1A pandemia de gripe de 1918-19 foi a doença mais mortífera de todos os tempos, que terá afetado uma em cada três pessoas na população mundial. Em termos de baixas, terá provocado um número de mortos superior ao das duas guerras mundiais juntas. Em Portugal, onde se viviam os tempos atribulados da presidência de Sidónio Pais, a pneumónica poderá mesmo ter sido responsável pela morte de 2% da população, provocando o caos na muito frágil rede de assistência médica. Este artigo propõe-se abordar de modo necessariamente resumido diversas dimensões de que se revestiu este surto pandémico, situando-o no seu contexto histórico nacional e internacional.
- 1 Ver Boletim de Vigilância Epidemiológica da Gripe (INSA), 04, de 22-28.01.2018; “Epidemia de gripe (...)
- 2 Há desde 1952 uma rede global dedicada à gripe, o GISRS (Global Influenza Surveillance and Response (...)
2Ainda recentemente, em inícios de 2018, a Direção-Geral de Saúde comunicava que se estava perante um surto de gripe de baixa intensidade, que havia provocado poucos casos de morte. Não havia, de facto, nada a acontecer de relevante, mas tanto as autoridades – que publicam um boletim semanal sobre a gripe – como a comunicação social acompanharam bem de perto a situação. O mesmo sucedeu no estrangeiro.1 Este interesse pela doença só se compreende se atendermos ao impacto que teve a gripe de 1918-19. É ele que explica a existência na atualidade de dispositivos médicos nacionais e internacionais de vigilância e monitorização permanente da gripe,2 a informação sobre a necessidade de vacinação, a atenção dos meios de comunicação social e mesmo o alarme com que se acompanham certos surtos. De acordo com um dos principais historiadores da matéria, “a pandemia de 1918-19 é olhada como pandemia protótipo e o modelo de todos os nossos futuros apocalípticos” (Honigsbaum 2013, 235).
3A pandemia de gripe de 1918-19 ficou conhecida internacionalmente como Gripe Espanhola (Spanish Influenza ou Spanish Flu) e em Portugal por Pneumónica (ou Gripe Pneumónica). Em algumas partes do mundo terá mesmo ocorrido até 1920 e foi uma epidemia mortífera e global – a maior desde a Peste Negra e porventura a que mais mortos provocou na história da humanidade. Terá afetado então 500 milhões de pessoas, isto é, um em cada três habitantes do planeta, e provocado um número de mortos elevadíssimo, que tem sido estimado, desde 1991, entre os 30, os 50 e os mais de 100 milhões (Honigsbaum 2013, 234-35). Embora os cálculos variem bastante, os valores ganham significado quando colocados em confronto com a mortalidade provocada pela Grande Guerra de 1914-18 (estimada em 16 milhões de mortos, militares e civis) e com a Segunda Guerra Mundial (entre 50 a 85 milhões de mortos, militares e civis). O seu impacto em termos de mortalidade terá sido, assim, não só superior ao do grande conflito que estava em vias de findar, como próximo, ou talvez mesmo superior, ao do da guerra de 1939-45. Calculou-se muito recentemente que esta mortalidade, se tivesse ocorrido nos dias de hoje, corresponderia a entre 200 e 425 milhões de mortos da população atual (Honigsbaum 2018). A mortalidade foi maior entre os jovens adultos, aqueles que se pensava estarem em melhores circunstâncias para resistirem, e não nas vítimas habituais de outras gripes, como os mais velhos, as crianças, os subalimentados e os doentes (Killingray 2009; Spinney 2017, 23), não se sabendo com rigor a que se deve este facto. Entre outras explicações, aventa-se a possibilidade de o sistema imunitário destes infetados jovens e vigorosos reagir de modo excessivo à infeção, o que levaria a um colapso com consequências fatais (Killingray 2009, 49).
4A designação de influenza, que veio a ser comum nos meios científicos, provirá do italiano e liga-se a uma das muitas teorias sobre a epidemia, corrente no século XVI, que atribuía a causa dos súbitos surtos epidémicos – bem distintos, pela sua morbilidade e mortalidade, das vulgares constipações – a fenómenos naturais como a erupção de vulcões, a passagem de cometas e meteoros, ventos e mudanças súbitas de temperatura, arrefecimento, em suma, à “influência dos céus” (influenza coeli). Chamou-se-lhe “espanhola” pelo facto de as primeiras notícias do seu aparecimento a ligarem a este país. A designação de gripe virá do francês agripper – ou gripper – que significa agarrar, e foi esta que, adotada para designar um surto em 1743, passou para o vocabulário corrente em português, por certo devido à influência cultural e científica multissecular da França entre nós (Honigsbaum 2013, 16-17). Em Portugal a epidemia ficou vulgarmente (e erroneamente) conhecida como gripe pneumónica ou simplesmente pneumónica – o nome pela qual é identificada a forma mais mortífera da peste, por atacar os pulmões.
5As epidemias de gripe estavam então longe de ser algo de novo. Pensa-se que as aves, e em especial as aves selvagens, serão o reservatório natural do agente patogénico. Ora, esse é transmissível dos animais para as pessoas e entre estas. Aventa-se, por isso, que a gripe está ligada à domesticação de animais, à sedentarização e ao desenvolvimento das cidades, que colocaram animais e humanos juntos, criando as condições favoráveis ao contágio. A primeira epidemia terá ocorrido nos últimos 12 mil ou, mais provavelmente, nos últimos 5 mil anos, e a doença foi identificada pelo grego Hipócrates (Spinney 2017, 13-14). No século XIX houve vários surtos epidémicos, um dos quais de escala mundial – a gripe “russa”, que teria começado no Uzbequistão em 1889, e que terá causado um milhão de vítimas mortais (Spinney 2017, 23). Aliás, foi então que o desenvolvimento da estatística permitiu comparar a mortalidade de uns anos para os outros. Calculando o excesso de mortalidade, foi possível tomar consciência do impacto da gripe, distinguindo-a claramente das outras doenças com sintomas similares, como as constipações ou os catarros (Honigsbaum 2013, 231-32).
6Porém – e este fator coadjuvou ao pânico induzido pela pandemia – a ciência médica mostrou-se impotente para combater com eficácia o flagelo, que ocorreu num contexto marcado por sucessivos triunfos no combate às infeções, como os decorrentes das descobertas da ação dos microrganismos na doença, a teoria dos germes, que assinalam uma época áurea do desenvolvimento da microbiologia (Porras-Gallo 2009). Um dos cientistas mais eminentes neste campo era então Richard Pfeiffer, que se pensava ter descoberto o bacilo causador da gripe. No entanto, apesar da grande aceitação da sua proposta, ela era incorreta, como se provaria mais tarde. O agente era um vírus, tal como defendiam outras autoridades da época – como o português Ricardo Jorge – só isolado em 1933, com microscópios muito mais potentes do que os disponíveis no tempo da pandemia (Killingray 2009, 45). O vírus penetra pelo nariz, afeta a garganta, as vias respiratórias e os pulmões, podendo desencadear pneumonias. A variante do vírus presente na pandemia – o subtipo H1N1 do Influenzavirus A, recriado laboratorialmente já no século XXI a partir de materiais de autópsia de 1918 (Taubenberger, Reid e Fanning 2005) – é especialmente mortífera, e, como todos os vírus gripais, mutante, o que faz com que as vacinas, hoje geralmente aceites como a proteção mais eficaz, não possam oferecer uma garantia de que o contágio será evitado.
7Neste artigo iremos abordar a epidemia em Portugal, enquadrando-a no contexto histórico em que se desenvolveu. Procuraremos primeiro caraterizar a sua ocorrência no nosso país em termos demográficos e aludiremos à desigualdade da sua incidência em função da posição social das vítimas. Em seguida (secção 2), referimo-nos à conjuntura social e política em Portugal na época, para depois (secção 3) nos determos no sistema de saúde existente na altura, nas suas limitações e assimetrias. Finalmente, na secção 4, resumimos informação relativa ao comportamento das autoridades face à doença, salientando a escassez de recursos e as tentativas de controlo e de silenciamento da sua dimensão no espaço público. O nosso estudo assenta na pesquisa bibliográfica sobre obras relativas à epidemia, tanto de carácter geral como relativas ao caso português, a que acresce o recurso a fontes da época sobre as medidas tomadas pelas autoridades, relatórios médicos, teses e estudos sanitários, debates parlamentares, análises demográficas, de imprensa e fontes eclesiásticas, bem como livros de memórias.
8Não há consenso quanto à origem da epidemia, se num campo militar no Centro-Oeste dos Estados Unidos, no Kansas, em março de 1918, daí atravessando na sua marcha o Atlântico e o Pacífico – como propõe a opinião dominante –, se em acampamentos militares em França e na Inglaterra, muito antes (Killingray 2009, 43; Spinney 2017, 37). Do que não parece haver dúvidas é que a grande mobilidade da época, tornada possível pelo desenvolvimento do caminho de ferro e pela navegação a vapor, e nomeadamente os movimentos de tropas ligados ao conflito bélico em curso, criaram condições altamente favoráveis à sua propagação rápida, que decorreu em três vagas. A primeira teve lugar em março e abril de 1918, e, apesar da sua intensidade, não provocou muitas baixas mortais, pouco se distinguindo de outras gripes sazonais. A segunda, em contraste, irrompeu em agosto como um movimento inédito, provocando uma mortalidade elevadíssima. A terceira, que ocorreu nos inícios do ano seguinte, seria mais benigna, colocando-se a hipótese de as vagas anteriores terem contribuído para isso, ao proporcionarem à população sobrevivente um certo grau de imunidade (Killingray 2009, 45-46).
9Em Portugal, a epidemia manifestou-se nas mesmas três vagas, de características similares às registadas a nível mais global. A primeira fez-se sentir, desde logo, no Alentejo, em finais de maio de 1918, com o regresso dos trabalhadores rurais portugueses da Estremadura espanhola, uma das zonas desse país onde se registou uma maior mortalidade no decurso desta fase (Echeverri Dávila 2003). A gripe teria sido diagnosticada pela primeira vez em Vila Viçosa, e seria a partir da região alentejana que ela se difundiria para todo o país, atingindo as grandes aglomerações de Lisboa e do Porto (Sampaio 1958). Seria fugaz, pois declinaria em junho de 1918, e benigna em termos relativos, embora a sua incidência se traduzisse num aumento da mortalidade. As primeiras manifestações da segunda vaga são registadas na área do Porto, em Gaia, no mês de agosto desse ano. Daí irradia para as duas regiões que estão em maior contacto com o Porto, o noroeste e a região do Douro, desenvolvendo-se em ambas as margens deste rio até à fronteira luso-espanhola. Havia outros focos na zona central do país, e, a partir de meados de setembro, propagar-se-ia no litoral, no centro e no sul, atingindo o Algarve em inícios de outubro de 2018 (Jorge 1919). Esta vaga seria a mais mortífera de todas, fazendo com que a mortalidade desta epidemia fosse superior a outras que haviam ficado assinaladas pelo número de vítimas fatais, como ocorrera com as de febre-amarela (em 1856) e de cólera (em 1857) em Lisboa, bem como à do surto epidémico anterior de gripe, a epidemia dita “russa”, em 1889-90. A terceira vaga viria a desenrolar-se em abril e maio de 1919 e não teve o impacto mortífero da anterior (Sobral et al. 2009a, 71-72).
10A incerteza relativamente ao número global de óbitos que provocou a nível mundial também se encontra no que respeita a Portugal. Uma das avaliações para o nosso país conta 59 000 mortos, com uma taxa de mortalidade de 9,8 por mil habitantes, apenas ultrapassada na Europa por países da periferia sul e leste, como a Espanha, a Itália e a Hungria, onde já se tinha registado um número de baixas comparável a Portugal noutros surtos epidémicos. Em contraste, os países do norte da Europa, nomeadamente os escandinavos como a Noruega e Suécia, exibiam uma taxa francamente inferior (5 por mil). Contudo, esse número apenas toma em conta as mortes que foram declaradas como devendo-se à gripe, que se pensa que terão subestimado a sua mortalidade. Uma autoridade em matéria de saúde pública em Portugal, o médico higienista Fernando da Silva Correia, tendo em conta o excesso de mortes registado nesses anos e atribuído a doenças respiratórias e outras desconhecidas, calculou que o número de mortos fosse um pouco superior aos 100 000, e, há poucos anos, o demógrafo Leston Bandeira calculou as mortes em 135 257, o que corresponde a uma taxa de 22 por mil habitantes. Em contrapartida, em Espanha, de onde derivaria o nome que identificaria globalmente o surto epidémico, a mortalidade seria bem menor do que a portuguesa, relativamente à dimensão da população: cerca de 260 000 mortos (Sobral et al. 2014, 78, notas 19-24; Spinney 2017, 65), o que, para uma população de cerca de 20 milhões de habitantes, corresponde a uma taxa de mortalidade que ronda os 13 mortos por cada mil habitantes. A mortalidade em Portugal atingiu, por isso, níveis elevadíssimos por comparação com outros países.
11Com base no estudo realizado por Mário Leston Bandeira (2009), foi possível construir um quadro síntese da distribuição da mortalidade em Portugal (ver Quadro 1). Lisboa, Porto e Viseu foram os três distritos com maior número de óbitos, mas este indicador é muito influenciado pela dimensão da população residente. O impacto por distrito é mais evidente se atendermos ao indicador de sobremortalidade, que corresponde ao quociente, calculado em percentagem, entre as taxas brutas de mortalidade de 1918 e as taxas de 1917. Assim, podemos ver que há sete distritos em que a mortalidade duplicou em 1918 comparativamente com 1917, devido à pneumónica (isto é, que têm indicadores de sobremortalidade superiores a 200): Coimbra, Vila Real, Leiria, Santarém, Faro, Viseu e Bragança.
Quadro 1. Óbitos presumidos por pneumónica entre 1917 e 1919 (valores por distrito)
Distrito
|
Óbitos presumidos
por pneumónica
1917-1919
|
Vítimas mulheres
em 1917-1918
|
Sobremortalidade
em 1918 face a 1917
|
Aveiro
|
6470
|
56%
|
173,84
|
Beja(a)
|
4570
|
51%
|
197,49
|
Braga
|
9276
|
55%
|
172,29
|
Bragança(a)
|
4793
|
53%
|
201,25
|
Castelo Branco(a)
|
5221
|
53%
|
189,93
|
Coimbra
|
9424
|
56%
|
221,77
|
Évora(a)
|
2990
|
50%
|
180,00
|
Faro(a)
|
6290
|
51%
|
203,18
|
Funchal(b)
|
790
|
–
|
94,85
|
Guarda
|
7516
|
57%
|
193,13
|
Leiria
|
6315
|
53%
|
211,27
|
Lisboa
|
18338
|
50%
|
178,65
|
Ponta Delgada
|
1701
|
45%
|
161,20
|
Portalegre
|
2534
|
54%
|
174,44
|
Porto
|
17865
|
55%
|
177,42
|
Santarém (a)
|
6857
|
52%
|
204,39
|
Viana do Castelo
|
4299
|
66%
|
175,00
|
Vila Real
|
8728
|
56%
|
219,94
|
Viseu
|
11280
|
56%
|
202,67
|
Portugal
|
135257
|
54%
|
185,40
|
Fonte: Dados de Bandeira (2009). Notas: (a) Não há óbitos atribuídos à pneumónica em 1919. (b) Não há óbitos atribuídos à pneumónica em 1917-18.
12Quanto à incidência dos óbitos por género, em Portugal, ao contrário do que se passou a nível mundial, a gripe fez mais vítimas entre as mulheres do que entre os homens. De facto, com base na mesma fonte, nos valores por género levantados para 1917-18, os óbitos de mulheres correspondem a 54% dos casos. Em Viana do Castelo este valor é superior: dois em cada três mortos são mulheres (66%). Apenas no distrito de Ponta Delgada a percentagem de vítimas masculinas excede as femininas. Já quanto à distribuição dos óbitos por idade, os dados mostram que, tal como aconteceu no resto do mundo, a gripe não matou principalmente aqueles que costumavam ser os grupos de risco: as crianças e os mais velhos. Pelo contrário, as análises de sobremortalidade aplicadas aos grupos etários mostram que ela duplica entre os 15 e os 40 anos, com um pico entre os 25 e os 35 anos. Nesta faixa etária, a sobremortalidade das mulheres chegou a ser três vezes e meia superior à do ano anterior.
- 3 Para uma síntese, ver Sobral et al. 2009a, 74-75.
13Uma outra questão em debate diz respeito à incidência da pandemia em função da posição social dos afetados. Em virtude de ela ter atingido elementos de todas as classes, incluindo várias figuras públicas de relevo, como o rei de Espanha, o presidente dos EUA, os primeiros-ministros da Alemanha, França e Grã-Bretanha, o presidente eleito do Brasil, ou alguns príncipes indianos, há autores que entendem que a gripe teria ignorado diferenças sociais e seria “democrática” na escolha das vítimas (Honigsbaum 2009), havendo quando muito alguma vantagem para os mais favorecidos (Crosby 2003). Outros, todavia, insistiriam no facto de a doença afetar sobretudo os mais pobres, que viviam em condições insalubres, mal alimentados, menos saudáveis (Phillips e Killingray 2003).3 A doença atingiria todos, mas a mortalidade seria mais elevada entre quem sofria mais carências.
14O caso português mostra-nos que este debate vem dos tempos da pandemia. Houve vítimas na alta burguesia e nas camadas mais elevadas da classe média, como o conde de Almeida Araújo e um neto do visconde de Alvalade, bem como no meio artístico, como os compositores António Fragoso e Pedro Blanco, ou os pintores Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita. O facto de a epidemia fazer vítimas em todo o espectro social, conduziu alguns à opinião de que ela era efetivamente “democrática”. Foi esse o caso do médico higienista professor Almeida Garrett, que superintendeu o combate à epidemia no norte de Portugal e no Porto. Referindo-se ao impacto da segunda vaga nesta cidade, escreveu: “Como eu, diversos colegas tiveram a impressão de não serem as classes pobres mais castigadas do que as ricas” (Garrett 1919).
15Mas outros colegas nortenhos avançavam uma perspetiva oposta. Foi esse o caso do também professor de medicina Joaquim Alberto Pires de Lima, a quem a segunda vaga da epidemia apanhou no Vale do Ave, uma zona simultaneamente agrícola e altamente industrializada. Para ele, não havia dúvidas de que os mais afetados pela epidemia eram os que viviam em piores condições (Lima 1918). E o médico Costa Maia manifestou a sua concordância com esta posição na sua dissertação, ao afirmar que, “sem querer contestar a veracidade desta afirmação do ilustre professor” [Almeida Garrett], corrobora Pires de Lima ao sublinhar a importância das habitações sem condições higiénicas, insinuando que estas seriam os focos de onde as infeções irradiariam “unindo depois pobre e rico numa solidariedade fatal” (Maia 1920). Aliás, cita, em conclusão desta abordagem, o testemunho da mais importante autoridade médica em matéria de epidemias, Ricardo Jorge, que dirigiu o combate à pandemia de 1918-19 em Portugal. Na opinião deste, o seu impacto foi maior sobre os mais pobres. Escreveu mesmo a este respeito numa obra coetânea em que procura fazer a síntese da pandemia: “Se todas as classes pagaram o seu tributo, ele pesou mais pesadamente sobre os mais humildes: os horrores da epidemia juntaram-se aos da miséria” (Jorge 1919, 25).
16Na mesma obra, cita o sucedido a bordo do vapor Moçambique, afetado pela pandemia em trânsito entre aquela colónia e a então metrópole. O vapor transportava perto de mil passageiros, distribuídos em quatro classes hierarquizadas. A mortalidade geral foi de 22%. Porém, entre os quase 600 soldados de 4ª classe ela foi de 30%, enquanto na 3ª, 2ª e 1ª classes, em que viajam perto de 300 sargentos, oficiais e civis, ela foi de 7,2%. Facto revelador da desigualdade é o de nenhum oficial ter morrido (Jorge 1919, 23-24). Entretanto, uma análise recente da mortalidade durante a epidemia mostra que, em Portugal, esta foi maior nas zonas rurais, onde os rendimentos eram menores, do que nas cidades de Lisboa e do Porto, onde também se concentravam os serviços médico-hospitalares (Bandeira 2009; Sobral et al. 2009a, 76). Como em Espanha, aliás (Echeverri Dávila 1993, 2009).
17Ao tempo da irrupção da Pneumónica, apesar de uma industrialização crescente, e de ser uma potência colonial, Portugal é um país ainda predominantemente rural, com perto de 80% da população ligada à agricultura. A sua população, de cerca de 6 milhões de habitantes, em crescimento, vivia ainda principalmente em aldeias ou nos pequenos aglomerados urbanos cabeças dos municípios ou dos distritos, e só um pouco mais de 10% habitava nas cidades de Lisboa e do Porto. Era uma população composta, maioritariamente, por trabalhadores rurais sem terra, pequenos e pequeníssimos proprietários, às vezes com ocupações artesanais, e operários concentrados em algumas zonas, em especial junto às principais aglomerações. Uma porção significativa da população ativa – 670 000 pessoas entre 1900 e 1918 – insatisfeita com as condições de vida oferecidas em Portugal, emigrava para o exterior, em particular para o Brasil (Marques 1978).
18A epidemia veio pôr a nu as carências do país, algumas de carácter estrutural, como as ligadas à situação económica e social, ou ao próprio aparelho de estado no que se refere à saúde e assistência, mas que a conjuntura da Grande Guerra de 1914-1918 agravou, bem como os conflitos profundos de natureza política, ideológica e social que dividiam a população portuguesa. A guerra traduziu-se em crise económica, que incidiu em particular sobre as classes trabalhadoras e os mais pobres, através da subida dos preços dos alimentos e géneros de primeira necessidade, do seu racionamento e açambarcamento e do mercado negro. Estas circunstâncias levaram a uma enorme agitação social, alguma expressa por via sindical, através da greve, e nomeadamente da greve geral de novembro de 1918, outra através do assalto a estabelecimentos ligados à produção e ao comércio de alimentos, como mercearias e padarias, que foi reprimida. Os protestos populares contra a carestia de vida e para assegurar a subsistência da população ocorriam ao tempo da epidemia (Redondo Cardeñoso, 2017). O conflito social adquiriria novas conotações em fins de 1918, as que decorriam da revolução russa, inspiradora para os meios sindicalistas e operários, fator de medo para os mais abastados.
19O contexto de crise e conflito prolongava-se no plano político. Sidónio Pais havia alcançado o poder na sequência de um golpe militar, em circunstâncias de desencanto provocadas pela situação económica e social do país, agravada pela guerra, que alimentara um descontentamento generalizado contra os partidos da União Sagrada, seus defensores, atraindo o apoio convergente de descontentes ativos no campo político – republicanos conservadores, sindicalistas antibelicistas, monárquicos e católicos – e, por certo, de boa parte da população. Esta convergência possibilitou-lhe a conquista de grande poder enquanto presidente da república, e trouxe ao primeiro plano da vida política monárquicos e católicos que se sentiam hostilizados pelo regime republicano. Este, através da Lei da Separação do Estado e das Igrejas (1911), pusera fim no plano jurídico-político à identificação entre o estado português e a religião católica, definida até então como oficial, e no plano simbólico à caracterização dos portugueses como povo católico, criando assim um forte conflito político e cultural, para além de cercear o poder eclesiástico e transferir os bens da igreja para a posse do estado.
20Embora a República tivesse entretanto aberto algum espaço para o reconhecimento da importância da religião para amplas camadas da sociedade portuguesa – ao permitir a assistência religiosa aos militares, por exemplo –, o conflito com os meios católicos mantinha-se em aberto (Neto 2014). O sidonismo devolveu bens – como os seminários confiscados em 1911 – e protagonismo à Igreja, reatando as relações diplomáticas com a Santa Sé. Entretanto, a adesão popular ao catolicismo – bem como a de membros das classes possidentes – seria confirmada pelo sucesso registado pelas aparições de Fátima, ocorridas em 1917. Dois dos videntes, Francisco e Jacinta, viriam a ser vítimas da epidemia. Contudo, o poder de Sidónio estava submetido a um processo rápido de erosão, de que são exemplo o confronto com os sindicatos e o abandono do seu bloco de apoio por republicanos, como os membros do Partido Unionista. Esta erosão tornar-se-ia inexorável com o fim da Grande Guerra, que parecia vindicar a estratégia dos seus principais adversários, que haviam promovido a intervenção portuguesa no conflito. O presidente Sidónio seria assassinado na estação do Rossio a 14 de dezembro de 1918, na altura do final da segunda vaga da gripe em Portugal.
- 4 Decreto nº 4871 de 4 de outubro de 1918, in Direção-Geral da Saúde, Boletim dos Serviços Sanitários(...)
21Como se disse, a pandemia viria a mostrar as carências estruturais com que se confrontavam a saúde e a higiene públicas em Portugal. A figura principal neste sector era a do diretor-geral Ricardo Jorge, a quem coube o papel principal no combate ao flagelo, pois foi nomeado comissário-geral do governo na luta contra a epidemia, com poderes alargados que incluíam a requisição de pessoal e de materiais de todas as entidades ministeriais.4 Ricardo Jorge especializara-se em higiene pública e epidemiologia. Cerca de 20 anos antes, vira-se envolvido no combate a um outro surto epidémico: a peste bubónica do Porto iniciada a 4 de julho de 1899. As suas investigações permitiram a identificação em laboratório dos bacilos de Yersin e a 28 do mesmo mês enviou para as autoridades de saúde um relatório sobre o surto (Jorge 1899). As medidas que propôs então (de isolamento dos doentes e de higienização dos edifícios) não foram seguidas pelas autoridades, que optaram por decretar um cordão sanitário implementado pelas forças militares que isolou a cidade entre agosto e dezembro de 1899. Tais medidas foram muito contestadas na época e as forças locais revoltaram-se contra quem identificou a doença: Ricardo Jorge foi ameaçado de morte e enxovalhado nas ruas (Alves 2008; Ferraz 2008; Viegas, Frada e Miguel 2009), sendo obrigado a prosseguir carreira em Lisboa, mantendo aqui fortes ligações internacionais.
22A Direcção-Geral de Saúde era um organismo recente, pois fora criada por decreto em 1899 – como Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública, passando apenas a Direcção-Geral de Saúde em 1911 – e dotada de um regulamento próprio em 1901, ambos sob a égide de Ricardo Jorge (Graça 1996). Inseria-se, contudo, num processo de envolvimento do estado nos problemas de saúde pública e de higiene – entre os quais o combate às epidemias – que, remontando ao Antigo Regime, se havia incrementado ao longo do século XIX. Entre as diversas medidas tomadas pelo estado liberal, encontra-se a aprovação em 1837 do Regulamento de Saúde Pública, que institui, a nível central, um Conselho de Saúde Pública, e, a nível regional e local, nos distritos um seu delegado, nos concelhos um subdelegado – estrutura que teria um largo porvir – e nas paróquias um outro representante. Deve-se igualmente a esta reforma a transformação das Escolas de Cirurgia de Lisboa e Porto em Escolas Médico-Cirúrgicas, desenvolvendo o ensino médico e pondo em marcha o processo que acabaria por unificar o estatuto desta profissão, processo que só iria finalizar com a República em 1911 (Garnel 2015; Ferreira 1990; Viegas, Frada e Miguel 2009).
23Não podemos, no entanto, limitar a intervenção do estado à criação de uma administração de saúde e higiene diretamente integrada na administração pública, pois indiretamente já a sua ação se fazia sentir através de instituições como as misericórdias, a que superintendia e às quais concedia privilégios e subsídios. O desenvolvimento da saúde pública conhece um certo incremento nas últimas décadas do século XIX, acompanhando o da medicina. Surgem então hospitais especializados, como o Real Hospital das Crianças (em 1882), o do Rego (em 1906), destinado ao combate às doenças infetocontagiosas, sanatórios para a luta antituberculose (em 1906) e começam a estabelecer-se as primeiras maternidades – embora só em 1932 viesse a ser concluída a primeira construída de raiz para o efeito. A investigação médica desenvolvia-se e institucionalizava-se em Portugal, articulada com o desenvolvimento da pesquisa científica internacional. Esta intervenção do estado português no campo da saúde mostrava que este, como os seus congéneres, era sensível ao avanço da pesquisa médica ligada à descoberta da ação dos micro-organismos e à sua profilaxia e combate, o que se prendia com a necessidade de evitar patologias na sua população que levassem ao definhamento da “raça nacional”, para utilizar uma linguagem da época (Pereira 2012).
24A intervenção do estado, no entanto, possuía enormes carências, que se revelavam na assimetria profunda do seu impacto em termos territoriais e sociais. Os meios e recursos mais modernos concentravam-se na capital – onde se haviam organizado os Hospitais Civis em 1913 e onde se criara um importante Instituto Bacteriológico em 1892 –, no Porto e em Coimbra. Num estudo sobre a epidemia de gripe de 1918 avançou-se a ideia de que a mortalidade provocada por esta seria maior fora destes grandes centros, incidindo sobretudo nos locais onde havia menos recursos de assistência médica e hospitalar (Frada 2009, 157). A maioria dos hospitais portugueses – 241 dos 251 – pertencia às misericórdias. Possuiriam recursos muito desiguais, não se podendo mesmo comparar os das sedes de distrito com os concelhios. Havia grandes estabelecimentos como o Hospital de Santo António, no Porto, o principal em todo o norte, e onde se procedia ao ensino médico, que era propriedade da Misericórdia. Mas este representaria um dos polos, sendo o maior e o melhor destes hospitais. No polo oposto encontrar-se-iam hospitais como o da Misericórdia de S. Vicente da Beira, no concelho de Castelo Branco. Os recursos económicos deste hospital eram tão fracos que chegou a deixar de isentar das despesas de internamento todos os pobres (Prata e Teodoro 2011, 76-89). A gripe grassou fortemente neste distrito, como vimos. A grande maioria de mortes da pneumónica nesta localidade ocorreu fora do hospital, algo que provavelmente foi geral em todo o país.
25Em 1920 havia em Portugal 2 580 médicos, um para cada 2 338 habitantes, e 1 577 farmácias, uma para cada 3 825 habitantes. Mas estas médias mascaram a assimetria existente a nível do território, pois uns e outras estavam concentrados nas maiores aglomerações, em particular em Lisboa e no Porto (Correia 1934). Os contrastes no seio do país eram enormes, com zonas como o Algarve, onde faltavam médicos e a cobertura hospitalar apenas abrangia uma parte muito reduzida da população (Girão 2009) – uma imagem que podemos generalizar com segurança para todo o país fora dos grandes centros. Temos ainda de ter em conta a diminuição dos efetivos de médicos e farmacêuticos (Pita e Pereira 2014), devido à sua mobilização para o conflito bélico na Europa e em África, mobilização essa que abrangeu muitos dos finalistas de medicina do país, transformados em oficiais médicos milicianos (Araújo 2014). Tal como em Portugal, o desvio de muitos dos recursos para o esforço militar afetou a capacidade de intervenção das autoridades nos países envolvidos no conflito (Honigsbaum 2009, 119).
26Haverá também que mencionar, em termos de assistência, o papel das associações de socorros mútuos, cuja principal função era prestar socorros de saúde. Mas a sua distribuição geográfica mostra igualmente profundas assimetrias, pois a esmagadora maioria concentrava-se em Lisboa e Porto; em 180 concelhos do país, onde viviam mais de 2,5 milhões de pessoas, não havia qualquer associação. Eram concelhos do interior norte e centro (Pereira 2012, 236-40). Estes dados também contribuem para mostrar que eram as zonas mais acentuadamente rurais as mais carenciadas em tudo o que respeitava à saúde e assistência. Há também diversas iniciativas da sociedade civil que se mobilizou para ajudar nesta luta contra a doença (Castro et al. 2009), também elas principalmente nos meios urbanos. A desigualdade no acesso à saúde, já patente a nível da distribuição territorial das instituições e agentes, articulava-se à desigualdade social. Estava-se num período muito anterior ao moderno serviço nacional de saúde, de que se esboçam as primeiras bases no final do Estado Novo, mas só criado em 1979, destinado a todos os cidadãos, “independentemente da sua condição económica e social”, de acordo com o artigo 4º da Lei nº 56/79, que o criou. A assistência médica na época da pneumónica “mantinha-se caritativa para os pobres, e comercial, de clínica livre, para o resto da população” (Campos 1983) – aquela que a podia pagar.
27A divulgação, nas décadas anteriores à epidemia, da importância de medidas de higiene e de medidas de carácter sanitário para evitar e combater as epidemias, na sequência das descobertas da bacteriologia (Kolata 2005; Vigarello 1999), levaram à criação de um Instituto Central de Higiene, em Lisboa, em 1899, dedicado ao estudo da higiene pública e da salubridade e à vigilância epidemiológica. Mas, apesar dessa consciência, em Portugal tinha-se feito muito pouco, e também neste âmbito as assimetrias eram enormes. As melhorias no abastecimento de água e na rede de esgotos, por exemplo, bem como a criação de outros serviços com impacto na higiene pública, quando haviam ocorrido, limitavam-se a Lisboa, Porto e alguma capital de distrito (Correia 1938). Fora daqui, as carências eram enormes – no Algarve, a maioria dos municípios nem sequer possuía posturas ou regulamentos de saúde pública (Girão 2009, 110). Por isso, as doenças infetocontagiosas, como a malária (sezões) – em zonas como os vales do Douro, Mondego, Tejo, Sorraia ou Sado (Saavedra 2013) –, a febre tifoide, o tifo exantemático, a varíola, o carbúnculo e a difteria eram uma presença familiar na sociedade (Sousa et al. 2009). A tuberculose era de tal modo mortífera que apenas em 1918 o número de vítimas fatais que provocou foi superado pela gripe (Correia 1938, 197).
28Em síntese, instituições, meios e agentes de saúde encontravam-se distribuídos assimetricamente. A nível local, apesar de nos distritos e concelhos haver delegados e subdelegados de saúde, estes tinham recursos muito limitados. Segundo um grande conhecedor do estado sanitário de Portugal no século XX, Fernando da Silva Correia, que viria a ser diretor do Instituto Ricardo Jorge, e que dedicou bastante atenção à pandemia, estes agentes pouco mais podiam fazer do que enviar ofícios, comunicações e solicitações às autoridades a quem assessoravam em matéria de saúde – os governadores civis dos distritos e os administradores de concelho (Correia 1938).
29Nas memórias do conhecido militante anarquista Emídio Santana, um documento importante sobre a situação económica, política e social da época, refere-se o pânico coletivo provocado pela epidemia (Santana 1987). Este estado de espírito encontrava eco em autoridades da época. Os estudos regionais são elucidativos sobre a situação. Dois deles dizem respeito ao distrito de Faro (Girão 2003, 2009). Atente-se ao telegrama eloquente que o governador civil de Faro – a principal autoridade, com o delegado de saúde, a quem incumbia o combate à epidemia a nível distrital – endereçou ao presidente da República:
Exmo. Senhor Presidente da República. Belém. Lisboa. Gravemente doente, solicito a V. Ex.ª protecção para o Algarve. Epidemia varre povoações inteiras havendo já cemitérios completamente cheios, fazendo-se enterramentos em campa rasa. Faltam medicamentos, arroz, açúcar, velas, petróleo, massas, manteigas, batatas, e há três dias que não há pão […]. Povo ordeiramente vem pedir-me pão e crianças vagueiam nas ruas chorando com fome. Director Geral de Abastecimentos mandou requisitar toda batata de Monchique, único concelho produtor e que já não tem batata para metade do distrito. Rogo protecção a V. Ex.ª acudindo a tanta miséria. A todo o momento cai gente na rua com doença e fome. Barcos de pesca param serviço por falta de gente. Não há peixe. (Girão 2009, 115)
30A informação contida num estudo sobre o concelho de Leiria converge com este diagnóstico, apontando para uma falta generalizada de alimentos bem como de assistência médica e medicamentosa, num fundo marcado por condições sanitárias deploráveis (Frada 2005). Mas, mesmo em Lisboa, onde se concentravam os dispositivos médicos, a situação era gravíssima, obrigando à reativação de hospitais e à improvisação de outros em escolas e conventos (Sobral et al. 2014, 81). A imagem com que ficamos é a de uma enorme falta de meios, de desorientação entre muitos dos agentes envolvidos no combate à epidemia e de um ambiente de alarme no seio das autoridades e da população. Entretanto, a incapacidade das autoridades, e nomeadamente das autoridades de saúde, para combater o flagelo não era algo limitado a Portugal, país onde as carências sociais, higiénicas e sanitárias eram flagrantes, pois, como afirmou na época Ricardo Jorge, “a epidemia enxerta-se sobre um fundo comovente de miséria”.5 Antes pelo contrário, era algo comum a muitos outros países, diferentes entre si, como a Espanha, os Estados Unidos da América e o Brasil. Todos foram impotentes perante uma epidemia de tal dimensão (Sobral et al. 2014, 82). Na Grã-Bretanha, tida como detendo das mais importantes “máquinas de saúde pública” na época, também os serviços de saúde terão dado uma resposta muito fraca à epidemia (Tomkins 1992).
31Todavia, a imagem alarmante dada pelo telegrama do governador civil de Faro não é a que transparece na imprensa da época e no discurso público das autoridades de saúde. Como em outros aspetos da vida social (Scott 1990), parece existir aqui uma forte dissonância entre o que ocorre no domínio público e o que ocorre num registo ocultado desse mesmo escrutínio, como a correspondência mencionada acima. A mais alta autoridade envolvida, o diretor-geral de saúde e comissário encarregue de monitorizar e combater a epidemia, era Ricardo Jorge, a figura mais prestigiada no domínio da saúde pública em Portugal, que estabelecera no princípio do século as bases do sistema público de saúde que encabeçava (Graça 1996; Nunes 2014). Estava convicto de que, sendo a epidemia causada por um vírus, todas as medidas tradicionais usadas no combate à propagação de agentes contagiosos pelo isolamento seriam ineficazes; só uma vacina constituiria uma reação adequada (Jorge 1919; Sobral 2009a, 85). Tal não obstou a que se encerrassem escolas e universidades, e o próprio Parlamento, ou que se tomassem medidas de interdição relativamente a feiras e peregrinações (Frada 2009) para obstar ao contágio, ou ainda que se promovessem desinfeções. Mas, além de o comissário não acreditar que o isolamento pudesse conter um vírus tão violento, também pensava que a vida social devia prosseguir “em todas as suas modalidades, incluindo as distrações, para não aumentar o isolamento e o pânico” (Jorge 1919, 31-32). Os teatros de Lisboa, por exemplo, continuaram a funcionar durante o inverno de 1918-19.
- 6 A Capital, 19-10-1918.
- 7 O Século, 14-10-2018.
32Procurando centralizar a informação através da sua pessoa, o comissário envolveu-se numa estratégia de comunicação em que não se negava a gravidade e extensão do flagelo, pois, como declarou, “Nem homens nem nações nem cidades podem erguer barreiras contra a propagação duma epidemia que as não respeita e nem conhece e se espraiou por toda a Europa e até pela Ásia”.6 Nem tão-pouco se escondiam os obstáculos criados pela dimensão da epidemia e pela conjuntura de crise: “A extensão do mal e o aperto dos tempos embaraçam os socorros”.7 A atitude e o discurso realista da principal autoridade médica visaria diminuir a perceção da vulnerabilidade da população, atenuar o risco e restaurar a confiança nas autoridades (Lima et al. 2009). Também se tentou lidar com os receios da população, silenciando factos reveladores da gravidade da epidemia. Em diversas partes do país as autoridades determinaram que, durante a epidemia, os sinos das igrejas deixassem de tocar nos funerais (Prata e Teodoro 2011, 80), procurando assim ocultar as mortes frequentes.
33Mas as atitudes das autoridades públicas estiveram longe da uniformidade. Algumas poderiam ter mesmo um efeito contrário ao desejado pela mais elevada autoridade sanitária, e induzir inquietação e medo. Poderá ser esse o caso da deslocação do presidente da República a Trás-os-Montes em finais de setembro de 1918, numa viagem amplamente noticiada. O presidente deslocou-se num comboio e levava consigo socorros para os doentes pobres vítimas da pneumónica, bem reveladores das carências da população e da ausência de meios eficazes para combater o mal: vinte sacas de açúcar para xarope, trinta sacas de arroz e cinquenta cobertores.8 Este gesto, que se coadunava com a imagem de homem-forte e providencial que se construía de Sidónio, não chamaria a atenção para a gravidade da situação? E o mesmo se poderá dizer da intervenção das autoridades eclesiásticas durante a pandemia. A Igreja, possuidora de uma rede de informação que atingia a população iletrada, difundia medidas profiláticas a tomar, mobilizava a sua rede clerical e laica para auxílio aos doentes, apelava a preces e à oração pública para pedir o fim do flagelo, e fornecia mesmo explicações para a doença enquanto castigo divino pela maldade humana (Sobral et al. 2009b). Ora, este comportamento do clero contribuiria indubitavelmente para tornar a epidemia em algo omnipresente na mente dos fiéis.
34É muito interessante atentar na posição da imprensa, que detinha o monopólio da comunicação na época, face à epidemia. Como o mostra a análise dos principais jornais de então, e apesar da existência de censura, aquela foi descrita como um perigo aterrorizador, que deixava a população apavorada. No entanto, ao longo do surto, a gripe raramente ocupou a primeira página e teve de concorrer com outros assuntos a que os jornais concediam grande importância. A crise económica e social provocada pela carestia, as movimentações de protesto, como as greves de novembro de 1918, os acontecimentos políticos da última fase do Sidonismo, e a Grande Guerra, com eventos tão notórios como a batalha de La Lys, a 9 de abril de 1918, em que o exército português sofreu pesadas baixas, e o Armistício de 11 de novembro do mesmo ano, que pôs fim à contenda, terão contribuído para relativizar o seu impacto em termos noticiosos. Deve também considerar-se que o noticiário sobre a epidemia se inscrevia num contexto em que a existência de doenças contagiosas era algo bastante comum, pois elas eram então a principal causa de morte em Portugal. De facto, no ano de 1918 houve epidemias sucessivas de tifo exantemático, gripe infeciosa (de cariz benigno), febre tifoide, varíola e, finalmente, a gripe pneumónica, para além da persistência gravíssima da tuberculose (Sousa et al. 2009). Os jornais estavam habituados a relatar surtos de doença e foi na sequência das outras epidemias que se noticiou a gripe pneumónica (Lima et al. 2009; Almeida 2012). Assim, nos jornais da época, a imagem da gripe é, de algum modo, banalizada. Também os rastos literários e iconográficos da pneumónica são escassos nos documentos da época e dos anos que se seguiram, apesar do sofrimento que sabemos que acarretou (Melo 2009).
35E, tal como ocorreu a nível mais global, também em Portugal a pneumónica não persistiu como evento celebrado pela memória pública, em dias próprios, através de rituais e comemorações que a evocassem, num contraste enorme com o ocorrido com a participação na Grande Guerra, cujos monumentos ainda hoje nos interpelam. Mas esta inseriu-se numa política de estado, e justificada em nome do interesse superior da nação que legitimava “morrer pela pátria”, um tópico nacionalista multissecular (Kantorowicz 1951). Em contrapartida, a morte pela doença não se prestava a ser inscrita em nenhuma narrativa coletiva exaltante. O volume enorme de abordagens historiográficas sobre o conflito bélico não pode comparar-se com o número escasso e recente de estudos sobre a pandemia (Sobral et al. 2009a; Garnel, 2009). A recordação da pandemia persistiu, no entanto, na memória das famílias e dos indivíduos. O escritor Armindo Rodrigues, então um jovem de 14 anos, legou-nos um testemunho escrito raro dessa memória e do sofrimento provocado pela pandemia. Fala da morte do pai em dezembro de 1918, pouco depois do assassinato de Sidónio:
O meu pai não morreu nesse dia [21 de novembro, dia da morte de Sidónio]. Morreria no dia de Natal. Teve uma agonia demorada e penosa. A um mês de se completarem, pois que estamos em novembro de 1984, sessenta e seis anos da morte dele, cuido sentir-lhe o arquejo aflito e ver-lhe os olhos ternos e baços, fitos nos meus, atónitos e impotentes. (Rodrigues 1998, 82-83)
36Este artigo debruça-se sobre a pandemia de gripe de 1918-19, procurando situá-la, de modo necessariamente sintético, no seu contexto histórico internacional e nacional. A pandemia devastou a população mundial, num tempo dominado pela Grande Guerra e sem que as autoridades, mesmo as dos países mais desenvolvidos em termos dos progressos mais recentes da ciência médica, dispusessem de meios eficazes para a combater. Os seus efeitos mortíferos fizeram dela o exemplo mais temível das epidemias e um precedente que alarma ainda hoje os meios científicos, temerosos de que algo comparável possa vir a reproduzir-se. Portugal era então um país rural, pobre, e, apesar dos progressos registados na medicina, dotado de poucos recursos e deficientíssimo em termos de higiene e sanidade públicas, como o provam a importância das doenças infetocontagiosas, então a primeira causa de morte, cuja propagação está associada às carências neste âmbito. A epidemia sacudiu um país profundamente dividido política e culturalmente. À falta de recursos em matéria de saúde e assistência juntavam-se as carências alimentares provocadas pela participação no conflito.
37As atitudes das autoridades oscilaram entre a tentativa pública de evitar o pânico e minimizar o medo, como sucedeu com a principal autoridade de saúde, ou mesmo de silenciar sinais óbvios dos efeitos da epidemia, a comportamentos com um sentido contrário e à confissão do alarme em comunicações confidenciais. E, embora a imprensa referisse a epidemia, e o seu carácter terrífico, acabava por relativizá-la, através do relevo conferido a outras epidemias ou aos eventos políticos nacionais e internacionais. À época não se tinha ainda, evidentemente, uma imagem adequada do impacto mortífero da pandemia, o que terá afetado o modo como foi percecionada. E, não podendo ser mobilizada por nenhuma grande narrativa pública nacionalista, não sendo comemorada nem imortalizada em monumentos, a pandemia acabou por ser bastante esquecida na esfera pública, continuando, no entanto, presente na memória daqueles que afetou.