RADICH, Maria Carlos, O Algarve Agrícola. Notas oitocentistas
RADICH, Maria Carlos, O Algarve Agrícola. Notas oitocentistas, Lisboa, Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa/ISCTE, 2007
Texto integral
1O livro de Maria Carlos Radich reflecte sobre a História do Algarve. A sua importância advém do facto de podermos muitas vezes encontrar explicações para o que na actualidade se passa, e sobretudo identificar as modalidades de engenho e de arte, mas também de mistério, que o homem tem desenvolvido nas relações materiais e espirituais que estabelece não só entre si, como também com o ambiente que o rodeia.
2Esta obra permite uma reflexão sobre a evolução da economia agrícola do Algarve no século XIX. Embora a evolução agrícola de uma região aberta como era e é o Algarve não possa ser esgotada através da análise das suas realidades internas, o que é certo é que é através dessas mesmas realidades que podemos chegar aos condicionalismos externos que estiveram presentes no período em análise.
3A autora explora bem a documentação existente sobre a agricultura algarvia nos anos de oitocentos. Muitas vezes partimos da ideia de que o Algarve não tem história, na medida em que os líderes das transformações e os protagonistas das reflexões nacionais não são algarvios, nem estão no Algarve. Mas, Maria Carlos Radich evocou um conjunto numeroso de intervenientes que marcaram posição de forma interessada na gestão da agricultura regional. Constantino Botelho de Lacerda dá pretexto para o início do estudo. Embora lente de física experimental na Universidade de Coimbra, deslocou-se ao Algarve nos finais do século XVIII e traçou um quadro negro da realidade algarvia, afirmando que este «estava quase todo inculto». No dizer deste académico, o Algarve servia «somente de morada aos veados e outros quadrúpedes.
4Abrindo com este lente de Coimbra, Maria Carlos Radich vai buscar inúmeros profissionais, intelectuais e tribunos para ir avançando na sua caracterização do Reino do Algarve, versão oitocentista. Cito alguns deles: João Baptista Silva Lopes, Charles Bonnet, Francisco de Almeida de Bívar Weinholtz, Annes Baganha, Gerardo Pery, Alexandre de Sousa Figueiredo, Francisco Leotte, José de Almeida Coelho de Bívar, Tomas Cabreira e Mário Lyster Franco. Destes alguns conciliaram a reflexão com a acção. Sublinhe-se a permanência no Algarve durante alguns anos de Gerardo Pery, elemento grado da estatística e cartografia portuguesa, autor de um manual que é uma referência histórica no domínio da estatística e do conhecimento do território, com trabalhos estatísticos e cartográficos realizados, como se sabe, no Alentejo e no Algarve.
5O estudo de Maria Carlos Radich incide basicamente sobre três eixos: utilização do território; estrutura agrária e técnicas de exploração (técnicas gerais e culturais).
6Na utilização do território, a questão mais saliente diz respeito à área de incultos. A área recenseada como inculta, nalguns casos medida através do sentido de observação e registo visual do visitante (caso do lente Constantino Botelho de Lacerda, com que Maria Carlos Radich inicia o seu percurso) era, no início destes cem anos, de dimensão apreciável. E a sua expressão vai caindo à medida que nos aproximamos do século XX. Os contrastes são muitos, podendo até ter havido melhorias substanciais na capacidade de avaliação ou de medição das áreas afectas a determinados usos de solo, o que justificaria a quase ruptura que se detecta na avaliação da dimensão territorial.
7A evolução em pouco mais de cinquenta anos é notável, já que a área identificada como inculta foi reduzida para cerca de 1/3 da que tinha sido recenseada a meio do século, concretamente em 1868.
8Mas o interesse desta abordagem é outro. O texto faz referência a recursos que os incultos proporcionam. Este aspecto é de enorme relevância em economias rurais com o nível de desenvolvimento como a que o texto avança. Na verdade, Maria Carlos Radich faz referência à produção de mel e de cera, às plantas medicinais e aromáticas, não tão desenvolvidas como em Espanha, à caça e às fibras têxteis, como o esparto e a palma utilizadas para fazerem cordas e cabos, vassouras, capachos, ceiras, cestos, esteiras e outros artefactos semelhantes. Recursos ainda que resultam do aproveitamento da fibra retirada da pita ou piteira, utilizada para fabricar cordas, cestos e tecidos, enquanto que as folhas podiam entrar na alimentação animal ou eram utilizadas na delimitação de propriedades. Refere ainda o fornecimento de matérias-primas para a indústria da tinturaria, bem como as canas, estas utilizadas para exportação para o Norte da Europa.
9Este levantamento dos recursos proporcionados pelos incultos leva a que afinal não possamos equiparar os terrenos incultos com terrenos desprovidos de recursos, situação que aliás é igualmente aflorada no capítulo das pastagens.
10A questão da valorização minimalista dos recursos ou, por outras palavras, do desprezo dos recursos aos quais não se atribuem, na sua origem, um valor mercantil, tem levado muitos economistas a não entenderem que muitas das dinâmicas em espaços rurais (e até em espaços urbanos) têm êxito justamente pela adequada combinação que fazem dessa diversidade de recursos, muitos deles disponíveis e acessíveis apenas com as limitações que resultam da sua abundância e dos respectivos ciclos vegetativos. Esses recursos mantêm o que se poderia designar por uma conta de exploração com resultados positivos.
11Por isso, o conceito de incultos talvez tenha aqui, pelo que descreve Maria Carlos Radich, um significado pouco convergente com o que deveriam ser áreas improdutivas. Talvez se possa falar, então, de uma maior ou menor intervenção do homem, associando a maior intervenção a uma maior simplificação de recursos e à definição de um quadro mercantil mais estruturado. Relacionado com esta questão, outra merece reparo. Diz respeito ao padrão de valorização que utilizamos em determinado momento relativamente a certos sistemas naturais.
12Vem isto a propósito à referência repetida que Maria Carlos Radich faz do pinhal de Monte Gordo, ora evocando apreciações que sublinham o seu carácter único, ora transcrevendo opiniões que colocam aquele sistema em situação de desgraça nacional, da qual só haveria uma solução: arrancá-lo. Lacerda Lobo regista o pinhal de Vila Real de Santo António como destroçado; Silva Lopes revela que ele está «inteiramente perdido». Terá sido mesmo arrasado, de acordo com o Relatório acerca da Arborização Geral do País, de 1868. Para ser posteriormente rearborizado.
13No texto evoca-se ainda a questão da abundância da água. Diz-se que nalgumas áreas a água permitiu o «dessalgamento de vastos terrenos costeiros (…) susceptíveis de uma alta fertilidade, como o demonstra a feliz iniciativa de alguns agricultores que já defenderam extensões importantes da invasão do mar». Volta a falar-se, noutro patamar, da possibilidade de se conseguir recuperações de extensões importantes da invasão do mar.
14Conhecem-se relatórios finais apresentados no Instituto Geral de Agricultura, no Instituto de Agronomia e Veterinária de Lisboa e, posteriormente, no Instituto Superior de Agronomia, incidindo sobre temas orientados para o melhor aproveitamento dos recursos, nalguns casos através da destruição de sistemas que hoje são considerados como ímpares. As áreas húmidas são disso um exemplo. Tradicionalmente as áreas húmidas do litoral eram consideradas como focos de doenças e epidemias, relacionadas com águas paradas e com bicheza portadora de maleitas. Mas as soluções para estas áreas foram sendo sucessivamente apresentadas, de forma diferenciada, mas ajustadas aos valores sócio-naturais prevalecentes de cada época. Primeiramente para pastagens, depois para culturas agrícolas e, finalmente, já na actualidade, para urbanizações. As diversas soluções vão-se sucedendo, reflectindo os padrões de valores prevalecentes em cada época.
15No domínio das técnicas culturais, poderia esperar-se maior atenção à questão da água. Isto é, admitia-se que houvesse, na reflexão da época, maior expressão dos cuidados associados à gestão deste recurso.
16Habituados que estamos a entender este recurso, nas áreas do Mediterrâneo, como fundamental, admitia-se que a documentação da época pudesse transmitir-nos não só uma preocupação com a escassez deste recurso, como também uma descrição das modalidades herdadas, utilizadas e desenvolvidas para a gestão do recurso água.
17Maria Carlos Radich evoca Poinsard, num texto já do século XX, e diz-nos que a rega se praticava no Algarve apenas por «meios elementares». Isto é, a água era utilizada quando e se se apresentasse apenas ao alcance da mão do cultivador.
18Este aspecto contrasta com o que o que se poderia esperar de uma região marcada tecnologicamente pela presença de outras culturas civilizacionais que colocaram a defesa e a gestão da água como um dos seus principais pilares. Lacerda Lobo não conseguiu ver um só canal como ele próprio afirma. Mas, onde estaria então a herança árabe? Onde estariam os hábitos parcimoniosos de uso e as tecnologias de elevação, armazenamento, transporte e aproveitamento da água?
19A autora revela-nos que na alvorada do século XX começam a aparecer motores e máquinas utilizadas em vários domínios, vulgarizando a partir do virar do século os elementos experimentais que tinham sido utilizados pontualmente em algumas explorações do Algarve.
20Neste percurso que fazemos pela mão de Maria Carlos Radich parece-me poder valorizar os anos 70 do século XIX, como aliás a autora o faz, como um período notável, agitado, exigente, prenhe de iniciativas que convergiram nos anos seguintes.
21José de Beires, nomeado governador civil do Distrito de Faro no início desse decénio, inicia um período longo de governação, diferente dos curtos meses que, numa primeira fase, o tinha ligado ao poder regional algarvio.
22Gerardo Pery parece ter-se radicado neste período no Algarve e participado activamente na Sociedade Agrícola do Distrito de Faro, revitalizada em 1872. São, aliás, dessa época elementos cartográficos sobre o Algarve recentemente colocados à disposição através do Campo Arqueológico de Tavira1.
23O funcionamento da referida Sociedade Agrícola, para além de outras iniciativas, obrigava à existência de comissões concelhias, modelo que cerca de cem anos mais tarde a extensão rural oficial tentou reproduzir, já numa fase de declínio da intervenção pública agrícola.
24Durante alguns anos, ao longo dos anos 70 de oitocentos, a Sociedade Agrícola produziu Relatórios Gerais sobre o estado da agricultura algarvia. A sua redacção foi sendo alternadamente assumida por personalidades diversas, desde o próprio Gerardo Pery a Alexandre de Sousa Figueiredo ou a Annes Baganha, o que permite entender que as principais forças vivas da região estiveram comprometidas de corpo inteiro com essa dinamização.
25Foi, nesse período, dado um impulso à criação do Banco Agrícola e Industrial de Faro. Foi criado o lugar de Agrónomo Distrital, ocupado em 1873 por Alexandre de Sousa Figueiredo. Instalou-se uma Estação Experimental Agrícola na Horta da Areia, nos arredores de Faro. Iniciou-se em 1875 a publicação do «Jornal dos Agricultores do Algarve». E, já nos anos 80, viria a ser criada a Escola Prática de Agricultura do Algarve (1887). Um lote de iniciativas que reflectem preocupações de progresso e de clara intervenção de modernização na agricultura algarvia.
26Merecem realce estas preocupações com o progresso da agricultura algarvia, sublinhadas por Maria Carlos Radich, quando refere que vários estímulos tanto do âmbito institucional como particular permitem evidenciar as preocupações de desenvolvimento que, neste período, atingem o Algarve, reflexo seguro da dinâmica que o Fontismo introduziu no conjunto do país.
27Ficaram no ar, contudo, algumas questões que saem fora do âmbito deste estudo mas que poderão relacionar a agricultura algarvia com os restantes aspectos da vida económica da região. Relações com as comunidades ligadas ao mar. Ou os efeitos gerados pelas infra-estruturas entretanto instaladas na região (rodovias, portos e, posteriormente, caminho de ferro). Para além da expressão do que Maria Carlos Radich designa como «artesanato doméstico», ou seja, capacidades de valorizar produtos regionais, independentemente das suas origens, mas inseridos a jusante nos fluxos mercantis da região. É de agradecer a Maria Carlos Radich o trabalho realizado e o pretexto que nos deu para reflectirmos sobre a agricultura algarvia.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
João Guerreiro, «RADICH, Maria Carlos, O Algarve Agrícola. Notas oitocentistas», Ler História, 54 | 2008, 227-232.
Referência eletrónica
João Guerreiro, «RADICH, Maria Carlos, O Algarve Agrícola. Notas oitocentistas», Ler História [Online], 54 | 2008, posto online no dia 03 fevereiro 2017, consultado no dia 13 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2438; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2438
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