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Garcia-Arenal, Mercedes e Gerard Wiegers, Un hombre en tres mundos: Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica

Madrid, Siglo XXI de España Editores, S.A, 2.ª ed. revista, 2006
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim
p. 207-218
Referência(s):

Garcia-Arenal, Mercedes e Gerard Wiegers, Un hombre en tres mundos: Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica, Madrid, Siglo XXI de España Editores, S.A, 2.ª ed. revista, 2006.

Texto integral

1Como explicam os autores na «Introdução», esta obra é, na origem, uma segunda edição do livro publicado na mesma editora, em 1999, com a designação Entre El Islam y Occidente: vida de Samuel Pallache, judio de Fez. Mas o acréscimo no título revela também a intenção de uma ampliação, além de uma reescrita, partindo da tradução inglesa A man of Three Words: Samuel Pallache, a Moroccan Jew in Catholic and Protestant Europe, publicada pela John Hopkins University Press, em 2003.

  • 1 McEwan, Ian, Expiação, tradução de Maria do Carmo Figueira, Lisboa, Gradiva, 2008.
  • 2 Birnbaum,Marianna, A Longa Viagemde Gracia Mendes, tradução de Jaime Araújo, Lisboa, Edições 70, 20 (...)
  • 3 Benzoni, Juliette, Rainhas Trágicas, tradução de Pedro Eloi Duarte, Lisboa, Edições 70, 2004.

2É verdade que a biografia é um dos géneros, por eleição, da trama romanesca, inclusivamente daquela que se aproxima mais da disciplina em causa: o romance histórico. Mas mesmo neste último, é o labor literário que impera, idealizando uma realidade imutável, quer dizer, sobre a qual se produziu um quadro literário definitivo e parcial. Por exemplo, no romance Expiação, Ian Mcwan cria a personagem de uma autora que é ela própria uma metáfora do romancista biógrafo: uma autora que modifica o destino de personagens reais porque o seu realismo seria insuportável para o público leitor e o deixaria insatisfeito1. Mesmo nos designados romances históricos, em que o autor recria toda uma cadeia de factos apurados em pesquisa bibliográfica, as imagens idealizadas daí retiradas são o móbil fundamental da sua criação. É por isso que Dona Grácia Nasci, a famosa e rica «Senhora» da família Benveniste, é um dos grandes alvos de autoras de romances históricos sobre o Universo Judaico: a sua vivência singular é o campo ideal para a idealização de uma mulher «moderna» avant la lettre. De tal forma, que quando as Edições 70 editaram em português A Longa Viagem de Gracia Mendes, de Marianna Birnbaum2, sobre aquela personagem – obra que segue os pressupostos básicos da produção em História – o fizeram na colecção «A História como Romance», aquela em que fora editado Rainhas Trágicas, de Juliette Benzoni3. Pode dizer-se assim que, neste caso, o romance transgrediu a História, devido ao seu poder de afirmação.

  • 4 Febvre, Lucien, O problema da descrença no século XVI. A Religião de Rabelais, tradução de Rui Nune (...)
  • 5 Marrou, Henri-Irénée, Do Conhecimento Histórico, tradução de Ruy Belo, Lisboa, Aster, 1976, p. 216.

3Não é esse o caso da biografia de Samuel Pallache. Ela aproxima-se mais do modelo de biografia histórica de Lucien Febvre sobre Rabelais, em que a confrontação da personagem com o seu contexto produz um efeito de perversão sobre a imagem da mesma, pois coloca em causa dados adquiridos porque não questionados: afinal, Rabelais não podia ser descrente no seu tempo…4 E s e como diz Henri-Irénée Marrou, a História é verdadeira, mas essa verdade é parcial, visto que não podemos saber tudo sobre o passado5, os autores cumpriram bem a sua tarefa de historiadores, pois ao mesmo tempo que procuravam novos dados, quando houve ocasião para uma nova edição não deixaram de mostrar ao leitor o fruto da continuação da pesquisa sobre o seu objecto de estudo, no intuito de se aproximarem mais de uma veracidade.

  • 6 Slezkine, Yuri, The Jewish Century, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2004.

4Os resultados sobre a personagem biografada são anunciados logo no início, como uma forma de acautelamento para quem pensaria numa biografia que se enquadraria mais no género romanesco: Samuel Pallache foi uma personagem complexa, com capacidades necessárias para a sobrevivência como pertencente a um grupo minoritário, vivendo entre as margens de diferentes entidades sociais e religiosas: era dissimulado, dúctil, adaptável, tinha espírito empreendedor e de risco. E assim surge o grande aliciante no estudo deste e de outras personagens contemporâneas, cujo trajecto é esboçado em termos comparativos: anteciparam em várias gerações as mudanças mentais, as atitudes e os sinais identificativos da identidade do Homem Moderno Ocidental. Estas considerações vêm ao encontro dos pressupostos sociológicos de obras não referidas neste livro, como The Jewish Century, de Yuri Slezkine6.

5A complexidade da construção desta biografia resulta da abundância de dados sobre Samuel e seus familiares. De facto, se há uma assinalável falta de informação sobre questões pessoais – o que leva os autores a recorrerem a personagens conterrâneas e, ou contemporâneas, que se detêm mais nessas notícias particulares – existe uma miríade de documentação sobre eles, e deles, publicada ou inédita, revelando a mobilidade que era a sua forma de existência. É assim que Mercedes García-Arenal e Gerard Wiegers cruzam informações sobre os Pallache provenientes de colectâneas documentais e de Arquivos de Amesterdão, Bruxelas, Sanlúcar de Barrameda, Lisboa, Madrid e Simancas, numa tentativa de abarcar toda a complexa vivência destas personagens, contextualizada em abundante bibliografia de recurso. O Apêndice documental apresentado como suporte no fim da obra revela o referido empenho na análise de documentação de proveniência diversificada, para compreender o destino destas personagens. A análise dessa documentação tão variada, inclusivamente do ponto de vista geográfico, é também um imperativo quando se estuda personagens em trânsito, quer dizer, que deixaram vestígios da sua vivência nos diversos países que percorriam.

6Outra das virtudes desta obra é o facto de ser o trabalho conjunto de duas pessoas que têm como interesse comum as relações entre a Europa e o Mundo Islâmico na Época Moderna, mas que detêm conhecimentos culturais, e sobretudo capacidades linguísticas diferentes. Antes de mais são pessoas habituadas a trabalhar em equipa, com o intuito de alargarem o seu objecto e os seus interesses de pesquisa. Mercedes García-Arenal, a par de uma intensa produção a solo, que reflecte nomeadamente a temática dos Mouriscos, das relações com o Mundo Islâmico e também das permeabilidades sócio-religiosas entre os universos cristão, islâmico e judaico, publicou estudos de casos e colectâneas de fontes com outros autores. O mesmo sucede com Gerard Wiegers, que apresenta um currículo mais relacionado com a Filologia. O resultado foi uma permuta dos conhecimentos e apetências de ambos nesta obra de excepcional qualidade.

7O livro está dividido em oito capítulos, que nos aproximam e nos deixam com a família Pallache, grande interlocutora dos sultões Sádidas de Marrocos com os Países-Baixos recentemente independentes. No primeiro contrapõe-se uma tradicional imagem idealizada, construída e transmitida para as gerações seguintes pelo autor seiscentista Miguel ou Daniel Levi de Barrios, e a informação sobre uma primeira estada em Espanha, em que perpassa o objectivo da conversão ao Catolicismo. Embora não se conheça concretamente a razão porque tal não sucedeu, os autores avançam hipóteses firmemente colocadas para a explicação da sua entrada naquele país, e para o falhanço do seu objectivo de conversão. É, de forma explícita, uma imersão numa realidade que trespassa a idealização. Nos três capítulos seguintes deixam especificamente Samuel e sua família para explicarem contextos da sua actuação: o das relações entre Portugal e Espanha após a batalha de Alcácer-Quibir (1578); o das vivências judaicas em Fez e Marraquexe; o da esfera mais específica de personagens com actividades semelhantes às suas – privados dos sultões, cortesãos e mercadores –; e também das conjunturas peninsulares relacionados com a «problemática» judaica e dos conversos. Em termos de elucidação, são apresentadas duas biografias de um judeu e de um converso que actuaram em contexto norte-africano, neste período: Melchior Vaz de Azevedo e Isaac Almosnino. O quarto capítulo é dedicado aos outros dois grupos de marginalizados que se estabeleceram no Norte de África, e que se moveram no mesmo espectro de uma cultura hispânica: mouriscos e renegados. Esboçados os contextos esclarecedores, os autores voltam às atitudes e actividades de Samuel Pallache e seus familiares contemporâneos no capítulo cinco: não só a sua estadia na Holanda e seu papel de intermediários com Marrocos, mas também outros assuntos desviantes, como a denúncia que Isaac Pallache fez em Bruxelas de um converso do Porto, ou os contactos de Samuel com os mouriscos. Mas a actividade mais «desviante» face à imagem idealizada merece um capítulo à parte (seis): o processo em que Samuel Pallache é acusado de corsário, é aprisionado e tem um processo a decorrer em Londres. O capítulo sete trata dos últimos anos da vida de Samuel: dos seus contactos com o Império Otomano e das negociações finais com os espanhóis. O capítulo oito é dedicado aos familiares de Samuel que continuaram a ter um papel de destaque na relação entre a Holanda e Marrocos, ou em cada um destes países, per si, como o caso de Jacob Pallache, rabi de Marraquexe e seguidor de Sabbatai Sevi.

8Na verdade, o que perpassa nesta biografia excepcional é o estilhaçar da visão de mundos estanques. As duas margens do Mediterrâneo, e na Europa, as fronteiras entre os países reformistas do Norte, e da Contra-Reforma no sul, são ultrapassadas, e com frequência, por estes elementos minoritários. Esta excepcional mobilidade tem como pedra angular a identidade sócio-religiosa, na realidade o que define a pertença, a fiabilidade e a viabilidade de vivência. É este aparente paradoxo que o livro pretende também esclarecer: ao contrário de ideias transmitidas para o senso comum sobre a Europa de Antigo Regime e o Islão, as pessoas recorriam com certa assiduidade à estratégia de adopção da identidade religiosa vigente no território onde pretendiam estabelecer-se até porque, desenvolvendo actividade prosélita, os países islâmicos e cristãos tinham criado mecanismos institucionais para o acolhimento dos neófitos. Daí que membros da família Pallache tenham pretendido a conversão ao Catolicismo, e um deles acabou mesmo por se tornar protestante.

9Surgem também, bem identificados, os processos de ruptura e de «cristalização» nos percursos das suas vivências: a (tentativa de) mudança religiosa, as relações com potências em confronto; o facto de Samuel nunca ter sido integrado nas redes diferentes de parentela dos judeus portugueses de Amesterdão. Mas também uma questão ontológica: um marginal nesta época pode ser uma pessoa que ocupando uma posição de charneira privilegiada, está longe da ideia standard que se faz dos «pobres marginalizados».

10Este livro mostra igualmente que está em decadência a vetusta imagem dos especialistas estanques, nomeadamente sobre minorias e suas vivências em contextos específicos. A eficácia desta biografia deve-se, como já foi referido, ao facto de serem comparados e cruzados dados relativos às problemáticas das vivências hispânicas e islâmicas, e nomeadamente das minorias nestes países. E ultrapassa-as: será que todos os «especialistas» do Brasil holandês têm conhecimento, como está patente nesta obra, que um membro desta família, do «longínquo» Marrocos, embarcou na aventura colonialista dos judeus holandeses no Novo Mundo?

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Notas

1 McEwan, Ian, Expiação, tradução de Maria do Carmo Figueira, Lisboa, Gradiva, 2008.

2 Birnbaum,Marianna, A Longa Viagemde Gracia Mendes, tradução de Jaime Araújo, Lisboa, Edições 70, 2005.

3 Benzoni, Juliette, Rainhas Trágicas, tradução de Pedro Eloi Duarte, Lisboa, Edições 70, 2004.

4 Febvre, Lucien, O problema da descrença no século XVI. A Religião de Rabelais, tradução de Rui Nunes, Lisboa, Editorial Início, s.d.

5 Marrou, Henri-Irénée, Do Conhecimento Histórico, tradução de Ruy Belo, Lisboa, Aster, 1976, p. 216.

6 Slezkine, Yuri, The Jewish Century, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2004.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, «Garcia-Arenal, Mercedes e Gerard Wiegers, Un hombre en tres mundos: Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica»Ler História, 55 | 2008, 207-218.

Referência eletrónica

José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, «Garcia-Arenal, Mercedes e Gerard Wiegers, Un hombre en tres mundos: Samuel Pallache, un judío marroquí en la Europa protestante y en la católica»Ler História [Online], 55 | 2008, posto online no dia 16 outubro 2016, consultado no dia 13 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2301; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2301

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José Alberto Rodrigues da Silva Tavim

Instituto de Investigação Científica Tropical

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