1A cultura política gerada pelo constitucionalismo do século XX, o grande tema organizador deste dossier, tem sido um tópico de investigação explorado internacionalmente pela historiografia, pela ciência jurídica e por algumas ciências sociais, como a sociologia. A sua abordagem tem sido feita sob múltiplos eixos, como são, entre outras, as análises sobre: os fatores políticos e económicos, locais e internacionais, que determinaram características específicas das Constituições; a ordem política estabelecida pelos estatutos constitucionais; as doutrinas jurídicas, políticas e filosóficas presentes nas soluções constitucionais; o surgimento e a consagração das diversas gerações de direitos e de liberdades consagradas pelo pensamento constitucional; as tendências globais geradas pela criação de Constituições; ou até os casos históricos que prescindiram de ordens constitucionais.
2Para as pesquisas sobre o constitucionalismo e as culturas políticas que lhe estão associadas têm sido relevantes os estudos sobre constitution-making process que, enquanto área interdisciplinar especializada, tem contribuído eficazmente para o apuramento de ferramentas teóricas e metodológicas de grande potencial explicativo. Autores como Jon Elster ou Burke Ackerman são amplamente reconhecidos pelas suas valiosas propostas de exploração dos argumentos racionais dos atores-constituintes e das negociações que os mesmos entabulam para forjar decisões coletivas (Elster 1995 e 2000; Ackerman 1991, 266-294). O impacto dos seus estudos tem sido enorme e tem ajudado a captar diversos aspetos que acontecem em sedes constituintes. Ampliando possibilidades de investigação, para além do foco excessivo nas votações e na elaboração de agendas, têm aberto caminho ao estudo das motivações dos constituintes; da argumentação e dos recursos que estes utilizam, mobilizam ou transportam; das regras processuais internas das assembleias constituintes; da montagem dos processos constituintes; etc.
- 1 Ver, por exemplo, Araújo (2007), Leal (2017), Viscardi (2016), Velez (2008 e 2016) e Santos (2018 (...)
- 2 Utiliza-se o conceito de sociedade política aludindo à proposta de Farneti (1973, 16 e ss).
3Para dialogar com o interesse por estas questões, assumido por um número crescente de investigadores em Portugal e no Brasil,1 organizou-se este dossier, composto por quatro artigos que abordam experiências constituintes históricas nos dois países, três debruçando-se sobre processos ocorridos nos respetivos autoritarismos e outro centrado no período da transição para a democracia no Brasil. Resultam de investigações recentes, conduzidas sobre um conjunto de dados inéditos, ou ainda escassamente explorados, e norteadas por interrogações centradas nos argumentos e nas negociações que envolveram a criação de conteúdos constitucionais. Reunindo novos resultados empíricos, estes artigos trazem a novidade de se ocuparem dos projetos constituintes que foram publicamente apresentados mas que não foram aprovados ou que foram parcialmente rejeitados. Considerou-se que esta abordagem é fecunda para alcançar um maior conhecimento sobre a cultura política dos autoritarismos e da transição para a democracia, na medida em que permite conhecer a diversidade daquelas sociedades políticas2 e simultaneamente os mecanismos para a sua contenção e disciplina política e social, tal como permite revelar e explicar as expectativas e constrangimentos que pesaram nos posicionamentos e votações dos constituintes, os conflitos políticos surgidos ad intra e ad extra à arena constituinte, os casos de cooperação ou não cooperação com outras instituições (por exemplo, com o governo, sectores militares, partidos políticos ou instâncias da sociedade civil).
- 3 A título de exemplo, veja-se sobre o caso do Brasil: Carvalho (2014), Lopes (2008), Pilatti (2008 (...)
4Com a escolha deste tópico pretende-se também enriquecer a literatura portuguesa e brasileira existente, até agora centrada, sobretudo, no tema geral do constitucionalismo e das soluções políticas que se instalaram após a aprovação das Constituições.3 É frequente encontrar-se assinalada a natureza conflituante dos momentos constituintes destes países; porém, este traço tem sido predominantemente secundarizado pela construção da história dos projetos constitucionais vencedores e dos seus atores. Ora, ainda que vinculados ao mesmo processo, constituintes vencedores e vencidos tiveram uma autonomia histórica que importa deslindar historiograficamente. Não raras vezes, o tratamento das soluções constitucionais vencedoras anda acompanhado da perceção de que as mesmas romperam com a ordem jurídica anterior. Desta forma, tem perdurado uma invisibilidade sobre o que de continuum ou de novo existiu nos processos de criação constitucional. Os casos estudados neste dossier demonstram a importância de se questionar esse tipo de resultados e pretendem suscitar futuras reflexões: os princípios integrados nos léxicos constitucionais, votados e aprovados, foram as propostas mais inovadoras em relação à ordem político-jurídica anterior ou, pelo contrário, inscreveram-se em continuidades e, por essa razão, tiveram capacidade de gerar maiores consensos?
5Observando o período da Ditadura Militar em Portugal (1926-1933), o artigo de José Miguel Sardica historiciza como em torno da criação da nova constitucionalidade se desenvolveu um dos confrontos mais significativos da época. Em causa estava a elaboração de uma nova constituição, solução que Salazar apoiou (primeiro como ministro das Finanças, depois como presidente do Ministério), ou a opção pela reforma da ordem constitucional vigente, isto é, a adaptação da Constituição de 1911, defendida por representantes do republicanismo militar conservador, como Vicente de Freitas. Com o parlamento encerrado, na sequência do golpe militar, caberia à imprensa, funcionando como fórum público, acolher (muitas vezes, ou quase sempre, até à sua conclusão) os debates políticos, tendo sido particularmente relevante esse papel no caso da questão constitucional, apesar de os mecanismos censórios mitigarem a dimensão do debate público em torno das propostas de estatuto constitucional. Descrevendo a complexidade das posições sobre a organização do sistema político na ordem constitucional a (re)criar, este estudo exemplifica bem como um pensamento de matriz mais liberal, como era o de Vicente de Freitas, sem se desviar do princípio da soberania popular e sem ceder na valorização do poder legislativo, já se revelava permeado por ideias organicistas. Tem, neste aspeto, uma singular importância na medida em que ajuda a compreender como as soluções de tipo corporativo se encontravam disseminadas entre sectores políticos e militares; o que não é de somenos para se entender a fixação de tópicos de ideário corporativo na Constituição de 1933, bem como a produção de legislação posterior que, nos anos seguintes, delineou o projeto corporativo estatal.
6A cobertura dos debates constituintes no estado autoritário português é feita por Paula Borges Santos, que atribui à ditadura uma vocação constituinte. Por outras palavras, a autora chama a atenção para a circunstância de a construção do edifício constitucional próprio da ditadura não ter tido um horizonte limite de conclusão, apontando o legislador para um espaço político-legal em permanente construção. Aí se jogou o esforço de consensualização do governo com expetativas distintas dos sectores apoiantes da solução governativa, que como o artigo demonstra originaram confrontações e divergências entre a Assembleia Nacional (e no interior desta), a Câmara Corporativa e o próprio executivo. Ao detalhar os temas tratados em sede constituinte ao longo de todo o regime, o artigo mostra que os debates mais recorrentes e polémicos envolveram as relações entre os poderes executivo e legislativo, com os deputados a revelarem, em diferentes ciclos políticos, vontade de reforçarem as competências legislativas e fiscalizadoras da Assembleia Nacional. Sublinha que os constituintes (cuja autonomia face ao governo foi muito variável, em sentido positivo e negativo) estiveram mais focados no alcance de consensos imediatos e menos sensibilizados para os compromissos que assumiam face a gerações futuras. Da caracterização feita emergem vários momentos de tensão, que se tentaram manter contidos por via de estratégias de negociação realizadas dentro e fora do hemiciclo, umas bem-sucedidas, que permitiram ao executivo triunfar, outras nem tanto.
7Sobre a realidade política brasileira, tanto do autoritarismo (1937-1945) como do processo de transição para a democracia no final da década de 1980, escrevem, respetivamente, Marco Vannucchi e Fernando Perlatto. O primeiro descreve como, no interior da Assembleia Nacional Constituinte, se digladiaram fações políticas em torno de dois temas: a representação orgânica das associações profissionais e a organização sindical. Nos dois casos, o governo de Getúlio Vargas encontrou forças apoiantes da orientação das suas propostas, mas encontrou aberta oposição entre os deputados. Vencedor quanto à questão da representação profissional, ainda que limitada a um quinto da Câmara dos Deputados, o executivo foi derrotado na tentativa de impor na letra da Constituição a unicidade sindical, vindo a alterar por legislação ordinária o desenho da estrutura sindical definida pelos constituintes. Assinalando mecanismos coativos explorados pela governação na tentativa de fazer triunfar as suas propostas, o estudo demonstra como a Assembleia Nacional Constituinte abrigou sectores descontentes (e reativos) com as instituições corporativas que se pretendiam impor à sociedade brasileira do começo dos anos de 1930.
8Trabalhando outra conjuntura política do século XX, a da reconstrução da ordem democrática, após a vigência da Ditadura Militar brasileira, Fernando Perlatto traça um quadro complexo dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte no biénio de 1987/88. Apresentando os trabalhos constituintes como um ponto de chegada da longa questão constituinte, aberta desde o final da década de 1970, o autor matura diversos aspetos que envolveram disputas, começando pelo tipo de assembleia a constituir. Evocando um ambiente de grande tensão entre parlamentares oriundos das fileiras da Ditadura Militar e outros dos novos partidos políticos, o autor sinaliza como houve uma hábil mobilização das regras e dos procedimentos da câmara constituinte e alerta para a importância do trabalho realizado pelas subcomissões e comissões temáticas, no qual tiveram papel ativo os assessores jurídicos, especializados em direito constitucional. A estes profissionais atribui Perlatto o estabelecimento de contornos normativos que permitiram uma valorização de um modelo de democracia participativa e de mecanismos de participação direta (projetos de iniciativa popular, plebiscitos e referendos), acompanhados de uma ampliação da autonomia política, administrativa e financeira dos municípios, e ainda de uma valorização do acesso ao sistema de justiça.
9Dos vários elementos tratados nestes artigos pode sublinhar-se que foi transversal a qualquer tipo de regime o conflito político em torno das soluções constitucionais a construir e a fixar, e que as divergências envolveram agendas e votações, mas, antes de tudo, expetativas e motivações dos constituintes. Outra ideia que fica é que as instituições nominalmente democráticas existentes nas ditaduras, como os órgãos parlamentares ou as assembleias constituintes, não se reduziram a meras fachadas, usadas pelos ditadores para alegadamente demonstrarem e colocarem em evidência as suas credenciais democráticas (Ghandi 2008, xvii e ss). Essas instituições serviram como espaço para governos e sectores apoiantes do regime anunciarem as suas preferências políticas e estabelecerem acordos, mesmo que em matérias políticas limitadas, sendo úteis em relação ao dirimir de tensões e à organização pública de compromissos. Também fica enunciado, a merecer novas investigações, que órgãos parlamentares ou assembleias constituintes, independentemente de existirem em ditadura ou em democracia, convocam para as suas negociações internas recursos semelhantes, como são regimentos, estudos e/ou pareceres das comissões parlamentares.