Matthee, Rudi, The Pursuit of Pleasure. Drugs and Stimulants in Iranian History, 1500-1900
Matthee, Rudi, The Pursuit of Pleasure. Drugs and Stimulants in Iranian History, 1500-1900, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2005, 346 páginas.
Texto integral
1Vinho, ópio, tabaco, café e chá. São estes os protagonistas da recente obra de Rudi Matthee dedicada à vida social, política e económica do Irão entre o início do século XVI e o ocaso do século XIX. O último livro deste especialista do Irão moderno, professor da Universidade de Delaware (EUA), não é uma cedência à moda das biografias históricas de produtos, nem constitui tão pouco uma análise estritamente económica daquelas drogas e estimulantes que, a ser encetada, presumivelmente se centraria no binómio produção-comércio. Ao invés, o autor privilegia uma abordagem holística do seu objecto, capaz de conjugar o estudo da cultura material (incluindo a distribuição e o consumo) com a problemática das relações sociais e da sociabilidade (status, gosto, prazer), das práticas religiosas e das transformações políticas (códigos morais, repressão, reacção). Em boa verdade, dando voz a duas substâncias intoxicantes (vinho, ópio) e a três estimulantes (tabaco, café e chá), Matthee logra compor um interessante quadro global do Irão nos séculos XVI-XIX.
2The Pursuit of Pleasure divide-se em duas partes. A primeira (6 capítulos) diz respeito à Pérsia Safávida (1501-1722), enquanto que a segunda (4 capítulos) é dedicada à época Qajar (1796-1925). Seguindo uma estrutura simples, e após um capítulo introdutório que oferece uma útil panorâmica da história do Irão entre 1500 e 1900, Rudi Matthee vai abordando, num e noutro período, as múltiplas implicações da circulação e consumo dos cinco produtos referidos, concluindo com a análise do lento triunfo do chá sobre o café ao longo do século XIX. Trata-se de um trabalho assaz rigoroso, problematizante mas sempre próximo de um conjunto vasto e muito significativo de fontes históricas (narrativas e de arquivo, para além das iconográficas) em várias línguas, do castelhano, do francês e do italiano ao persa, ao russo e ao neerlandês.
3Eis algumas das ideias-chave desta obra, respigadas em função de cada um dos produtos considerados. O álcool – que ocupa três capítulos do livro e cuja ingestão logo se associa, em contexto islâmico, a transgressão – era muito consumido na corte e pela elite, tanto no período Safávida como na época Qajar. O seu sucesso nestes círculos mais restritos remete para um mosaico de tradições (concepções pré-islâmicas que atribuem ao soberano poder próprio, dissociado daquele que a religião lhe reconhece; herança tribal da Ásia Central; «contaminação» cristã a partir da Arménia e da Geórgia, importância do álcool para o sufismo). De facto, como bem nota Matthee, «wine in Safavid society presents us with the fundamental paradox of a substance that, although formally forbidden, played an important role in society, its rituals, and its conventions» (p. 67). Já o ópio, de consumo generalizado e «democratizado», sempre constituiu uma substância livre de estigmas sociais e religiosos até se tornar, nos finais do século XIX um problema a requerer controlo. O tabaco, por razões económicas e sociais, soube resistir a todas as campanhas anti-vício que lhe foram movidas. Igualmente popular, o café – ou melhor, a coffeehouse e o seu impacto na esfera pública – teve enormes repercussões sociais e, consequentemente, foi objecto de vigilância e de pressão. Por último, o chá, que começou por funcionar como um marcador social dado o seu elevado preço, conheceu uma gradual popularização ao longo do século XIX e acabou por se apropriar da função social do café: o chá é sobretudo consumido nas «subversivas» coffeehouses e, como tal, haveria de motivar cíclicas intervenções repressivas do estado Qajar.
4São vários os lugares-comuns sobre o Irão e o mundo islâmico no período moderno que esta obra se encarrega de desmantelar. Atravessando nós uma época de crescente tensão entre a América de Bush e o Irão de Ahmadinejad, geradora de um sem-número de estereótipos que circulam e medram no mundo ocidental, The Pursuit of Pleasure revela-se como uma excelente profilaxia para este estado de coisas. Uma leitura particularmente indicada para políticos, diplomatas, especialistas de relações internacionais e fazedores de opinião que amiúde assumem que a utilidade do passado e dos exemplos da História se queda pelo século XX e pelo alfobre da cultura ocidental.
5A ideia de uma sociedade fechada, que restringe os seus contactos com o exterior, colide com uma realidade pautada por uma estreita relação do Irão com as tendências e flutuações do comércio regional e internacional. Provam-no a extraordinária difusão do café e do tabaco, e é também esse o caso da já referida popularidade do chá no século XIX, em boa parte plasmada pela vitalidade da relação comercial que o país mantinha com a Rússia e, depois, com a Inglaterra e o Raj. Mais, o consumo e a continuada aceitação social de alguns dos produtos considerados (o caso dos intoxicantes) revela por si só a pujança e a sobrevivência de influências externas, muita delas anteriores à islamização da região.
- 1 A comparar com idêntico debate acerca da possibilidade de aplicar Habermas à Índia colonial. Cf. Ra (...)
- 2 The Languages of Political Islam in India, c. 1200-1800, Delhi, Permanent Black, 2004.
6Do mesmo modo, e a propósito do café e do chá, Matthee demonstra a importância da coffeehouse enquanto lugar de afirmação de um espaço público fundamental da sociedade iraniana que, embora desempenhando um papel menos pujante do que na sociedade ocidental, contribuiu sobremaneira para o continuado fracasso de uma vigilância política e religiosa que usualmente se toma por absoluta1. Ao longo de todo o livro, aliás, é possível colher provas de como não estamos confrontados com uma realidade social estática e monolítica. As proibições relativas ao consumo do tabaco e do vinho são a cada momento desrespeitadas, o que demonstra a existência de uma diferença funda entre a norma estabelecida e a prática quotidiana, entre os ditames formais da religião e a autonomia madura de uma sociedade capaz de fazer as suas poróprias escolhas. É este o vector essencial da obra de Matthee, passível de ser consubstanciado na seguinte asserção: «Safavid Iran, in sum, reveals itself as a society that mixed the sacred and the profane, where pleasure and proscription were not mutually exclusive, and in which long-standings habits – and economic imperatives – usually won out over moral considerations» (p. 9). Há pertinentes comparações a estabelecer com outras sociedades do mundo islâmico, que sempre conheceram uma multitude de formas de legitimação e autoridade para além da religião. Apontam nessa mesma direcção, para o caso da Índia muçulmana, as investigações recentes de Muzaffar Alam2. Em suma, um milenar «choque de civilizações», assente no pressuposto de uma imutável ortodoxia islâmica, é ideia que não colhe de todo.
7Há várias civilizações asiáticas do período moderno a necessitar de abordagens semelhantes à ensaiada por Rudi Matthee nesta obra. A China constituirá porventura o caso mais evidente, tanto mais que foi uma destas drogas – o ópio – a potenciar um dos conflitos mais marcantes do século XIX. Mas, para o Império do Meio, o assunto raramente é abordado sob o prisma adoptado em The Pursuit of Pleasure. O mesmo é válido para o uso de estimulantes no mundo malaio, onde era frequente os guerreiros fazerem-se «amoucos» (amok) antes de uma qualquer batalha. Teria ainda interesse, e esse trabalho comparativo poderia eventualmente ter sido esboçado no presente estudo, procurar paralelos nos restantes impérios islâmicos da época, assim promovendo uma visão integrada do mundo muçulmano no que concerne ao consumo e significado social de drogas e estimulantes. Matthee consegue-o em certa medida para o império otomano, mas a Índia mogol, desafortunadamente, não lhe merece mais do que esparsas referências.
8Por fim, The Pursuit of Pleasure também é passível de entusiasmar os historiadores europeístas, nomeadamente aqueles que se ocupam do estudo das realidades ultramarinas e coloniais. Ocorre investigar o papel que algumas destas substâncias e estimulantes terão desempenhado na construção e manutenção dos impérios europeus na época moderna. A começar pelo caso português e pelo seu império asiático. Apenas um exemplo, à laia de remate. A 20 de Outubro de 1513, o judeu castelhano Francisco Albuquerque – profundo conhecedor da Ásia e entretanto convertido ao cristianismo – dirigiu uma longa carta a D. Manuel I. Intérprete e homem de mão do governador Afonso de Albuquerque, Francisco facultava então ao rei português a chave para o sucesso económico da Rota do Cabo: produzir ópio em Portugal para o vender na Índia, onde «sem elle nom pode viver», ainda que, paradoxalmente, fosse «defeso por a çeita de mafomede, asy como vinho, que am por pecado bebe llo, nem consemtyr faze llo em suas terras». D. Manuel não explorou a contradição e terá perdido muito dinheiro.
Notas
1 A comparar com idêntico debate acerca da possibilidade de aplicar Habermas à Índia colonial. Cf. Rajeev Bhargava e Helmut Reifeld, eds., Civil society, Public Sphere and Citizenship: Dialogues and Perceptions, Delhi e Londres, Thousand Oakes e Sage, 2005.
2 The Languages of Political Islam in India, c. 1200-1800, Delhi, Permanent Black, 2004.
Topo da páginaPara citar este artigo
Referência do documento impresso
Jorge Flores, «Matthee, Rudi, The Pursuit of Pleasure. Drugs and Stimulants in Iranian History, 1500-1900», Ler História, 52 | 2007, 221-224.
Referência eletrónica
Jorge Flores, «Matthee, Rudi, The Pursuit of Pleasure. Drugs and Stimulants in Iranian History, 1500-1900», Ler História [Online], 52 | 2007, posto online no dia 20 março 2017, consultado no dia 17 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2570; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2570
Topo da páginaDireitos de autor
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Topo da página