- 1 ANTT, Ministério do Interior, livro 71, fls. 58 ss. Registe-se, sem que caiba aqui analisá-la, a im (...)
1Em outubro de 1918, Portugal sucumbia (literalmente) perante a força de uma gripe que alastrava, descontrolada, pelo país. Entre o dia 2 e o dia 30, presidentes de câmara, governadores civis, subdelegados de saúde, entre muitos outros, enviaram 110 telegramas para o Ministério do Interior, implorando providências urgentes “em virtude da epidemia”.1 No seu conjunto, capta-se um país em desespero, desprovido de recursos financeiros e bens essenciais para enfrentar a epidemia, desde a gasolina para os carros de transporte dos doentes ao açúcar para a preparação de medicamentos – dois dos produtos mais solicitados –, mas igualmente sem farmacêuticos, enfermeiros, médicos, hospitais e até cemitérios. O pânico tinha todo o fundamento, já que o país estava a viver o pico de uma crise epidémica, que, por seu turno, se integrava naquela que foi a mais letal das 10 pandemias de gripe dos últimos 300 anos, com um saldo de vítimas mortais que tem sido estimado entre 50 e 100 milhões em todo o mundo (Johnson e Mueller 2002). Mesmo aceitando os dados mais recentes (Spreeuwenberg et al 2018), que reveem consideravelmente em baixa aquelas estimativas, apontando para um total mundial de 17,4 milhões de óbitos, são números que traduzem inequivocamente a dimensão da catástrofe.
2Em Portugal a gripe terá infetado entre um quinto e um terço dos cerca de seis milhões que então compunham a população residente, ou seja, entre 1,2 e 2 milhões de pessoas. Com a particularidade de ter atingido especialmente a população em idade ativa, entre os 20 e os 40 anos, reforçando assim o seu impacto na economia, no mercado laboral, na fertilidade, na vida familiar e na organização social em geral. Quanto ao número de mortes causadas pela doença, ele permanece por apurar com rigor. Durante muito tempo aceitou-se que poderiam ter sido entre 60 e 100 mil, mas investigações mais recentes apontaram para um número concreto bastante superior, de 135 257 óbitos (Bandeira 2009), e as últimas estimativas propõem um total de 117 764 (Nunes et al 2018). Tudo isto em apenas um ano ou pouco mais, desde o início da epidemia em maio de 1918 (ou mesmo em março, como sugerem os novos dados apresentados adiante no artigo de Rebelo-de-Andrade e Felismino) até ao seu fim em maio de 1919, com a agravante de o período de maior virulência e letalidade se ter concentrado nos últimos três meses de 1918. Para se ter uma ideia mais expressiva dos números em causa e da magnitude desta catástrofe na escala portuguesa, bastará comparar os 117 764 mortos causados pela pneumónica, no espaço de apenas um ano, com o número de vítimas mortais da Grande Guerra (8 000), dos 16 anos da guerra colonial (9 000) ou dos últimos 30 anos da epidemia VIH/Sida (10 500). Ou notar que, mantendo as proporções com a população atual, aquela cifra corresponderia nos dias de hoje a algo como 206 mil mortes.
3É a história dessa gripe, que ficou conhecida em Portugal como “pneumónica” ou “gripe espanhola”, que se pretende revisitar no dossier que agora se apresenta, reunindo quatro estudos. O primeiro, de Frédéric Vagneron, faz um balanço da produção historiográfica internacional sobre a pandemia de gripe de 1918-1919, e discute o modo como se escreve a história e o lugar do historiador na leitura e explicação do passado. O segundo, assinado por José Manuel Sobral e Maria Luísa Lima, fornece uma síntese da pneumónica em Portugal – uma espécie de retrato de conjunto – com base no conhecimento disponível, e situa a epidemia no contexto político, social e económico do país. O terceiro, de Helena Rebelo-de-Andrade e David Felismino, analisa a (re)ação médica e o debate científico ocorrido na época, procurando explicar, à luz da biologia, a extraordinária virulência do vírus H1N1. Por fim, o artigo de Laurinda Abreu propõe a integração do estudo das epidemias num quadro temporal de longa duração, de forma a captar as continuidades e descontinuidades transepocais.
4Entenda-se este dossier como um pequeno contributo para assinalar a importância de um tópico da história portuguesa que merece ser revisitado por várias razões: porque envolve um considerável potencial de colaboração interdisciplinar; porque, pelo próprio facto de se inserir numa pandemia, se reveste de uma natureza transnacional e global que vale a pena explorar de acordo com as novas tendências historiográficas; e, sobretudo, porque ainda está distante o seu completo esclarecimento. A oportunidade deste dossier justifica-se não apenas pela relevância do tema ou pelo facto de se cumprirem 100 anos sobre a sua ocorrência. Justifica-se muito mais pela necessidade de relançar o estudo de um tema relativamente ao qual 100 anos de investigação não conseguiram ainda dar respostas definitivas – nem em Portugal nem a nível internacional – apesar do muito que se tem feito.
- 2 Entre os quais se contam Giles-Vernick et al (2010), Bristow (2012), Honigsbaum (2014) ou Spinney ( (...)
5Como adiante escreve Frédéric Vagneron, a pandemia de gripe de 1918-1919 só se impôs verdadeiramente no campo historiográfico nos anos 70 do século passado, quando, no contexto da renovação da História, emergiu uma nova história da medicina, comprometida com as dimensões sociais da doença. Na década seguinte, o surgimento do VIH/Sida e das ameaças epidémicas que se lhe seguiram, associadas às dificuldades sentidas pelos cientistas em identificar os seus agentes patogénicos e modos de propagação, reforçaram o interesse histórico na “gripe espanhola”, o mesmo se vindo a verificar mais tarde por ocasião da epidemia de “gripe A” ou “gripe suína” de 2009. Este interesse foi acompanhado por uma ampliação dos objetos de análise, a partir de novos enfoques e interpelações à documentação, ao mesmo tempo que a utilização da informática e o trabalho em equipas de investigação permitiram aferir com maior rigor os danos populacionais causados pela pandemia de 1918. Deste investimento resultou o resgate e divulgação de um conjunto assombroso de fontes, obrigando a rever a teoria, defendida por Alfred Crosby no seu influente trabalho Epidemic and Peace (1976), de que a memória da gripe, doença já conhecida em 1918, num mundo onde as epidemias eram frequentes, terá sido obliterada pela da Grande Guerra. Entretanto, a investigação internacional tem-se multiplicado na última década, e ainda mais nos últimos dois ou três anos (pelo “efeito centenário”), com a publicação de dezenas de artigos – mais nas revistas de ciências médicas e afins do que nas revistas de história – e de vários livros que são já referências na área.2
6Em Portugal, depois dos escritos produzidos na própria época, o tema só voltou a ser objeto de atenção específica e consistente (descontando, portanto, as referências a título subsidiário que geralmente lhe são feitas em obras de caráter mais geral sobre aquele período) com o estudo de Arnaldo Sampaio (1958) e, volvidos outros 30 ou 40 anos, com as investigações de João Frada (1989, 1998) e, pouco depois, de Helena Rebelo-de-Andrade (2001) – todos estes, investigadores da área das ciências médicas. No campo da história e das ciências sociais, o trabalho mais sistemático e mais alargado foi conduzido a partir de 2004 por uma equipa de investigadores, da qual faziam parte os dois autores do segundo artigo deste dossier, cujo resultado mais abrangente, até por contar com múltiplas contribuições, foi o livro A Pandemia Esquecida: Olhares Comparados sobre a Pneumónica (Sobral et al 2009), que permanece como a principal referência no campo. Também merecem registo os trabalhos desenvolvidos nos últimos anos por Maria Antónia Almeida, especialmente a partir do estudo da imprensa (v.g. Almeida 2013), ou aquele que Fátima Nunes (2014) publicou numa obra de interesse comparativo sobre a pneumónica na Península Ibérica e nas Américas. O leitor interessado poderá encontrar balanços mais desenvolvidos da literatura da especialidade, portuguesa e internacional, nos artigos que se seguem.
- 3 Um bom ponto de situação em Oxford e Gill (2018).
7Mas o que mais impressiona é que, a despeito da imensa investigação já realizada por todo o mundo, esta tem progredido com uma surpreendente lentidão – note-se, por exemplo, que uma cabal identificação e reconstituição do genoma do vírus que esteve na origem da epidemia só foi alcançada no princípio deste novo milénio (Stevens et al 2004; Taubenberger et al 2005). A diversidade de temas associados a esta pandemia, e a complexidade de muitos deles, explicarão certamente esta lentidão e o facto de subsistir um alargado leque de questões, algumas delas básicas, ainda por esclarecer devidamente.3 Entre elas se conta a determinação do ponto de partida da pandemia, que, de acordo com as evidências valorizadas pelos diferentes autores, poderá ter tido origem em três continentes (Ásia, Europa e América). Porém, tende a levar primazia a América do Norte, concretamente o Kansas, onde a gripe terá surgido em janeiro de 1918, entre os soldados, ou, como defende John Barry (2004), entre os agricultores, que terão recebido o vírus diretamente das aves, transmitindo-o aos militares, que o terão feito chegar à Europa, na primavera do mesmo ano – assunto adiante discutido por Helena Rebelo-de-Andrade e David Felismino. Apesar das muitas interrogações ainda em aberto, há, em pelo menos quatro pontos, um razoável consenso entre os estudiosos da pandemia de 1918-1919: a manifestação da doença em três vagas, a primeira e a terceira relativamente benignas, ao contrário da segunda, verdadeiramente explosiva, surgida em agosto, na frente ocidental, no nordeste de França; o ataque preferencial aos jovens adultos e não às crianças e aos mais velhos, como era usual em surtos de gripe; a sua rápida propagação, num tempo de grandes deslocações de soldados e trabalhadores, por comboio ou por barco; a demora na reação das autoridades, políticas e médicas, divididas quanto à ideia de que o “bacilo de Pfeiffer” seria o agente da doença, segundo descoberta do bacteriologista alemão Richard Pfeiffer em 1872, questões também tratadas neste dossier.
- 4 O mesmo se pode dizer dos Açores e, especialmente, da Madeira, que terão sido as regiões portuguesa (...)
8Se bem que a pandemia causasse um rude golpe na bacteriologia triunfante, suscitando a perplexidade dos cientistas perante a imprevisibilidade do comportamento do agente patogénico, capaz de se transformar e se propagar rapidamente, a maioria dos países não ponderou o estabelecimento de cordões sanitários nem a reativação das estações quarentenárias. Bastante contestadas desde meados de Oitocentos pelos constrangimentos que acarretavam para a economia, e mais ainda depois das descobertas científicas de Pasteur e Koch, as medidas tradicionais de combate às epidemias tendiam a ser consideradas desnecessárias e pouco eficazes. Do ponto de vista historiográfico, é comum recorrer ao exemplo da Austrália para demonstrar que até os países que as implementaram não escaparam ao vírus da gripe. Ainda que assim seja, não se pode ignorar que esta conseguiu evitar a entrada da doença até ao final de janeiro de 1919, quando alguns soldados fugiram da estação quarentenária de Sydney e espalharam a gripe, deixando um rasto de 12 a 15 mil vítimas mortais em todo o território (Cohn 2018, 512-521); apesar de tudo, um número muito inferior ao verificado em Portugal, para uma população pouco maior do que a da Austrália. Elucidativo, também, na mesma região do Pacífico, o caso das ilhas do arquipélago de Samoa: a parte controlada pelos Estados Unidos, colocada sob rigorosas medidas de quarentena assim que foi dado o alerta da epidemia, escapou ao contágio, por oposição às ilhas adjacentes da Samoa ocidental, onde terá matado cerca de 22% da população. Protegidas, em parte, pelo isolamento natural também estiveram as ilhas Canárias,4 ao contrário da Espanha continental, que só tardiamente, e sem grande consistência, estabeleceu cordões sanitários nas fronteiras com Portugal e com França (Chowell et al 2014; Salas-Vives e Pujadas-Mora 2018). Está igualmente confirmado que, nas cidades americanas e canadianas que implementaram rígidas restrições à vida pública no início da epidemia, esta teve efeitos mais mitigados (Cohn 2018, 425-445, 502-504).
9Apesar de todas as dificuldades e oscilações que ainda envolvem a contabilização das vítimas da influenza, em Portugal e no mundo, tem-se assumido que Portugal terá registado uma das maiores taxas de mortalidade na Europa (entre 9,8 e 22 por 1000 habitantes, consoante as diferentes estimativas), sendo este um dos indicadores que, obviamente, deve suscitar mais reflexão. A figura central do combate à epidemia de 1918 em Portugal foi, como bem se sabe, o diretor-geral de Saúde, Ricardo Jorge. Sendo conhecido o seu pensamento, não seria expectável que defendesse o encerramento das fronteiras e a instalação de lazaretos para organização de quarentenas. Tal como já tinha acontecido aquando do surto de peste que atingiu o Porto em 1899, Ricardo Jorge optou pelo isolamento dos doentes e por recomendações higiénicas e dietéticas. A questão fulcral é perceber porque terá sido tão grande o desaire demográfico português quando comparado com outros países que aplicaram disposições similares.
10A explicação para o número de vítimas mortais da epidemia de 1918 em Portugal estará numa eventual particular exposição aos circuitos de difusão do vírus, nas precárias condições do país, ou no tipo e no tempo de resposta das autoridades? Num cenário de generalizada retração económica e convulsões sociais, agravado pelos efeitos da participação na guerra e pela instabilidade política da República, a maioria da população portuguesa viveria, do mesmo modo que no século precedente, entre a pobreza e a miséria, em condições mínimas de saúde ou higiene, não obstante as intenções higienistas e sanitárias inscritas no Regulamento Geral de Saúde e Beneficência Pública de 1901. É prova disso mesmo o facto de ainda se manterem endémicas várias doenças, já em acentuado recuo em vários países da Europa, como referem José Manuel Sobral e Maria Luísa Lima. Quando se compara a reação governamental à crise de 1918 com a atuação perante as epidemias de cólera de 1884 e 1885, adiante analisada no artigo de Laurinda Abreu – epidemias que fizeram pesadas baixas em Espanha e noutros países europeus e deixaram praticamente incólume Portugal –, verifica-se uma mudança substancial de estratégia política. No primeiro caso, o governo de Fontes Pereira de Melo, ciente da debilidade do país e das suas próprias limitações em termos de saúde pública, agiu por antecipação e impôs um rígido controlo das fronteiras, marítimas e terrestres, e da mobilidade de pessoas e mercadorias, substituindo o saber médico pelo poder das armas dos militares. Em 1918, diferentemente, Portugal colocou-se ao lado dos países tidos como mais desenvolvidos e, como eles, procurou agir em função dos mais recentes conhecimentos médicos e preceitos higienistas – uma opção de política de saúde pública que, a avaliar pelos resultados, não foi porventura a mais adequada às circunstâncias do país.
11Dir-se-á, com razão, que as características das duas epidemias (cólera e gripe) não são comparáveis, embora não colha o argumento de que o período de incubação do vírus da gripe não permitiria a identificação dos portadores da doença, já que as quarentenas oitocentistas tendiam a iniciar-se com um isolamento mínimo de duas semanas, progressivamente reduzido à medida que decrescia o vigor da ameaça epidémica. Ou, ainda, que mesmo que a República tivesse optado pelos cordões sanitários, lhe faltava o exército, mobilizado nas frentes de guerra. Todavia, o objetivo aqui não é estabelecer comparações porventura anacrónicas, antes fazer sobressair a pertinência do estudo da pandemia de 1918-1919 num arco temporal que transcenda o próprio evento. Sem esquecer, neste processo, o papel desempenhado pelos médicos, que em 1918 tinham um capital social e político de que não usufruíam no século XIX, não exclusivo de Ricardo Jorge. Ainda assim, justifica-se questionar o verdadeiro poder dos médicos, nomeadamente da Direção-Geral de Saúde, na gestão das epidemias. E aqui chega-se à segunda parte da questão: a celeridade de atuação das autoridades políticas quando o problema (a epidemia) deixou de poder ser ignorado.
12O primeiro telegrama registado no gabinete do Ministério do Interior, onde era centralizada a correspondência, data de 2 de setembro de 1918.5 Identificada em agosto na zona do Porto, a epidemia já então alastrava sem controlo pelo país, atingindo o Algarve nos começos de outubro. Ora, só nesta altura, um mês depois de ter sido oficialmente conhecido o pedido de socorro inicial, foram difundidas as instruções oficiais, algumas delas já desenhadas no século anterior durante o combate à cólera (entre outras, o direito de utilização de espaços públicos e privados para hospitais temporários, o recrutamento de médicos, o isolamento dos infetados, a proibição de feiras). E só a 8 de outubro de 1918, já o Ministério do Interior soçobrava com dezenas de telegramas, Ricardo Jorge foi nomeado comissário-geral do governo, com poderes para organizar o combate à epidemia, um dado elucidativo da efetiva autonomia que o governo reconhecia à Direção-Geral de Saúde. Relevante, ainda, o facto de o Ministério do Interior continuar a receber as súplicas da população e de serem os seus funcionários a decidir sobre o seu destino: “saúde”, “trabalho” ou “subsistências” (leia-se, respectivamente, para a Direção-Geral de Saúde, para o Ministério do Trabalho ou para o Ministério das Subsistências e Transportes). Por tudo isto, regra geral, só após alguns dias a mensagem chegava ao destinatário escolhido pelo gabinete ministerial, retardando, assim, a ação pública em situações consideradas urgentes e de gravidade extrema – um cenário que não podia ser mais contrastante com o que ocorreu em 1885, como descrito no último texto deste dossier.
13É certo que, através da imprensa e dos seus representantes no território, o diretor-geral de Saúde procurava agilizar a comunicação com o país; contudo, as recomendações e as diretrizes que lhe enviava não resolviam as necessidades materiais sinalizadas e nem sempre chegavam ao destino, não só porque vários interlocutores oficiais acabaram por ceder à doença, mas também porque outros pediram a exoneração em pleno pico da epidemia. Foi o caso de vários governadores civis, a 14 de outubro, eventualmente na sequência da situação política que levara o governo a decretar o estado de emergência no dia anterior. A repetição dos mesmos pedidos ao longo de várias semanas revela a dificuldade da Direção-Geral de Saúde em reproduzir no resto do país as medidas que estava a executar em Lisboa.
14Refira-se, a este propósito, que o desconhecimento do paradeiro dos arquivos da Direção-Geral de Saúde e dos ministérios que a tutelavam – o Ministério do Interior até julho de 1918, passando para o Ministério do Trabalho e da Previdência Social, onde ficou até 1925, ano de transferência para o Ministério da Instrução Pública, até 1927 –, dificulta a perceção do quadro geral em que se desenrolou o combate oficial à pneumónica. Urge, pois, não só encontrar esta documentação, seguindo o rasto das múltiplas transferências de serviços e dos seus fundos documentais, como apostar no estudo dos arquivos municipais e distritais, à semelhança do trabalho realizado para o Algarve por Paulo Girão (2003). Somente um conjunto significativo de estudos locais, que identifique especificidades territoriais, permitirá reconstruir o cenário nacional e avaliar, por exemplo, se terá havido interajudas e ações coordenadas, vicinais ou regionais, ou se, como parece, a maioria das terras esteve entregue a si própria e ao seu desespero.
- 6 Alguns exemplos do que tem sido ou pode ser feito nesta matéria em Brainerd e Siegler (2003), e Kar (...)
- 7 Questões já estudadas em outros contextos – ver, por exemplo, Mamelund (2004) e Bloom-Feshbach et a (...)
15Este é apenas um exemplo do muito que ainda está por fazer no estudo desta matéria. Quer para esclarecer alguns dos aspetos básicos relativos à epidemia, sobre os quais ainda não há consenso nem dados definitivos – como a cronologia e a geografia dos primeiros focos de infeção, o número de mortos e de infetados, ou a sua distribuição sociológica –, quer para desenvolver alguns tópicos que simplesmente têm sido descurados ou que merecem uma investigação mais aprofundada e mais sistemática. É o caso, por exemplo, do impacto económico específico da pneumónica (desde os custos do combate à doença até aos seus efeitos disruptivos sobre o mercado de trabalho e a atividade das empresas).6 Ou do seu impacto de curto e médio prazo sobre a natalidade e a fertilidade, visto que a gripe infetou e matou muita gente em idade fértil.7 Por outro lado, no domínio de uma história das emoções, valeria a pena investigar como reagiram as pessoas, as famílias e as comunidades a uma doença que vitimou tanta gente num lapso temporal tão curto, gerando possivelmente comportamentos de pânico individual e coletivo. Entre as matérias que têm sido mais negligenciadas pela investigação histórica está o curso da epidemia nas colónias portuguesas de África e da Ásia, sobre o qual quase nada se sabe. Outro assunto que bem merecia um estudo específico é o dos efeitos da gripe (em termos médicos, de moral e de prontidão de combate) entre as tropas portuguesas que se encontravam nos campos de batalha da Grande Guerra. Outro, ainda, seria o de investigar de modo mais sistemático (indo além do que já foi feito nesse sentido) o papel da Igreja e de outras instituições da “sociedade civil” no combate à doença e no apoio às populações, complementando uma investigação que tem estado talvez demasiado centrada na ação dos poderes públicos.
16Estas – e sem que seja nossa pretensão definir aqui uma agenda de trabalho futuro – são algumas das matérias ou linhas de investigação que merecem ser desenvolvidas. E não apenas por historiadores. A pneumónica de 1918-1919 é uma área que bem justifica uma abordagem multidisciplinar, convocando a participação, além dos historiadores, de especialistas de outras ciências sociais (v.g. economia, demografia, sociologia, psicologia) e de várias especialidades das ciências médicas, seja através de uma divisão de trabalho coordenada a partir de uma agenda previamente estabelecida, seja através de trabalhos em parceria interdisciplinar, dos quais, de resto, se oferecem dois bons exemplos com os artigos de J. M. Sobral e L. Lima, e de H. Rebelo-de-Andrade e D. Felismino, incluídos neste dossier.