Legado Científico e Humano no CEAA-IICT
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1Em 1986, a professora Jill Dias tornou-se directora do Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica Tropical e, desde então, esta instituição passou a ocupar uma parte substancial da sua vida académica e científica. Aí viveu e cresceu a Revista Internacional de Estudos Africanos que começara a ser publicada em 1984, sob a sua direcção, e que havia de tornar-se, com o passar dos anos, uma publicação de referência no domínio dos estudos africanos, e não apenas em Portugal. Aí nasceram, em 1997 e em 2002, dois projectos de investigação, inter-institucionais e multi-disciplinares, aprovados com a classificação de «excelente» pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, e dedicados ao estudo dos processos de inter-relacionamento cultural e social nas áreas de influência colonial portuguesa, envolvendo dezenas de investigadores de múltiplas proveniências nacionais, disciplinares ou institucionais. Ali trabalharam mais de uma dezena de investigadores que, nesse ambiente, e graças em boa medida aos recursos disponibilizados por aqueles projectos, produziram as suas dissertações de mestrado ou doutoramento em áreas pioneiras da história e antropologia de Portugal e das sociedades africanas, ameríndias, árabe-islâmicas e asiáticas. Por ali passaram, igualmente, muitos outros investigadores, bolseiros de vários cantos do mundo, que encontraram no CEAA o ambiente institucional propício para o desenvolvimento das suas pesquisas.
2Tudo isto que é muito seria ainda assim demasiado pouco para dar conta da obra notável, e do legado científico e humano que a professora Jill Dias deixou no IICT. Sob a sua liderança, o Centro de Estudos Africanos e Asiáticos tornou-
3-se uma referência nos domínios da história e da antropologia dos povos marcados pela presença colonial portuguesa e, bem assim, dos processos complexos de relacionamento de Portugal com essas regiões. Mas, para entender em toda a dimensão a qualidade do seu trabalho será necessário ter presente que tudo decorreu no seio de uma instituição vetusta, herdeira da melhor tradição colonial dos estudos tropicais e que definhava num quadro de indefinição estratégica, num ambiente político marcado por graves restrições ao investimento público em ciência, especialmente no domínio das ciências sociais, e com os constrangimentos, tantas vezes labirínticos, da administração pública. Haverá ainda que somar a este complexo, a origem nacional da professora Jill e a dificuldade acrescida de adaptação a um ambiente institucional completamente diverso daquele que conhecia no seu país.
4Só na compreensão plena desta realidade complexa se poderá avaliar o trabalho produzido e a enorme valia dos resultados entretanto alcançados. Só dessa forma é possível dar o devido valor ao esforço e empenho pessoal para facultar a jovens investigadores as condições de estabilidade necessárias ao pleno desenvolvimento dos seus trabalhos, contornando não poucas vezes os mil e um obstáculos da burocracia com a qual aprendeu a conviver. Só assim se perceberá o alcance do seu interesse na internacionalização dos estudos e das investigações realizadas, na sua integração nas redes de produção e difusão de conhecimentos, na abertura permanente aos novos questionamentos e problematizações que, diga-se, estava muito longe de confundir-se com a aceitação acrítica e superficial de modismos culturais ou conceptuais. Só assim se compreenderá a medida do esforço empreendido para, sendo a história de Angola o seu campo de eleição – e em relação ao qual deixa uma obra inovadora e de primeira importância a exigir uma edição sistemática que ultrapasse as dificuldades da sua dispersão – alargar o leque das áreas temáticas e geográficas abrangidas por investigações do CEAA muito para lá do âmbito da história de África, atraindo jovens e menos jovens estudiosos, e apoiando pesquisas em áreas tão diversas como os estudos árabes, chineses ou judaicos, ou em campos disciplinares tão diversos como os estudos de género, ou as práticas medicinais.
5E mesmo assim, a referência ao seu legado ficaria gravemente incompleta, porque amputada de algo que tocou de forma indelével todos os que tiveram o privilégio de com ela privar. A professora Jill Dias pautou a sua actividade no Instituto de Investigação Científica Tropical por uma afabilidade, solicitude e urbanidade inexcedíveis. As suas qualidades humanas constituem, certamente, o argumento que explica a afectuosidade com que se relacionava com todos os que com ela trabalhavam. Mas, para além disso – que é já bastante – a professora Jill Dias dirigiu o CEAA com a noção muito clara que a democracia, o debate franco e aberto, o respeito pelas opiniões dos outros, o esforço genuíno para a incorporação de todos os contributos nas decisões finais, constitui o único ambiente que favorece o desenvolvimento do trabalho científico de qualidade.
6Em Maio de 2006, a professora Jill Dias afastou-se do IICT. Dirigia, então, o programa Sociedades e Culturas Tropicais que resultara do processo de reestruturação entretanto empreendido na instituição, e no qual o CEAA fora integrado. Ali deixou uma obra de qualidade e muita gente que lhe ficará para sempre grata, que recordará o seu sorriso, e que nunca esquecerá o seu exemplo científico, académico e humano.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Carlos Almeida e Clara Saraiva, «Legado Científico e Humano no CEAA-IICT», Ler História, 55 | 2008, 197-199.
Referência eletrónica
Carlos Almeida e Clara Saraiva, «Legado Científico e Humano no CEAA-IICT», Ler História [Online], 55 | 2008, posto online no dia 16 outubro 2016, consultado no dia 12 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2293; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2293
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