram impostas de forma paternalista. Na prática, foram instrumentos de uma paz social compulsiva nos centros piscatórios.

77A criação das Casas dos Pescadores é significativamente demorada e hesitante; acaba por ser reativa e pragmática, dado que o Estado recusa a solução sindical para agregados sociais subversivos, que lhe interessaria manter como reservatório de mão de obra barata e móvel. O pragmatismo do Estado corporativo exprime-se na imposição de um esquema distorcido de colaboração interclassista às comunidades rurais e piscatórias, cujas instituições não deviam romper as relações sociais pré-existentes, pelo contrário, deveriam institucionalizá-las.

78Ao organizar e tutelar as Casas dos Pescadores, o Estado Novo procura cooptar e instituir as tradições marítimas de cooperação e amparo mútuo impondo-lhes um formato corporativo. Numa intervenção que cobre boa parte das relações sociais e manifestações simbólicas do mundo da pesca, o próprio património espiritual e os costumes das populações marítimas são objeto de ritualização pública. Com as Casas dos Pescadores e a respetiva junta central à cabeça, a organização das pescas exprime uma espécie de mutualismo corporativo, fortemente institucionalizado e dirigista.

79Em todo este processo o Estado procede com prudência, segundo uma lógica paternalista: à contingência do trabalho dos homens e mulheres do mar, à modéstia de rendimento dos pescadores e suas famílias e à escassa propensão do pescador para acautelar o futuro, Salazar opõe um vistoso programa assistencial e mobiliza alguns benefícios de previdência capazes de conter a agitação social, mitigando a miséria e honrando a pobreza.

80Dado que nelas tinham assento, com notória assimetria de representação e poderes, os pescadores e os armadores, as Casas dos Pescadores acabaram por funcionar como elemento de equilíbrio e de coesão entre o modelo tradicional de organização das pescas artesanais e as relações sociais de tipo capitalista dominantes nas pescas industriais, em especial nas do bacalhau e do arrasto.

81Quanto à ação social desenvolvida por estes pequenos organismos corporativos, verificámos que os triplos fins previstos na lei de bases das Casas dos Pescadores foram distorcidos pela prática.

82A representação profissional dos pescadores evidencia uma marcada assimetria na definição contratual das condições de trabalho. O propósito do Estado autoritário, muitas vezes expresso, era o da esterilização do poder negocial dos ativos das pescas. No desempenho das suas atribuições de instrução e educação as Casas dos Pescadores converteram-se em lugares de treino moral e aprendizagem de uma ética nacionalista do trabalho, código alegadamente fiel à essência comunitarista das «gentes do mar». Por último, as finalidades de assistência e previdência mostraram-se o fulcro da ação social das Casas dos Pescadores; foram a principal evidência legitimadora destas instituições e da respetiva Junta Central.

83O facto de as Casas dos Pescadores terem nascido como instituições corporativas de previdência suscita diversas interpretações: 1) O propósito previdencial supôs a obrigatoriedade da inscrição de todos os marítimos, antes de a mesma ser adotada nas Casas do Povo; 2) A existência de uma Junta Central das Casas dos Pescadores bem dotada politicamente permitiu ao Estado disfarçar a pobreza de realizações previdenciais das Casas e ensaiar certos benefícios de previdência nas pescas socialmente mais delicadas; 3) As fronteiras entre assistência e previdência foram propositadamente ambíguas. A obra social das pescas financiada e dinamizada por meio da Junta Central das Casas dos Pescadores foi assistencialista e pública, mas não corporativa. Para desencanto dos corporativistas mais preocupados com a autenticidade do sistema, as Casas dos Pescadores e a sua federação política informal foram um exemplo flagrante de corporativismo de Estado.

84Não houve Estado-providência no mundo das pescas marítimas portuguesas enquadrado pelo Estado Novo. Viu-se uma extraordinária obra de assistência social (material, moral e religiosa), uma obra educativa cunhada de ideologia e guardiã de tradições alegadamente identitárias, como se notaram algumas realizações de previdência. Benefícios escassos, foram distribuídos consoante os paliativos sociais que o Estado entendeu dar aos diversos segmentos da pesca. Também aqui os avatares da política comandaram a forma corporativa de dirigir a «questão social».

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Notas

1 Para uma síntese crítica sobre a pluralidade de experiências históricas do corporativismo, entre outros veja-se Steven L. Kaplan, Philippe Minard (ed.), La France, malade du corporatisme? XVIIIe-XXe siècles, Paris, Belin, 2004, em especial pp. 5-31; Peter Hall, David Soskice (eds.), Varieties of Capitalism. The Institutional Foundations of Comparative Advantage, New York, Oxford University Press, 2003, pp. 1-68; Fernando Rosas e Álvaro Garrido (introdução e coord.), Corporativismo, Fascismos, Estado Novo, Coimbra, Almedina, 2012.

2 Sobre este período, veja-se a súmula recentemente organizada por Didier Musiedlak (dir.), Les Expériences corporatives dans l’aire latine, Berna, Peter Lang, 2010. Sobre a experiência portuguesa de corporativismo moderno, em nossa opinião a principal obra continua a ser a de Manuel de Lucena, A evolução do sistema corporativo português, 2 vols., Lisboa, Perspetivas & Realidades, 1976.

3 Cf. Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 1999, pp. 166-172.

4 A propósito dessa consciência de crise do capitalismo, muito anterior à grande depressão que deflagrou nos EUA em 1929, recordem-se, entre outros, os textos de Joseph Schumpeter, «A instabilidade do capitalismo», in Ensaios. Empresários, inovação, ciclos de negócio e evolução do capitalismo, Oeiras Celta Editora (trad.), 1996, pp. 42-66 (artigo publicado no Economic Journal, em setembro de 1928); John Maynard Keynes, The Economic Consequences of Peace, London, Macmillan, 1919; Id., «The End of Laissez-Faire», Essays in Persuasion, vol. 9 of the Collected Works of John Maynard Keynes, London, Macmillan, 1926.

5 Cf. António da Silva Leal, «Os Grupos Sociais e as Organizações na Constituição de 1976 – a Rotura com o Corporativismo», in Estudos sobre a Constituição, III, Lisboa, 1979, pp. 205 e ss. Sobre a institucionalização do trabalho nos primeiros tempos da ordem corporativa portuguesa, vide Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo, 1930-1947, vol. I, Lisboa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1995, pp. 223-336.

6 Marcello Caetano, O Sistema Corporativo, Lisboa, Jornal do Comércio e das Colónias, 1938, p. 77.

7 Fátima Patriarca, A Questão Social no Salazarismo…, vol. II, pp. 631-654.

8 Dois artigos permitem sintetizar a transição entre os dois modelos: Miriam Halpern Pereira, «As origens do Estado providência em Portugal: as novas fronteiras entre público e privado», Ler História, n.º 37, 1999, pp. 45-61; José Luís Cardoso e Maria Manuela Rocha, «Corporativismo e Estado-Providência (1933-1962)», Ler História, n.º 45, 2003, pp. 111-135.

9 Sobre a ideologia económica do corporativismo, vide Carlos Bastien e José Luís Cardoso, «From homo economicus to homo corporativus: A neglected critique of neoclassical economics», The Journal of Socio-Economics, 36, 2007, pp. 118-127. Sobre a construção política do preceito constitucional de «economia corporativa», vide A. Garrido, «O Estado Novo português e a institucionalização da ‘economia nacional corporativa’», Estudos do Século XX, n.º 10, 2010, pp. 299-316.

10 Cf. Diário do Governo, Lei n.º 1884, de 16 de março de 1935.

11 P. Teotónio Pereira, Memórias. Postos em que servi e algumas recordações pessoais, vol. I, 2.ª ed., Lisboa, Verbo, 1973, p. 71.

12 Em registos divergentes na interpretação, vide Fernando Rosas, O Estado Novo nos anos Trinta. Elementos para o estudo da natureza económica e social do salazarismo (1928-1938), 2.ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp. 115-283; Nuno Luís Madureira, A Economia dos Interesses. Portugal entre as Guerras, Lisboa, Livros Horizonte, 2002.

13 P. Teotónio Pereira, A Batalha do Futuro. Organização Corporativa, 2.ª ed., Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1937, pp. 59-60.

14 Vide Patriarca, A Questão Social no Salazarismo…., vol. I. Numa perspetiva de história comparada, veja-se, também, António Costa Pinto e Francisco Palomanes Martinho (orgs.), O Corporativismo em Português. Estado, Política e Sociedade no Salazarismo e no Varguismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2008, pp. 53-83.

15 P. Teotónio Pereira, Memórias, p. 312.

16 Cf. id., ibidem, p. 169. Veja-se, também, Dez Anos de Política Social. Casas dos Pescadores, Lisboa, Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, s.d., p. 8.

17 Processo de transição analisado na seguinte dissertação de Mestrado em História Contemporânea, Século XX, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 2008: Joana Marques Macedo, As Casas dos Pescadores e a Política Social do Estado Novo (1933-1968). O exemplo da Casa dos Pescadores de Olhão (datilografado).

18 Vide A. Garrido, «Os bacalhoeiros em revolta: a greve de 1937», Análise Social, vol. XXXVII, 2003, pp. 1191-1211.

19 Álvaro Garrido, Henrique Tenreiro – Uma Biografia Política, Lisboa, Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2009, pp. 133-251.

20 Veja-se, por exemplo, o Jornal do Pescador, revista ilustrada publicada pela primeira vez em 1939, como suplemento da Revista de Marinha. De assinalável qualidade gráfica, o Jornal do Pescador funcionava como tribuna de Henrique Tenreiro e como órgão de propaganda da organização corporativa das pescas. Veja-se, também a brochura ilustrada, 25 Anos de Assistência à Gente do Mar, Lisboa, Junta Central das Casas dos Pescadores, 1962. Esta edição inclui textos em português, francês e inglês.

21 P. Teotónio Pereira, A Batalha do Futuro…, p. 139.

22 Do ponto de vista do discurso ideológico, interpretámos as semelhanças e diferenças entre «maritimismo» e «ruralismo» na ideologia do Estado Novo no seguinte artigo: «O Estado Novo e a recriação historicista de uma tradição marítima nacional. Discursos sobre a grande pesca», Revista de História das Ideias, vol. 28, 2007, pp. 327-355.

23 Mais precisamente, 39 414 indivíduos (os números referem-se apenas a «empregos diretos» nas pescas marítimas). Cf. Estatística das Pescas Marítimas no Continente e nas Ilhas Adjacentes, Lisboa, Ministério da Marinha, 1931.

24 São diversos os estudos históricos e antropológicos sobre o grupo socioprofissional dos pescadores. Para o caso português, veja-se o dicionário temático organizado por Inês Amorim, História do Trabalho e das Ocupações, vol. II, «As Pescas», Oeiras, Celta Editora, 2001. Vide, também, a dissertação em Antropologia de Carlos Diogo Moreira, Populações Marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1987. À escala internacional, para um enquadramento das várias leituras possíveis da «cultura do mar» continua a ser fundamental a obra clássica de Bela Gunda (org.), The Fishing Culture of the World: Studies in Ethnology, Cultural Ecology and Folklore, Budapeste, Akadémiai Kiadó, 1984. Mais recente e extraordinariamente rica é a obra do arqueólogo John Mack, The Sea – A Cultural History, London, Reaktion Books, 2011.

25 Os Pescadores, 3.ª ed., Lisboa, Ulisseia, 1995, p. 92. A primeira edição é de 1923.

26 25 Anos de Assistência à Gente do Mar…, p. 3.

27 Analisámos a institucionalização corporativa e estatal da «campanha do bacalhau» em O Estado Novo e Campanha do Bacalhau, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, pp. 67-259.

28 Diário das Sessões, suplemento ao n.º 100, 11 de janeiro de 1937, p. 152-D.

29 Domingos Fezas Vital (1888-1953), professor de Direito das universidades de Coimbra e Lisboa, colaborou no projeto da Constituição de 1933. Enquanto procurador à Câmara Corporativa, de que foi presidente em 1944-1946, foi relator de diversos pareceres. Embora muito próximo de Salazar, em 1946 acabou por se tornar lugar-tenente de D. Duarte Nuno de Bragança e mentor da Causa Monárquica.

30 Decreto n.º 2077, de 24 de novembro de 1915. A Caixa foi extinta em janeiro de 1938. Os seus ativos e os processos de pensionistas foram transferidos para a Junta Central das Casas dos Pescadores.

31 O debate decorreu nas sessões de 21, 22 e 23 de janeiro de 1937. Cf. para os respetivos dias, Diário das Sessões, pp. 238-249; 284-292; 306-311.

32 Diário das Sessões, suplemento ao n.º 100, 11 de janeiro de 1937, p. 152-D.

33 Vide Garrido, Henrique Tenreiro…, pp. 133-251.

34 Cf. Diário das Sessões, 21 de janeiro de 1937, p. 243; 22 de janeiro de 1937, pp. 291-292.

35 Diário do Governo, I série, Decreto n.º 27978, de 20 de agosto de 1937.

36 Em 1938 estavam a funcionar 13 Casas dos Pescadores, cerca de metade do número que a rede viria a atingir. Além das três primeiras já referidas, eis a lista das demais constituídas em 1938: Matosinhos, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Peniche, Cascais, Lisboa, Sesimbra, Setúbal, Portimão e Funchal.

37 Para o caso espanhol, vide Jesús Giráldez Rivero, Crecimiento y transformación del setor pesquero gallego (1880-1936), Madrid, Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación, 1996, p. 49 e ss.

38 Sobre estas questões, vide A. Garrido, O Estado Novo e a Campanha do Bacalhau…, pp. 170-196; Id., «Um exemplo de mutualismo corporativo: a ação da Mútua dos Navios Bacalhoeiros no seguro e financiamento da frota (1936-1967)», Revista de História Económica e Social, II série, n.º 3, 1.º semestre de 2002, pp. 69-95.

39 Cf. Junta Central das Casas dos Pescadores – Relatórios (1938-1967). Os exercícios da segunda metade da década de cinquenta são especialmente elucidativos. Embora por grosso, a seguinte fonte também permite notar a importância do «fundo comum» das Casas dos Pescadores no financiamento da ação social das mesmas: Estatísticas da Organização Corporativa (e Previdência), Lisboa, INE (1938-1967).

40 Diário do Governo, I série, Decreto-Lei n.º 37 750 (Art.º 2.º).

41 Carlos Affonso de Carvalho, «Previdência Social na Pesca», Separata do Boletim da Pesca, n.º 30, março de 1951, pp. 21-22.

42 Após diversas insistências de H. Tenreiro, os fundos de reforma dos pescadores de bacalhau e do arrasto foram constituídos, respetivamente, em 1939 e 1941. Dado o valor exíguo das pensões que as Casas dos Pescadores podiam pagar, mais tarde seriam ambos tomados pela Junta Central. Os abonos de família foram instituídos por despacho de 22 de agosto de 1946 do Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, Castro Fernandes, mas apenas para os descendentes e ascendentes dos ativos da pesca do bacalhau.

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Índice das ilustrações

Título Gráfico I: Evolução comparada das despesas de assistência e previdência das Casas dos Pescadores (1938-1967)
Legenda Obs: Ambas as rubricas de despesa incluem gastos de administração. As despesas de assistência integram os subsídios na doença, por nascimento de filhos, morte, perda de barcos e apetrechos, assistência médica e “extraordinária” e outras modalidades. As despesas de previdência englobam as pensões de reforma e os abonos de família.
Créditos Fonte: Estatísticas da Organização Corporativa (e Previdência), INE, 1938-1967.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/541/img-1.png
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Álvaro Garrido, «Assistência e Previdência no mar português»Ler História, 62 | 2012, 7-29.

Referência eletrónica

Álvaro Garrido, «Assistência e Previdência no mar português»Ler História [Online], 62 | 2012, posto online no dia 13 abril 2015, consultado no dia 24 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/541; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.541

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Autor

Álvaro Garrido

afrgarrido@gmail.com
Professor auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20). A sua área de estudos incide nas instituições do corporativismo Salazarista e na história das pescas.

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