Pedagoga e Investigadora
Texto integral
1Conheci a Sacuntala de Miranda no final da década de 1980, no tempo em que eu era estudante de História na Universidade Nova de Lisboa. A Sacuntala leccionava a disciplina de História Económica e Social (séculos XVIII-XX), e lembro-me muito bem da maneira entusiasmada como nos falava da industrialização que teve início em finais de Setecentos e dos seus efeitos na economia e na sociedade desse tempo. O seu conhecimento da bibliografia – sobretudo anglo-saxónica – era invejável, mas aquilo que sobretudo impressionava era a sua capacidade para explicar, com grande clareza e sabedoria, fenómenos complexos como a revolução industrial ou os movimentos sociais oitocentistas. Além disso, a Sacuntala sabia juntar às suas análises um elemento humano e afectivo, sem que tal retirasse rigor ao seu trabalho. Era também frequente falar-nos do tempo que passara em Inglaterra, país ao qual estava muito ligada por razões pessoais e familiares. Contava-nos o que tinha vivido durante os seus tempos de exílio; falava, comovida, dos historiadores que admirava, com E. P. Thompson e Eric J. Hobsbawm à cabeça; e não escondia a mágoa sentida ante as transformações que a Grã-Bretanha tinha acabado de experimentar sob o governo de Margaret Thatcher. Era sem dúvida cativante a maneira como nos falava destes assuntos, pois sabia sempre como os articular com as suas reflexões sobre a economia e a sociedade dos séculos XIX e XX. Apesar de jamais esconder a sua filiação ideológica, a Sacuntala mostrava-se sempre tolerante e aberta a outras perspectivas, mesmo quando elas eram diferentes da sua maneira de pensar e de sentir. Em vez de obrigar os seus alunos a ver o mundo como ela o via, preferia fornecer-lhes saber e incutir-lhes consciência crítica. Nesse sentido, as suas aulas foram uma grande lição de história, de sabedoria e de democracia.
2Posteriormente, mantive um contacto mais ou menos regular com a Sacuntala, acompanhando o seu trabalho ou colaborando com ela, pontualmente, em projectos de investigação. A Sacuntala continuava a apresentar, nessa fase, um optimismo em relação ao mundo, acreditando que era possível criar uma sociedade mais justa através do ensino e de uma cidadania mais participativa. Parecia que se alimentava da sua própria experiência pessoal, mantendo muito presente a memória da luta da sua família – e dela própria – contra o regime de Salazar. Recordava, com entusiasmo, os momentos vividos na Inglaterra das décadas de 1960 e 1970, encarando a sua trajectória pessoal como um sinal de esperança.
3Uma das últimas ocasiões em que falámos foi em Londres, cidade de que ela tanto gostava. Conversámos longamente enquanto tomávamos café, e nessa ocasião a Sacuntala pareceu-me triste e desiludida com o mundo. Sentia-se doente e tinha perdido o entusiasmo que costumava patentear nas suas aulas. Estava também mais pessimista, pois parecia que tinha deixado de acreditar na possibilidade de um mundo e de uma sociedade mais justos. O seu estado de espírito impressionou-me e ainda hoje tenho muito presente essa conversa.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Pedro Cardim, «Pedagoga e Investigadora», Ler História, 54 | 2008, 215-216.
Referência eletrónica
Pedro Cardim, «Pedagoga e Investigadora», Ler História [Online], 54 | 2008, posto online no dia 03 fevereiro 2017, consultado no dia 12 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2432; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2432
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