Em Prol da História Económica e Social
Texto integral
1A morte de alguém com quem convivemos durante muito tempo interpela-nos sempre de forma violenta. O sentido da vida, as «certezas» que sobre ela temos, a importância relativa dos nossos pequenos/grandes projectos são nesse momento inelutavelmente questionados.
2Conheci a Sacuntala de Miranda há muitos anos, cerca de 1980, altura em que ela ingressou como docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas para leccionar, no começo, a disciplina de História Económica e Social dos Séculos XVIII a XX, que fazia parte do curriculum do curso de História, integrada no quarto e último ano. Este plano curricular, idêntico aos de outras universidades portuguesas, teve a sua importância no ensino desta área do saber ao nível universitário: passados os anos da revolução, a leccionação centrava-se na História da Europa, nas suas várias épocas, estudadas agora, em disciplinas separadas, nas perspectivas político-institucional, económico-social, e cultural e das mentalidades. Pela sua relativa longevidade – na nossa Faculdade havia de vigorar até ao ano lectivo de 2002-2003 – este curriculum, não só contribuiu para a formação dos alunos, como serviu também de estímulo à própria especialização dos docentes e da investigação. Além disso, a História Contemporânea que, até 1974, estava ausente do ensino superior, ocupava finalmente um lugar que sempre devera ter tido.
3Em 1980 havia, pois, que dar início a este processo na Faculdade e eu partilhei com a Sacuntala essa experiência, quanto à História Económica e Social. A despeito da grande diferença de idades que havia entre nós, o nosso relacionamento sempre foi fácil e com o passar dos anos foi-se estreitando. A Sacuntala era uma pessoa afável, sensível e uma colega leal; eu conhecia, em traços largos, o seu passado político, mas ela, discreta, raramente abordava o assunto. Estava, então, concentrada nesta nova etapa da sua vida e na sua função de professora universitária. As suas convicções ideológicas eram claras, mas a Sacuntala, longe das abordagens primárias do marxismo, então ainda em voga, era um espírito aberto, com discernimento, capaz de pensar pela sua própria cabeça.
4Numa altura em que a historiografia francesa ainda exercia uma influência dominante em Portugal, a Sacuntala, certamente em resultado dos estudos que efectuara em Inglaterra, trazia para a leccionação da História Económica e Social Contemporânea, como era inevitável, os autores anglo-saxónicos, por alguns dos quais tinha especial apreço, entre eles Eric J. Hobsbawm e E. P. Thompson. A admiração pelo ensino universitário britânico reflectia-se também na sua forma de leccionar, procurando sempre o contacto próximo com os alunos, estimulando um processo de aprendizagem onde estes eram chamados a ter um papel activo, preparando pequenos ensaios, participando em sessões de discussão, mesmo quando as turmas começaram a crescer e este tipo de pedagogia se tornou difícil de manter. Tenho muito presente o seu grande empenhamento no ensino e o seu genuíno interesse pelos resultados que os alunos iam conseguindo.
5O seu gosto pela História Social e pela História Económica, a sua visão do mundo, a predilecção pela historiografia anglo-saxónica e a sua ligação aos Açores são linhas mestras que dão coerência ao conjunto dos livros que publicou, entre eles, O Ciclo da Laranja e os ‘Gentlemen Farmers’ da Ilha de S. Miguel: 1780-1880 (1989); Portugal: O Círculo Vicioso da Dependência (1890-1939), (1991); A Revolução Industrial Britânica: Antologia (1992); Quando os Sinos Tocavam a Rebate: Notícia dos Alevantes de 1869 na Ilha de S. Miguel, (1996); A Emigração Portuguesa e o Atlântico: 1870-1930, (1999). Guardo os exemplares que me ofereceu, marcos do seu contributo para esta área da historiografia portuguesa que, por estes anos, ganhou um novo e decisivo ímpeto. As suas dedicatórias, em especial a do último livro indicado, trazem-me à memória os tempos que ambos vivemos na Faculdade, com vários colegas, entretanto, também falecidos.
6Para mim e para alguns outros, a Faculdade está diferente, mas a vida segue ali o seu imparável caminho.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Luís Espinha da Silveira, «Em Prol da História Económica e Social», Ler História, 54 | 2008, 213-214.
Referência eletrónica
Luís Espinha da Silveira, «Em Prol da História Económica e Social», Ler História [Online], 54 | 2008, posto online no dia 03 fevereiro 2017, consultado no dia 17 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2431; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2431
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