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Espelho de Clio

Até que ponto a história nos torna mais humanos?

How can history make us more human?
Comment l’histoire peut-elle nous rendre plus humain ?
Serge Gruzinski
p. 185-197

Resumos

A interrogação sobre se a historia nos pode tornar mais humanos constitui um pretexto para uma reflexão sobre o que é hoje a história, como é que ela é escrita, ensinada, divulgada e, sobretudo, como é que ela é entendida por diversos públicos. Neste ensaio exploram-se os caminhos que podem levar a escrita da história a ultrapassar uma perspetiva que é ainda predominantemente nacional ou eurocêntrica, para corresponder à realidade de um mundo globalizado, no qual os europeus não são os únicos atores e no qual as trajetórias e as narrativas são múltiplas. Defende-se uma história global que nos possa ajudar a desenvolver um olhar crítico, com o objetivo de compreender melhor as dinâmicas da globalização, de nos tornar mais capazes de circular entre os mundos e de aprender a viver com povos e culturas diferentes.

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Texto integral

  • 1 Na origem deste ensaio está uma conferência proferida em Pistoia (Itália), no âmbito da 8.ª edição (...)

1Neste pequeno ensaio pretendo fazer uma reflexão sobre se, e como, a história nos pode tornar mais humanos.1 Refiro-me à História, enquanto passado, mas sobretudo à história, enquanto narrativa e conhecimento desse passado. Naturalmente, esta questão não pode ser formulada em termos abstratos ou, pelo menos, sem definir alguns parâmetros. Nomeadamente, é necessário saber de que tipo de história falamos, e, em última análise, o que é a história hoje. Antes, porém, de abordar esse tema, quero explicar como cheguei a colocar-me a questão que serve de eixo à reflexão que desenvolvo neste ensaio. As razões que me levaram a refletir sobre a mesma não nasceram propriamente dos debates académicos, antes se me impuseram como verdadeiros desafios pessoais. O primeiro diz respeito à possibilidade de ensinar os mesmos temas a estudantes de três países distintos, como faço atualmente: estudantes europeus em Paris; americanos e latino-americanos em Princeton; brasileiros da Amazónia na cidade de Belém do Pará, no Brasil. A questão pode ou deve ser colocada em termos mais precisos: haverá uma metanarrativa chamada história que possa ser desfrutada pelas e pelos estudantes que vivem em diferentes partes do mundo e em condições tão dissemelhantes?

  • 2 Ver: https://www.agenzianova.com/a/58e4b4d8db8333.89846275/1540547/2017-04-05/finestra-sul-mondo-la (...)

2Outra razão, ou desafio, não tem que ver diretamente com a minha atividade de professor e investigador, mas sim com experiências de ensino da história em contextos sociais e culturais particulares, ambos na Europa, de que tive conhecimento. Há alguns anos atrás, um jovem professor espanhol levou-me a descobrir os campos da região de Múrcia, ainda repletos de vestígios da Espanha muçulmana. Nas turmas em que lecionava, conviviam lado a lado castelhanos dali e jovens imigrantes de origem magrebina e equatoriana. Em setembro de 2012, a província de Múrcia contabilizava 45 000 equatorianos. Como ensinar história, ou, formulando noutros termos, que passado apresentar aos jovens que são descendentes, respetivamente, ora dos espanhóis vencedores da Reconquista (face ao Islão) e da conquista (da América), ora dos vencidos destes acontecimentos fundamentais da história ibérica? Como explicar a expulsão dos moriscos a um público que se divide entre cristãos e muçulmanos? Como apresentar a conquista da América a alunos portadores de memórias inconciliáveis? A denúncia do “genocídio indígena” na América, para lá dos seus fundamentos históricos, não casa bem com uma tradição espanhola que, durante muito tempo, se satisfez com a exaltação da “missão civilizadora” dos conquistadores do Novo Mundo. Aliás, ainda há umas poucas semanas atrás, o diretor da televisão pública espanhola pôde afirmar que os astecas eram como os nazis e que a conquista e a liquidação daquela sociedade ameríndia tinham sido absolutamente necessárias: “Chorar o desaparecimento do império asteca”, cito, “é como apresentar as condolências pela derrota dos nazis na Segunda Guerra Mundial”.2

  • 3 Equivalente ao 10.º ano de escolaridade em Portugal [Nota do tradutor].

3Acrescento outro exemplo. Há quatro anos, um professor de uma escola secundária francesa utilizou o meu livro sobre a Águia e o Dragão (Gruzinski 2012) no âmbito da disciplina de história oferecida no primeiro ano do liceu.3 Este professor dá aulas numa cidade pós-industrial do norte de França, Roubaix, numa escola secundária de ensino técnico. O programa de história daquele nível de ensino prevê o estudo das relações entre a Europa e o resto do mundo. Ora, o meu livro não tinha sido concebido a priori para os estudantes do liceu, mas, por via dos temas abordados, ele respondia às indicações do programa escolar relativamente aos “novos horizontes geográficos e culturais dos europeus na época moderna”. De facto, a obra narra dois acontecimentos que se desenvolveram paralelamente no início do século XVI: a conquista do México por parte dos espanhóis e a tentativa de penetração dos portugueses na China. Naquelas terras longínquas, um punhado de europeus “descobre”, então, sociedades que se contam entre as grandes civilizações mundiais. A expedição portuguesa traduziu-se num fiasco, terminando no esquecimento da História. Ao invés, a expedição espanhola abriu caminho à conquista a partir da qual nasceria uma América latina e mestiça.

4Na sua maioria, os jovens de Roubaix são filhos de imigrantes e, em grande parte, são muçulmanos. Há razões válidas para nos perguntarmos como é que o contar destas acções europeias despertou, a tal ponto, a sua curiosidade e até o seu interesse apaixonado. Isto ao passo que, indubitavelmente, dois mil anos de história nacional francesa – para não falar de uma memória europeia ainda esquiva – não lhes diz grande coisa. Acresce que viver em Roubaix não é coisa fácil. Considerado o mais pobre de França, este centro urbano detém uma posição singular no conjunto das cidades com grande densidade de população imigrada no país. A antiga capital têxtil do século XIX nunca conseguiu recuperar do declínio industrial. A experiência pedagógica levada a cabo na Escola Secundária Jean Rostand desenrolou-se, por conseguinte, no quadro de um contexto urbano muito alterado. Bairros inteiros são habitados por uma população maioritariamente muçulmana. Há que notar que Roubaix, em tempos a “Meca do socialismo revolucionário”, a cidadela do movimento operário de Jules Guesde, se tornou no município mais muçulmano de França. A crise social afeta em especial os segmentos da população francesa de origem magrebina, os quais muitas vezes procuram no Islão uma identidade que já não encontram na ação sindical nem nos ideais republicanos.

5Como é que o contar destes empreendimentos europeus – a conquista do México por parte dos espanhóis e a falhada invasão da China pelos portugueses –, pôde despertar de tal forma a curiosidade dos rapazes e das raparigas da escola secundária e até o seu interesse apaixonado? A explicação é a de que, projetados ora para Cantão ora para a Cidade do México, eles se aperceberam de que alguns acontecimentos do passado, remotos e desconhecidos, não estavam afinal tão mortos quanto se poderia imaginar. Os adolescentes exploraram sociedades cujos destinos continuam a exercer a sua influência no mundo contemporâneo.

6Aquilo que estes casos tornam claro é que uma resposta à questão de partida deste ensaio – se a história nos pode tornar mais humanos – depende, em larga medida, do tipo de conteúdo que associamos à etiqueta “história” e à palavra “passado”. Nesse sentido, o texto que se segue começa precisamente por uma breve reflexão sobre o que é hoje a história e como é que ela é entendida por diversos públicos. Na segunda parte, exploro duas vias possíveis para ultrapassar aquilo que considero ser o impasse atual e os limites de uma história que se mantém ainda demasiado nacional e eurocêntrica. No final, procuro articular essas propostas de renovação historiográfica com uma resposta à interrogação de partida.

1. O que é hoje a história?

7Muitos pensam que, hoje em dia, o presentismo triunfou por todo o lado, isto é, que vivemos num presente omnipresente e omnipotente, que priva os nossos contemporâneos de qualquer memória. Parece-me, pelo contrário, que nos encontramos atualmente face a uma abundância de expressões e narrativas do passado, algumas tradicionais, outras mais recentes, e outras inspiradas pela indústria do turismo. Por isso mesmo, parece-me também que uma reflexão sobre o conteúdo da história e o seu papel atual não poderá ignorar a proliferação de todos os passados e futuros que nos rodeiam. Entre estes passados encontramos formas muito diversas. Por exemplo, a memória nacional, periodicamente renovada por celebrações, como o relato oficial da I Guerra Mundial; a memória “patrimonial”, ou seja, territorial e ligada aos bens culturais e ambientais, que alimenta incessantemente a indústria do turismo; ou a literatura histórica. Isto sem esquecer as minisséries que invadem todos os ecrãs (por exemplo, Roma, Os Borgia, Os Tudors, Guerra dos Tronos, etc.).

8Em relação a estas formas de história, não creio que elas nos tornem mais humanos. Na verdade, apenas fazem de nós consumidores cada vez mais ávidos, mais integrados no processo de comercialização das memórias e dos passados, mais imersos nos universos virtuais que monopolizam a nossa atenção, transformando-nos em escravos dos nossos ecrãs portáteis.

9Por outro lado, sabemos que a expansão colonial e a dominação ocidental do globo impuseram por todo o lado o modelo histórico europeu e eurocêntrico.  Da Espanha à China, dos Estados Unidos ao Japão, faz-se, aprende-se e ensina-se a mesma forma de história. Uma história que começa com a Antiguidade e o Egito, que privilegia a Idade Média europeia, que prossegue com o advento da modernidade e que culmina com a ocidentalização do mundo a partir do século XIX. No entanto, há novas narrativas que procuram substituir a grande saga do passado ocidental imposta ao resto do mundo. Por exemplo, começa a tornar-se claro que não se pode escrever a história sem fazer referência à China.

  • 4 Francesca Amé, “Milano, Aquila e Dragone: i due imperi in mostra a Palazzo Reale”, Il Giornale, 11 (...)

10Há alguns anos atrás, em 2010, eu pude visitar em Milão a exposição I due imperi. L’aquila e il dragone [Os dois impérios. A águia e o dragão], que apresentava e colocava em confronto o império romano e o império chinês. Escrevia à época o diário italiano Il Giornale que ali se exibia, lado a lado, o melhor das duas civilizações: “Tinham dimensões iguais, populações iguais, burocracias semelhantes, sistemas militares eficientes: a águia e o dragão, o império romano e o império chinês, tão longínquos e, no entanto, tão próximos.”4 Será bom considerar o contexto em que se insere esta exposição e o modo em que, pela parte italiana, se procura agarrar o gigante chinês, que exporta uma história-mundo na qual o império celeste desempenha um papel central. Há que lembrar, a este respeito, a impressionante série de filmes históricos, difundidos a partir da China para todo o planeta, que visa contar os grandes episódios da respetiva saga imperial. Basta citar alguns títulos entre os mais famosos: O Tigre e o Dragão, de Ang Lee; ou Hero e A Floresta dos Punhais Voadores, de Zhang Yimou. Deste mesmo realizador, refira-se ainda The Great Wall, filme no qual se pretende sugerir que só a China poderá salvar a humanidade ameaçada pelos monstros que atacam a grande muralha.

  • 5 Ver Menzies (2002 e 2008).

11Zhang Yimou, aliás, tinha já sido o responsável pela realização das cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim. Muito mais eficaz do que os livros e os artigos produzidos pelo nosso pequeno mundo académico, o espetáculo realizado em Pequim no “Ninho de Pássaro” valeu-se de todos os meios possíveis para ambientar e colocar o passado, o presente e o futuro chinês no palco planetário. O realizador inspirou-se nas obras de Gavin Menzies, o controverso autor inglês de best-sellers (1421 e 1434).5 Trata-se de textos que tiveram uma difusão mundial, com milhões de leitores, e que foram e são ainda vendidos em todos os aeroportos do planeta. Como se sabe, Menzies defende que foram os chineses a descobrir a América e que também eram chineses os viajantes que chegaram a Florença no século XV para aí introduzirem os preciosos germes do Renascimento.

12Estamos, assim, face a uma história de tendência sino-cêntrica, a uma metanarrativa que reintroduz a China como motor principal da história do mundo e desclassifica a Itália renascentista, colocando-a numa posição de recetora passiva. Na realidade, este revisionismo histórico modifica a grande narrativa imposta a partir da Europa ocidental, transformando a Itália e a Europa renascentista em periferias do mundo chinês.

  • 6 Onde, por exemplo, há jogos em que cada jogador dispõe da possibilidade de criar, construir e destr (...)

13Não devemos perder de vista a importância de fenómenos de massas – como a fruição dos Jogos Olímpicos, o impacto dos best-sellers, ou a extensão hoje ilimitada do mundo virtual6 – na desestruturação da grande narrativa ocidental e na difusão das novas grandes narrativas. Tais fenómenos ocupam já um espaço gigantesco no imaginário dos nossos contemporâneos e nas culturas de massas da atualidade, desenvolvendo-se muito mais rapidamente do que as ideias e os programas de investigação que possamos oferecer a partir do interior do mundo académico, onde, ao invés, predomina ainda uma visão nacional da história.

14Voltemos então à questão inicial – que tipo de história temos (ou queremos ter) hoje? Nos últimos anos, muitas foram as críticas formuladas em relação à natureza totalizante das chamadas “grandes narrativas”, tipicamente caraterizadas por uma qualquer forma de verdade transcendente ou universal. A crítica pós-moderna e, sobretudo, as transformações de um mundo globalizado, estão a debilitar de uma forma irreversível o velho “grande relato” da história ocidental como a história de uma civilização destinada a dominar e a civilizar o resto do mundo. Uma das consequências locais dessas críticas são, por exemplo, os ataques em França contra o “romance nacional”, manifestação típica de um discurso francocêntrico que pretende explicar tudo na base de uma história nacional, em larga medida construída no século XIX.

15No entanto, parece-me que, apesar de tudo, temos necessidade de uma grande narrativa, assim como é oportuno considerar a necessidade de elaborar uma memória histórica europeia coletiva que possa ser partilhada pelos velhos e pelos novos habitantes da Europa. Trata-se, porém, de empreendimentos difíceis. A principal dificuldade decorre em grande parte da tradição, e sobretudo das rotinas instaladas, de uma história nacional, nascida no século XIX, que já não responde aos desafios de um mundo globalizado. Um mundo globalizado é aquele no qual, por exemplo, o vizinho que nunca tirou estudos superiores e que não acumulou experiências internacionais pode agora encontrar-se a trabalhar na periferia de Xangai, a abrir um supermercado para uma multinacional francesa. Um mundo globalizado é um mundo no qual, de um dia para o outro, descobrimos que os chineses estão a comprar grande parte das riquezas da Amazónia.

16Neste sentido, torna-se necessário superar os limites da história nacional. Mas, como fazê-lo? Parece-me que há pelo menos duas possibilidades, duas vias: a primeira reside na tentativa de construir peça a peça o mosaico de um património comum que serviria de memória histórica europeia. A outra via leva a pensar a história global a partir do espaço local, que já não é o espaço nacional imposto desde o século XIX, mas um espaço existencial, definido pelo conjunto das suas conexões com outras partes do mundo.

2. Por uma história comum da Europa

  • 7 No meu país, os políticos, sejam de direita ou sejam de esquerda, são verdadeiramente incapazes de (...)

17Comecemos por examinar a primeira via. Desde há mais de meio século que os historiadores tentam elaborar e definir uma história europeia. Entre os muitos projetos realizados, considero que a Storia d’Europa, publicada na altura pela editora Einaudi (Anderson et al 1993-97) continua a ser uma tentativa interessante, ainda que lamentavelmente não tenha produzido muitos efeitos. Na realidade, há que reconhecer que hoje em dia, infelizmente, esta história europeia comum não existe.7 Apesar disso, não creio que possamos renunciar ao nosso património europeu nem ao propósito de construirmos uma memória histórica comum. Este património  poderia alimentar um grande relato, uma visão de conjunto que fosse mais aberta sobre o resto do mundo e, por isso mesmo, menos eurocêntrica. Não vou aqui desenvolver plenamente este tópico. Limitar-me-ei a algumas observações sobre aquele período que corresponde à primeira modernidade, que os historiadores ingleses e norte-americanos denominam de “Early Modern History”, e a que nós, nas línguas latinas, chamamos geralmente “Idade Moderna”.

18O que nos dizem a nós, europeus do século XXI, os dois primeiros séculos da modernidade? O que nos ensina em especial aquele “século ibérico” que corresponde ao século XVI das grandes descobertas e da colonização espanhola do continente americano, um século no qual a Europa estabelece as primeiras relações diretas com a África negra, com a Índia e o Extremo Oriente, e em que o oceano Pacífico se torna num lago espanhol? Um século no qual, como sabemos, a Itália desempenha também um papel determinante. O século ibérico deveria ser parte integrante, para não dizer a base, de uma memória europeia ligada ao resto do mundo, apesar do facto de os europeus do Norte tenderem sempre a olhar com um certo sentimento de superioridade para os seus irmãos do Sul. Parece-me, de facto, que a chamada expansão ibérica é absolutamente crucial para compreender e explicar o nascimento da Europa e de uma modernidade global que já não seria um fruto exclusivamente local, europeu – um fruto estritamente autóctone que passa das mãos dos italianos às dos franceses, holandeses, ingleses e alemães –, mas antes o produto dos encontros e dos desencontros entre os europeus e os outros mundos.

  • 8 Aqui citado a partir da edição inglesa, The Nomos of the Earth (…). New York: Telos Press, 2006, p. (...)

19O pensador alemão Carl Schmitt, em O Nomos da Terra, foi um dos primeiros autores a reconhecer a importância e a globalidade da história que espanhóis e portugueses estavam a construir no século XVI. Ele introduziu na narrativa histórica a palavra global, que hoje em dia tanto usamos, ao escrever que o pensamento linear global – conceito por si desenvolvido – “representa um capítulo no desenvolvimento da consciência espacial, tendo começado com a descoberta do Novo Mundo e o início da ‘era moderna’, e depois prosseguido com a elaboração de mapas geográficos do próprio globo”. Schmitt acrescentava ainda: “A nova imagem global resultante da circum-navegação da terra e das grandes descobertas dos séculos XV e XVI requeria a constituição de uma nova ordem espacial” (Schmitt 1950).8

20Poderíamos também inspirar-nos nas propostas do filósofo alemão Peter Sloterdijk sobre a globalização terrestre, incluídas na sua última esfera (Sloterdijk 2006). Muito melhor do que tantos académicos que se interessaram pela expansão ibérica, Sloterdijk conseguiu identificar as caraterísticas fundamentais desta globalização, propondo uma narrativa articulada numa série de dimensões: a “mobilização infinita”, ou a circulação incessante das coisas, das ideias e dos homens; o aparecimento da categoria de “local” no momento em que a terra se tornava num globo que podia ser explorado em todas as direções; ou a convicção de que o resto da terra estava, fatalmente, à espera de ser descoberta e tomada pelos europeus.

21Parece-me que todos estes temas se configuram como elementos históricos chave para entender as origens da globalização contemporânea. Sloterdijk considera que a revolução magalhânica – que, pela primeira vez, fez circular o dinheiro e os investimentos à volta do globo – terá sido mais importante do que a revolução de Copérnico, que proclamava a rotação da terra. A circulação dos navios, e por conseguinte do capital, representou uma etapa decisiva em direção à globalização financeira, e as dinâmicas assim criadas anteciparam o mundo no qual hoje todos vivemos. O que é essa globalização que parte da Europa ocidental? É, parafraseando o autor, a contração da terra sob o efeito do dinheiro em todas as suas manifestações. É deste modo que a modernidade se define a partir de um acontecimento externo e já não interno à Europa ocidental.

22Além disso, este passado, relido a partir de uma perspetiva global, dá-nos a entender a importância da viragem para ocidente delineada pelo nosso continente europeu a partir do século XVI. Por via dos processos de colonização e ocidentalização do Novo Mundo, toma forma, deste modo, a própria fundação do Ocidente, do mundo ocidental. A atrair a atenção dos europeus já não está apenas o Oriente de Alexandre, das cruzadas ou dos mongóis, mas também o continente do outro lado do Atlântico, que viria a receber milhões de emigrantes europeus e escravos africanos entre o século XV e o século XIX.

23Por que é que, para nós e nos dias de hoje, este passado nos diz coisas importantes? Porque nos faz compreender melhor as palavras de Martin Heidegger quando escrevia: “O aspeto fundamental do Mundo Moderno é a conquista do mundo revelada em imagens” (Heidegger 1950). Constantemente, entre nós e a realidade interpõem-se imagens. A bem dizer, a produção intensiva de mapas geográficos de todas as partes do mundo, a toponímia imposta em todo o lado, a realização das primeiras contagens estatísticas – isto é, a redução dos povos e das riquezas encontradas a números e a valores –, remontam aos primeiros tempos da modernidade. Basta pensar na produção das oficinas cartográficas de Lisboa e de Sevilha, ou nas famosas relações geográficas escritas em Espanha e no Novo Mundo ibérico nos anos 80 do século XVI. Talvez, graças às novas tecnologias, essa conquista do mundo revelada em imagens seja a que culmina atualmente na proliferação de ecrãs que nos circundam por todo o lado e que agora se tornaram apêndices dos nossos corpos.

24Há também uma outra razão para nos ocuparmos dos tempos ibéricos. É que, para compreendermos os mundos misturados nos quais vivemos, teremos que mudar as dimensões de escala e de época. De facto, foi mesmo a partir do século XVI que, pela primeira vez, indivíduos originários da Europa, da África, da América e da Ásia se encontraram, desencontraram e misturaram. E com eles, e muitas vezes apesar deles, fizeram as coisas, as ideias, as crenças e os sonhos de que todos estes seres humanos eram portadores, conscientemente ou não. Iniciaram-se então as grandes mestiçagens planetárias. Os mestiços do século XVI prefiguram, sob dois pontos de vista, os fenómenos que vivemos atualmente. Por um lado, são sincrónicos, recorrentes e despontam em espaços tão diversos entre si como as Américas, as costas de África e da Índia, as zonas litorais do Japão, até as longínquas Molucas. Por outro, respondem aos confrontos de todo o tipo provocados pela irrupção dos navios ibéricos, ou, por outras palavras, daquilo que se viria a tornar a Europa e o Ocidente.

25Há ainda uma outra dimensão sobre a qual poderemos refletir. Interrogo-me sobre que tipo de consciência podemos nós ter não só do processo de globalização, mas também dos seus progressos. Ora, esta história moderna global permite-nos compreender o modo como emerge uma “consciência global”, ou seja, uma consciência atenta às relações que se estabelecem entre as várias partes do mundo. Podemos detetar este fenómeno tanto no México colonial, quando os espanhóis nascidos naquela região americana escreviam a propósito das primeiras relações entre a Nova Espanha e o Japão dos Tokugawa, como nas prisões de Nápoles, quando Tomasso Campanella descrevia a monarquia universal do rei católico.

26O passado ibérico pode, em suma, servir-nos de espelho para relermos o mundo contemporâneo. Pode, nomeadamente, explicar-nos o papel do Novo Mundo como laboratório para a ocidentalização, ou seja, para o nascimento do mundo ocidental, quando alguns países europeus se projetaram no espaço continental americano para ali se reproduzirem sob outras formas.

3. Pensar uma história global a partir do espaço local

27A outra via de superação dos limites da história nacional, de que falava acima, leva-nos, como disse, a pensar a história global a partir de um espaço local que já não é mais o espaço nacional, mas sim um espaço existencial, definido pelo conjunto das suas conexões com outras partes do mundo. O que é que isto significa concretamente? Um olhar crítico sobre o arco romano de Tazoult, na Argélia, constitui um bom exemplo e uma base de resposta.

28Os monumentos e as ruínas conservam a memória de todas as colonizações que se sucederam ao longo dos tempos no solo norte-africano. Nas fotografias da artista francesa Kader Attia, pode ver-se a reciclagem de um vestígio – o arco romano de Tazoult – representado como a baliza de um campo de futebol. A dinâmica é dupla: por um lado, é um gesto de apropriação por parte dos jovens que jogam à bola; por outro, regista-se um movimento de integração numa das formas mais invasivas da globalização, o futebol. Esta fotografia permite-nos pensar a história global relacionando o Império Romano, que é um passado comum europeu, com uma das práticas mais difundidas da globalização, o futebol. A experiência do Império Romano configura-se como uma ligação indelével que une a África do Norte e a história mediterrânica e europeia. Um passado comum. O futebol evoca a omnipresença da FIFA no mundo, mas lembra-nos também que o “Estado Islâmico” (ISIS) proibiu completamente esta atividade desportiva: no início de 2015, foram mortos 13 rapazes que estavam a ver na televisão um jogo da Taça Asiática de Futebol.

29Por que é que tomei como exemplo esta fotografia de Kader Attia? Porque muitos artistas contemporâneos chamam a nossa atenção para estes lugares, que nos dizem tanto sobre o passado como sobre o presente. Neste caso, sobre a colonização romana e outras colonizações sucessivas, sobre a dominação mental, cultural e material imposta pela FIFA, por exemplo, ou ainda sobre a violência do Estado Islâmico. Um mesmo documento, a fotografia, fala-nos do arquétipo da civilização – o império romano –, das relações entre a África e a Europa, e do poder evocativo e crítico das ruínas. Desta forma, a criação artística fornece-nos alternativas às metanarrativas canónicas.

30Vou ainda acrescentar um segundo exemplo desta história local que dialoga com um horizonte global. Eu ensino história no norte do Brasil, na região a que chamamos Amazónia. Com os estudantes locais, tentei construir uma história global da sua região (Gruzinski 2014). O que é que esta história nos ensina? Ensina-nos que, longe de constituir uma zona isolada, cheia de povos sem história ou fora da história, a Amazónia da época moderna ocupava um espaço importante no contexto da globalização ibérica. De facto, já na primeira metade do século XVI a região e as suas riquezas equatoriais estavam sob o olhar atento dos espanhóis da Ilha de Santo Domingo e dos humanistas de Veneza, como Pietro Bembo. O espanhol Oviedo, um colonizador e historiador estabelecido na Ilha de Santo Domingo, escrevia aos seus amigos de Veneza para lhes explicar as riquezas naturais que um consórcio de empresas formado por eles poderia extrair da Amazónia.

31Nos séculos seguintes, a região desenvolveu-se progressivamente por entre as pressões da monarquia católica hispano-portuguesa, as investidas de franceses, ingleses, holandeses e irlandeses ou a intervenção e resistência constante dos povos indígenas (Guzmán 2012). Com os meus estudantes, construímos uma história local incessantemente inserida num contexto continental e transatlântico. Era necessário destruir o mito das populações indígenas isoladas do resto do mundo, e demonstrar que o espaço amazónico se constrói e se desconstrói através das suas relações com o mundo exterior, com um horizonte global que se modifica ao longo do tempo.

32Num livro meu recente (Gruzinski 2015), tentei precisar, no plano metodológico, quais é que poderiam ser os próximos passos de uma história global e quais as articulações entre este tipo de história e outras abordagens mais clássicas. É óbvio que não existe uma resposta válida para todo o lado. Da mesma forma que é óbvio que esta resposta deve ser sempre concebida, modulada, redefinida em relação ao lugar no qual nos encontramos, partindo das suas conexões atuais e passadas com o resto do mundo, virtual ou real. A história global que é escrita ou ensinada nas cidades do norte de França não pode repetir aquela que se impõe na Amazónia, ou na província espanhola de Múrcia, ou na região de Lisboa. No entanto, todas estas perspetivas são apenas declinações de uma história comum, concebida como produto das interações entre pressões, impulsos, modelos globais e realidades locais.

4. Em conclusão

33Para concluir, voltemos agora a Roubaix, essa cidade do norte de França com os seus estudantes filhos de imigrantes. Por que é que o passado sino-ibero-mexicano os fascinou tanto, suscitando debates e reflexões? Porque, de um modo muito concreto e pessoal, as raparigas e os rapazes foram confrontados com uma série de questões fundamentais relacionadas com o chamado encontro de civilizações – tanto as suas diversas modalidades, como os destinos contraditórios da expansão europeia que, por um lado, levou à conquista da América e, por outro, ao fracasso absoluto da conquista da China. Foi como se isto lhes permitisse concluir qualquer coisa como: “Os brancos cristãos não foram sempre os vencedores, os brancos não foram sempre os civilizados.”

34Os jovens de Roubaix aprenderam e viveram parcialmente o que quer dizer a descoberta do outro, ou melhor, dos outros. Perceberam o papel que desempenha a religião no processo de conquista e de colonização: na cidade de Cantão, os portugueses foram, por exemplo, tratados como muçulmanos. Estes estudantes do secundário de uma cidade desindustrializada do norte de França, com uma grande comunidade de imigrantes, aproximaram-se de uma multiplicidade de formas de discriminação: as dos europeus contra os índios, mas também as dos chineses contra os portugueses, assimilados a ladrões canibais; sem esquecer a importância dos processos de mestiçagem, que não são apenas misturas de corpos, mas também misturas de sociedades, de ideias e imaginários. Os estudantes de Roubaix puderam então observar, numa forma embrionária, como se constrói um mundo global no qual os europeus não são os únicos atores e no qual as trajetórias e as narrativas são múltiplas. Uma história global que nos poderia ajudar a desenvolver um olhar crítico com o objetivo de compreender melhor as dinâmicas da globalização, de nos tornar mais capazes de circular entre os mundos e de aprender a viver com povos diferentes.

35Nesse sentido, sim, podemos dizer que a história nos torna mais humanos.

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Bibliografia

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Gruzinski, Serge (2012). L’aigle et le dragon. Démesure européenne et mondialisation au XVIe siècle. Paris: Éditions Fayard. [trad. port: A Águia e o Dragão: Portugueses e Espanhóis na Globalização do Século XVI. Lisboa: Edições 70, 2015].

Gruzinski, Serge (2014). A Amazônia e as origens da globalização (sécs. XVI-XVIII): da história local à história global. Belém: Estudos Amazônicos.

Gruzinski, Serge (2015). L’Histoire, pour quoi faire? Paris: Éditions Fayard.

Guzmán, Décio de Alencar (2012). Guerras na Amazônia do século XVII: Resistência indígena à colonização. Belém: Estudos Amazônicos.

Heidegger, Martin (1950). Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann. [trad. port: Caminhos de Floresta, 2.ª ed. Lisboa: F. C. Gulbenkian, 2012].

Menzies, Gavin (2002). 1421: The Year China Discovered the World. London: Bantam.

Menzies, Gavin (2008). 1434: The Year a Magnificent Chinese Fleet Sailed to Italy and Ignited the Renaissance. London: Harper Collins.

Schmitt, Carl (1950). Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum. Berlin: Duncker & Humblot. [trad. port: O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum. Lisboa: Editora Contraponto, 2014]. 

Sloterdijk, Peter (2006). Im Weltinnenraum des Kapitals: Für eine philosophische Theorie der Globalisierung. Auflage: Suhrkamp Verlag. [trad. port: Palácio de Cristal. Para uma teoria filosófica da globalização. Lisboa: Relógio d’Água, 2006].

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Notas

1 Na origem deste ensaio está uma conferência proferida em Pistoia (Itália), no âmbito da 8.ª edição (2017) dos Encontros Pistoia – Dialoghi sull’uomo. O texto foi moderadamente revisto para corresponder aos padrões de estilo da revista, embora se tenha preservado o essencial do seu carácter coloquial original. Tradução do italiano: Pedro Cerejo.

2 Ver: https://www.agenzianova.com/a/58e4b4d8db8333.89846275/1540547/2017-04-05/finestra-sul-mondo-la-spagna-non-ha-colonizzato-ma-evangelizzato-polemiche-sul-presidente-della-tv-pubblica.

3 Equivalente ao 10.º ano de escolaridade em Portugal [Nota do tradutor].

4 Francesca Amé, “Milano, Aquila e Dragone: i due imperi in mostra a Palazzo Reale”, Il Giornale, 11 maio 2010, disponível online em http://www.ilgiornale.it/news/milano-aquila-e-dragone-i-due-imperi-mostra-palazzo-reale.html.

5 Ver Menzies (2002 e 2008).

6 Onde, por exemplo, há jogos em que cada jogador dispõe da possibilidade de criar, construir e destruir civilizações e impérios inteiros.

7 No meu país, os políticos, sejam de direita ou sejam de esquerda, são verdadeiramente incapazes de colocar os problemas nacionais numa perspetiva europeia. Em França fala-se muito, por estes dias, do ensino do latim e do grego, como se essa fosse uma questão apenas relativa ao hexágono francês, como se não se tratasse de um património do todo europeu.

8 Aqui citado a partir da edição inglesa, The Nomos of the Earth (…). New York: Telos Press, 2006, p. 87.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Serge Gruzinski, «Até que ponto a história nos torna mais humanos?»Ler História, 70 | 2017, 185-197.

Referência eletrónica

Serge Gruzinski, «Até que ponto a história nos torna mais humanos?»Ler História [Online], 70 | 2017, posto online no dia 12 setembro 2017, consultado no dia 24 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2768; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2768

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Autor

Serge Gruzinski

École des Hautes Études en Sciences Sociales, France

serge.gruzinski@ehess.fr

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