Sacuntala de Miranda e o envolvimento social do historiador
Texto integral
1Escrever sobre alguém com quem se conviveu muito pontualmente poderá parecer insensato e até pretensioso, quando, como no caso, nos referimos a uma personalidade tão importante na historiografia e na sociedade portuguesa contemporânea. Decidi, não obstante, aceitar o convite para prestar a minha homenagem à Professora Sacuntala de Miranda, uma vez que nos encontrámos em alturas muito importantes para mim e sempre senti da sua parte uma rara e muito estimulante capacidade de compreensão.
2Conheci a Professora Sacuntala de Miranda na sua casa da Ribeira Sêca em S. Miguel nos Açores no ano de 1998, após a publicação do seu livro sobre tumultos populares no concelho da Ribeira Grande, Quando os Sinos Tocavam a Rebate, Notícia dos alevantes de 1869 na Ilha de S. Miguel.
3O novo livro da Professora Sacuntala tinha vindo a público no momento em que eu trabalhava sobre tumultos populares contra as medidas laicizadoras da I República no concelho do Nordeste, concelho limítrofe do da Ribeira Grande. Referindo-se a acontecimentos concretos diferentes dos que eu estudava, estes podiam, não obstante, enquadrar-se na mesma tradição de resistência popular à expansão do liberalismo a partir de meados do século XIX. Assim, reforçando a importância da temática do meu estudo, iniciado num projecto escolar de história oral na Escola Preparatória do Nordeste, o Quando os sinos tocavam a rebate dava-me um grande alento e não apenas pela coincidência temática. Havia uma outra similitude: como a Professora Sacuntala, eu também tinha adoptado a concepção do historiador inglês E. P. Thompson sobre a «economia moral da multidão», considerando-a a mais eficaz para a apreensão da natureza dos alevantes que estudava.
4O nosso primeiro contacto verificou-se numa tarde solarenga na varanda da sua casa da Ribeira Sêca e iniciou-se com uma longa exposição sobre o meu estudo ainda em elaboração. Surpreendida pela existência de um novo trabalho próximo do seu, Sacuntala de Miranda ouviu-me, atenta, interessada e sem qualquer interrupção. Quase no final da minha exposição, quando lhe referi a forte possibilidade de ter existido no concelho do Nordeste uma articulação entre alevantes com pretextos religiosos – nucleares no meu caso – e outros contra os atravessamentos de subsistências – nucleares no seu caso – tomou então a palavra. Querendo sublinhar a importância da minha hipótese, falou dos trabalhos já meus conhecidos de E. P. Thompson para o caso inglês no século XVIII, evocando a concepção que perspectiva os tumultos populares, não como algo espontâneo e quase irracional, mas como produto elaborado de uma consciência e tradição de luta popular.
5Pela semelhança dos dois estudos, com temáticas, universos geográficos e temporais não muito diferentes e a mesma concepção teórica, a Professora Sacuntala foi convidada para arguente da minha dissertação de mestrado acedendo gentilmente ao convite. Nunca esquecerei como na sua intervenção, a propósito da minha estadia de três anos no Nordeste e da minha recolha de depoimentos da história concelhia, destacou a importância de eu aí ter permanecido tanto tempo e ter conseguido, de um modo natural, a confiança de muitos e importantes depositários da memória e tradição oral locais. Mais do que uma semelhança entre os nossos dois estudos verificou-se grande sintonia no modo de encarar a relação entre o processo de conhecimento e a sociedade.
6No ano de 2000 decidi alargar o campo de observação do estudo referido, através de uma dissertação de doutoramento. O objectivo passava a ser o de verificar se os alevantes do Nordeste tinham sido casos singulares, ou se, pelo contrário, tinham sido acompanhados de outros semelhantes no arquipélago, na Madeira e no Continente Português. Tentaria ainda, como anteriormente, detectar uma relação entre tumultos com pretextos diferentes. Durante esse ano realizei um levantamento das possibilidades de êxito de tal projecto: percorri arquivos, falei com outros investigadores e, mais uma vez, reencontrei-me com a Professora Sacuntala de Miranda.
7A Professora Sacuntala, recentemente jubilada, convidou-me prontamente a tomar um chá na sua casa em S. João do Estoril. Na sua sala de estar – onde me deparei com algumas representações de figuras tchokwé provenientes da terra onde nasci e cresci, por via de alguém que verificámos ser um amigo comum – falei-lhe do meu novo projecto. Conversámos sobre a sua pertinência, sobre a pouca ou quase nenhuma atenção que a historiografia dedicava ao assunto, sobre a importância de um estudo exaustivo e com base quantitativa. Já na despedida, depois de me ter mostrado peças de cerâmica que também realizava, dirigiu-me umas últimas palavras que tentarei reproduzir na íntegra:
8«- Não se esqueça de Fátima?
9- Fátima? – perguntei-lhe eu.
10- Sim, Fátima. Se vai trabalhar sobre resistências populares à laicização republicana deve ter em conta a questão de Fátima!
E acrescentou:
11- Você está em boas condições para o fazer porque, não exercendo a sua actividade profissional no Ensino Superior, está mais liberto de constrangimentos».
12A possibilidade de as Aparições constituírem fenómenos passíveis de relacionamento com as resistências populares contra a laicização republicana não me tinha ocorrido ainda. Desde aquele momento, no entanto, essa relação começou a fazer tanto sentido que, um ano depois do seu início, a minha pesquisa já apresentava séries de milagres e aparições durante a I República, revelando que as aparições de Fátima não tinham sido isoladas e que, de acordo com os registos, surgiam em articulação com o processo de resistência – sobretudo passiva – contra a laicização. Com a minha dissertação de doutoramento terminada em Julho de 2007, sei agora que sem a sugestão da Professora Sacuntala dificilmente teria podido estar atento ao fenómeno da interiorização popular da teologia rigorista. Uma teologia surgida muito antes da República mas que encontrou na encruzilhada da I Grande Guerra e da I República o terreno mais fértil para se consubstanciar em modos de resistência eficazes à sua política laicizadora.
13De novo, embora de outro modo, a Professora Sacuntala tinha colocado a questão do envolvimento social do historiador: o facto de as Aparições de Fátima terem passado a constituir um culto nacional e até internacional não devia impedir o seu estudo histórico, mesmo podendo calcular-se os possíveis constrangimentos que acarretaria.
14Nas situações relatadas da minha relação com a Professora Sacuntala de Miranda, a envolvência social do historiador esteve sempre presente. Na primeira situação, a propósito da capacidade de empatia com as populações em relação ao uso da história oral, ao defender que as populações tinham que reconhecer no historiador um depositário das suas memórias, sobretudo se, como era o caso, constituíam memórias de desafio ao poder. Na segunda circunstância, a envolvência social do historiador surgia no incitamento a que não deixasse de tratar um assunto por mais sacralizado que se tivesse tornado, abrindo o caminho já não apenas à identificação do historiador como depositário de memórias «insurrectas», mas como o próprio «insurrecto».
15Quando conheci Sacuntala de Miranda estava longe de saber, como soube muito depois, que combinou sempre a sua extraordinária faceta de historiadora com a de extraordinária cidadã. O seu exílio em Inglaterra, a sua participação no movimento sindical desse país e a sua importante participação nas manifestações contra Marcelo Caetano e a Guerra Colonial em Londres são exemplares do seu envolvimento social.
16Obrigado Professora Sacuntala!
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
David Luna de Carvalho, «Sacuntala de Miranda e o envolvimento social do historiador», Ler História, 54 | 2008, 219-222.
Referência eletrónica
David Luna de Carvalho, «Sacuntala de Miranda e o envolvimento social do historiador», Ler História [Online], 54 | 2008, posto online no dia 03 fevereiro 2017, consultado no dia 11 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2435; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2435
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