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Dossier: Guerras Civis

Apresentação

Fátima Sá e Melo Ferreira e Fernanda Rollo
p. 5-8

Texto integral

Fotografia de Robert Capa (Espanha, 1936).

  • 1 « Ainsi naissent les nations », entretien avec Élie Barnavi, professeur émérite de l’Université de (...)

1Numa interessante entrevista recentemente publicada, o historiador israelita Élie Barnavi, especialista em História da Europa Moderna, afirma, referindo-se às guerras de religião do início daquele período, que elas podem ser consideradas as primeiras guerras civis que a Europa conheceu desde a época clássica. Julga-as também indissociáveis do processo de construção do Estado moderno. Na Idade Média, diz, podia morrer-se em nome de uma convicção religiosa, morrer-se por Cristo, «partir em cruzada», mas não se combatia por um Estado. Teria sido no momento em que as duas entidades até aí separadas, a religião e o Estado, se tinham juntado, que a guerra civil como guerra de religião se tinha tornado possível. O que a tornava o «pior dos conflitos» seriam não tanto as convicções religiosas em jogo, mas sim o facto de estar igualmente em jogo a conquista do espaço comum e a sua purificação de «elementos impuros»1.

2Estas breves reflexões podem ajudar a enquadrar a temática deste dossier da Ler História: as guerras civis, embora aquelas de que nos ocupamos se inscrevam noutra cronologia e noutro contexto histórico. Abordam-se aqui, com efeito, conflitos situados no arco temporal que os historiadores designam por «contemporâneo», ou seja, os séculos XIX e XX, abrangendo-se assim tanto os que decorrem da implantação do moderno Estado-Nação e do liberalismo como sistema político como aqueles em que esteve implicada a crise desse mesmo sistema.

3Neste último caso ocupar-nos-emos sobretudo de um dos confrontos mais marcantes do século XX: a guerra civil de Espanha sobre cujo início passam este ano 70 anos.

4Sem ter nascido de um expresso propósito comemorativo dessa data, o presente dossier não é naturalmente alheio a ela como não o é, também, aos actuais debates que a historiografia do país vizinho vive e enfrenta a propósito da memória e da história daquele acontecimento.

5Regozijamo-nos pois duplamente por poder contar neste mesmo número com dois relevantes artigos de autores espanhóis que nos remetem para a complexidade com que estas questões merecem ser olhadas. A contribuição de Manuel Pérez Ledesma dando conta directamente dos caminhos que foram conduzindo aos acordos e desacordos da historiografia neste terreno, a de Jordi Canal consagrada às guerras civis espanholas do século XIX conferindo-lhes o peso e o estatuto historiográfico que lhes cabe e que a importância da guerra civil de 1936-39 tem, de certo modo, levado a subvalorizar. Nesse sentido Jordi Canal chama a atenção para a duração dos conflitos que opuseram revolucionários e contra-revolucionários não só na Espanha do século XIX mas também noutros quadros europeus e extra-europeus, acentuando igualmente o carácter internacional desses confrontos.

6A evocação feita por Manuel Pérez Ledesma dos vários «estratos conflituais» passíveis de serem reconhecidos na guerra civil espanhola de 1936-39: sociais, religiosos, ideológicos, regionais e internacionais, que historiadores como Juliá Casanova, Alvarez Junco e Santos Juliá se ocuparam em salientar em várias obras, encontra como que um eco diferido no tempo na perspectiva com que António Monteiro Cardoso se debruça sobre um aspecto local da guerra civil portuguesa de 1832-34, que opôs liberais e miguelistas, ao analisar a intervenção, nesse conflito, das guerrilhas no quadro geográfico do sul do país.

7O modo como, ao envolver as populações civis, essa intervenção condicionou a construção de uma identidade política antiliberal na região, ao contrário do que terá ocorrido noutras zonas do país, é aí interrogado, concluindo o autor que dentro da mesma guerra civil se travaram na verdade várias guerras civis. Uma conclusão que representa um outro modo de encarar a ideia da presença, num mesmo processo, de vários «estratos conflituais», e nos reconduz à complexidade da temática, complexidade que não pode deixar de continuar a interpelar a historiografia.

8Com portugueses a combater dos dois lados e na específica conjuntura nacional nos anos 30 do século XX, a guerra civil de Espanha teve um particular impacto deste lado da fronteira.

9Dizer que a guerra civil de Espanha foi um ensaio geral da II Guerra Mundial é um lugar comum que, no entanto, os historiadores se têm encarregado de provar. Mas foi muito mais do que isso, foi uma guerra onde se fundiram os mais nobres e apaixonados ideais com as maiores violências e brutalidades; onde os dois campos primaram em vincar as grandes diferenças ideológicas existentes nesse tempo irrepetível: a força e a barbárie dos fascismos contra os romantismos e idealismos das esquerdas, socialistas, anarquistas, comunistas. Como se estivesse em causa, e estava, a sobrevivência da igualdade, da liberdade, da democracia, na Europa e no Mundo.

10Daí o carácter mítico dessa guerra, inspiradora de poetas, de pintores e de escritores que geraram não só uma imensa literatura historiográfica como outra mais ou menos ficcionada onde a realidade e o mito se confundem. O mito vai sendo prolongado por essa aura de que a guerra civil espanhola foi a última guerra romântica, como se pudesse haver romantismo numa guerra que foi, sobretudo, uma luta fratricida entre dois mundos, entre duas concepções da sociedade e da civilização ocidental, mas sempre brutal nos ódios que desenvolveu, nas paixões que desencadeou, nos desencantos que gerou. Na derrota que afinal significou para todos os espanhóis e para todos os que nela participaram.

11E, depois, claro que no caso português assumiu uma importância inesperada, pelas repercussões que teve no contexto da história e da consolidação da ditadura portuguesa entretanto transformada em Estado Novo.

12Neste dossier pretende-se dar um contributo para que essa memória não se perca sobretudo em Portugal onde recentemente se verifica uma tendência para recuperar e apagar alguns incómodos historicamente relevantes. Para nós essa guerra comporta um enorme valor: foi ela, pela forma como decorreu e como chegou a seu termo, que fez com que tivessem sido perdidas quaisquer veleidades de repor a democracia. Com a derrota da República espanhola foram arrasadas as resistências e as reacções políticas portuguesas. Vitória, se a houve foi de Salazar: recorde-se o que disse em 1939: «vencemos, eis tudo».

13Por tudo isso, sublinhe-se a relevância dos dois artigos que têm por tema a guerra civil de Espanha no quadro deste dossier dedicado às guerras civis. O de Manuel Pérez Ledesma, já acima referido, identificando mas, sobretudo, procurando diagnosticar e interpretar as principais tendências, linhas argumentativas, ritmos de produção e alterações que se têm desenhado no quadro da mais significativa bibliografia que existe sobre o tema. O de Manuel Loff propondo uma reflexão crítica sobre a produção bibliográfica portuguesa onde se passam primeiro em revista os trabalhos publicados até à Revolução do 25 de Abril, conjunto bibliográfico restrito e que, como assinala o autor, repercutiu desde logo o papel central que a «Guerra de Espanha desempenhou na própria definição ideológica e internacional do regime salazarista», e se desenvolve em seguida uma apreciação crítica sobre as mais recentes investigações sobre o assunto e acerca do debate que elas têm suscitado no quadro da sociedade portuguesa. Um debate que gira em torno do duplo eixo da memória e da história, que é por vezes difícil dissociar, mesmo sabendo-se que nem os seus problemas nem as suas agendas são coincidentes.

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Notas

1 « Ainsi naissent les nations », entretien avec Élie Barnavi, professeur émérite de l’Université de Tel-Avive, L’Histoire, Nº Spécial «La Guerre Civile : 2000 ans de combats fratricides», Juillet Août 2006.

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Índice das ilustrações

Créditos Fotografia de Robert Capa (Espanha, 1936).
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/2587/img-1.jpg
Ficheiros image/jpeg, 198k
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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Fátima Sá e Melo Ferreira e Fernanda Rollo, «Apresentação»Ler História, 51 | 2006, 5-8.

Referência eletrónica

Fátima Sá e Melo Ferreira e Fernanda Rollo, «Apresentação»Ler História [Online], 51 | 2006, posto online no dia 25 março 2017, consultado no dia 13 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2587; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2587

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Autores

Fátima Sá e Melo Ferreira

Dep. História – CEHCP / ISCTE

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Fernanda Rollo

FCSH / UNL

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