Uma historiadora da condição humana
Texto integral
1Conheci Sacuntala de Miranda mais como historiadora que como pessoa já que, embora me tivesses cruzado diversas vezes com ela em reuniões da Ler História, não mantivemos qualquer relação propriamente pessoal. Pode deduzir-se daqui que a conheci apenas superficialmente, o que, sendo uma dedução aparentemente lógica, não é necessariamente correcta. Na verdade tenho a impressão de que se não a conheci bem pelo menos a conheci muito, tanto quanto na nossa humana condição esse tipo de conhecimento é possível. Conheci-a através da sua obra histórica que sem ser vasta é referencial na historiografia portuguesa, no seu tempo e a seu modo, tanto pelos temas que abordou como pela maneira como o fez.
2Num tempo e numa geração onde a procura do rigor e a preocupação com o abandono do «impressionismo» no oficio de historiador muitas vezes desencarnaram a História e a afastaram da sua vocação de conhecimento do humano e da sua condição, a obra de Sacuntala de Miranda manteve-se sempre fiel a essa vocação.
3Quer se tratasse de analisar a economia açoriana do chamado ciclo da laranja, como em O ciclo da laranja e os ‘gentlemen farmer’ da ilha de S. Miguel: 1780-1880, quer reflectisse sobre os problemas da emigração portuguesa Atlântica ou se debruçasse sobre revoltas populares como em Quando os sinos tocavam a rebate, nos livros de Sacuntala de Miranda havia sempre o sabor do humano que, tal como o ogre da fábula o historiador deveria sempre dar-se como missão perseguir, segundo a conhecida máxima de Marc Bloch. Sacuntala de Miranda não poupou esforços nessa «perseguição» e pelos seus livros desfilam famílias e comunidades, homens e mulheres, casas e localidades, nomes, alcunhas e relações de vizinhança, mesmo quando há também quadros e estatísticas.
4Dos pobres artífices e vendedores ambulantes que protagonizaram o motim da Ribeira Grande em 1869 sabemos muito mais do que a seca informação resultante do enunciar do nome e da profissão, já que Sacuntala de Miranda lhes perscrutou também os gestos e as palavras, as estratégias ofensivas e defensivas e as contradições com o cuidado e a vivacidade que só a relação «empática» sabem suscitar.
5Estas características dos trabalhos de Sacuntala de Miranda não podem ser desligadas dos ecos que nela tiveram os horizontes abertos pelas obras de um famoso grupo de historiadores do Reino Unido a que é habitual designar de «marxistas britânicos» de onde se destacam as figuras ímpares de E. P. Thompson, Eric Hobsbawm e Georges Rude, entre outros. Tendo vivido longos anos em Inglaterra onde estudou e trabalhou, o seu contacto com esta e outras tradições da historiografia britânica – com o seu pendor empírico e com a importância concedida à experiência como categoria da análise histórica – foi intenso e muito próximo. Mas possivelmente só recolhemos os ensinamentos que estamos já previamente preparados para acolher, e Sacuntala de Miranda, senhora de viagens longínquas e de grandes encruzilhadas vivenciais e culturais, que numa tarde clara do ano de 1960 partiu para Inglaterra porque se sentia sufocar em Portugal, como relata nas suas Memórias de um peão nos combates pela liberdade parecia estar bem apetrechada para esse acolhimento.
Para citar este artículo
Referencia en papel
Fátima Sá e Melo Ferreira, «Uma historiadora da condição humana», Ler História, 54 | 2008, 217-218.
Referencia electrónica
Fátima Sá e Melo Ferreira, «Uma historiadora da condição humana», Ler História [En línea], 54 | 2008, Puesto en línea el 03 febrero 2017, consultado el 18 febrero 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2434; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2434
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