1O processo de Gomes Freire de Andrade e seus companheiros visou a desarticulação de um movimento liberal centrado em Lisboa e com ramificações em outras zonas do país. Viria a tornar-se um acontecimento fundador do liberalismo oitocentista e o seu primeiro episódio de natureza militar. E constituiu a primeira manifestação violenta da contra-revolução, percursora da futura violência miguelista. Poder-se-ia dizer que o grande combate das primeiras décadas do século oitocentista português está aqui representado em síntese.
2Raros foram os processos políticos que se tornaram num acontecimento histórico com uma repercussão tão relevante e prolongada, colocando-o ao lado de outros casos célebres: o processo dos Távoras, instrumento da consolidação do poder pombalino, ou o mais recente processo dos assassinos de Humberto Delgado, condenação pública do regime deposto, ou ainda os processos políticos do tempo de D. Miguel. Poderíamos aliás interrogarmo-nos acerca da razão por que estes últimos, envolvendo um universo muito mais amplo, cerca de 10.000 pessoas, dos quais 26 réus enforcados em 1829 e centenas de presos, que jazeram nas masmorras até á vitória do liberalismo em 1834, alguns deles ali falecendo como Borges Carneiro, são relativamente pouco recordados. O processo do general Gomes Freire de Andrade e de cerca de duas dezenas de outros elementos militares e de alguns civis teve a particularidade de o seu sentido se inverter na memória pública num prazo muito curto: de instrumento de consolidação do antigo poder multissecular, decorridos apenas três anos vai ocupar um lugar destacado na construção da memória do novo regime liberal em Portugal. A construção dessa memória atravessou o século XIX, sendo retomada pela República no seu primeiro centenário, em 1917. No ano de 2017 cumpriu-se o bicentenário. É interessante fazer a comparação da forma como se organizaram as comemorações dos dois centenários.
3As comemorações do 1º centenário desdobraram-se em dois níveis, político e científico. A sua dimensão cívica foi ímpar. O dia 18 de Outubro foi declarado feriado nacional e foi emitido um selo postal evocativo. As celebrações centraram-se em Lisboa, onde foi promovida a colocação de uma placa comemorativa na residência de Gomes Freire de Andrade no momento da prisão, na Rua do Salitre, e uma placa em homenagem aos outros 11 condenados num prédio no Campo dos Mártires, assim nomeado em 1879, em sintonia com a Rua Gomes Freire, cujo nome data também desse ano. No Largo já teria sido colocada uma placa com os nomes dos 11 condenados em 1880 segundo José-Augusto França, porventura estaria degradada. A segunda placa colocada em 1917 também teve uma história atribulada, tendo estado recolhida num depósito da câmara pelo menos entre 1947 e a década de 1990. Graças à petição dos vereadores David Mourão-Ferreira, Natália Correia e Adriano Gusmão, entre outros, datada de 1992, veio a ser restaurada e recolocada dois anos mais tarde, num canto do jardim daquela enorme praça. Em Lisboa, desfiles públicos de considerável dimensão, que contaram com a participação de escolas públicas, acompanharam a colocação das placas em 1917, com a presença das principais entidades políticas e militares, além de outras cerimónias públicas.
4No discreto monumento em homenagem a Gomes Freire de Andrade, erguido em 1853 na esplanada da Fortaleza de S. Julião, em Oeiras, por iniciativa do general Cabreira, governador do forte, foi igualmente colocada uma placa comemorativa do centenário. No ano do seu bicentenário encontrava-se em obra. Quanto ao monumento de homenagem conjunta a ser erguido no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, planeado em 1879 e de novo projetado em 1917, quando se colocou a primeira pedra, esse não foi realizado até hoje. Apenas um discreto busto de Gomes Freire, oferecido pela maçonaria à Câmara Municipal de Lisboa, foi colocado em 2003 na rua com o seu nome, junto ao largo.
5Além da vertente cívica do 1º centenário, é de assinalar a participação da Academia de Ciências de Lisboa. Promoveu estudos científicos publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra. A Academia organizou uma sessão comemorativa em 18 de Novembro de 1917, na qual António Ferrão interveio invocando a brilhante carreira militar de Gomes Freire de Andrade e louvando as qualidades patrióticas de sacrifício da vida, em consonância com o nacionalismo bélico e imperialista daqueles anos. Para ele, os soldados de 1917 honravam a memória de Gomes Freire e “as virtudes da raça portuguesa ao verter o seu sangue heróico nos campos de batalha da África, da Europa em defesa da Pátria ameaçada, da liberdade ferida, da democracia ultrajada, da justiça vilipendiada” (Ferrão 1920). A Revista Militar também se associou a estas comemorações, seguindo uma interpretação próxima. Ali publicou Eduardo Noronha uma biografia militar muito completa descrita igualmente num tom heróico, que culmina na narrativa de 1817, terminando numa linguagem de cariz religioso: “Desde que o acórdão da Relação é lavrado, a 15 de Outubro de 1817, Gomes Freire e os demais co-acusados, em absoluto mártires pelos tormentos sofridos até aí, entram nos domínios litúrgicos da canonização” (Noronha 1917).
6Entre as diferentes publicações da Academia, destacam-se o livro sobre Gomes Freire na Rússia, da autoria de António Ferrão (1917), baseado em novos documentos, nomeadamente epistolares, e o exaustivo levantamento bibliográfico organizado por Henrique de Campos Ferreira Lima (1919). Permite-nos hoje seguir o percurso das publicações sobre este acontecimento, que claramente se podem agrupar em duas fases. Na fase apologética durante o primeiro período vintista, muito ligada à revisão do processo, encontram-se textos jurídicos e poesia lado a lado, a que se deve juntar o célebre Requiem op. 23 ”Camões” de Domingues Bomtempo. Foi re-dedicado pelo seu autor aos “mártires da Pátria”, executado pela primeira vez sob a batuta do compositor em 1821 na missa de homenagem na igreja de S. Domingos, em Lisboa. A imprensa também teve uma presença significativa, sendo de destacar os periódicos do exílio ainda antes da revolução de 1820.
7Seguiu-se um prolongado silêncio até meados do século, o período miguelista e da guerra civil fora naturalmente pouco propício e por outro lado alargou enormemente o universo dos “mártires da pátria”. Só a partir dos anos cinquenta, estabilizada a monarquia constitucional, se principiam a publicar vários estudos, essencialmente biografias de Gomes Freire de Andrade. A mais completa e interessante, por isso também a mais conhecida, foi escrita por Raul Brandão (1914), já perto do centenário. Foi objecto de repetidas reedições na época e de novo nos nossos tempos. Durante o Estado Novo, Luís Sttau Monteiro contribuiu fortemente para a renovação da memória nacional com a peça de teatro “Felizmente Há Luar” (1961), titulo inspirado numa frase proferida pelo secretário de Estado Miguel Pereira Forjaz em 1817, texto hoje inserido em boa hora no curriculum escolar secundário.
- 1 Escrito por Joaquim Ferreira de Freitas (1822), mas publicado de forma anónima.
8Uma das consequências surpreendentes do caos arquivístico nacional foi que apenas decorrido mais de um século e meio, já no final do século XX, com a integração da documentação do Ministério da Justiça no Arquivo Nacional, é que o processo de 1817 foi colocado à consulta pública. Embora Raul Brandão tenha feito ampla pesquisa, fundamentou-se essencialmente na memória encomendada por Beresford em 1822.1 Beresford, devido ás suas funções, estava na posse de cópia de grande parte do processo e colocou a documentação à disposição de J. F. Freitas, ex-padre residente em Londres, onde também estavam os denunciantes sobreviventes (um havia sido entretanto assassinado em Portugal), com o objectivo de se defender das violentas acusações de que fora objecto em 1821-22, quando da revisão do processo. Brandão, apesar do tom algo novelesco e apaixonado, tem uma perspectiva crítica e não se deixa enredar por esta memória de aparência erudita. Na realidade, Luz Soriano, escrevendo alguns anos mais cedo (1887), invalidara já essa pretensa desresponsabilização de Beresford. Tinha conseguido consultar documentação muito importante, nomeadamente a correspondência entre Beresford e a Intendência da Polícia, à época ainda depositada no Governo Civil de Lisboa. A ausência de qualquer referência a Luz Soriano no livro de Raul Brandão é algo estranha, dada a sua relevância para este tema como para toda a época liberal.
- 2 Gonçalves (2017), sem grande novidade, e Costa (2017), focado no contexto maçónico.
9O primeiro trabalho baseado na consulta directa do processo de 1817 é o livro da autoria de António Lopes (2003), editado pela maçonaria. Contém uma descrição muito completa dos pontos principais do processo, privilegiando a parte referente a Gomes Freire de Andrade. Nem esta figura nem o acontecimento em si foram de novo objecto de interesse específico antes do bicentenário, para além das restritas comemorações militares e maçónicas anuais em Oeiras e Lisboa. Neste ano do bicentenário foram igualmente publicados dois livros sobre Gomes Freire de Andrade.2
10A configuração da memória política de 1817 sofreu duas transformações centrais desde meados do século XIX. A primeira foi a compreensível centralidade atribuída à figura de Gomes Freire de Andrade. Contudo, isso conduziu ao quase total esquecimento dos condenados ou implicados que não foram executados. É o caso dos degredados, de um condenado estrangeiro expulso do país, o Barão de Eben, e dos que escaparam escondendo-se, optando por uma vida clandestina ou exilando-se. Um conjunto de seis homens foram riscados da memória, deixando totalmente de ser referidos em actos celebrativos, centrados exclusivamente nos mortos enquanto mártires da Pátria. É tempo de os reintegrar no processo de que foram vítimas. O Barão de Eben é um caso representativo da colaboração internacional que caracteriza esta época desde as invasões francesas. De origem prussiana, chegara a Portugal integrado no exército inglês, aqui ficara e pertencia ao círculo de relações sociais de Gomes Freire de Andrade. A sua proximidade da corte inglesa ter-lhe-á poupado a vida, foi expulso de Portugal e proibido de aqui regressar ou de viajar para os domínios portugueses. É um expoente da dimensão europeia do combate entre revolução e contra-revolução que as décadas seguintes irão acentuar. Dos desterrados e fugitivos, foi o único que não regressou, ficando para sempre na Colômbia, onde faleceu. Os outros regressaram ao abrigo da lei da amnistia de 1821.
- 3 Conseguira a comutação da pena de degredo em África juntamente com o seu companheiro de infortúni (...)
11Entre os degredados, estava o arquitecto Francisco António de Sousa, filho do arquitecto da Casa Real, construtor e proprietário do palácio onde hoje está a instalada a Procuradoria-Geral da República. Regressado do degredo de 10 anos ou “morte natural”, como soldado no corpo do exército português em Montevideu, tentou recuperar em vão a casa de que era proprietário e que lhe fora confiscada em 1817 e reintegrar o seu cargo no colégio da Patriarcal.3 O capitão ajudante de milícias Amora Aurora foi o único condenado a degredo que escapou, conseguindo ficar escondido na Arrábida até à revolução de 1820, graças ao apoio de um amigo e da mulher. Entre os suspeitos que fugiram, contava-se o major José Máximo Pinto Rangel, antigo maçon, que já estivera envolvido na Setembrizada e se refugiou em Espanha, tendo regressado antes da revolução de 1820. Veio a ser deputado em 1823. Rodrigo da Fonseca Magalhães era tenente em 1817: depois de dois anos de clandestinidade em Lisboa, fugiu para o Brasil, instalou-se em Pernambuco, onde publicou um jornal liberal. Voltou em 1821 para Lisboa.
12As comemorações do bicentenário não tiveram expressão cívica de relevo. O cariz universitário e patrimonial foi marcante e isso testemunha o importante papel que as instituições de ensino superior e patrimonial desempenham actualmente na sociedade portuguesa, a sua vitalidade e o seu sentido de responsabilidade cívica. No bicentenário das execuções de Gomes Freire e seus companheiros, dia 18 de Outubro de 2017, realizou-se o colóquio universitário Gomes Freire de Andrade nas vésperas de 1820, organizado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (ISCTE-IUL) e pelo Centro de História da Sociedade e da Cultura (Faculdade de Letras de Coimbra), na Biblioteca Nacional de Lisboa, e, a 20 de Outubro, um seminário intitulado Revolta e revolução no Reino unido de Portugal, Brasil e Algarves, organizado pelo CHSC/FLUC. Na sede da Academia Militar, na Amadora, decorreu também outro colóquio universitário, intitulado Gomes Freire de Andrade. O homem e o seu tempo, organizado pelo Centro de História da Faculdade de Letras de Lisboa. Duas exposições evocaram essencialmente a figura de Gomes Freire de Andrade, incidindo sobre o processo de 1817-22 na Torre do Tombo e na sua carreira militar no Arquivo Histórico Militar. Para além dos círculos universitários e patrimoniais, realizou-se uma exposição no Campo de Mártires da Pátria, em Lisboa, da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa e da Junta de Freguesia de Arroios, e representou-se a peça teatral de Luís Sttau Monteiro em Gondomar, de forma explicitamente comemorativa, o que naturalmente aconteceu pela primeira vez.
13Os dois colóquios evocados irão contribuir certamente para um melhor conhecimento científico deste acontecimento, os seus personagens, e a época em que se inserem. Como seria expectável, a componente militar predominou no encontro ocorrido na Academia Militar, ao lado de outras questões motivadoras. Não estando acessíveis os resumos ou os textos das comunicações mais não posso informar, manifestando apenas uma expectativa positiva. Apesar dos estudos hoje disponíveis, múltiplas questões continuam em aberto acerca desta época e o seu esclarecimento é fundamental para a melhor compreensão do próprio acontecimento em causa. Abordaram-se algumas delas no colóquio Gomes Freire e as vésperas da revolução de 1820, co-organizado por Ana Cristina Araújo e por mim própria.
14O papel dos militares no movimento de resistência aos franceses abriu este colóquio, delineando uma linha essencial para a compreensão do desenrolar posterior dos acontecimentos. A dimensão económica e social da política de D. João, regente e rei, e do protesto desencadeado no meio rural permitiu seguir outra linha do descontentamento acumulado. A instabilidade governativa e as divergências internas da Regência, no contexto partilhado das relações com a Coroa sediada no Rio e o governo britânico na pessoa de Beresford, foram objecto de uma análise que esclarece pontos fundamentais do próprio percurso de Gomes Freire de Andrade. A repercussão em Portugal da política externa joanina com a sua ofensiva militar na Banda Oriental do Rio da Prata, um eixo fundamental da conjuntura político-militar de 1817, foi outro tema abordado. A análise do enquadramento económico trouxe ao debate o tipo de articulação entre economia e política.
- 4 O livro que reúne as comunicações apresentadas ao colóquio, posteriormente revistas pelos autores (...)
15Em 1817, um impasse e uma crise de ambos os lados do Atlântico pareciam conduzir a Casa de Bragança para o precipício. A crise do outro lado do Atlântico foi abordada em duas intervenções brasileiras, que incidem sobre aspectos distintos, o debate historiográfico e a atitude da elite comercial pernambucana. O processo político de Gomes Freire e dos seus companheiros de desdita foi abordado nas suas duas faces, como instrumento do poder e enquanto acontecimento fundador da memória liberal. A dimensão europeia do combate entre revolução e contra-revolução e a articulação da rede internacional de exilados constitui uma vertente menos conhecida que foi igualmente desenvolvida. A análise do papel fundamental da imprensa londrina, resultante da primeira vaga de exilados da primeira década do século XIX, encerrou este colóquio. No seu conjunto, as comunicações, e os debates que as acompanharam, constituem uma contribuição inovadora para o conhecimento desta época e do acontecimento em causa.4