1O presente artigo tem por objetivo principal contribuir para o entendimento do sistema sesmarial na virada dos séculos XVII e XVIII, na América portuguesa, a partir do caso das sesmarias nos Palmares de Pernambuco – região de mata e serras do chamado sertão daquela capitania, habitada por diversas comunidades de escravos foragidos do cativeiro, e também mestiços e libertos fugitivos da justiça, que resistiram por mais de um século a incursões militares coloniais. Meu objeto aqui são as concessões de sesmarias nas terras próximas aos locais onde existiam as comunidades de escravos fugitivos (mocambos) nos momentos imediatamente posteriores às principais derrotas que lhes foram infligidas: por volta de 1678, com o acordo de paz entre o líder rebelde Gana Zumba (principal liderança rebelde dos mocambos até 1678) e o governador de Pernambuco, e, posteriormente, com a derrota de Zumbi (que seria sobrinho de Gana Zumba, e não aderiu à rendição de seu tio) e de outras lideranças, entre 1695 e 1775. Vale lembrar que os pedidos de sesmarias naquelas terras invocavam uma memória da guerra e um direito sobre as terras justificados pela conquista dos mocambos. Neste artigo voltaremos nossa atenção, portanto, à problemática das sesmarias no Brasil colonial, num contexto específico onde embates pelos direitos de propriedade se entrelaçam com questões centrais do Antigo Regime português, como a guerra e o direito de conquista, a remuneração do chamado serviço real, e, o que é particular da América portuguesa, seu impacto sobre comunidades subalternizadas em busca de autonomia.
- 1 Imposto cobrado das terras doadas em sesmarias que variava, segundo o tamanho e a qualidade da terr (...)
2A historiografia sobre o instituto das sesmarias no Brasil é bastante consolidada e conta com inúmeras contribuições – destacando-se aqui as sínteses de Lima (1988), Silva (2008) e Motta (2004, 2008, 2009). Entre os séculos XVII e XVIII, o instituto sofreu diversas modificações através de ordens, cartas e alvarás régios que buscaram dar melhor ordenamento às concessões e diminuir dúvidas e contendas (Alveal 2007; Nozoe 2014). Este artigo se insere justamente neste período, no início do que Lígia Silva (2008, 56-74) denominou de segundo “sesmarialismo brasileiro” (c.1695-1795), caracterizado por uma tentativa da coroa de impor maiores restrições às doações de sesmarias, com a imposição do foro real1, a limitação do número de concessões por sesmeiro ou do tamanho das datas, e a exigência de confirmação régia das terras concedidas na América portuguesa.
3Alguns trabalhos têm enfatizado, primordialmente, o carácter condicional da concessão dos direitos sesmariais no Brasil (Varela 2005), a partir da leitura da legislação específica e da prática dos pedidos e deferimentos das datas de terra. Outros buscaram mostrar o carácter de “legislação” que as cartas de sesmarias adquiriram em situação de colonização na América portuguesa, assim como sua utilização pelos sesmeiros para a garantia da titularidade da propriedade em meio a contendas territoriais (Mota 2012). Uma característica que por vezes se sobrepunha à condicionalidade daqueles direitos e elevava sesmeiros à condição de proprietários de terra, sendo a carta utilizada como título em momentos de venda de parcelas da terra, por exemplo, à revelia das cláusulas de cultivo e ocupação dos terrenos. A titularidade funcionava, então, como garantia jurídica e social de direitos proprietários dos sesmeiros, e daí sua importância, por um lado, para aqueles homens que buscaram conquistar as terras palmarinas, e, por outro, para a territorialização do império português no ultramar. A construção do território colonial dependia da capacidade da coroa de exercer sua soberania sobre as porções de terra. O que era tentado através das instituições da administração colonial (vilas, câmaras, tribunais, cargos civis e militares, etc.). As jurisdições das sesmarias podem ser entendidas como um exercício de direitos, e, então, como uma forma de territorialização do espaço e exercício da soberania na América portuguesa (Serrão 2014).
- 2 Apenas destaco aqui as obras mais completas sobre o tema: Carneiro (1988), Freitas (1982), Freitas (...)
4No que se refere à historiografia de Palmares, ela muito pouco entrou neste tema.2 Recentemente, alguns trabalhos buscaram encarar a questão da remuneração dos vassalos envolvidos na guerra dos Palmares, porém com um espectro maior do que somente as terras, englobando mercês de pagamento de tenças, concessão de hábitos de ordens religiosas e ofícios (Marques 2014). Também se buscou explicar a dinâmica da repressão aos mocambos, e seus desdobramentos no tocante ao financiamento do esforço bélico e à posterior remuneração dos vassalos, no contexto do acordo de paz de 1678 (Mendes 2013). No entanto, este artigo pretende contribuir apontando para a geografia da distribuição das sesmarias nas terras conquistadas aos negros rebeldes, assim como para a disputa de direitos entre os vassalos que as almejavam.
5O artigo começa por apontar a conjuntura específica das primeiras doações de sesmarias aos combatentes de Palmares, suas localizações e dimensões. Depois, no ponto 2, passa-se a analisar a atuação dos combatentes paulistas do Terço de Domingos Jorge Velho, assim como, no ponto 3, as disputas jurídicas em torno das terras que almejavam quando partiram para a guerra dos Palmares, em Pernambuco. Por último, do quadro reconstituído neste artigo pretendem-se extrair algumas conclusões sobre a construção do ordenamento jurídico-territorial do século XVIII, na América portuguesa, a partir do caso das sesmarias nos Palmares de Pernambuco. As fontes em que este trabalho se apoia consistem principalmente nas doações de sesmarias nas terras dominadas pelos quilombolas, cujas evidentes limitações se procuram contornar a partir da incorporação de alguma outra documentação, nomeadamente do Conselho Ultramarino, maior instância responsável pelo governo da colônia.
6Começaremos por expor os dados e casos apurados até o momento sobre as concessões de sesmarias nas antigas terras ocupadas pelos mocambos dos Palmares de Pernambuco. Trabalhamos com as cartas de concessão, complementadas com bibliografia secundária que ajuda a elucidar a dinâmica dos conflitos em torno da apropriação daquelas terras, entre 1678 e 1702. A partir destas fontes, é possível reconstituir um primeiro mapeamento destas concessões, suas localizações e possíveis extensões dos terrenos. Espero mostrar como a guerra de Palmares, para além de ter significado, nas palavras de Carmen Alveal (2007, 172), “a primeira grande empreitada de distribuição de terras como recompensa por participação em campanhas militares” na América portuguesa, também desencadeou um conflito de direitos que conformaria a estrutura fundiária nos sertões da capitania de Pernambuco.
7Variando de acordo com a patente, praticamente todos os combatentes tiveram acesso a alguma porção de terra na região onde antes estavam as comunidades de mocambos conhecidas. Muitos obtiveram isenção de pensões ou foros, o que gerou atritos entre a administração colonial e a coroa. Francisco Carlos Teixeira da Silva (1990, 1997) identificou um “rush fundiário” pela apropriação das vastas terras dos sertões do Brasil, com ápice entre os anos de 1670 e 1690, que consistira na “doação de vastas extensões de terras recém-conquistadas ou por conquistar, principalmente em remuneração ao serviço militar prestado contra os índios concedidas com limites e extensão incertos”. Assim, o episódio de Palmares é fruto e ícone desse processo em seu momento mais feroz. Não só os “Restauradores do Palmar” (como eram conhecidos os colonos responsáveis pela derrota dos quilombos), mas também seus descendentes – como veremos abaixo – reclamariam, ao longo do século XVIII, direitos sobre as terras doadas em sesmarias aos antigos oficiais militares das expedições punitivas.
8Num primeiro momento das doações aos combatentes, temos o contexto imediato ao tratado de paz de 1678. A fonte base para este primeiro levantamento de sesmarias na região dos Palmares é um documento intitulado Relação das léguas de terra que se tem dado por sesmaria em todas estas Capitanias de Pernambuco depois que o Governador Aires de Sousa de Castro, o ter cessado o prejuízo que faziam os negros dos Palmares que foi a causa porque as pediram as pessoas desta relação. Após um ano do tratado de paz celebrado entre os irmãos Gana Zumba e Gana Zona e o governo da capitania, em meio ainda aos conflitos nas serras e florestas de Pernambuco com escravos rebeldes, surgiu esta relação de terras doadas, em sua maioria, aos oficiais empenhados na guerra aos mocambos.
- 3 “Parecer do Conselho Ultramarino sobre a conquista dos Palmares [1680]” (Gomes 2010, 243). A carta (...)
9Com o tratado de paz ameaçado por disputas entre os líderes quilombolas e pela fome de terras e escravos entre os colonos, assim como pelas ameaças de reescravização da população da aldeia de Cucaú – muitos acusados de continuar ajudando os negros ainda sublevados nas matas (Lara 2008, 195-209) –, o governador de Pernambuco, Aires de Souza de Castro, tentou mostrar à coroa que, apesar dos distúrbios, ele tinha conseguido aquietar os mocambos o suficiente para tornar aquelas terras atrativas aos possíveis sesmeiros. Em carta de 8 de agosto de 1679, comentada em parecer do Conselho Ultramarino, ele informava a coroa sobre as diligências para conseguir a capitulação dos negros ainda sublevados nos matos dos Palmares, que apesar de continuarem em seus mocambos e quilombos não representavam mais riscos aos ocupantes das “190 léguas das quais se usava depois deles reduzidos”. Estas terras estariam, segundo a missiva, distribuídas por inúmeras fazendas e sítios naquelas primeiras sesmarias doadas. Graças ao tratado de paz, não haveria mais ali engenhos e fazendas abandonadas.3
10A Relação identifica 16 sesmeiros e suas respectivas léguas de terra, totalizando 191,5 léguas doadas. São seis capitães, quatro capitães-mores, um coronel, um sargento-mor, um padre (o vigário de Alagoas) e mais três sesmeiros cuja ocupação não é apresentada. A maioria das datas de terra (nove) era de caráter hereditário, determinando-se na concessão que “se transmitisse posse ao suplicante e seus herdeiros” – cláusula que seria lembrada ao longo do século XVIII quando das disputas por direitos dos descendentes dos chamados “Restauradores do Palmar”. Não há informações disponíveis para todas as sesmarias, buscaremos então explicitar e analisar as cartas que chegaram até nós.
- 4 Documentação Histórica Pernambucana. Sesmarias, vol. 4, 93 (doravante, DHP). Este artigo se apoia b (...)
- 5 Belchior liderou expedições contra mocambos no sertão do São Francisco, região onde era proprietári (...)
11A segunda maior concessão listada (40 léguas) foi concedida ao coronel Belchior Álvares Camelo, Manoel Álvares Camelo, o alferes Francisco Lopes, o capitão João da Rocha, Domingos Fagundes e o capitão Antônio Tinoco e seus herdeiros. Apesar da incompletude da compilação de cartas de sesmarias para a capitania de Pernambuco, na obra Documentação Histórica Pernambucana (4 volumes, 1954-1959), é possível remediar suas lacunas, em alguns casos, a partir do cotejo com outras fontes, reduzindo as imprecisões das transcrições daquele volume. Não se tem informações quanto à largura das terras, ou sua medida de “fundos”, sendo impossível calcular sua área de forma exata. Possivelmente as terras se localizavam nas cabeceiras do rio Coruripe e ao sul das cabeceiras do rio São Miguel, na área conhecida então como os campos de Cunhaú.4 Diferentemente da sesmaria de João de Freitas da Cunha, as terras doadas a Belchior Alvares e seus companheiros estavam localizadas no sul de Alagoas, possivelmente a área em que o sesmeiro atuou nos combates aos mocambos, nos pastos que ocupavam o sopé dos tabuleiros das Alagoas e o sertão da freguesia do Rio de São Francisco, na década de 1660.5
12A carta de 1678 talvez só buscasse expandir os domínios familiares dos Álvares Camelo no sul das Alagoas. Outro militar da mesma família, Francisco Álvares Camelo (possivelmente irmão do Belchior Álvares da carta anterior), e também atuante no esforço contra os mocambos, possuía terras ao sul do rio São Miguel, sul da vila das Alagoas do Sul. Apesar de não poder precisar seus limites, é possível conjeturá-los a partir de outra carta de sesmaria, a do vigário de Alagoas, o padre Antônio Lopes, de 1679. Em seu requerimento e concessão de sesmaria nas Alagoas há referência às terras de Francisco Camelo, que confrontavam pelo sul a concessão do padre, possivelmente tendo o rio São Miguel como limite natural entre as terras dos sesmeiros.6 Julgo que as sesmarias dos Álvares Camelo e seus associados, portanto, dominavam boa parte se não quase toda a região rural entre o rio São Miguel e a ribeira do rio Coruripe, na parte sul de Alagoas.
- 7 Cf. “Parecer do Conselho Ultramarino sobre Palmares [1673]”, in Gomes (2010, 196-197).
- 8 DHP, vol. 4, 92.
- 9 Poderiam ser seus próprios escravos? Uma discussão para outro artigo.
13As sesmarias concedidas nesta lista e que de facto ocupavam regiões do sertão dos Palmares conquistadas aos quilombolas tinham dimensões um pouco mais modestas. Era o caso, por exemplo, das terras do capitão-mor Gonçalo Moreira da Silva. O capitão-mor aparece em expedições punitivas aos mocambos entre 1673 e 1675, período de frequentes ataques às povoações dos negros, precedendo o acordo de paz de 1678.7 Gonçalo Moreira receberia de sesmaria seis léguas em quadra, divididas com mais dois suplicantes (João Soares e Pedro Camelo de Abreu).8 As terras se localizavam no sertão da vila de Porto Calvo, região de frequente atrito entre moradores e quilombolas. Ao norte, tinha como limite a nascente do rio Camaragibe, enquanto que ao sul cortava o “mocambo da Ilhoca” – sobre o qual, infelizmente, não se possuem informações concretas. Aparentemente, Gonçalo Moreira pedira terras que ainda não ocupava – ao menos em parte –, posto que uma reconhecida comunidade de escravos (o tal mocambo da Ilhoca) estava instalada nas proximidades, servindo, inclusive, de ponto de referência para o pedido de terras.99Veremos que esta foi uma constante no caso das primeiras terras doadas em sesmarias nos Palmares, anteriores à chegada dos paulistas no conflito. Provavelmente pediam-se terras que já se disputavam com as comunidades de escravos fugitivos (ou outras existentes ali e que resistiam à entrada dos sesmeiros), e que, graças ao tratado de paz, os pretendentes podiam agora buscar legitimar seus direitos de propriedade frente a outros, sob a justificativa da conquista.
- 10 Correspondia à arrecadação de 10% da produção da terra (açúcar, gado, gêneros de abastecimento, etc (...)
- 11 1693, agosto, 26, AHU_CU_015, Cx. 16, D. 1620.
14O capitão-mor Fernão Carrilho, talvez a figura mais importante do esforço de guerra anti-palmarino até ao tratado de paz de 1678, apareceu na lista com uma concessão de 20 léguas de terras. Entre outros aspetos, é interessante observar que Carrilho, na qualidade de capitão-mor da expedição que arrancou uma capitulação dos palmarinos, reclamava para si direitos sobre os dízimos10 arrecadados nas terras conquistadas. Reclamava, em 1693, o direito de receber duas tenças de 88$000 réis, para si e seu filho. Queria receber retroativamente aos anos em que não podia receber seus rendimentos por ser réu em uma devassa sobre seus procedimentos nas expedições aos Palmares. Mas, tendo saído ileso do processo, tentou, contra grande resistência do provedor da Fazenda Real, João do Rego Barros, receber as tenças. Ao que parece, a justificativa para a resistência do provedor seria o facto de que as terras dos Palmares, muitas já doadas em sesmaria, não apresentavam “melhoramentos” significativos em relação ao que eram antes das guerras palmarinas. Carrilho acabaria tendo seus direitos à tença negados, a avaliar por um parecer de 1693, assinado pelo próprio provedor Barros. Segundo o documento, Carrilho não tinha como comprovar atos possessórios – “nenhuma fazenda de novo se tinha fabricado, antes alguns currais de gado que se avizinhavam com os arraiais e mocambos dos negros se haviam retirado pelo grande dano que lhes fazia” – para apoiar suas pretensões sobre o rendimento das terras dos Palmares.11
- 12 Sobre a trajetória de Carrilho, ver Santos (2004).
15Apesar de não ter permanecido nem ocupado terras em sesmarias nos Palmares12, o caso de Fernão Carrilho é exemplar dos múltiplos direitos sobre a terra que estavam em jogo naquele momento. Tudo indica que Carrilho recebeu duas mercês: a tença e a doação de sesmaria (carta não encontrada). No entanto, as duas se relacionavam, uma vez que a tença estava assentada nos dízimos devidos pelas terras palmarinas à coroa. Mesmo não ocupando territorialmente sua doação, Carrilho pôde requerer direitos (dízimos) sobre a produção das terras, engenhos e fazendas de outrem, dentro dos domínios constituídos graças à guerra contra os mocambos.
- 13 DHP, vol. 4, 92.
- 14 DHP, vol. 4, 91.
16Havia ainda outras sesmarias de imensas proporções listadas na Relação. Em julho de 1678, uma carta de concessão foi passada a Manoel Lopes e Tomé de Souza.13 Tratava da doação de oito léguas em quadra aos sesmeiros, entre os rios Pratagi e “Potinsatuba” (que julgo ser o atual rio Satuba, em Alagoas), confrontando ainda com os engenhos do próprio capitão Tomé Dias de Souza e de um certo capitão Baltazar Coelho. Já a doação a Domingos Gonçalves Freire e Sebastião Dias, ao que tudo indica, compreendia as terras vizinhas a nordeste da concessão acima. Esta sesmaria principiava, ao sul, no rio Pratagi, compreendendo dez léguas em quadra até encontrar o rio Santo Antônio Grande, ao norte.14 Somadas à concessão pretendida por Antônio da Silva, de duas léguas e meia entre os rios Paraíba e Satuba, logo acima da lagoa Manguaba (lagoa sul de Alagoas), e à já referida sesmaria de Gonçalo Moreira, João Soares e Pedro Camelo, formavam uma verdadeira barreira de contenção entre as áreas ainda sob a influência direta dos quilombolas e o litoral ocupado por vilas, como Alagoa do Sul e Porto Calvo.
- 15 Somente quando a carta de sesmaria especifica claramente as medidas de testada e fundos das terras (...)
17Estas três últimas concessões, juntas, abarcavam todas as terras do sertão até então conhecido da freguesia das Alagoas, entre o rio Paraíba e o Santo Antônio Grande. Uma distância em linha reta, aproximada, de 51 quilômetros. Compreenderiam uma área de 89.090 hectares, aproximadamente. Utilizando os mapas atuais e buscando os pontos de referência registrados em algumas cartas de sesmarias, pode-se ter alguma noção, mesmo que imperfeita, do tamanho dos domínios pretendidos por alguns sesmeiros nesta época. Para a plotagem das sesmarias no mapa considera-se, de maneira mais ou menos arbitrária, o pedido do número de léguas em quadra de sesmarias, convertendo-as para hectares, na proporção de uma légua em quadra equivalente a 4356 hectares – adotou-se esta medida pois é a área máxima referida na bibliografia para uma légua em quadra de sesmaria, permitindo-se chegar a uma ideia do máximo de terras a que se referiria uma determinada carta, estando o autor ciente de sua extrema variabilidade no espaço e no tempo.15
18É possível perceber, por exemplo, que, mesmo sem fazer referência ao rio Mundaú (principal rio que banhava a região de Alagoas, junto do rio Paraíba, mais ao sul) a sesmaria pretendida por Tomé Dias e Manoel Lopes reservava direitos territoriais aos sesmeiros por quilômetros, rio acima, em ambas as suas margens. O mesmo acontecia com as terras de Gonçalves Freire e Sebastião Dias, cortadas pelo rio Jitituba, afluente direito do Santo Antônio Grande. A titularidade daquelas terras garantiria, portanto, direitos sobre recursos naturais importantes, permitindo, em tese, o controle do acesso aos rios da região.
19Os conflitos entre os mocambos e os senhores de terra de Pernambuco não cessaram com o acordo de 1678. O acordo firmado pelo governo de Pernambuco com Gana Zumba e Gana Zona não foi seguido por Zumbi. A partir de 1679, as expedições contra os mocambos de Palmares tiveram como principal objetivo conseguir a capitulação ou a morte de Zumbi e seus companheiros. Em meio a estes conflitos, teriam sido doadas sesmarias, na região da mata dos Palmares, entre 1682 e 1683. Parece que a doação destas terras fazia parte de uma estratégia no combate ao grupo de quilombolas liderado por Zumbi, consistindo em doações a oficiais militares de largas parcelas de terra na área dominada pelas mocambos, forçando a ocupação do terreno, em princípio pelas próprias tropas – que iam se tornando “moradores” –, e, com a segurança garantida pelos soldados e índios, esperava-se que novos moradores se agregassem às terras. Ocupar o território seria a solução para o controle da população escrava rebelde e pobre livre (Silva 2010).
- 16 DHP, vol. 4, 94 e 104-105.
- 17 [Relação das Guerras…], ANTT, Manuscritos da Livraria, nr. 1185. Papéis Vários, ff. 149-155v.
20Infelizmente, estas cartas de sesmarias só chegaram aos dias de hoje de maneira fragmentada e por fonte secundária. No entanto, a título de exemplo, vale citar pelo menos duas destas últimas doações. A primeira, feita ao capitão Manoel da Cunha Moreno (que já havia recebido uma sesmaria no rio Jaboatão, em 1678), em 1683: seis léguas ao longo da margem sul do rio Ipojuca, no sertão dos Palmares. É provável que esta sesmaria ficasse bastante próxima aos antigos mocambos do Amaro e do Macaco, então já destruídos, e esperava-se que a ocupação do terreno impedisse um reavivamento daquelas comunidades.16 Já o outro exemplo vem da sesmaria de Cristóvão Lins, Sibaldo Lins e Inácio de Azevedo, de quinze léguas, no sertão do Porto Calvo. Creio que esta sesmaria estava estrategicamente localizada próxima ao antigo mocambo do Zambi (destruído em 1675)17, funcionando como posto avançado da repressão anti-quilombola em Pernambuco, numa verdadeira disputa territorial com as comunidades de mocambos.
- 18 Ver a regulamentação básica sobre sesmarias nas Ordenações Filipinas, 1870, Livro IV, Título LXIII, (...)
- 19 As cartas de sesmarias estão em DHP, vol. 1, 13-16 e 63-65; e vol. 4, 112-113 e 116.
21Em fins do século XVII, a questão sobre as terras doadas em Palmares entre as décadas de 1670 e 1680, e que seriam reivindicadas pelos paulistas a partir de 1695, começava a se complexificar. Muitas das terras doadas por Aires de Souza de Castro após as expedições de Fernão Carrilho e o tratado de paz não teriam sido ocupadas pelos sesmeiros agraciados, tendo, segundo o que estipulavam as Ordenações Filipinas18, se tornado devolutas e passíveis de nova doação. Pude apurar que, mesmo antes da chegada dos bandeirantes de Domingos Jorge Velho aos Palmares, sesmarias foram concedidas entre os anos de 1690 e 1701, possivelmente em terras já antes doadas. É o caso de quatro outras doações, feitas a militares e moradores da região das vilas de Alagoas e Porto Calvo.19 A evidência de doação de novas terras em áreas de sesmarias pregressas, envolvendo as mercês da guerra de Palmares, corrobora a versão do documento (já analisado acima) que descreve o caso dos dízimos palmarinos: tudo indica que algumas partes dos terrenos doados não foram plenamente cultivados e ocupados, caindo em comisso. Com o recrudescimento da guerra após o fracasso do acordo de paz de 1678, novos combates foram travados nas matas palmarinas e novas terras foram pedidas, após a constatação da ineficácia dos primeiros sesmeiros.
- 20 Estas regulamentações estão em: ant. 1760, janeiro, 11. AHU_CU_015, Cx. 93. D. 7376, f. 16; e 1699, (...)
22Em 1690, Gonçalo Rodrigues da Silva, Domingos Fernandes Casado, Manoel da Cruz França e Lázaro Quaresma de Sá receberam, aproximadamente, quatro léguas e meia em quadra de sesmaria, ao longo do rio São Miguel, sul de Alagoas. Como a concessão explicitava que as terras eram cortadas pelo rio, e que tinham como limite ao sul e a oeste as terras de Belchior Álvares, provavelmente a concessão se sobrepunha a sesmaria concedida anteriormente ao vigário das Alagoas, Antônio Lopes Leitão (1679), cujo limite sul eram as terras de Francisco Álvares Camelo – irmão ou tio do Belchior citado acima. Por volta da mesma época, em setembro de 1699, os capitães Apolinário Fernandes Padilha e Gonçalo de Cerqueira receberam duas léguas em quadra, uma para cada, no termo da vila de Porto Calvo, sobre parte das terras de sesmaria de Domingos Gonçalo Freire e Sebastião Dias. Na carta do pedido da data de terras, consta que os terrenos estavam devolutos “por não se haverem dado a pessoa alguma”, por conta da guerra aos mocambos. Esta sesmaria já contava com a obrigatoriedade do pagamento do foro real – 6$000 por légua em quadra ao ano, ou 4$000, em virtude da maior distância em relação ao litoral e da “qualidade da terra”.20 A justificativa para o pedido incluía o desejo de erguer um engenho de açúcar.
- 21 Esta anotação estaria à margem do registro da sesmaria de Apolinário e Gonçalo. DHP, vol. 4, 113.
23Uma hipótese para uma doação de terras incontestada dentro dos pretensos domínios da sesmaria de Domingos Gonçalves Freire e Sebastião Dias, além do possível abandono de parte das terras, seria a questão do foro real. Diferentemente de todas as outras sesmarias que encontrei, cujas cartas expressam a obrigatoriedade do pagamento do foro à coroa ao lado das outras obrigações (mas sem qualquer registro do pagamento real), há um registro do pagamento efetivo do foro feito por Apolinário Fernandes, em 1716, ao almoxarife Manoel Lopes Santiago: 64$000, referentes aos dezesseis anos de foro devidos entre 1699 e 1715.21 A sesmaria de Apolinário se mostra atípica dentro do contexto palmarino, pois o pagamento do foro demonstra não apenas a intenção, mas a efetividade no uso da terra, de onde deve ter saído, pela renda da terra, o montante pago. Portanto, talvez fosse mesmo impossível aos pretensos sesmeiros anteriores reaver a parcela de terras, uma vez que o pagamento do foro poderia assegurar o cumprimento das cláusulas de cultivo e ocupação por parte de Apolinário Fernandes.
24O mapa 1 mostra o total de sesmarias que pude localizar com o mínimo de certeza na região de Palmares, até 1702 – antes das primeiras doações de sesmarias aos bandeirantes paulistas. O encaixe “harmonioso” das terras, longe de significar exatidão milimétrica do historiador ou dos próprios agentes históricos na localização das terras, pode esconder disputas e contendas que as fontes não permitiram vislumbrar. No entanto, é com a chegada dos bandeirantes paulistas à guerra contra Palmares e a subsequente remuneração de seus serviços com sesmarias, que a configuração fundiária da região seria intensamente disputada. Se instalaria uma “querela das sesmarias” (Mello 1975; Alencastro 2000, 239) em torno dos direitos de propriedade daquelas terras após a vitória dos paulistas contra o líder Zumbi dos Palmares, em 1695.
- 22 Ver “Carta autógrafa de Domingos Jorge Velho, escrita do Outeiro do Barriga, Campanha dos Palmares (...)
25Cabe aqui uma pequena digressão para explicar a entrada dos bandeirantes paulistas na guerra de Palmares. Em 1687, o terço de bandeirantes paulistas do então coronel Domingos Jorge Velho entrou em acordo com o governo da capitania de Pernambuco, na pessoa do governador João da Cunha Souto Maior (1685-1688), ajustando condições para que o grupo de bandeirantes fizesse o combate aos mocambos dos Palmares de Pernambuco. Por essa época, Jorge Velho e seus soldados se encontravam em suas fazendas, ocupadas, há anos, no sertão do Piauí. Porém, antes de chegar aos Palmares, seu terço foi enviado pelo governador-geral do Brasil para socorrer os currais e fazendas do rio Piranhas contra as tribos tapuias do sertão do Açu, na capitania do Rio Grande.22 O documento em que se registram as condições ajustadas pelo governador e Domingos Jorge Velho é composto de dezesseis pontos acordados entre as partes, e confirmados por alvará real, em 7 de abril de 1693, mais ou menos cinco meses após a chegada dos paulistas aos Palmares.
Mapa 1. Doações de sesmarias a combatentes dos mocambos e moradores de Pernambuco (1678-1702)
Fonte: DHP, vol. 1, 13-16, 20-22, 63-65, 105-107; vol. 4, 91-94, 100-105, 112, 113 e 116. A localização dos mocambos foi demarcada com base em ANTT, Manuscritos da Livraria, nr. 1185. Papéis Vários, ff. 149-155v; e Barbalho (1983, 135).
- 23 “Condições ajustadas com o governador dos paulistas Domingos Jorge Velho para conquistar e destruir (...)
26Dentre ajustes quanto às mercês que receberiam após a guerra, assim como ao destino de possíveis escravos rebeldes capturados, duas questões versavam sobre as terras pretendidas por sesmarias pelos paulistas. A primeira delas, o sexto ponto do texto, dizia “que o Senhor governador dará aos mesmos conquistadores referidos sesmarias nas mesmas terras dos Palmares, que estiverem livres, para as poderem povoar e cultivar como suas, vivendo sujeitos e as mesmas terras ao domínio de Sua Majestade”. Isto é, a coroa se obrigava a conceder as terras dos Palmares conquistadas pela tropa de Jorge Velho “que estiverem livres”, e “com as cláusulas costumadas, limitando a cada um o que puder povoar, ficando-me livre para dar as que for servido a outras pessoas, que me quiserem servir na mesma guerra ou tiverem feito em outras ocasiões”.23 É importante frisar estes pontos e condições, pois eles serão invocados pelo procurador de Jorge Velho para legitimar o domínio pretendido sobre as terras.
- 24 Idem, 278.
- 25 Ant. 1760, janeiro, 11. AHU_ACL_CU_015, Cx. 93. D. 7376, f. 5-6.
27A segunda questão referente às sesmarias, o 11.º tópico do acordo, estabelecia que “as sesmarias que pretendem no rio dos Camarões e Parnaíba lhe prometem dar o senhor governador assim e da maneira que quiserem”.24 Este ponto é bem interessante, pois, do pouco que já se escreveu sobre a disputa pelas terras dos Palmares entre seus conquistadores, moradores locais, autoridades, etc., nunca se deixou bastante claro que Jorge Velho buscou terras também no sertão do Piauí. Junto a outros paulistas e descendentes, Jorge Velho já estivera “habitando, povoando e cultivando as terras do rio dos Camarões, no ‘reino do Gariguê’ [provavelmente, rio Gurguéia, no atual Piauí], conquistadas por eles sobre o gentio bravo”, há pelo menos 16 anos, quando do chamado para a guerra em Palmares (Carneiro 1958, 113). Em 1703, uma ordem régia garantia aos paulistas a isenção do foro devido à Fazenda Real, instituído em Pernambuco em 1699 – mais de dez anos após o contrato entre paulistas e coroa.25 Não seria justo, segundo o documento real, instituir a cobrança do foro somente no momento de passar as cartas de sesmarias aos combatentes, que haviam recebido a promessa de suas terras antes da instituição da cobrança do foro.
- 26 DHP. Vol. 1, 1954, 116-20.
- 27 Biblioteca Nacional de Lisboa. Secção de Reservados, Coleção Pombalina, PBA: 115, f. 206.
28De facto, a viúva de Jorge Velho, Jerônima Cardim Fróes, com mais 13 associados, fariam um requerimento de sesmaria de terras que teriam sido pedidas pelo paulista antes de 1687, e que não haviam sido confirmadas, no sertão do Piauí, onde Jorge Velho alegara ter cultivado e criado gado, povoando todo o “Pragohy e Canindé”, associado à Casa da Torre. Dali havia defendido o sertão do Maranhão contra tribos hostis, e foi com a intenção de confirmar a titularidade destas terras que aceitou ir aos Palmares. A sesmaria no Piauí foi registrada em 1705, pelo governador Francisco de Castro Morais, no Recife26, somente para ser revogada em 1710, pelo rei, alegando que a carta não discriminava o tamanho da concessão pretendida.27 Com a conjuntura de fins do século XVII, de reformas pela racionalização dos procedimentos e condicionantes das doações de sesmarias (Alveal 2015), as pretensões da viúva de Jorge Velho e seus sócios logo foram frustradas pela coroa.
29O alvará real de confirmação do acordo dos paulistas não cita o ponto 11.º do contrato. Aparentemente, ele foi deixado de fora das negociações, posto que também não aparece em mais nenhum documento, e os paulistas, em seus requerimentos futuros, declararam que abandonariam suas terras do Piauí para servir nos Palmares, como veremos a seguir. No entanto, a ordem de 1703, que garantia a isenção de foros e pensões nas doações feitas aos conquistadores dos Palmares, será lembrada em quase todas as sesmarias pretendidas pelo terço dos paulistas na região palmarina no século XVIII, apesar da ordem régia, explicitamente, se referir a terras doadas anteriormente à instituição do foro, e no sertão do Piauí.
30Concordando com Luiz Felipe de Alencastro (2000, 238-242), a disputa em torno das férteis matas palmarinas entre os sesmeiros locais e os paulistas representava um esforço de ambos os grupos de assegurar o domínio sobre terras próximas às praças comerciais litorâneas, onde o excedente agrícola dos cativos – indígenas e/ou africanos – poderia ser transacionado, completando o circuito comercial e auferindo renda daquela produção, em favor dos pretensos sesmeiros. A proximidade do litoral teria o sido a grande motivação para os paulistas de Jorge Velho deixarem suas terras no Piauí, à sombra dos grandes domínios da Casa da Torre, e almejarem as serras e pastos alagoanos dos Palmares.
- 28 Ver o Requerimento paulista em: 1698, janeiro, 13, Lisboa, AHU_CU_015_Cx. 18_Doc. 1746, doc. anexo.
- 29 1695, janeiro, 27, Lisboa, AHU_CU_015, Cx. 17, D. 1674, doc. anexo.
31Apesar de acordos e ratificações reais, o desejo dos bandeirantes de conseguirem toda a região conhecida por Palmares em sesmarias, “um paralelogramo que conterá mil e sessenta léguas quadradas”28, logo foi de encontro a interesses outros, que já haviam consolidado seu domínio em algumas partes daquelas terras. É o que sugere a fala do Procurador da Fazenda Real em Pernambuco, em 1694, afirmando que não poderiam quatrocentos ou quinhentos paulistas ocupar todo o sertão palmarino, como queriam, na forma da lei; isto, nas palavras do oficial, “seria obrar com eles, o que eles mesmos acusam nos outros”.29 Entre os anos de 1702 e 1775, os combatentes paulistas do grupo de Jorge Velho seriam agraciados com várias sesmarias na região dos Palmares de Pernambuco. No entanto, não sem algumas dificuldades para fazer valer seu merecimento, ou mesmo antigos acordos com as autoridades da coroa.
32Nesta parte, buscarei apontar as localizações das sesmarias pretendidas pelos paulistas, e seus conflitos de jurisdição com sesmarias pretéritas, a fim de ilustrar a possível conformação fundiária nos vales e serras do sertão dos Palmares, e a disputa pelos recursos escassos disponíveis no sul da capitania de Pernambuco. O mapeamento das concessões sugere que os interesses paulistas foram vitoriosos apenas em algumas áreas, nomeadamente o entorno da vila das Alagoas, enquanto que a concentração de sesmarias paulistas nos sertões das vilas de Porto Calvo, Sirinhaém, e mesmo em direção ao agreste pernambucano, foi bastante menor, ou mesmo inexistente.
- 30 Ver o levantamento dos respetivos nomes em Marques (2014, 136-145).
- 31 Ver cópia da carta em: [ant. 1760, janeiro, 11]. AHU_CU_015, Cx. 93, D. 7376; também copiada em: 17 (...)
- 32 Houve apenas uma sesmaria concedida aos indígenas, em DHP, vol. 1, 315-317.
33Até o momento, identifiquei 26 cartas de sesmarias passadas aos paulistas e seus descendentes, entre 1702 e 1775, computando 32 sesmeiros. Houve ainda uma sesmaria passada ao sargento-mor dos índios que serviam na guerra dos Palmares, e seus soldados.30 Destas, apenas duas não se localizavam nas imediações das terras palmarinas. Sete destas cartas de sesmarias citavam a carta régia de 28 de janeiro de 1698.31 Ela estabelecia que a extensão das sesmarias a serem doadas na região dos Palmares, aos seus conquistadores, devia ser feita de acordo com a patente. Ao mestre de campo Domingos Jorge Velho caberiam seis léguas de terra em quadra; aos sargentos-mores, quatro léguas; aos capitães de infantaria, três; aos alferes, duas; aos sargentos e a cada soldado branco, uma. Determinava também a extensão das terras a serem reservadas para aldeamentos indígenas, que deviam compreender quatro léguas em quadra, em cada uma das companhias.32
- 33 Cf. 1699, janeiro, 20, Lisboa, AHU_CU_015, Cx. 18, D. 1771.
34Já a provisão real de 20 de janeiro de 1699, que regulamentava o tamanho das datas, a cobrança do foro e a obrigatoriedade de confirmação régia para as sesmarias legadas de herança, foi citada em pelo menos 3 das 16 cartas contabilizadas para os conquistadores dos Palmares. Esta provisão continha uma ordem especialmente interessante para as pretensões paulistas nos Palmares. Dizia o rei que, sendo informado de que os sertões do nordeste continuavam parcamente povoados por conta de suas terras serem dadas por sesmarias a uns poucos particulares que “cultivam as terras que podem deixando as mais devolutas, sem consentirem que pessoa alguma as povoe, salvo quem à sua conta as descobrir, defender e lhe pagar dízimo de foro por cada sítio cada um ano”, estabelecia que as pessoas que não tivessem cultivado e povoado parcial ou completamente suas terras poderiam perdê-la a partir da denúncia de qualquer pessoa. Esta, então, teria o direito de requerê-las por sesmarias, até o limite de 3 léguas quadradas, pagando o foro devido, segundo a qualidade do terreno.33 Desta forma a coroa esperava que a possibilidade de adquirir os direitos sobre as parcelas de terras, por ventura incultas, encontradas pelo sertão, pudesse fazer com que os grandes lotes de sesmarias fossem aos poucos desmembrados e ocupados pelos moradores locais, limitando dessa forma o poder de alguns potentados dos sertões.
- 34 DHP, vol. 1, 219-222, 265-271; vol. 2, 228-231.
35Com relação aos foros devidos pelas terras dos Palmares, tudo indica que a resolução do rei de 1703 isentava os conquistadores do pagamento, e assim eles pediam suas terras. Na verdade, de todas as sesmarias localizadas nos sertões alagoanos, somente sete cartas explicitamente falam sobre a obrigação do pagamento do foro anual à Fazenda Real. Entre as concessões isentas está a do sargento-mor Cristóvão de Mendonça Arraes, nos Palmares, já citada acima. Curiosamente, esta sesmaria obteve isenção de pagamento do foro real, mesmo tendo sido doada antes da referida resolução de 1703. Também concedidas com isenção de foro eram a sesmaria do capitão Antônio Vieira Rodrigues, passada em 1716, a do capitão Domingos Rodrigues da Silva, de 1723, e a de Luís Ferreira de Morais, em 1775.34
- 35 DHP, vol. 2, 121-125.
- 36 1760, janeiro, 11, AHU_CU_015, Cx. 93, D. 7376, f. 3.
36Das sesmarias nos Palmares, dadas no século XVIII aos conquistadores, que deveriam pagar o foro real, apenas uma não explicitava diretamente a quantia anual devida. Era a data dos irmãos Duarte Ramos Furtado e José da Cunha. Ambos receberam duas léguas em quadra, no rio Paraíba, vizinhas às terras de Francisco Vieira da Cunha, em 1758. Se declaravam filhos de João Gonçalves Furtado – combatente paulista que, possivelmente, se retirou para o Ceará após as guerras nos Palmares.35 Duarte e José buscaram a isenção do foro anual, recorrendo ao Conselho Ultramarino. Após análise do caso, o parecer sumário foi de que, por haver mais de 60 anos desde a guerra, “não se poder ampliar para todos os outros que pela diuturnidade do tempo se forem concedendo aos seus sucessores”.36 Vale lembrar que, em 1724, o alferes José da Cunha recebera duas léguas em quadra no rio Mundaú, e o sargento Duarte Ramos Furtado, no mesmo rio acima, uma légua em quadra, numa região de sopé de serra, próximo ao atual município de União dos Palmares.
37No mapa 2 estão demarcadas, também de maneira aproximada, todas as sesmarias recebidas pelos bandeirantes paulistas na capitania de Pernambuco em remuneração aos serviços prestados em Palmares. Comparando-se este com o mapa anterior, é possível perceber a dimensão dos potenciais conflitos de jurisdição, em vista da grande sobreposição de terras doadas. Em relação às sesmarias passadas anteriormente aos combatentes e moradores locais, as sesmarias dos paulistas se diferenciam, principalmente, pelas dimensões. Estas foram definidas, como vimos, por ordem régia e estavam consonantes com o impulso regulatório sobre as datas de terras doadas nos sertões em princípios do século XVIII. Em resposta aos grandes domínios sesmariais improdutivos, por vezes inóspitos, as terras de menor dimensão dos combatentes paulistas denotavam uma intenção de efetiva ocupação do espaço e aproveitamento do terreno – geralmente, neste caso, para a criação de gado em fazendas e currais –, preocupação central da Coroa na virada do século.
38Dois casos, para os quais existem mais informações, ilustram o argumento. Em 1717, quando pediu sua sesmaria de três léguas em quadra cortada pelo rio Paraíba do Meio, o capitão André Furtado de Mendonça afirmava ocupar a região há quase 20 anos, local onde não apenas assistira na guerra contra os mocambos, mas também morava com sua família. Entre os atos possessórios citados para justificar a ocupação e o pedido de um título de propriedade estavam a construção de casas de sobrado e telhas, a derrubada de áreas de mata fechada para pastos, a plantação de lavouras de roças e tabacos e o plantio de árvores frutíferas locais. Dizia ainda ter erguido um curral de gado na região.37 Desde sua chegada aos Palmares, os paulistas deixaram claro sua intenção de ocupar as terras antes controladas pelos mocambos, sendo este um ponto chave do acordo firmado com o governo da capitania, assim como para afirmar seu alinhamento com a nova mentalidade da política sesmarial que surgia no início do século XVIII.
- 38 DHP, vol. 1, 219-222 e 249-253; e vol. 2, 228-231.
- 39 “Consulta do Conselho Ultramarino em que se determina satisfazer ao que Sua Majestade ordena sobre (...)
39Pedindo sesmaria em 1716 e recebendo confirmação em 1719, o capitão Antônio Vieira Rodrigues seguia fórmula parecida com a de seu colega no requerimento. Alegava povoar sítio nos Palmares havia 17 anos, assistindo na guerra com toda sua família, onde abriu pastos para o gado e já construíra um curral. Além da construção de casas e o plantio de árvores de espinho, Antônio relatava ter já um molinete e moendas para erguer um engenho de açúcar. A outra carta que menciona engenho é a mais recente, de 1775, passada a Luís Ferreira de Morais, filho do capitão Luís da Silveira Pimentel, entre os rios Una e Sirinhaém. Diferentemente das referências à posse de gado e à pretensão de erguer currais, a menção a engenhos só apareceu duas vezes nas sesmarias paulistas, marcando também diferenças nas pretensões produtivas de paulistas e pernambucanos nos Palmares.38 É emblemática uma consulta do Conselho do Ultramarino, ainda em 1695, onde um de seus conselheiros recomenda que “lhes deem algumas terras, como se dão aos mais moradores, para eles as poderem aforar e não para que eles as possam cultivar”, mostrando certa preocupação com a fixação dos paulistas nos sertões palmarinos, ocupando a área de fronteira, até então, aberta para os interesses terratenentes locais.39
40O trabalho de Guillermo Palacios dá boas pistas a respeito do processo de avanço do plantio de tabaco e mandioca na região de Goiana, Alagoas, e também em Sirinhaém, durante os anos de 1717 e 1725, quando muitos senhores “se botaram para as minas e ficaram os engenhos e partidos em pasto”, devido em parte à “persistência de quilombos e de grupos de negros fugidos remanescentes de Palmares” (Palacios 2004, 335, nr. 18). O autor classifica como “crise da plantation e emergência da agricultura de base camponesa” o período entre 1700 e 1760 na região de ocupação da capitania de Pernambuco e demais anexas. É possível que as comunidades de que fala Palacios ocupassem, justamente, os espaços das sesmarias paulistas nos vales de alguns dos principais rios da região (Paraíba do Meio, Mundaú, Una e Sirinhaém) (Palacios 1987, 331).
Mapa 2. Doações de sesmarias aos combatentes paulistas e seus familiares nos Palmares e arredores (1702-1775)
Fonte: DHP, vol. 1, 97-98, 219-222, 230-235, 246-253, 261-271, 277-279, 288-297, 304-306, 315-317, 319-321; vol. 2, 95-98, 121-125, 228-231; vol. 4, 123 e 131.
41Os lugares de preferência da ocupação paulista parecem ter sido mesmo o curso dos rios Paraíba, Mundaú e seus afluentes mais importantes. Dezoito das 26 cartas a eles concedidas estavam nestes locais – enquanto que apenas sete sesmarias foram ali concedidas aos combatentes de Palmares locais. Na verdade, uma boa parte das terras concedidas aos locais ainda no século XVII foi depois solicitada em sesmaria pelos paulistas na primeira metade do século XVIII. Para tanto, os paulistas se mostraram muito mais em sintonia com o momento de mudanças e racionalização das normas de concessão das sesmarias, em inícios do século XVIII, invocando, para além da conquista dos Palmares, atos possessórios e maior razoabilidade entre as dimensões das terras e a capacidade de ocupação efetiva das famílias e seus cativos.
42Os currais e fazendas de gado paulistas também colocavam um grande desafio para a sobrevivência de comunidades quilombolas e camponesas no interior da região. A ocupação paulista teria criado a tão almejada barreira entre as comunidades quilombolas das matas pernambucanas e o “mundo do açúcar” do litoral, contribuindo assim para a diminuição de fugas de escravos e o consequente enfraquecimento dos refúgios dos negros nas serras e matas. Como o número de escravos nesse tipo de empreendimento costumava ser ínfimo – utilizando-se muito mais da mão de obra familiar ou de parcerias e arrendamentos (Silva 1997) –, o material humano para a conformação dos quilombos logo diminuiria muito. Assim, e por fim, é possível pensar, seguindo Palacios (1987, 2004), o movimento de surgimento do campesinato pernambucano no século XVIII a partir da dispersão das comunidades quilombolas pela interiorização dos currais de gado, do florescimento da agricultura de subsistência e de culturas comerciais alternativas à cana-de-açúcar, e da consequente conversão dos remanescentes dos mocambos de Palmares em população livre e pobre ocupando as terras férteis das serras e vales do interior.
43Os dados apresentados neste artigo constituem uma primeira incursão nas formas de apropriação territorial desenvolvidas na região dos Palmares, depois de conquistadas as terras às comunidades de mocambos. Foi possível mapear minimamente a dinâmica das concessões de sesmarias deixando claro algumas das estratégias colocadas em prática pelos atores sociais de modo a garantir seus respectivos direitos de propriedade. Salta aos olhos a intricada relação entre as práticas da apropriação territorial e as normas legais que as acompanham. Ambas se retroalimentam, deixando claro que norma e prática dos direitos, à época, se construíam mutuamente no processo histórico. O conflito em torno das terras palmarinas tem repercussões para muito além do caso de Palmares, podendo certamente ter reflexos na constituição dos grupos sociais dominantes na região de Alagoas e Pernambuco, assim como em conflitos posteriores, como a Guerra dos Cabanos, em 1835 (Palacios 2004; Lindoso 1983).
44Alguns dos casos apresentados exemplificam o que Laura B. Varela afirma ser a característica fundamental dos direitos de propriedade sesmarial, qual seja, seu caráter condicional (Varela 2005). Os atores históricos deixaram claro, por diversas vezes, que a noção da condicionalidade da propriedade era fundamental nas suas estratégias para garantir seus direitos sobre ela. Desta forma, defende-se que os sesmeiros no Brasil colonial, pelo menos em princípios do século XVIII, se comportavam muito mais de acordo com este caráter fundante do instituto das sesmarias, do que com “uma ideia muito próxima da de propriedade privada da terra” (Alveal 2007, 15). Os exemplos mostram que foi preocupação fundamental dos sesmeiros o que diziam as múltiplas fontes de direito sobre as condições para a manutenção da propriedade. Esta condicionalidade podia se manifestar na garantia de direitos comunais, como a obrigatoriedade em dar caminhos livres para fontes, pedreiras, pontes e ao concelho. Das 51 sesmarias apresentadas aqui, 23 (45,1%) continham esta exigência. Destas, 21 foram concedidas entre 1690 e 1727, coincidindo com o período das grandes reformas no padrão de concessão de terras, por parte da coroa.
45Para além das dificuldades documentais, talvez a própria noção sobre o que vem a ser a propriedade sesmarial tenha, até muito recentemente, impedido uma problematização maior sobre as múltiplas facetas deste sistema, suas variadas formas possíveis de existência, lado a lado com formas outras de apropriação territorial. Essa riqueza de condições e apropriações dos terrenos e domínios territoriais, ou mesmo das normas legais, não pode ser simplificada pela letra pura e simples dos textos jurídicos, ou mesmo por uma noção de propriedade anacrônica que nada, ou muito pouco, diz a respeito das múltiplas relações de propriedade engendradas pela instituto das sesmarias no Brasil (Silva 1997).
46Segundo Andrade, há uma mística em torno do processo de ocupação da região conhecida como Zona da Mata alagoana, levada à frente mesmo por historiadores de ofício, que propaga a “ideia de que a penetração do interior se deu pela dilatação das propriedades canavieiras do litoral ou pela ação dos bandeirantes paulistas” (Andrade 2014, 48). Ou seja, confunde sesmaria com ocupação, com produção de riqueza e produtos da terra, excluindo do processo tipos outros de apropriação territorial e de recursos, tais como comunidades camponesas e quilombolas “independentes”, aldeias indígenas fora do jugo colonial, etc. Assim, o episódio das terras palmarinas pode nos mostrar como a construção dos direitos de propriedade de uns corresponde à desconstrução de outros. Num primeiro momento, os mocambos dominavam a região com relações sociais de propriedade das quais muito pouco se sabe. Logo são expulsos por forças militares que almejam impor novos direitos sobre as parcelas de terra, excluindo os ocupantes pregressos.
47Neste sentido, recorro ao trabalho de Rosa Congost, quando esta propõe a categoria de propriedade-realidade, em oposição ao que ela chama de propriedade-metáfora, consagrada no senso comum – e em algumas vertentes acadêmicas –, que esconde as reais relações sociais que estão por trás dos direitos de propriedade. “Uma teoria científica dos direitos de propriedade”, segundo a autora, “teria que combater nossa forma habitual de ver a propriedade e assumir o facto de que os direitos de propriedade podem mudar e evoluir ainda que não mudem as leis” (Congost 2007, 43; mais recentemente Congost, Gelman e Santos 2017, 177-204). Direitos de propriedade também são uma arena de disputa – sempre que alguns são contemplados pela legislação isto acontece em detrimento de outros direitos.
48Relações sociais de propriedade que conformam os direitos de propriedade. Tentando trazer esta discussão para a realidade social da colônia no século XVIII, recorre-se a uma visão menos estatista e linear para explicar o fenômeno do ordenamento jurídico colonial. Para António Manuel Hespanha, o traço característico do direito colonial brasileiro é o seu casuísmo. A tese de Hespanha é de que, apesar de algumas leis específicas para a colônia, editadas pela coroa portuguesa, o direito colonial brasileiro foi construído a partir da prática local, dos tribunais dispersos; e as próprias ordens e leis reais apontam para a existência de zonas de não cumprimento do direito real, onde as práticas eram outras, socialmente constituídas e, por vezes, opostas aos ditames da lei real. Existia um direito próprio da colônia, que emergia da efetividade da realidade social, das ações dos indivíduos e das relações sociais. Era um direito que funcionava muito mais pelo exercício da prática, e se reforçava e se renovava neste exercício, do que um ordenamento baseada em fontes únicas de direito (a letra da lei), estáticas e inflexíveis (Hespanha 2005).
49Com relação aos direitos de propriedade sobre as sesmarias de Palmares, estas características que teciam o ordenamento jurídico da época estavam bem presentes. Nos casos mostrados pode-se ver como a pluralidade de ordens e normas emitidas pela coroa e seu Conselho Ultramarino a todo tempo buscavam dar uma resposta ao cotidiano das relações sociais de propriedade, em especial nos sertões. Muitas eram as referências de direitos invocadas pelos sesmeiros (ordenações, regimentos, cartas régias, alvarás, etc.) para afirmar seus direitos às concessões. Da mesma forma, estas regras do ordenamento jurídico se modificaram e se acumularam – às vezes entrando mesmo em contradição, pois sempre eram criadas visando situações específicas – em função das demandas da realidade social da colônia. Me parece clara a aproximação entre o caso das sesmarias de Palmares e o que Hespanha chama de “casuística do direito colonial brasileiro”, ou o que Grossi chamaria de “reino da efetividade” nos direitos de propriedade – a emergência do ordenamento jurídico, anterior ao liberalismo do século XIX, da experiência social e econômica dos atores históricos (Grossi 2007, 27-29).
50Este artigo é parte de uma pesquisa de doutoramento, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Brasil. O autor agradece o financiamento, concedido por bolsa de doutoramento, do CNPq e do PDSE/CAPES. Agradece ainda os comentários e sugestões dos referees da revista, do professor José Vicente Serrão (ISCTE-IUL), da professora Sílvia Lara (Unicamp) e de sua orientadora Manoela S. Pedroza (UFRJ).