Löwy, Michael, Walter Benjamín: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’
Löwy, Michael, Walter Benjamín: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’, São Paulo, Boitempo, 2005, 160 páginas (tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant; tradução das teses de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller).
Texto integral
1Há um interesse crescente pela obra de Walter Benjamin nas últimas décadas, que pode ser explicado, pelo menos em parte, pelo aumento do número de pesquisas, a partir dos anos de 1980, sobre a história urbana e a organização do espaço urbano, em que a leitura de sua grande e inacabada obra sobre as Passagens (de Paris no século XIX) é recorrente. E em que os relatos de cronistas e poetas têm demonstrado um campo fértil para a compreensão do espaço urbano (e da própria história) – tal como ele chegou a demonstrar em muitos textos. Nesse ponto, não há como negar que a obra de Walter Benjamin foi um marco. Do mesmo modo, o número de livros e artigos que têm procurado interpretar o seu pensamento tem sofrido um fenómeno similar. Todavia, uma das suas grandes preocupações, que foi justamente reflectir sobre como interpretar o processo histórico, de modo a rascunhar uma verdadeira «filosofia da história», cuja referência na sua obra são as teses «Sobre o conceito de História», ainda é um tema pouco investigado – e na maioria dos casos aparece em capítulos ou em pequenas notas explicativas. É evidente que existem excepções, mas são ainda escassos os trabalhos que se detêm especificamente neste tópico de sua obra, onde as teses «Sobre o conceito de História» ocupam um lugar central.
- 1 O livro foi publicado originalmente na França em 2001. Foi editado no Brasil em 2005, mantendo a me (...)
2Com a publicação do novo livro de Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio1, há um avanço nesse tipo de investigação, das questões de teoria e filosofia da história, ligada à sua obra. Por ser um autor já bastante conhecido, Michael Löwy dispensa apresentações. O mesmo vale para o caso de Walter Benjamin, que nesta obra foi seu objecto de estudo, com enfoque centrado na interpretação de suas teses «Sobre o conceito de História». No entanto, deve destacar-se que este livro, ainda que de um modo bastante peculiar, dá continuidade a reflexões iniciadas nos seus livros Redenção e utopia (1989); Romantismo e messianismo (1990); Romantismo e política (1993); Revolta e melancolia (1995) e Estrela da manhã: surrealismo e marxismo (2002).
3De início, o autor esclarece que «não só us[ou] com frequência exemplos latino-americanos – alguns brasileiros – para ilustrar os argumentos de Walter Benjamin, como toda a leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’ que propomos é inspirada, até certo ponto, em uma perspectiva ‘latino-americana’ ou ‘indígena’» (p. 10), porque a sua ênfase será a de indicar a actualidade das teses de Benjamin que, para o autor, servem até como referência para se compreender a história latino-americana, principalmente o período contemporâneo.
4Para empreender essa investigação, o autor passou em revista as interpretações que foram feitas sobre a obra de Walter Benjamin. Na França, diz ele, o enfoque tem sido estudar a estética e a forma. Na Alemanha, principalmente, seus aspectos políticos e filosóficos. Mas de modo geral: «Estamos habituados a classificar as diferentes filosofias da história conforme seu caráter progressista ou conservador, revolucionário ou nostálgico do passado. Walter Benjamin escapa a essas classificações. Ele é um crítico revolucionário da filosofia do progresso, um adversário marxista do ‘progressismo’, um nostálgico do passado que sonha com o futuro, um romântico partidário do materialismo. Ele é, em todas as acepções da palavra, ‘inclassificável’» (p. 14). Por outro lado, diz o autor: «A concepção da história de Benjamin não é pós-moderna, antes de tudo porque, longe de estar ‘muito além de todos os relatos’ – supondo que isto seja possível – ela constitui uma forma heterodoxa do relato da emancipação: inspirando-se em fontes messiânicas e marxistas, ela utiliza a nostalgia do passado como método revolucionário de crítica do presente. Seu pensamento não é, então, nem ‘moderno’ (no sentido habermasiano) nem ‘pós-moderno’ (no sentido de Lyotard), mas consiste sobretudo em uma crítica moderna à modernidade (capitalista/industrial), inspirada em referenciais culturais e históricas pré-capitalistas» (p. 15).
5O que implica que a «filosofia da história de Benjamin se apoia em três fontes muito diferentes: o Romantismo alemão, o messianismo judaico, o marxismo. Não se trata de uma combinação ou ‘síntese’ eclética dessas três perspectivas (aparentemente) incompatíveis, mas da invenção, a partir destas, de uma nova concepção, profundamente original» (p. 17). Nesse sentido, um dos pontos altos do livro é a maneira como o autor procurou reconstituir o itinerário de Benjamin, avaliando como cada uma das três perspectivas o inspirou a elaborar uma nova filosofia da história, na qual a história, o presente e o futuro, estão totalmente em aberto. Para ele o «objectivo de Benjamin é aprofundar e radicalizar a oposição entre o marxismo e as filosofias burguesas da história, aguçar seu potencial revolucionário e elevar seu conteúdo crítico» (p. 30). No entanto, segundo ele: «Encontramos frequentemente na literatura sobre Benjamin dois erros simétricos (…): o primeiro consiste em dissociar, por uma operação (no sentido clínico do termo) de ‘ruptura epistemológica’, a obra de juventude ‘idealista’ e teológica daquela ‘materialista’ e revolucionária, da maturidade; o segundo (…) encara sua obra como um todo homogéneo e de forma alguma leva em consideração a profunda transformação produzida, por volta da metade dos anos 1920, devido à descoberta do marxismo. Para compreender o movimento de seu pensamento seria preciso, então, considerar simultaneamente a continuidade de alguns temas essenciais e as diversas guinadas e rupturas que delimitam sua trajectória intelectual e política» (p. 18).
6Por isso, uma das chaves de leitura encontrada por Löwy foi a «análise sobre [Johann Jakob] Bachofen, escrita por Benjamin em 1935, [que] é uma das chaves mais importantes para compreender seu método de construção de uma nova filosofia da história a partir do marxismo e do romantismo» (p. 28). De acordo com Löwy, as «teses ‘Sobre o conceito de História’ (1940) de Walter Benjamin constituem um dos textos filosóficos e políticos mais importantes do século XX» e no «pensamento revolucionário talvez seja o documento mais significativo desde as ‘Teses sobre Feuerbach’ de Marx» (p. 17).
7Para realizar a sua interpretação das teses, teve de rever as discussões efectuadas por outros autores, empreender uma leitura pormenorizada da obra de Benjamin e do seu desenvolvimento até às «teses», e consultar a sua correspondência, procurando compreender a forma como as «teses» foram elaboradas. Com base numa das cartas trocadas entre Benjamin e Adorno, em 22 de Fevereiro de 1940, diz que o «positivismo aparece assim, aos olhos de Benjamin, como o denominador comum das tendências que ele vai criticar: o historicismo conservador, o evolucionismo social-democrata, o marxismo vulgar» (p. 33).
8Segundo ele, após a década de 1950, podem definir-se três escolas de interpretação das «teses»: «1. A escola materialista: Walter Benjamin é um marxista, um materialista consequente. Suas formulações teológicas devem ser consideradas como metáforas (...) 2. A escola teológica (...) é antes de tudo um teólogo judeu, um pensador messiânico. Para ele, o marxismo é apenas uma terminologia (...) 3. A escola da contradição (...) tenta conciliar marxismo e teologia judaica, materialismo e messianismo [mas por serem contraditórias, sua tentativa foi um fracasso] (...) [Por isso] gostaria de propor (…) uma quarta abordagem: W. Benjamin é marxista e teólogo (...) O objectivo das notas e dos comentários que se seguem não é ‘julgar’ as teses de Benjamin, mas tentar compreendê-las» (pp. 36-7).
9Nesse sentido, fez, nas suas palavras, uma análise «talmúdica» das «teses», ou seja, palavra por palavra, frase por frase. Para a edição brasileira do livro, o autor optou pela tradução das teses (que estão na íntegra no primeiro capítulo). E tal como outros pesquisadores italianos têm feito, o autor acrescentou à «lista conhecida de teses uma nova, que figura com o número XVIII».
10O autor reconstituiu toda a trajectória de Benjamin até às teses, avaliando as principais influências teóricas e metodológicas recebidas e destacando os autores que o inspiraram directamente. Já na tese I demonstra que Benjamin procura lutar contra a visão da história dos opressores, ao interpretar «correctamente» a história, e vencer o próprio inimigo histórico, as classes dominantes, que em 1940 estavam representadas no Fascismo.
11Indica como as teses de Benjamin possuíam uma grande articulação e um verdadeiro projecto, político e intelectual, de transformação social. Nesse caso, «escovar a história a contrapelo», teria segundo Löwy um duplo sentido: um histórico, no qual se vai contra a corrente da história oficial, demonstrando-lhe a tradição dos oprimidos; e um político, em que a redenção/revolução não ocorrerá pela determinação de um «sentido na história», mas por uma acção efectiva de luta contra a corrente.
12A partir da tese XI, Löwy passa a demonstrar a actualidade das teses «Sobre o conceito de História», com o exemplo «latino-americano», em que as classes subalternas, as massas, se têm colocado contra o poder. Para ele, ao contrário do que Marx havia pensado em o Dezoito Brumário, as massas não apenas podem ter por base um futuro possível, mas também todas as acções do passado. Mas de «maneira análoga, em sua acção presente, o revolucionário busca inspiração e força combatente na rememoração e escapa, assim, do charme maléfico do futuro garantido, previsível e seguro proposto pelos ‘adivinhos’ modernos» (p. 142). Para Löwy o «seu objectivo é menos o de ‘decretar’ a revolução do que o de defender uma concepção de história como processo aberto, não determinado antecipadamente» (p. 145). Portanto, as «teses de 1940 constituem uma espécie de manifesto filosófico (...) para a abertura da história (...) para uma concepção do processo histórico que dá acesso a um vertiginoso campo dos possíveis (...) sem no entanto cair na ilusão de uma liberdade absoluta: as condições ‘objectivas’ são também condições de possibilidade» (p. 147).
13Na obra de Benjamin, e principalmente nas teses «Sobre o conceito de História», percebe-se «um marxismo da imprevisibilidade: se a história é aberta, se o ‘novo’ é possível, é porque o futuro não é conhecido antecipadamente; o futuro não é o resultado inevitável de uma evolução histórica dada, o produto necessário e previsível de leis ‘naturais’ da transformação social, fruto inevitável do progresso económico, técnico e científico – ou o que é pior, o prolongamento, sob formas cada vez mais aperfeiçoadas, do mesmo, do que já existe, da modernidade realmente existente, das estruturas económicas e sociais actuais» (p. 149).
14Se o presente e o futuro estão em aberto para Benjamin, de acordo com a interpretação de Löwy, o passado também estaria. Por isso, quer «se trate do passado ou do futuro, a abertura da história segundo Walter Benjamin é inseparável de uma acção ética, social e política pelas vítimas da opressão e por aqueles que a combatem. O futuro desse combate incerto e as formas que assumirá serão, sem dúvida, inspirados ou marcados pelas tentativas do passado: serão igualmente novos e totalmente imprevisíveis» (p. 159).
15A leitura desta obra evidencia a complexa teia interpretativa que ligam as teses «Sobre o conceito de História» de Benjamin, em direcção à emancipação dos oprimidos, e demonstra o quanto são actuais, até para pensarmos a (nossa) contemporaneidade «latino-americana». Pode-se até criticar a sua leitura das teses, mas não há como negar os méritos inerentes a esse livro sugestivo e instigante.
Notas
1 O livro foi publicado originalmente na França em 2001. Foi editado no Brasil em 2005, mantendo a mesma divisão em dois capítulos. No primeiro, com pouco mais de 110 páginas, encontra-se a sua interpretação das teses «Sobre o conceito de História» de Walter Benjamin. O segundo, com apenas 12 páginas, serve também como conclusão ao seu estudo.
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Referência do documento impresso
Diogo da Silva Roiz, «Löwy, Michael, Walter Benjamín: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’», Ler História, 55 | 2008, 213-218.
Referência eletrónica
Diogo da Silva Roiz, «Löwy, Michael, Walter Benjamín: aviso de incêndio. Uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de História’», Ler História [Online], 55 | 2008, posto online no dia 16 outubro 2016, consultado no dia 18 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2307; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2307
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