... ora se vê o Dragão, que se se acoitará no fantástico paraíso da terra, erguer de súbito a cabeça ante nós e sobre nós, empecendo o leal trato dos homens, assaltando por toda a parte a destruir Tronos e Povos, e espargindo discórdia e desconfiança entre consangüíneos e amigos, evidentemente interessados na ín- tima união, e mútua resistência, contra esse Inimigo do Gênero Humano. Se a sua carreira e fúria não for em toda a parte encon- trada e rebatida, bem se poderá exclamar com terror – Céus! Que futuros se nos preparam!
José da Silva Lisboa, «Prefácio», in: Extractos das Obras de Políticas e econômicas de Edmund Burke, Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1812.
- 1 Para uma análise mais detalhada dessas representações em Portugal, ver: Neves (s.d.). Para a visão (...)
1No momento do conturbado período das invasões francesas (1808-1814), inúmeras representações e imagens foram elaboradas no mundo luso-brasileiro em torno da figura de Napoleão Bonaparte – desde o Ogro, devorador do mundo, até o mártir, aguardando seu fim em Santa Helena, como Prometeu acorrentado. Tais imagens, construídas muito mais para glorificar ou desabonar um passado e para forjar imagens de um herói ou de um demônio, transformam-se em objeto privile- giado da historiografia, uma vez que, para além dos símbolos, testemunham a tra- ma que constituiu a memória desses anos, fronteira entre uma Europa do Antigo Regime e uma Europa liberal1.
2Ao provocar uma profunda alteração tanto na história da França, quanto na da Europa – pela reorganização de um novo corpo político, pela introdução de um Código Civil, pela destituição de diversas dinastias ou pela reorganização do mapa europeu – Napoleão Bonaparte acabou por ingressar no curso da História. Na origem de tudo, encontrava-se a lenda imperial, ou lenda dourada ou rosa, forja- da, inicialmente, pelo próprio imperador, quando das campanhas de Itália, através da narração de suas vitórias, de suas proclamações na imprensa e também por intermédio das letras e das artes. Tais escritos acabaram por transformá-lo em uma combinação de herói e semideus, especialmente entre 1800 e 1814. Nessa mesma época, surgiu a lenda negra – o anti-Napoleão – construída por seus inimigos, a partir de inúmeras caricaturas, panfletos e escritos, que saíram não só na França, como em toda a Europa.
- 2 Cf. Tulard (1965).
- 3 Cf. Jourdan (1998), pp. 57-84.
3Foi, sobretudo na Inglaterra, onde o regime político e a liberdade de impren- sa favoreciam a arte da polêmica e do panfleto, que essa literatura de circunstân- cia encontrou rápido sucesso. Eram escritos, com temáticas variadas, como a cruel- dade do imperador, os erros estratégicos de suas campanhas, a política autoritária em contraste com o liberalismo inglês, a corrupção de seus auxiliares e a vida íntima de Napoleão. Tal propaganda inglesa ganhou o continente, penetrando, primeiro em Portugal e em Espanha, atingindo, em seguida, Alemanha e Rússia, e influenciando também os panfletários franceses, após 1814, que buscavam em seus predecessores idéias e anedotas para construir a lenda negra2. Em ambos os ca- sos, Napoleão elevava-se acima de seus contemporâneos, criando-se, assim, o arquétipo do herói3, que despertava, no entanto, ecos diversos.
- 4 Cf. para essa visão sobre o nascimento, Cases (1968), pp. 117-118. Essa visão foi retomada por Sten (...)
- 5 Soares (1808), p. 8.
- 6 Chateaubriand (1997), p. 1091.
4Entre a lenda negra e a lenda dourada, por exemplo, são distintas as expli- cações sobre as origens do imperador francês, ainda que todas se mostrem as mais fantasiosas possíveis. Uma vez que sua mãe, Letizia Ramolino, fora surpreendida pelas dores do parto, a lenda dourada fê-lo nascer sobre um tapete em que esta- riam representados os heróis da Ilíada, que assim passavam a ser os primeiros a reverenciá-lo4. Já os detratores afirmavam que Bonaparte, nascido em Ajácio, pequena cidade da Córsega, havia sido gerado pela «ambição, perfídia e tirania, nutrido com o leite da ireligião, da imoralidade e da mentira»5. Alegavam ainda que ele adiara a data de seu nascimento de um ano, de modo a assegurar a nacio- nalidade francesa, o que fazia dele um estrangeiro, cabendo-lhe como verdadeiro nome, segundo Chateaubriand, um dos principais intérpretes da lenda negra, o de Buonaparte. Por isso, a maior parte dos panfletos anti-napoleônicos publicados na Península Ibérica adotava essa grafia, a fim de destacar a sua origem italiana e depreciar a imagem daquele que foi considerado, por muitos, como o herói por excelência do século XIX6.
- 7 Alcochete (1978), pp. 7-16. Ver também, Vicente (1999), pp. 101-130 e Vicente (1989), pp. 113-127.
- 8 Silva (1977), pp. 215-218.
- 9 Para essa análise, utilizou-se o trabalho Camargo (1993), vol.1, além da consulta de vários folheto (...)
5Nessa dialética de contrários, as imagens construídas sobre Napoleão Bonaparte foram múltiplas. O mundo luso-brasileiro também construiu sua lenda em torno de Bonaparte. Em Portugal, devido à ausência do soberano e da guerra de ocupação em seu próprio território, centenas de libelos, opúsculos, panfletos, anedotas, páginas de pequenas histórias e jornais saíram à luz. Segundo Daupiás d’Alcochete, estima-se que foram publicados cerca de três mil panfletos, incluin- do-se entre estes as proclamações oficiais7. Mesmo na América Portuguesa, local em que a família real tinha procurado refúgio, essa literatura também circulou. Afinal, pairava sempre o temor de um desembarque de tropas francesas em terri- tório brasileiro. Na Gazeta do Rio de Janeiro, os livreiros anunciavam «obras novas», que haviam sido impressas em Portugal, ou reimpressas na nova Corte, que se destinavam a combater Bonaparte, como a Verdadeira Vida de Napoleão Bonaparte, a Besta de Sete Cabeças e Dez Cornos ou Napoleão, Imperador dos franceses e a Receita especial para fabricar Napoleões. Segundo dados levanta- dos por Maria Beatriz Nizza da Silva, podem ser identificados, nos avisos dos livrei- ros, 85 títulos referentes a tal gênero, entre 1808 e 18158. Quanto às impressões ou reimpressões feitas na Tipografia Régia, no Rio de Janeiro, localizam-se 49 produ- ções, entre 1808 e 1816, assim distribuídas: 27 folhetos escritos diretamente contra Napoleão, contra a França imperial ou contra seus generais; 11 obras panegíricas aos chefes militares ingleses, espanhóis ou portugueses, bem como aos próprios exérci- tos lusos; e 11 textos de cunho histórico, no perfil de memórias e relatos acerca dos principais acontecimentos à época das invasões francesas9.
- 10 Gazeta do Rio de Janeiro, n.° 72, 7 de Setembro de 1811.
6Os folhetos e panfletos lograram, sem dúvida, na construção da lenda negra, um papel fundamental, pois adquiriam uma circulação mais intensa, tanto pelo preço, como pelo pequeno número de páginas. Desse modo, atingiam também as camadas situadas nas fímbrias da sociedade, que, incapazes de ler, podiam, no entanto, escutar a leitura em voz alta, assimilando, pelo filtro de sua imaginação, as idéias que deviam ser incutidas. Ainda assim, os jornais da época foram porta- dores de notícias que contribuíram para consolidar a lenda negra de Napoleão no mundo luso-brasileiro. Em Portugal, a Gazeta de Lisboa divulgou artigos contrá- rios ao domínio napoleônico, até 1 de Fevereiro, quando passou a ser um instru- mento do governo de Junot, no momento da primeira invasão francesa. No Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, o único jornal regular que existia na Corte, encontra- vam-se ainda críticas contundentes ao imperador dos franceses. De um lado, ha- via as notícias transcritas de jornais europeus, em que se divulgavam as derrotas francesas ou a visão do público de além-mar contra os desvarios do imperador. De outro, a própria opinião do redator acerca dos acontecimentos. Um artigo, ao co- mentar as operações dos exércitos franceses na Península Ibérica, louvava a eficá- cia dos soldados portugueses, que em breve veriam «reduzido à poeira o malvado Napoleão, que nos inquieta sem causa». Incentivava a continuação da luta, pois Napoleão «não é imortal, ainda que assim se julgue no delírio dos seus planos»10. A derrota definitiva de Napoleão Bonaparte foi comentada com grande entusias- mo no mesmo periódico, através de informação, na qual também se apreendia a visão de seu redator:
- 11 Gazeta do Rio de Janeiro, n.° 69, 30 de Agosto de 1815.
«Pela chegada do paquete recebemos as mais agradáveis notícias. O tirano do mundo, o pérfido Bonaparte, batido pelos incansáveis esforços dos imortais Wellington e Blucher, depois de consideráveis perdas, buscou covardemente a sua salvação na fuga [...]. O certo é que seu governo efêmero foi derribado e a Europa respira outra vez pelas fadigas do mesmo herói, que salvando a Penínsu- la deu o exemplo às nações da Europa de vencer e derrotar o intruso Napoleão. Com a maior brevidade possível, relataremos estas gloriosas proezas, que, se- gunda vez, destronizaram o tirano e salvaram o mundo, não nos poupando a uma tarefa, que de tão bom grado tomamos sobre nós»11.
- 12 Para a primeira citação, ver Correio Braziliense ou Armazem Literário. vol. 1, n.º 3, Agosto de 180 (...)
7Além disso, ao longo do jornal Correio Braziliense, redigido em Londres, pelo brasileiro Hipólito da Costa, publicado entre 1808 e 1822, e veiculado amplamente no mundo luso-brasileiro, havia uma preocupação comum: o combate e a crítica ao tirano Napoleão Bonaparte, descrito como «déspota corso», «novo Atila», «aniilador de todos os direitos dos homens», um ente «abominável e des- prezível», comparável até mesmo a Satanás, e considerado como o continuador da Revolução Francesa, cuja ambição levava ao estado da mais perfeita barbaridade12.
- 13 Nola (1987), pp. 19-22.
- 14 Citações, respectivamente, em Carta escrita por L. P. A. P a hum seu patrício da Cidade da Bahia. L (...)
8Em todos esses escritos, inúmeras representações foram forjadas a respeito de Bonaparte, que, se tentaram transformá-lo em um mito, produto dos aconteci- mentos, também, elas próprias, acabaram impregnadas pela força do mito. Mons- tros e demônios, conspirações e medos tornavam-se imagens que, ao recuperarem os símbolos e os valores de certos mitos fundadores, permitiram uma leitura interpretativa do real, em que o mundo convertia-se no lugar de uma luta simbó- lica, em que se opunham os dois princípios que operaram na criação – um deus benéfico, que deu origem ao cosmos e um princípio maléfico, inconstante e desordenado, que intervém, nesse momento da criação. Essência das grandes reli- giões, essa perspectiva conduz a um verdadeiro confronto dualista, que recupera, sob novas formas, a oposição entre o bem e o mal13. Nesse caso, o mal era repre- sentado, em geral, pelo «monstro do Universo» – Napoleão Bonaparte, por meio de inúmeras imagens. Desde o papão, com cujo nome as amas de leite intimida- vam as crianças, quando essas não queriam dormir à noite, até o «herói que a Córsega vomitou sobre a face da Europa na força de seu furor». Em todas elas, há associações a forças maléficas e a símbolos de violência, constituindo elementos da narrativa que elas pretendiam construir14.
9O herói-deus, que naquele momento corporifica o bem, é encontrado naque- le que enfrenta Bonaparte e, de certo modo, consegue, vencê-lo, ainda que tempo- rariamente. Duas figuras emergem da literatura de circunstância no mundo luso-
- 15 Citações em À inclyta Grã-Bretanha, hum soldado português em nome da sua pátria. Lisboa, Impressão (...)
10-brasileiro – o soberano inglês Jorge III e o príncipe regente D. João. O primeiro transformou-se no defensor da causa das nações européias, o «Rei Magnânimo», cuja vida fora «consagrada à felicidade de seus povos e à de seus aliados». Da mesma forma, D. João era o «Príncipe virtuoso, amigo da Igreja e de seus Minis- tros», em oposição a um «Déspota», que, «disfarçado com a pele de ovelha, sem fé, nem religião», encobria «a voracidade de lobo e de um estrangeiro sagaz», e recorria à «arte de sacar todas as riquezas do Estado»15.
- 16 Citações, respectivamente, em Cathecismo Civil e Breve compendio das obrigações do Hespanhol; conhe (...)
- 17 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (doravante ANRJ). Mesa do Desembargo do Paço. Caixa 171, pac. 3, (...)
11Retomava-se a visão bíblica das origens do mundo, em que Deus é bom e a qualificação negativa provém dos sucessivos eventos humanos, especialmente, da história de Adão e Eva, com o pecado original. Assim, ao indagar-se a procedên- cia de Bonaparte, a resposta dos panfletos era: «do inferno e do pecado». Vislum- brava-se a idéia de que na história dos séculos os tiranos eram encarados como «destinados por Deus para flagelos dos povos e executores de sua cólera»16. Nes- sa visão, os castigos de Deus eram justos, pois a sociedade luso-brasileira havia se deixado levar pelo contágio dos escritos ilustrados franceses, sempre «ímpios, sediciosos, inflamatórios e de uma execranda obscenidade», compostos a fim de «abalar e subverter o trono, o altar e os bons costumes», segundo palavras de José da Silva Lisboa. Seu contágio era pior do que uma peste, cujo dano parecia ser «muito menor que o do moderno contágio mental e moral», recorrendo-se à metá- fora da praga para demonstrar a virulência desses contágios maléficos17.
12Esse imaginário escatológico não podia deixar ainda de tomar o próprio Bonaparte enquanto símbolo atualizado do mal, nele vendo um dos precursores ou até o próprio Anti-Cristo. Tais representações passaram a povoar o imaginário dos luso-brasileiros, através de escritos traduzidos de outras línguas ou redigidos em português, que circularam nos dois lados do Atlântico. Tendo como objetivo primordial demonstrar que «o dragão e a besta do Apocalipse» consubstanciavam-
- 18 Para as primeiras citações, ver M. J. Rodrigues Ricci. O mais importante desengano ou o AntiChristo (...)
13-se «em Napoleão Bonaparte e no Império francês», um panfleto avisava aos seus leitores que era «chegada a época a mais crítica do mundo», denunciando o cres- cente domínio do mal. Outro apontava Bonaparte como aquele que representava o Anti-Cristo com «mais viveza e propriedade que nenhum dos antigos tiranos» já identificados a esse mito. O imperador dos franceses encarnava a besta que saía do mar. Sobre seus cornos, existiam dez coroas, que simbolizavam o poder exer- cido por Napoleão na Europa – França, Itália, Gênova e Veneza, representando as outras seis coroas os membros de sua família, que governavam os demais reinos18. Evidenciam-se alguns traços da mentalidade dos autores, arraigada aos valores e princípios do Antigo Regime, e, especialmente, a idéia da supremacia absoluta da religião sobre qualquer direito do homem e a explicação divina sobre todos os acontecimentos terrenos.
- 19 Mentor da moda ou educação à franceza em forma de Cathecismo, para conhecimento do desorientado sys (...)
14Para além desses, alguns outros exemplos podem ser retirados desses escri- tos de circunstância, nos quais a apropriação das visões proféticas se faziam desvinculadas de seu contexto original. Em um diálogo, em forma de catecismo, para que o público tivesse «conhecimento do desorientado sistema da França», nos “últimos dias”, o mestre pedia cautela aos homens porque Bonaparte muito se assemelhava ao «filho da mentira», a quem Jesus Cristo se referia como prenún- cio do fim dos tempos e, tal época, ninguém sabia, nem os «anjos do Céu», quan- do há de ser19.
- 20 Para a citação ver Discurso sobre a ruina..., p. 19. Para a visão do castigo de Deus, cf. Os precur (...)
15Os sinais eram os mais evidentes – tempestades, enchentes, tremores, trevas, sangue e guerra – todos anunciavam o fim dos tempos. «Vós vereis que um chu- veiro de sucessivas calamidades principia já a devastar e a pôr em combustão as férteis e vastas campinas do país da França». Calamidades e fogo, associados ao sofrimento e à morte, tornavam-se a característica marcante dessa «época de ira», que antecedia a chegada do Anti-Cristo. Anunciava-se, assim, na visão de época, a incursão final do Dragão na terra, a mais terrível, segundo as profecias, e possi- bilitada por Deus para os castigos dos infiéis. Se não era o prenúncio do fim dos tempos, sem dúvida, era o início do fim de um tempo – aquele da sociedade de Antigo Regime, cujos alicerces tinham sido abalados pela Revolução Francesa20.
16Outros indícios proféticos, especialmente a imagem do cometa, também eram veiculados para anunciar o início de novas calamidades: «apareceu há dias no horizonte desta cidade um cometa rabudo, que é para a plebe agouro de funestos males [...] já o Povo está inteiramente persuadido, querendo armar-se, por temer alguma nova invasão protetora dos Franceses». Em alguns casos, o fenômeno natural podia ser prenúncio de boas novas. Em carta ao conde das Galveias, o brigadeiro comandante da vila de Ilha Grande – Francisco Cláudio Álvares de Andrade – descrevia «o grande fenómeno» visto por algumas pessoas em 23 de Maio de 1813, pelas sete horas da manhã. No mesmo paralelo do sol, em uma distância de cinco, ou seis graus ao sul do verdadeiro Sol, elevado sobre o hori- zonte, apareceu «um arco de quinze graus pouco mais ou menos». O fenômeno durou de «dois a três minutos» e desmanchou-se em «uma nuvem que correra para o norte com grande velocidade até desaparecer». Destacava, ainda, que «o tempo era claro» e «o ar sereno». O término de seu texto, porém, era revelador da visão:
- 21 Para a primeira referência cf. Gazeta do Rocio, n.º 7, in: Coleção das célebres Gazetas do Rocio qu (...)
17«Deus queira que o prognostique a dissipação total do Imperador dos franceses para sossego do mundo”, anexando, ainda, um desenho do referido fenômeno21.
18Aliás, a religião era usada ainda em virtude da preocupação dos autores des- ses escritos de atingir um público mais amplo, divulgando-se as críticas ao regime francês, através do antigo costume de parodiarem-se formas religiosas. Assim, surgiram Pai Nossos, Credos, Ave Marias, que expressavam os sentimentos de oposição ao domínio napoleônico. Um exemplo pode ser encontrado no panfleto ABC poético, que trazia, ao final, um Padre Nosso, composto de vinte e seis estro- fes, nas quais, a última linha de cada verso formava o conjunto da oração:
........................................
- 22 ABC Poético, Doutrinal e Antifrancez ou Veni Mecum, Lisboa, Imp. Régia, 1809 (reimpresso no Rio de (...)
Por tão Augusto Troféu
Que para Vós alcançamos,
Concedei-nos, vos rogamos,
O Pão Nosso
Derribai Francês Colosso
Origem de nosso dano
Verdugo, cruel Tirano
De cada dia
Desta Lusa Monarquia
Não vos esqueçais, senhor,
Amparo, graça, favor
Nos dai hoje22.
........................................
19Da mesma forma, encontra-se um Sinal da Cruz, brado de indignação contra os franceses de autor desconhecido, que, também, circulou pelas ruas de Lisboa e do Rio de Janeiro:
- 23 Lima (1943), p. 5. Como informa o autor, Gustavo Barroso, em obra Ao som da Viola (1921) cita um Pe (...)
– Conheces o Jinó?
– Eu nunca cheguei a ver.
– Pois é bom de conhecer
Pelo sinal.
Da França é general,
É um impostor, usuário,
E, também adversário
Da Santa Cruz.
– Santo nome de Jesus!
Não há quem dele dê cabo?
De semelhante diabo
Livre-nos Deus23.
- 24 Que he o que mais importa à Hespanha. Discurso de hum membro do povo espanhol, traduzido por F. I. (...)
20Vislumbrava-se, ainda, a idéia de que a França imperial, herdeira de uma revolução, absoluta negação de Deus, e a expansão napoleônica, seu instrumento e anunciadora da barbárie, constituíam-se em ameaças para os valores da cristan- dade – nesse contexto, significando a civilização – cuja preservação dependia do trono e do altar. Estabelecia-se o confronto de Civilização / Ocidente / Cristãos x Barbárie / Oriente / Hereges, ao se recuperar algumas representações antigas, que tinham sua origem no avanço dos bárbaros sobre Roma, que também traziam em seu bojo a idéia do fim dos tempos. A civilização era concebida na perspectiva de um juízo de valor, em que há sempre algo de grande, de nobre, enfim, de melhor moral e materialmente falando do que aquilo que não lhe está contido, ou seja, a barbárie e a selvageria. Os homens ainda não haviam desviado totalmente seus olhos dos Céus, e, portanto, a França apresentava-se moralmente inferior às qua- lidades das demais nações européias, pois ali residiam as trevas. Ora, por se tratar de um confronto entre o bem e o mal, sem dúvida, «esta parte da Europa civiliza- da do mundo» obteria a vitória, retornando ao seu antigo estado e, por conseguin- te, «a barbaridade extinguir-se-á de todo»24.
- 25 Aviso ao público sobre os estragos feitos nos livros franceses e de quanto He sensível a perda dos (...)
- 26 ANRJ. Códice 370, v. 1. fl. 1. 20 de Março de 1808 e Santos (1981), vol.1. p. 203.
21A lenda negra em torno de Bonaparte propiciou, por conseguinte, uma notá- vel efervescência mitológica, característica dos períodos de perturbação política, em que relatos, apelos e anúncios proféticos ganham corpo e proporções, esca- pando a qualquer explicação racional dos acontecimentos. Impregnada por essas imagens, vinha à luz um curioso “anúncio ao público”, uma narrativa de uma in- surreição e revolução de livros franceses, ocorrida na loja de João Baptista Reycend, mercador conceituado de livros, em Lisboa, na noite de 15 de setembro de 1808. Para sanar tal problema, foi preciso «acudir gente e tropa». Vários livros extravia- ram-se e «alguns desertaram, principalmente, os das novíssimas impressões e gos- to parisiense». Era uma alusão crítica à partida dos franceses, que, embora derrota- dos, saíram de Portugal, com navios abarrotados de alfaias sagradas, quadros, jóias, como permitia o acordo assinado entre estes e os ingleses – a Convenção de Sintra25. Paralelamente, na Corte no Rio de Janeiro, a Coroa procurava tomar atitudes práticas contra a França imperial ou qualquer suspeita de francesia. Ainda em 1.º de Maio de 1808, lançava-se o Manifesto ou exposição justificativa do procedi- mento da Corte de Portugal a respeito da França, que anunciava a decisão de rompimento de «toda a comunicação com a França», autorizando os súditos por- tugueses «a fazer a guerra por terra e mar aos vassalos do Imperador dos France- ses». Por intermédio da Intendência Geral de Polícia, passou-se a acompanhar a entrada de franceses na América Portuguesa, a fim de evitar-se que, sob a «apa- rência de amigos, se não introduzam verdadeiros inimigos», os quais em todo o lugar em que chegavam, tudo corrompiam, «com pestífero hálito das suas irrevolucionárias e irreligiosas doutrinas»26.
- 27 Sarraute (1979), p. 115.
22Apesar de toda essa preocupação e repressão, o fascínio que Napoleão Bonaparte exerceu sobre sua época contaminou as mentes e os corações de luso-brasileiros. O célebre compositor português Marcos Antonio Portugal, que gravitando ao redor da Corte, se tornou, no início do oitocentos, diretor da capela Real e do teatro de São Carlos, estreou a ópera Demofoonte, em meados de 1808, reescrita para festejar o aniversário de Napoleão Bonaparte. Bem verdade, que, logo depois, como se nada tivesse acontecido, escreveu um Te Deum para come- morar a saída dos invasores27.
23Caetano Lopes de Moura, baiano mestiço e estudante pobre, partira para Portugal, provavelmente em 1802, tendo como objetivo determinado «visitar a França» e aí estudar medicina. Sonho quase inatingível, em função de suas parcas posses, obtidas com algumas aulas de latim, mas que se transformou em realidade com a ajuda de um mecenas, que lhe concede uma mesada até 1807, quando da falência de seu patrono. Iniciou seus estudos em química, botânica e anatomia em Ruão, transferindo-se para Paris, em 1807, época de grande prestígio do império napoleônico. Talvez por faltarem recursos, fazia apenas cursos livres na Faculda- de de Medicina, onde foi colega de estudos de José Antonio Soares de Souza, pai do futuro Visconde do Uruguai (Paulino José Soares de Souza) e que se tinha casado com uma francesa, filha de um livreiro, que morrera guilhotinado, na época do Terror.
- 28 Moura (1902), p. 77. Cf. ainda Veiga (1979), pp. 42-45. Para um estudo da Legião portuguesa, ver Vi (...)
- 29 Moura (1846), vol. 2, p. 301. Moura (1902), p. 85.
24Ao romper a guerra entre Portugal e França, segundo informações de Caeta- no, os portugueses que estavam estudando em Paris ficaram «reduzidos à dura condição de prisioneiros, expostos às vexações dos empregados subalternos da polícia» francesa. Nessa situação embaraçosa, alguns conseguiram evadir-se; outros foram aprisionados, como seu companheiro de estudos José Antonio Soares de Souza, mas que, em 1809, entrava para o exército de Napoleão, atingindo o posto de cirurgião-mor; e, Lopes de Moura, que pleiteia uma vaga de ajudante de cirurgião militar na Legião Portuguesa, formada por oficiais portugueses, que, trans- pondo a fronteira de seu país, foram incorporar-se nas forças militares a serviço do Império francês. Segundo suas memórias, esta seria uma saída para a incômoda situação em que se encontrava28. No entanto, em seus escritos posteriores, não deixou de demonstrar a profunda admiração que sentia por Napoleão Bonaparte. Assim, em sua História de Napoleão, escrita em 1846 – uma biografia, inserida no contexto da produção historiográfica daquela época, extasiada com os fatos gloriosos do passado – depois de narrar a batalha de Wagran, observa em nota: «O autor desta obra se achou presente a esta memorável batalha, na qualidade de ci- rurgião mor da Legião Portuguesa». Ao esboçar a descrição de seu encontro com Napoleão, em Eberdoff, afirmava com entusiasmo: «tinha nos olhos tal viveza que, quem neles acertasse de pôr os seus, havia forçosamente de descê-los ao chão, que tal era o lume que deles dardejava»29. A descrição acerca da queda do impe- rador francês demonstrava mais ainda seu grande entusiasmo:
- 30 Moura (1846), vol. 2, p. 424.
«Os exércitos aliados estão de posse de Paris! [...] efetuada está a contra-revolução e os descendentes da antiga família dos Bourbons se vão sentar, no cabo de um longo exílio, no trono de seus antepassados. Caiu dele o grande homem, caiu; porém, nem por isso desceu do lugar eminente, que ocupava e ocupará na história. Perdeu, verdade é, mais de uma coroa, porém, fica com toda a sua glória, com todo o seu gênio e com toda a sua grandeza moral»30.
25Caetano Lopes de Moura nunca mais regressou ao Brasil e passou o resto de seus dias na França, sendo inclusive pensionista de Pedro II. Fez várias traduções para editoras francesas no Brasil, sendo considerado o introdutor em português dos romances de Walter Scott. Morreu em 1860, aos oitenta anos, tendo duas figu- ras dominado o horizonte de sua vida – Napoleão Bonaparte e Pedro II.
- 31 Costa (1886), pp. 205-216 e 339-349. Publicado também, na Revista do Instituto Arqueológico e Geo- (...)
26Outro fato curioso ocorreu em 1817, envolvendo os insurgentes do Recife, quando o imperador dos franceses já se encontrava prisioneiro. Tratava-se de uma hipotética conspiração que tinha como finalidade trazer Napoleão para o Bra- sil. Narrada em um artigo publicado em 1886 na Revue du Monde Latin, sem a indicação das fontes – que o autor alegava ter obtido em arquivos brasilei- ros, relacionadas a ofícios do governador de Pernambuco e à correspondência de Lord Castlereagh – essa trama teria sido urdida por emigrados franceses residentes nos Estados Unidos, que incluíam José Bonaparte, com o objetivo de libertar Napoleão do cativeiro em Santa Helena. Os conspiradores – em sua maioria, antigos oficiais do exército francês – teriam mantido contatos com Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, enviado aos Estados Unidos como representante dos rebeldes pernambucanos de 1817 para obter o apoio da re- pública do Norte para o movimento, e também com Joseph Ray, às vésperas de sua viagem ao Brasil, como cônsul norte-americano no Recife. Previa-se, de acordo com esse artigo, o desembarque de alguns franceses no Nordeste brasileiro, para estabelecer contato com o governo revolucionário de Pernambuco, a fim de organizar uma expedição que, saindo de Fernando de Noronha, com destino a Santa Helena, reuniria oficiais de Bonaparte, oficiais americanos e outros, como os ingleses lord Cochrane e o panfletário William Cobbet, este igualmente exilado nos Estados Unidos, devido à forte oposição que fazia ao governo britânico31.
- 32 ANTT, Negócios Estrangeiros. Correa da Serra ao Conde da Barca. Filadélfia, 25 de Julho de 1817. Tr (...)
27Apesar de «misteriosa e suspeita», essa conspiração deixou algumas pistas documentais, aqui e ali. Informações do ministro de Portugal em Washington – o abade José Corrêa da Serra – sobre inumeráveis franceses bonapartistas e jacobinos que estavam se encontrando com «o emissário Cruz. Receava muito que, sob pre- texto, vários deles pudessem ser mandados ao Brasil ou a Portugal para continuar correspondências. Sua principal preocupação era evitar a contaminação de Portu- gal e de Pernambuco, pelas idéias bonapartistas, ainda que, nessa ocasião, a revo- lução brasileira já estivesse debelada»32.
- 33 Cf. Costa (1886), pp. 339-349. Referências sobre a presença dos franceses podem ser encontrados em (...)
28Há igualmente a comprovação do desembarque de quatro franceses, em fins de 1817, no litoral do Rio Grande do Norte e em Pernambuco. Inicialmente, três deles foram detidos a partir das informações de Corrêa da Serra, mas, nada ha- vendo de suspeito em seus papéis, foram libertados. Em seguida, um deles – o coronel de infantaria Latapie – expôs a Luiz do Rego, com uma franqueza inexplicada, o verdadeiro objetivo de sua viagem: verificar a possibilidade de conseguir apoio do governo rebelde de Pernambuco para uma expedição destina- da a fazer evadir o ex-imperador de Santa Helena. Imediatamente preso no Rio de Janeiro, seus companheiros foram logo igualmente detidos e enviados à Corte, acabando por serem mandados para a Europa, junto com outros estrangeiros, e colocados na fronteira do reino de Portugal33.
- 34 Cf. Ménager (1988), pp. 19-24.
29Vale ainda lembrar uma série de proclamações apócrifas, mencionadas pela historiografia francesa, que circularam, principalmente, na região parisiense, no outono de 1817 entre as camadas populares, afirmando que insurretos sul-ameri- canos iriam resgatar o ilustre cativo Bonaparte34. Rumores do Antigo Regime ou notícias com fundamento de verdade? Sem dúvida, de todo esse imbróglio, que merece um estudo mais aprofundado nos arquivos brasileiros e estrangeiros, é possível deduzir, pelo menos, que agentes bonapartistas estiveram no Brasil e que, por mais concreta que fosse a conspiração para libertar Bonaparte, a idéia mais provável era a de levá-lo para os Estados Unidos, onde seu irmão já se encontra- va. O episódio, contudo, sugere fortemente o extraordinário fascínio criado pelo antigo imperador dos franceses.
- 35 Os franceses residentes no Rio de Janeiro…, vol. 45, p. 22. Cf. ainda Graham (1990), pp. 208-211. C (...)
30Da mesma forma, pode-se assinalar outra curiosa presença napoleônica em terras brasileiras, que manifestava uma devoção tão grande ao imperador, que a viajante Maria Graham a qualificou de «excessiva» e «mesmo inexplicável». Era o conde Dirk van Hogendorp, general holandês, mercenário a serviço da Prússia. Alistou nas tropas francesas, tornando-se conselheiro de Estado em 1806, Minis- tro da Guerra na época de Luís Bonaparte e conde do Império em 1811. Dotado de raras qualidades de honestidade e desinteresse, ganhou a confiança de Napoleão e viu-se alçado a ajudante-de-campo do imperador, atuando na campanha da Rússia e, em seguida, ficando encarregado do governo da Polônia e de Hamburgo. Ape- sar de ser francês por adoção, encontrou-se em dificuldades após a restauração dos Bourbons, e com grande esforço e economia, emigrou para o Brasil, como consta dos registros da Intendência Geral da Polícia: «Conde d’Hogendorp: resi- dente em Cosme Velho, natural de Heuliet, 56 anos, nobre, viúvo, vem de Nantes, em 1816 a estabelecer-se em agricultura»35.
- 36 Graham (1990), pp. 210-211.
31Sobre a estadia de Hogendorp no Rio de Janeiro, há alguns relatos de estran- geiros, que, atraídos pela fama de suas aventuras e de sua fidelidade ao soberano deposto, iam procurá-lo em sua casa. A todos acolhia com uma conversa cativan- te, embora residisse quase solitário na encosta do Corcovado. Acompanhado de um criado prussiano, e de alguns africanos, antigos escravos, que libertara ao comprar, morava em uma casa composta por um escritório, onde havia livros, mapas e gravuras; de um quarto de dormir, cujas paredes eram pintadas de negro e exi- biam esqueletos de tamanho natural, todos em atitudes alegres, lembrando a «Dança da Morte» de Holbein; e de um terceiro cômodo, repleto de barris de vinho de laranja e potes de licor de grumixama, que, somados à venda de café, que planta- ra, asseguravam sua pequena renda36.
32Contudo, não só os estrangeiros eram atraídos por essa personagem fasci- nante. O francófilo conde da Barca, a arquiduquesa Leopoldina, que o conhecera ainda em Viena, e o próprio príncipe D. Pedro subiam a encosta do Corcovado para ouvi-lo. Ao morrer, em 1822, Hogendorp não chegou a receber a quantia de cem mil francos que Napoleão lhe deixara em testamento cerca de um ano antes, mas teve registrado num aviso de falecimento, publicado no jornal O Espelho, os cuidados de D. Pedro consigo:
- 37 O Espelho, n.º 104, Rio de Janeiro, 15 de Novembro de 1822. Cf. Sousa (1954), vol. 2, pp. 496-497 e (...)
Necrologia
«O Conde de Hogendorp, que foi Tenente General e Ajudante de Campo de Napoleão, de idade de 63 anos, morreu a 29 do passado na sua Chácara do Cosme Velho, onde repartia o tempo entre a agricultura e seus trabalhos literários. Este homem distinto por suas luzes, e por sua probidade depois de ter ocupado os primeiros empregos no Governo de Bonaparte, que lhe dera toda a sua confian- ça, veio terminar uma carreira tão brilhante nas nossas montanhas, tendo apenas com que acudir às suas primeiras necessidades. S. M. I. mais de uma vez o hon- rou com a sua visita, e ultimamente lhe havia dado uma prova da sua generosa afeição, concedendo-lhe uma pensão de 600$ réis. Quando S. M. I. soube do seu falecimento, imediatamente deu ordem a Mr. L’Abbé Boiret, para em seu nome fazer a despesa do seu funeral, nada poupando para dar a esta pompa fúnebre toda a decência, que convinha ao nascimento e às raras qualidades deste respei- tável Ancião. Porém, o Cônsul de Sua Nação, agradecendo a S. M. I. este ato de generosidade, não permitiu que ele tivesse efeito»37.
- 38 Chamo a atenção para a possibilidade de estabelecer uma comparação entre diversos atos do governo d (...)
33Talvez, por trás dessa figura singular, existisse um mito mais profundo – o de Napoleão Bonaparte, o herói do século – que fascinara ao jovem imperador do Brasil38 e que não deixou de inspirar, por meio da mise-en-scène do bonapartista Jean-Baptiste Debret, o ritual da coroação de D. Pedro como imperador do Brasil em dezembro de 1822.
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34O período das invasões napoleônicas distinguiu-se, portanto, pela intensa velocidade com que as informações circularam através de escritos de circunstân- cias e proclamações oficiais. Forjaram-se, assim, imagens de Napoleão Bonaparte como herói ou demônio. Representações essas profundamente impregnadas por valores de mitos, que, em épocas de convulsões têm o hábito de ressurgir, servin- do de chaves explicativas para o passado e oferecendo uma justificativa coerente para colocar ordem no caos do presente. Representações, porém, que demonstra- vam igualmente uma oposição entre uma sociedade nova, já modificada pelas idéias e instituições liberais, e outra, em que o Antigo Regime permanecia em vigor, debatendo-se para manter viva a força da tradição.
35Nesse ambiente, a figura de Bonaparte catalizou tanto esperanças quanto angústias, conforme o meio em que se fez conhecida. No espaço luso-brasileiro, o processo não foi diferente. Na realidade, decorridos mais de duzentos anos da ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder, o fascínio que ele ainda exerce e que se traduz na vasta produção acadêmica, ou em outra nem tão acadêmica assim, a seu respeito, indica justamente esse papel de divisor de águas entre duas épocas que ele soube encarnar como poucos. Além da lenda dourada e da lenda negra, Napoleão situa-se na fronteira entre o indivíduo histórico concreto – o corso in- significante que se fez imperador e dominou a Europa – e o mito de um novo Prometeu, emblema da condição contemporânea do gênero humano, que se sub- traiu aos desígnios divinos para passar a escolher seu próprio destino.