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Dossier: A polícia e as polícias no mundo ibero-americano, séculos XIX e XX

A polícia e as polícias no mundo ibero-americano: introdução

Gonçalo Rocha Gonçalves e Marco Alpande Póvoa
p. 9-13

Texto integral

1Só recentemente a polícia e as práticas de policiamento se tornaram objeto de atenção por parte dos historiadores. Mais recentemente, ainda, quando pensamos em países da Europa do Sul e da América Latina. A historiografia em língua espanhola ou portuguesa sobre sistemas de polícia, forças policiais ou práticas de policiamento está, apesar do atual significativo crescimento, ainda na sua infância. Para além disso, esta historiografia é, de uma forma geral, ainda vincadamente marcada pelo paradigma nacional. Os últimos anos têm registado não só um aprofundamento das pesquisas sobre o fenómeno policial nos séculos XIX e XX neste recorte espacial, mas também, através de um reforço dos contactos entre historiadores destes países, do aumento de análises comparativas e da escolha de temas que transcendem as realidades nacionais (ver, por exemplo, o estudo da chamada “criminalidade internacional” ou das técnicas de identificação e investigação criminal). Este dossier pretende ser mais um contributo para a aproximação de análises, experiências e debates entre historiadores de países destas regiões do globo. Se questões como a criminalidade ou a manutenção da ordem pública foram ao longo do tempo despertando questionamentos em torno da polícia, mais recentemente, como estes artigos o demonstram, questões como o aparecimento de técnicas especializadas e a profissionalização dos polícias, a cultura organizacional ou as dinâmicas de interação entre polícia e sociedade tornaram a história da polícia um campo autónomo.

2Para além do desbravar de novas temáticas no contexto das suas historiografias locais, existem outras razões que tornam pertinentes os trabalhos de pesquisadores do fenómeno policial no espaço ibero-americano. As suas contribuições podem ser também relevantes para uma historiografia global da polícia e do policiamento. Durante o século XIX, os sistemas de policiamento público cresceram de forma significativa e constituíram um dos alicerces que garantiam ao estado o monopólio da violência física legítima. A historiografia da polícia tem-se concentrado tanto nas diferentes configurações institucionais, como no desenvolvimento de ampla variedade de formas e estilos de policiamento. Inicialmente, este era um campo onde predominavam as perspetivas nacionais. A consolidação do estado-nação era interpretada através dos processos de construção de modernos sistemas policiais. Mais recentemente, no entanto, pesquisas assentes em metodologias comparativas ou centradas na circulação transnacional de formas institucionais, saberes e agentes policiais têm vindo a marcar a história da polícia (Gonçalves 2014).

3Se a historiografia assente no paradigma do estado-nação evocava a singularidade do percurso e das características da polícia de cada país, as novas abordagens têm acentuado a raiz comum e a intensificação das partilhas entre os diferentes países. Neste contexto, assiste-se ao desenvolvimento de espaços de análise alargados, numa historiografia que transcende as fronteiras nacionais. A difusão de espaços de análise como uma polícia “europeia” (Emsley 2007), o carácter distintivo do policiamento “colonial” (Brogden 1987; O’Reilley 2017), ou a polícia da “América Latina” (Palma Alvarado 2014; Galeano 2016), constituem exemplos de abordagens que, transpondo as fronteiras nacionais, têm mesmo assim uma unidade territorial estabelecida. Os artigos deste dossier propõem um espaço alternativo para refletir sobre o desenvolvimento de modernos sistemas policiais – o espaço ibero-americano.

  • 1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Interior, Direção Geral de Administração Política (...)

4O passado colonial legou na América do Sul formas institucionais policiais ibéricas que perduraram no tempo. Apesar disso, e de identidades culturais e políticas com uma raiz comum, é quase inexistente na historiografia policial do sul da Europa e da América uma reflexão partilhada. Uma distância contrariada pelos próprios atores históricos. Em agosto de 1916, por exemplo, o comandante da polícia de Lisboa informava da seguinte forma o governo português: “Em todas as polícias de que tenho conhecimento, os serviços de transportes rápidos para serviço de assistência policial se têm efetivado em maior ou menor escala; assim é [em] França, Inglaterra, Espanha, e modernamente [nos serviços] de Buenos Aires, Rio de Janeiro, S. Paulo.”1 Se a referência a modelos europeus era comum, o recurso a modelos da América do Sul nos discursos internos da máquina policial refletia uma crescente aproximação nos espaços do Atlântico Sul.

5Numa época de grandes migrações transatlânticas, as preocupações com uma criminalidade transnacional ajudaram à formação de laços – mesmo que muitas vezes restritos a exercícios de comparação e crítica estabelecidos à distância – entre polícias da Europa do Sul e da América Latina. A reflexão sobre a transformação policial no final do século XIX e início do século XX no mundo ibero-americano justifica-se assim tanto pelo passado colonial, quanto pela aproximação e circulação de modelos institucionais e formas de policiamento contemporâneas. Um mundo cada vez mais interligado foi criando, também na esfera policial, espaços de ligação mais intensa. Num período em que milhões de indivíduos pobres da Europa do Sul cruzaram o oceano em direção à América do Sul, os laços entre as duas regiões estreitaram-se ainda mais. Também na esfera policial se deu essa interligação.

6Este dossier reúne um conjunto de artigos que analisam as transformações nos sistemas policiais e nos modos de policiamento em alguns dos países do espaço ibero-americano. Embora cada artigo apresente um estudo de caso nacional, os diferentes trabalhos partem de bases conceptuais e debates historiográficos comuns, para além de estabeleceram em alguns momentos leituras comparativas com o espaço ibero-americano e não só. O dossier conta com artigos sobre Portugal, Espanha, Argentina e México. O recorte temporal é, de forma pouco rígida, o período áureo das grandes migrações da Europa para as Américas, ou seja, entre 1850 e 1939. Estes países e as suas instituições policiais conheceram neste período desafios, desenvolvimentos e influências, se não semelhantes, pelo menos com uma raiz comum. Alguns exemplos da experiência comum são o da Guardia Civil espanhola, uma influência para todos os outros países aqui trabalhados; a invenção de modernas técnicas de identificação criminal na Argentina, recebidas quase imediatamente no Brasil, em Portugal e em Espanha, para além de outros países europeus e nos Estados Unidos da América; México e Portugal viveram nas primeiras décadas do século XX processos revolucionários com semelhanças significativas. Existe, portanto, um campo de interrogações que, apesar de visível, tem sido muito pouco explorado até aqui, talvez por os referenciais de diálogo das historiografias no sul da Europa e da América permanecerem ainda nas historiografias francófona ou anglo-saxónica, mais do que num diálogo ibero-americano.

7Embora os artigos não se concentrem especificamente na partilha de experiências, uma leitura de conjunto dos mesmos ajuda a compreender essa raiz comum. As instituições policiais estiveram sempre no centro da construção política e social das novas nações ou da transição de regime político em nações já independentes. No primeiro artigo deste dossier, Diego Galeano mostra os debates e as dinâmicas políticas que pautaram a reforma do sistema policial argentino nas décadas iniciais do século XIX. A influência de modelos estrangeiros, não apenas aqueles herdados do período colonial, mas também os modelos policiais cuja circulação transnacional se intensificou durante este século, revela toda a sua importância neste artigo. No caso mexicano, analisado por Diego Pulido Esteva, a construção do sistema policial, mais do que um processo político feito de cima para baixo, traduziu antes uma negociação da ordem estabelecida entre as forças policiais e os diferentes setores da sociedade mexicana. Neste contexto, a autoridade policial – um conceito-chave nos estudos históricos sobre polícia –, mais do que uma prescrição legal, torna-se numa instável realidade social. Gonçalo Rocha Gonçalves e Marco Alpande Póvoa mostram como a Primeira República em Portugal (1910-1926) constituiu um período em que, apesar da questão da reforma policial ter estado quase em permanência na agenda política, e mesmo se questões organizacionais como o envelhecimento dos corpos policiais exerceram uma certa pressão por mudanças, a instabilidade política vivida no país bloqueou alterações mais profundas. A conflituosidade política da década de 1930 em Espanha marcou também, como o mostra Sérgio Vaquero Martínez, as mudanças nas instituições policiais e nas técnicas de manutenção da ordem pública daquele país. Questões como a militarização das forças policiais ou os usos de violência física por parte da polícia em situações de desordem pública, temas caros a toda a historiografia da polícia, merecem por isso uma interrogação pormenorizada.

8Os artigos contidos neste dossier mostram, assim, que existe um conjunto de temáticas e processos policiais, sociais e políticos comuns a todos os casos que justificam uma reflexão conjunta. As cronologias de cada país e o próprio trabalho de cada autor conduzem cada artigo para um espaço temporal mais limitado e para a discussão de temáticas e conceitos mais específicos, mas, no seu conjunto, os artigos mostram indagações e leituras comuns sobre um mesmo fenómeno nos diferentes contextos nacionais.

9Este dossier pretende mais ser um marco inicial, um chamar de atenção para possibilidades de pesquisa e diálogo, do que um ponto final numa pesquisa já empreendida. Estes artigos mostram, antes de mais, a existência de um campo que partilha interrogações e conceitos analíticos, mas em que o aprofundamento do debate e o estudo das interligações que cresceram nos séculos XIX e XX se revela também cada vez mais premente. Na sua vertente política, social ou técnica, as instituições policiais refletiram sempre as dinâmicas políticas, sociais e culturais de cada época. Num mundo cada vez mais interligado e interdependente, a partilha de um legado histórico comum, a intensificação de correntes migratórias e a partilha de línguas e traços culturais próximos tornaram o espaço ibero-americano, também na esfera policial, um espaço com um grau de singularidade a merecer análises mais aprofundadas.

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Bibliografia

Berlière, Jean-Marc; Denys, Catherine; Kalifa, Dominique; Milliot, Vincent (dir) (2006). Métiers de Police. Être Policier en Europe, XVIIIe-XXe Siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes.

Brogden, Mike (1987). “The emergence of the police: the colonial dimension”. British Journal of Criminology, 27 (1), pp. 4-14.

Emsley, Clive (2007). Crime, Police & Penal Policy: European Experiences, 1750-1940. Oxford: Oxford University Press.

Galeano, Diego (2016). Criminosos Viajantes. Circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.

Gonçalves, Gonçalo Rocha (2014). “Police reform and the transnational circulation of police models: The Portuguese case in the 1860s”. Crime, Histoire & Sociétés/Crime, History & Societies, 18 (1), pp. 5-29.

O’Reilley, Conor (ed.) (2017). Colonial Policing and the Transnational Legacy: The Global Dynamics of Policing Across the Lusophone Community. London: Ashgate.

Palma Alvarado, Daniel (2015). Delicuentes, policías y justicias. America Latina, siglos XIX y XX. Santiago do Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado.

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Documento anexo

  • (application/pdf – 95k)
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Notas

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ministério do Interior, Direção Geral de Administração Política e Civil, Mç. 71, sem número.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Gonçalo Rocha Gonçalves e Marco Alpande Póvoa, «A polícia e as polícias no mundo ibero-americano: introdução»Ler História, 70 | 2017, 9-13.

Referência eletrónica

Gonçalo Rocha Gonçalves e Marco Alpande Póvoa, «A polícia e as polícias no mundo ibero-americano: introdução»Ler História [Online], 70 | 2017, posto online no dia 12 setembro 2017, consultado no dia 18 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2665; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2665

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Autores

Gonçalo Rocha Gonçalves

Unirio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

goncalo.goncalves81@gmail.com

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Marco Alpande Póvoa

ISCTE-IUL e Academia Militar, Portugal

anterodekental@gmail.com

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