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Espelho de Clio

Historiadora e Militante Política

Miriam Halpern Pereira
p. 205-207

Texto integral

1Conheci-a pouco tempo após a entrada na Faculdade, era ela finalista, colega de ano de Oliveira Marques e Rogério Fernandes. Acabara de sair da prisão havia pouco tempo, aparecia-nos a nós mais novos como uma heroína. E era preciso uma enorme coragem para enfrentar o poder autoritário das instituições estado-novistas. Arriscava-se a repressão imediata da PIDE, como uma «marca» que determinava definitivamente a vida profissional futura. Sacuntala de Miranda ao terminar a licenciatura não obteve autorização para ensinar em estabelecimentos públicos, como a tantos outros valeu-lhe o refúgio no colégio de qualidade, o Colégio Moderno, onde leccionou pelas mesmas razões outro historiador Jorge Borges de Macedo. Encontrámo-nos em algumas frentes de combate, logo no meu 2.º ano da Faculdade, não na luta contra o decreto 40.900 acerca das associações académicas por já haver concluído o curso, mas na primavera seguinte na campanha eleitoral de H. Delgado. A este momento significativo da luta pela liberdade dedicou um dos últimos textos que escreveu, nos últimos meses, antes de nos deixar. Exilada em Londres longos anos, aproveitou para efectuar a licenciatura em Sociologia e conhecer o mundo universitário inglês, «um deslumbramento», como conta na sua auto-biografia. Continuou sempre envolvida no combate pela justiça social e a liberdade, em duas frentes principais, a luta anti-colonial e de solidariedade com os movimentos de libertação africanos, e a luta sindical dos trabalhadores portugueses imigrantes. Continuámos sempre em contacto, de uma forma ou doutra, embora eu me tivesse afastado de uma militância activa.

2O longo intervalo de mais de vinte anos que mediou entre a conclusão da tese de licenciatura e sua publicação traduz as vicissitudes da autora e do país. A versão, entretanto revista e condensada, veio contribuir para o conhecimento de um território novo, a composição social do corpo político parlamentar e a geografia eleitoral da revolução de Setembro, seguindo a metodologia de Pierre George, encetada por F. Piteira Santos relativamente ao período vintista.

3Como outros exilados, tentou reinstalar-se em Portugal na primavera marcelista, mas o ambiente pouco mudara e não se adaptou à irrespirável falta de liberdade de pensamento e de expressão. Volta para Londres. Só regressa definitivamente a Portugal após o estabelecimento da democracia em Portugal. Retomou a carreira de investigação em sociologia da educação, só voltando à História ao iniciar a carreira académica. Tendo começado em Londres a preparação da tese de doutoramento sob a direcção de Eric Hobsbawm, veio a conclui-la na Universidade Nova de Lisboa, sob a direcção de Joel Serrão. Fomos colegas no primeiro mestrado de História Contemporânea, criado na FCSH-UNL. Tive a honra de fazer parte do júri que apreciou a tese em primeira-mão, um estudo inovador sobre o meio século, de 1890 a 1939. Quando saiu o livro (1991) escrevi uma recensão longa no Diário de Notícias. Trabalho excelentemente organizado e com qualidade literária rara, marca comum de todos os seus trabalhos, analisa neste livro a estrutura dos principais sectores da economia portuguesa e a sua dimensão internacional. Ressalta de forma clara que alguns sectores da economia portuguesa tinham adquirido um grau elevado de internacionalização e que de entre os diversos tipos de integração no mercado internacional, nem todos conduzem ao desenvolvimento económico. A dimensão internacional é considerada em dois níveis que se entrelaçam, económico e político, demarcando-se da pura análise quantitativa, abordagem que sempre mereceu a sua crítica implícita. Utilizava os números como agregados inteligentes, indicadores a integrar no seu contexto real. O tratamento gráfico, infelizmente reduzido na versão impressa, mostra que mesmo antes da informática se podiam produzir excelentes instrumentos desse tipo. Era apenas mais trabalhoso e lento.

4Sacuntala de Miranda ofereceu-nos uma obra polifacetada. Algo desgostada com a evolução econométrica da história económica e a orientação ideológica dominante dos anos 90 em diante, como tantos outros historiadores veio a dedicar-se a temas de história social. Todos eles constituíram contribuições preciosas, pela novidade temática ou de abordagem: é o caso do belíssimo ensaio sobre o ciclo da laranja em S. Miguel ou o livro sobre a emigração açoriana que contêm uma das raras análises sobre a emigração para o Hawai e uma original comparação entre fluxos de capitais e a emigração. Deu-lhe particular prazer a feitura do livro sobre os motins populares em 1869, em S. Miguel, de clara inspiração thompsoneana. Tinha uma enorme admiração por E. P. Thompson e Eric Hobsbawm, ambos exerceram uma evidente influência na sua obra, que esteve sempre muito ligada à historiografia britânica marxista e de esquerda independente. A sua visão original reflectiu-se naturalmente na sua participação na redacção da revista Ler História.

5Nos últimos anos, preocupou-se como muitas pessoas da sua geração, em passar o testemunho escrevendo as suas memórias. Deixou-nos um retrato da geração dos anos 50-60, muito vivo e concreto, que creio permite às jovens gerações compreender essa época difícil, mas rica em combates por valores essenciais. Alguns textos recentes ainda no prelo virão completar o seu testemunho pessoal sobre a luta académica e as eleições de H. Delgado, esse momento decisivo para a nossa geração e para o país, e ainda um novo volume autobiográfico e ainda um texto sobre a integração de Goa na União Indiana. Fora a solidariedade com o pai na sua luta pela independência de Goa que a levara a exilar-se. Complemento essencial para compreender essa época e a personalidade de militante política de Sacuntala de Miranda, seria um estudo da sua intensa actividade no exílio, que uma recolha e um estudo sobre os múltiplos artigos em inúmeras publicações poderiam viabilizar. Fica aqui este repto para algum jovem investigador estudar a obra desta figura ímpar, que nos deixou no dia em que se completavam 60 anos da morte de Gandhi, cujo pensamento exerceu nela uma forte influência.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Miriam Halpern Pereira, «Historiadora e Militante Política»Ler História, 54 | 2008, 205-207.

Referência eletrónica

Miriam Halpern Pereira, «Historiadora e Militante Política»Ler História [Online], 54 | 2008, posto online no dia 03 fevereiro 2017, consultado no dia 13 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2426; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2426

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Autor

Miriam Halpern Pereira

CEHCP-ISCTE

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CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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