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Recensões

Laurinda Abreu, O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII).

Margarida Sobral Neto
p. 209-212
Referência(s):

Laurinda Abreu, O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva, 2014. 496 pp. ISBN 9789896165963

Texto integral

  • 1 Public Health and Social Reforms in Portugal (1780-1805). Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars (...)
  • 2 The Political and Social Dynamics of Poverty, Poor Relief and Health Care in Early-Modern Portugal. (...)

1O principal campo de investigação de Laurinda Abreu é a história da assistência e da saúde em Portugal, onde tem desenvolvido vários projetos nacionais e internacionais e produzido publicações muito relevantes, caso do estudo sobre Pina Manique: um reformador no Portugal das Luzes (Lisboa: Gradiva, 2013), que obteve elevado reconhecimento nacional e internacional, como decorre da sua tradução para língua inglesa,1 o mesmo acontecendo com o livro que constitui objeto desta recensão.2 O propósito desta obra, intitulada O poder e os pobres, é abordar as políticas e as práticas na área da assistência social e dos cuidados de saúde dirigidas aos pobres, e a outros indivíduos que se encontravam em situação de desproteção social, interpretando-as como uma expressão da construção do estado na época moderna, “a par da guerra, do exército, da diplomacia e da administração” (p. 9).

2Este estudo apoia-se num amplo núcleo documental constituído por fontes impressas e manuscritas, disponível em arquivos e bibliotecas nacionais e regionais. A vastíssima informação disponível foi aproveitada graças à sua inserção em bases informáticas, que permitiram o cruzamento denso de dados que foram interpretados recorrendo a bibliografia proveniente de estudos sobre a realidade nacional e internacional, o que confere uma dimensão comparativa ao estudo. Ainda no campo da metodologia, importa ressaltar a procura em colocar os objetos de estudo em perspetiva histórica, numa cronologia de longa duração que se situa entre a época medieval e a segunda metade do século XVIII, com particular incidência no século XVI e no século XVII.

3Ao longo de 341 páginas de texto e 105 de notas, Laurinda Abreu procura captar a interação, conflitual ou cooperativa, entre as diversas instâncias de poder, com particular incidência no poder régio (órgãos centrais da coroa e funcionários periféricos) e nos atores sociais alvo dos cuidados das instituições dedicadas à cura dos corpos (hospitais) ou a assegurar as suas necessidades ou interesses sociais (das misericórdias aos recolhimentos). Para uma melhor arrumação das problemáticas, a obra encontra-se, no entanto, dividida em duas partes. A primeira intitula-se “Práticas de caridade e de assistência nos alvores da modernidade: organização e afirmação da autoridade da Coroa” e a segunda “As instituições como agentes sociais mediadoras entre a sociedade, as autoridades e os indivíduos”.

4A primeira parte sustenta-se sobretudo na análise dos instrumentos legais que criaram e organizaram as instituições e os mecanismos institucionais vocacionados para a prestação de cuidados médicos e serviços sociais. Aborda-se a organização do “campo” dos cuidados de saúde expressa na reforma dos hospitais e da formação de médicos e boticários, que ocorre no contexto do combate às epidemias que grassaram ao longo dos séculos XVI e XVII, com particular incidência em finais da centúria de quinhentos. Neste ponto, evidencia-se o confronto entre o saber empírico e o académico, gerador de relações conflituais entre a Universidade de Coimbra e o físico-mor, que se configura igualmente como uma tensão entre poderes que a coroa tenta arbitrar com dificuldade. Esta problemática insere-se num campo de investigação – a saúde pública – a que a autora deste livro tem dedicado particular atenção e sobre a qual produziu conhecimento vertido em livros e em artigos.

5A prestação de cuidados sociais coube, na época moderna, sobretudo às misericórdias, instituições sob tutela régia reconhecida na última sessão do concílio de Trento (1563). A história das misericórdias portuguesas conta com uma vasta bibliografia em que se destacam os trabalhos pioneiros de Laurinda Abreu (nomeadamente a sua tese de mestrado e de doutoramento), de Maria Antónia Lopes, Isabel Guimarães Sá e Marta Lobo de Araújo. A abordagem da problemática explica-se, na economia desta obra, por se tratar de uma instituição dedicada à proteção dos mais frágeis e vulneráveis, nomeadamente o cuidar dos presos e das crianças expostas, esta última tarefa desempenhada em parceria com as câmaras municipais.

6Na parte dedicada às “práticas de caridade e de assistência”, que tiveram na sua génese uma iniciativa régia, a autora aborda ainda a criação e o papel social e económico dos celeiros do trigo, instituições criadas pelo cardeal D. Henrique em resposta a uma petição dos povos nas cortes de 1562, que requereram “celeiros do pão em tempos de necessidade”. Trata-se de um tema historiograficamente menos tratado, carreando este livro informação relevante, nomeadamente no que concerne à proteção de produtores agrícolas em risco de se colocarem em estado de pobreza, ou de agravamento dessa condição, quando escasseava o pão para alimentar a família ou as sementes para lançar à terra.

7A primeira parte do livro termina com a discussão do tema referente ao financiamento da assistência. Numa obra dedicada ao estudo das políticas e das práticas no campo da assistência, é crucial conhecer as fontes, as formas e os mecanismos de suporte económico dos cuidados de saúde e de assistência. A autora aborda o financiamento proporcionado pelas câmaras municipais – através do contributo monetário para a formação de médicos e boticários na Universidade de Coimbra – e os contributos da Igreja, sob a forma de aplicação de legados pios à cura de doentes hospitalizados ou da generosidade de bispos e arcebispos “remediadores dos pobres” (na expressão de José Pedro Paiva). Assunto menos conhecido é o que se reporta à atividade dos “mamposteiros”, agenciadores de esmolas cuja atividade nos é revelada neste livro.

8Como já foi referido, a segunda parte do estudo versa sobre “as instituições como agentes sociais mediadoras entre a sociedade, as autoridades e os indivíduos” e inicia-se com a apresentação do movimento fundacional de instituições assistenciais que ocorreu entre 1540 e 1804 em várias cidades e vilas do reino. Num quadro que se diz não ter “qualquer pretensão de exaustividade” apresentam-se 56 casas, assumindo maioritariamente as designações de recolhimentos e colégios. O universo dos recolhimentos femininos, distintos dos conventos, acolhia mulheres em situações muito diversas, desde as desonradas e não virtuosas – prostitutas arrependidas – a mulheres honradas enclausuradas em espaços aparentemente abrigados da desonra social (caso das esposas e filhas de oficiais do império) ou ainda das mulheres que procuravam nos recolhimentos um espaço de liberdade que lhes era negado pelo seu estatuto social.

9Refletindo os profundos conhecimentos que a autora possui na área da saúde pública, o livro dedica várias páginas aos doentes e aos cuidados de saúde. No capítulo “Hospitais e seus utentes” procura-se identificar o perfil social dos utentes dos hospitais: um universo heterogéneo, maioritariamente masculino, em que foi possível identificar trabalhadores que não dispunham de apoio familiar (caso de sazonais ou de criados citadinos) e que procuravam na instituição hospitalar o alimento revigorante para repor forças. Os jornaleiros em situação de dificuldade assumiam-se como o paradigma do “pobre merecedor”, aquele em que o investimento em cuidados de saúde se podia reproduzir em força de trabalho bem como em possibilidade de manutenção de estabilidade, segurança económica familiar e coesão social. Diferente sorte tinham os pedintes e mendigos, pouco representados nos registos dos utentes hospitalares, bem como os incuráveis, acolhidos apenas em instituições a eles dedicados.

10O último capítulo deste estudo aborda a relação entre as misericórdias e os presos: pobres considerados “merecedores” de prestação de cuidados de assistência e de apoio jurídico. Nesta parte, a autora revela-nos um contexto gerador de fome, doença e miséria que irmanava “criminosos” muito diversos: assassinos e ladrões, mas também pessoas que não tinham capacidade financeira para satisfazer o pagamento das suas dívidas, desde as provenientes da compra de bens alimentares a outras de maior vulto.

  • 3 Marco H. D. Van Leeuwen, “Logic of Charity: Poor Relief in Preindustrial Europe”, Journal of Inte (...)

11Este livro carreia informação e reflexão muito relevante para o conhecimento de um sector da população que não tinha capacidade de garantir a sua subsistência alimentar, bem como de pagar os cuidados de saúde quando deles necessitava. Trata-se de um grupo numericamente não definido (ainda que fosse restrito o assistido pelas instituições) que se estreitava ou alargava de acordo com as conjunturas. Para cuidar da saúde e dos comportamentos dos indivíduos, a coroa portuguesa criou instituições, definiu-lhes normas jurídicas de funcionamento e atribuiu-lhes competências. Zelou ainda pelo cumprimento dos enquadramentos institucionais e arbitrou conflitos, uma das principais funções do poder régio na época moderna. O funcionamento das diversas instituições assistenciais coube, no entanto, aos poderes que estavam mais próximos das diversas pessoas em estado de vulnerabilidade física e social, assumindo esta por vezes a forma de risco de perda de estatuto. Num universo onde se movimentaram diversos atores com interesses,3 os pobres também se assumiram como “sujeitos ativos da sua própria história” (p. 11), ainda que os poderes se revelassem muitas vezes ineficazes na resolução dos seus problemas.

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Notas

1 Public Health and Social Reforms in Portugal (1780-1805). Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2017.

2 The Political and Social Dynamics of Poverty, Poor Relief and Health Care in Early-Modern Portugal. London and New York: Routledge, 2016.

3 Marco H. D. Van Leeuwen, “Logic of Charity: Poor Relief in Preindustrial Europe”, Journal of Interdisciplinary History, 24.04 (1994), pp. 589-613.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Margarida Sobral Neto, «Laurinda Abreu, O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII).»Ler História, 71 | 2017, 209-212.

Referência eletrónica

Margarida Sobral Neto, «Laurinda Abreu, O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e da assistência em Portugal (séculos XVI-XVIII).»Ler História [Online], 71 | 2017, posto online no dia 04 janeiro 2018, consultado no dia 23 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2956; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2956

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Autor

Margarida Sobral Neto

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal

marnet95@gmail.com

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