1Entre 1750 e 1870, o termo «república», que tinha sido utilizado a propósito de várias formas de governo entre os séculos XV a XVIII, tornou-se o contrário de «monarquia», e sinónimo de uma forma de governo: o «governo popular». Em meados do século XIX, sobretudo a partir das revoluções de 1848, o escopo semântico de «república» reduziu-se novamente, tendendo a designar, já não apenas uma forma de governo, mas uma fórmula política e social muito específica: a democracia secular, por vezes já socialista. Neste contexto, «republicano» passou a significar o activista dos movimentos políticos que tinham esse tipo de regime como objectivo, enquanto «repúblico», com o sentido de cidadão exemplar, caiu em desuso.
2Em 1644, referindo-se aos «corpos políticos», o padre António Vieira (1608-1697) esclareceu que «sejam de governo monárquico ou de qualquer outro», os «entendo geralmente debaixo do nome comum de república» (Vieira, 1644 (1959), vol. I, 241). Este uso do termo república para aludir a qualquer comunidade política, independentemente da sua forma de governo, era geral desde o século XV. No entanto, a «república» não era uma designação neutral. Levou a encarar a comunidade política assim referida de um ponto de vista específico: o da administração da coisa pública, ou o do bem comum, por contraste com o bem particular de um indivíduo ou grupo. A influência de Aristóteles, Cícero e de outros autores clássicos e humanistas é clara (ver por exemplo Beja, 1965 (1525)). «República» serviu também para caracterizar qualquer grupo cujos membros partilhassem certos interesses ou uma natureza comum. Daí expressões como «república das letras» (= o meio literário).
3República ocorre também em documentos anteriores ao século XVIII num outro sentido mais particular, para caracterizar os povos enquanto fonte do poder soberano. Esta tendência é clara no âmbito de correntes escolásticas tomistas, muito influentes na cultura das elites da monarquia portuguesa nos séculos XVI e XVII. Em 1644, na Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal D. João IV, Francisco Velasco de Gouveia (1580-1659), professor da Universidade de Coimbra, alegou que «o poder régio dos reis está nos Povos, e Repúblicas, e delas o receberam imediatamente» (citado em Torgal, vol. II, 25-26).
4No entanto, «república» podia também ser utilizada para caracterizar uma forma de governo, diferente do monárquico, desde logo por ser exercido por muitos indivíduos. Mas mesmo sob este aspecto, é importante referir que o governo republicano não pressupunha apenas uma justaposição de indivíduos com direito a determinar o governo, mas um povo com as características necessárias à constituição de uma unidade ordenada com um fim – o bem comum. Em 1679, numa obra que seria reeditada em 1751 e 1759, D. Luís de Meneses, 3.º conde da Ericeira (1632-1690), revelou que os fidalgos portugueses revoltados em 1640 contra o governo de Madrid haviam pensado «formar uma república, trazendo por exemplo Veneza, Génova e Holanda, onde sendo as utilidades comuns e os ricos iguais, se conserva a união incontrastável». Simplesmente, havia uma dificuldade: o «defeito que os portugueses padecem na dificuldade da união, sentindo ordinariamente mais que a desgraça própria a fortuna alheira, desconcerto que totalmente destrói todos os fins de uma república» (Ericeira, 1945 (1679-1710), vol. I, 101-102). O governo republicano em Portugal estaria portanto comprometido pelo carácter atribuído aos portugueses (propensão à inveja e rivalidade), o qual seria incompatível com a unidade e coesão necessárias aos «fins de uma república».
5O governo do marquês de Pombal esforçou-se por constituir uma ideologia unificada do Estado, assente na tese da monarquia pura, de origem francesa. A monarquia foi concebida segundo um modelo patrimonial e não pactual, isto é, como tendo nascido da conquista numa guerra justa, e não de um pacto social. O poder do rei seria de natureza sagrada, uno e indivisível, e os súbditos estariam obrigados a obedecer às suas determinações, mesmo que injustas. Os arautos de Pombal refutaram a ideia do direito de resistência a um governo despótico, ou seja, a tese da limitação do ofício de rei pelo bem comum da república (Dias, 1982).
6Neste contexto, o pombalismo reduziu «república» à ideia de governo de muitos, e portanto a tratou-a como incompatível com a monarquia. Essa orientação transparece na Dedução Cronológica e Analítica, o libelo contra a Companhia de Jesus encomendado pelo marquês de Pombal ao doutor José de Seabra da Silva (1732-1813), Procurador-Geral da Coroa, e publicado entre 1767 e 1768. A Dedução acusou os Jesuítas de terem assimilado os ensinamentos dos autores «monarcómacos», que haviam argumentado terem os reis recebido o «supremo poder» do «povo», o qual «devia ficar superior» aos reis (Silva, 1768, vol. II, 417, 432). Segundo a Dedução, essas ideias sustentavam, entre os Jesuítas, um «plano de aniquilarem a Autoridade Régia, e de reduzirem os Senhores Reis destes Reinos à condição de Chefes de uma República de homens sublevados, de cujo arbítrio dependesse terem ou não terem Rei para os governar; e de fazerem assim uma confusão de Aristocracia e Democracia, na qual a Monarquia se perdesse de vista». A inspiração do dito «plano» estaria na tese de que «as Cortes formam neste Reino um Tribunal soberano», reduzindo assim «a Pessoa do mesmo Rei à mesma condição de um simples particular». Para a Dedução, este regime redundaria necessariamente numa desordem, porque a nobreza e o povo, sem a direcção do monarca, eram «corpos acéfalos, sem Cabeça que os dirigisse, nem a paz se conservaria entre eles, tendo interesses e pretensões contraditórias para se dividirem, e nem ainda dentro em cada um dos ditos dois Estados haveria meios de conter os seus respectivos indivíduos, seguindo-se necessariamente de tudo a geral confusão» (Silva, 1768, vol. I, 369, 379). Em suma, a «república», entendida como redução do rei a um «simples particular», redundaria fatalmente na falta de direcção superior necessária para constituir uma «sociedade civil», exigida pela divisão entre os «estados» e entre os «indivíduos» dentro de cada «estado». A ligação entre os jesuítas e o republicanismo seria reforçada na denúncia das missões da ordem no Paraguai como uma verdadeira «república» em «guerra» contra as monarquias ibéricas (é o tema de Relação Abreviada da República que os Religiosos Jesuítas das Províncias de Portugal e Espanha estabeleceram nos domínios ultramarinos das duas monarquias, de 1758).
7No entanto, a Dedução não rejeitou em princípio o governo republicano como necessariamente impossível ou simplesmente subversivo. Pelo contrário, enumerou uma série de formas de governo republicano, fazendo-os corresponder a exemplos da Europa contemporânea. As «repúblicas aristocráticas» seriam de dois tipos: as «Repúblicas em que se elegiam para exercitarem (...) a Jurisdição as pessoas notáveis pelas suas virtudes e talentos, como sucedeu aos Lacedemónios, os quais nestes últimos tempos só imitou e está imitando actualmente a cidade mercante de Amesterdão»; e aquelas em que «a suprema autoridade está nos que se distinguem pelo nascimento, como sucede em Veneza, em Génova e em Lucca». Finalmente, nas «Repúblicas Democráticas» o «supremo poder reside na universalidade dos seus habitantes, ou nas Assembleias Gerais dos Cidadãos, como sucede nas Repúblicas dos Estados Gerais das Províncias Unidas, dos Cantões Suíços, das Ligas dos Grisões, e do País de Genebra» (Silva, 1768, vol. II, 394).
8Nos primeiros anos do século XIX, o uso de «república» enquanto «nome comum» coexistiu com a utilização de «república» num sentido mais estrito, como governo de muitos. É possível argumentar que, por contraste com a situação até ao século XVIII, houve uma ênfase nova e crescente neste último significado. Não por acaso, o Dicionário Geral da Língua Portuguesa de Algibeira por Três Literatos Nacionais (1819) definiu «república», em sentido figurado, como «sociedade numerosa». As acepções principais atribuídas ao termo no referido Dicionário eram duas: o «estado governado por muitos», e «o que respeita ao público de qualquer estado».
9Depois da revolução constitucionalista de 1820, «república», apesar da tendência para a sua identificação com «governo popular», ocorre no debate político sobretudo como «nome comum». No parlamento, aliás, está associada muito especialmente à antiguidade, em alusões à «república romana» ou à «república de Atenas». Nota-se que são os deputados comprometidos com a corrente dita «liberal» os mais predispostos para recorrerem a esse tipo de alusões históricas, e para se permitirem referências à monarquia como uma «república». Neste último caso, é óbvio que «república» remete para a administração, ou os negócios públicos, na medida em que têm o bem comum como fim, ou ainda para os elementos essenciais à realização desse fim. Eis um exemplo: «Os Legisladores das primeiras sociedades, para atrair os bons à prática difícil das virtudes, e aterrar os maus, para que não perturbassem a tranquilidade e boa ordem da República, sabiamente estabeleceram o prémio e o castigo» (discurso do deputado Barreto Feio, Diário das Cortes Gerais, 25 de Abril de 1821, 678). A expressão teve a suficiente divulgação para surgir em algumas das petições de povoações da província às cortes, como na do juiz e câmara municipal de Canas de Senhorim, a qual terminava com este voto dirigido aos deputados: «O céu conserve e prospere por muitos e dilatados anos a vida de V. Exas. para o maior aumento e desempenho da boa administração da República, e perpétua segurança da felicidade dos Povos» (Diário das Cortes Gerais, 25 de Abril de 1821, 676).
10Mas o termo «república» nem sempre teve esta associação positiva nos debates parlamentares. Como «governo popular», ocorre raramente, mas quando isso acontece, é com sentido negativo, como no discurso do deputado Bento Pereira do Carmo durante a discussão acerca da estrutura do futuro parlamento: «dando-se uma só câmara legislativa, e sujeita a facções, e a partidos, era muito de recear, que se precipitasse sobre o poder, fazendo então degenerar a Monarquia Constitucional (o só Governo que eu desejo, e todos nós desejamos) em Republica, e por consequência em Anarquia» (discurso do deputado Bento Pereira do Carmo, Diário das Cortes Gerais, 23 de Fevereiro de 1821, 140).
11Além do sentido negativo de via aberta para a «anarquia», república ainda aparece carregado com outro, o de utopia, como na expressão «república de Platão». É uma expressão que surge repetidamente nos debates parlamentares de 1821-1822, e que alude a um risco que muitos dos deputados constituintes consideravam necessário evitar ao fabricarem uma constituição para a monarquia. Assim, por exemplo: «Eu não quero uma utopia ou república de Platão; eu quero que façamos uma Constituição como casaca que se amolde ao nosso corpo» (discurso do deputado Sarmento, Diário das Cortes Gerais, 10 de Dezembro de 1821, 3363).
12Na década de 1820, república, significando «governo popular», verifica-se quase sempre em contextos onde é claro o seu sentido negativo e polémico. É assim no caso de José Acúrsio das Neves (176-1834), um dos principais autores reaccionários, nos seus panfletos de 1822 sobre o «espírito revolucionário». Depois de atribuir as origens do movimento revolucionário ao protestantismo do século XVI, Acúrsio sublinhou que «o espírito do calvinismo era republicanizar os povos». A república, no sentido de governo popular, era um resultado do calvinismo, isto é, do espírito revolucionário: «Depois que Genebra admitiu (o calvinismo), é que foi verdadeiramente república» (Neves, s.d. (1822-1823), vol. VI, 72). A república, para Acúrsio, era indissociável da revolução. Em Portugal, os clubes revolucionários inclinavam-se para «unir este reino à Espanha, provavelmente debaixo de uma forma republicana, que é o ponto a que dirigem as revoluções populares» (ibidem, 100). É verdade que tinham mantido a forma da monarquia. Mas, segundo Acúrsio, só na aparência, porque não havia dúvida que haviam dotado de uma «constituição democrática», embora os «sofistas, seus fabricadores» se continuassem a referir à «Monarquia Portuguesa» (ibidem, 146). Cinco anos depois, em 1828, no seu discurso na Junta dos Três Estados, celebrando a aclamação de D. Miguel como rei absoluto, Acúrsio voltou a insistir no republicanismo daqueles que haviam defendido a Constituição de 1822 e agora defendiam a Carta Constitucional de 1826: «Eles não querem rei (...). O que eles querem é um rei nominal (...) que não tenha força para obstar às suas maquinações e de que se possam descartar num momento». De facto, a Carta Constitucional só lhes «serviria de degrau para proclamarem amanhã a república, como (em 1822) proclamaram a soberania do povo» (Neves, s.d. (1828), vol. VI, 305).
13No entanto, apesar destas referências de Acúrsio, a restante propaganda contra-revolucionária das décadas de 1820 e de 1830 não fez da «república» um ponto importante das suas acusações aos constitucionalistas, sobretudo por comparação com os termos «democracia» ou «anarquia», mais frequentemente utilizados para descrever os fins da «revolução» (Lousada, 1987, 27-62).
14Apesar do uso de «república» como «nome comum» por alguns dos deputados liberais da década de 1820, a tendência a partir de então é para o termo se divulgar como uma «forma de governo», segundo se nota, por exemplo, nesta intervenção de José Xavier Mousinho da Silveira na primeira câmara dos deputados eleita sob o regime da Carta Constitucional, em 1827: «fosse qual fosse a forma do Governo, Monarquia ou República» (discurso de Mousinho da Silveira, Diário da Câmara dos Deputados, 16 de Fevereiro de 1827, 365). É verdade que república continuaria a ser ocasionalmente invocada no sentido mais geral e vago, como fez o líder da esquerda liberal e futuro chefe do governo, Passos Manuel (1801-1862), já depois da vitória dos liberais na guerra civil de 1832-1834, numa das suas orações parlamentares: «A todo o instante temos aqui presenciado e reconhecido a imperiosa necessidade das mais severas economias, único remédio que podemos aplicar aos grandes males da República» (discurso de Passos Manuel, Diário da Câmara dos Deputados, 30 de Janeiro de 1835, 141). Mas o mesmo Passos Manuel, ainda nesse ano, quando alguém mencionou «república» no sentido de governo popular, resolveu fazer uma confissão em plena assembleia:
15«Sr. Passos (Manuel) disse que não podia deixar de falar nesta matéria; que a sua franqueza o obrigava a declarar à câmara que ele era republicano de teoria, que esse Governo se podia chamar por excelência o Governo lógico, que era a melhor concepção do espírito humano; e que quando as luzes estivessem mais adiantadas, os costumes mais purificados, esse havia de ser o Governo da Europa, e mais tarde, do género humano, mas que a república estava talvez séculos distantes de nós; e que esse espectro não devia aterrar o Governo, porque a monarquia constitucional era a inevitável condição dos povos medianamente civilizados, e que ele era por isso de convicção arrastada a sustentar esta forma de Governo misto, que não tivesse o Governo cuidado, que ninguém queria derribar a monarquia, que ele, Deputado, não conspirava a favor da republica, e que esperava ninguém fizesse essa injúria ao seu entendimento, e que podia assegurar à câmara que em Portugal não havia partido republicano» (discurso de Passos Manuel em Diário da Câmara dos Deputados, 18 de Abril de 1835, 883).
16De facto, Passos tocava aqui dois pontos importantes para compreender a relação da esquerda liberal com a monarquia constitucional. O primeiro dizia respeito à concepção da república como um patamar final da evolução da humanidade. Enquanto «melhor concepção do espírito humano», a república dependia logicamente, para a sua realização, de uma grande transformação dos «costumes». A república advém assim no discurso político como uma forma de governo de realização muito difícil, e cuja instituição extemporânea estaria naturalmente atreita a equívocos e fracassos.
17A partir daqui era possível chegar ao segundo tema da intervenção de Passos Manuel: a de que, nas condições actuais de civilização, a monarquia constitucional constituiria a melhor forma de governo – e que nesse sentido poderia ser considerada, pelos republicanos «teóricos» como Passos, como a «melhor das repúblicas», isto é, o estádio mais avançado que era possível alcançar atendendo ao nível de ilustração do povo. Foi esse o programa, inspirado pela «monarquia de Julho» em França (1830-1848), que Passos Manuel explicitou ao fazer o balanço da sua passagem pelo governo em 1836-1837: «A rainha não tem prerrogativas, tem atribuições: é o primeiro magistrado da nação. Eu fui o primeiro-ministro que executou o programa do Hotel de Ville de Paris: cerquei o trono de instituições republicanas». Passos fizera da monarquia constitucional a «melhor das repúblicas» (citado por Martins, 1883 (1881), vol. II, 92, 119). Por isso, anos depois, descrevendo a esquerda da década de 1830, Alexandre Herculano (1810-1877) diria que estavam nela os que «forcejavam por chegar, senão à república, a instituições republicanas» (Herculano, 1982 (1867), vol. I, 38).
18Esta concepção republicana do regime era autorizada pela forma como a monarquia constitucional podia ser entendida, segundo Passos sugerira em 1835, mais do que como uma forma de governo monárquico, como uma forma de «governo misto», participando simultaneamente da monarquia e da república.
19Aliás, os líderes da revolução constitucional de 1820-1823 já tinham tido o cuidado de conceber a monarquia constitucional como uma forma de afirmação da soberania nacional. Em 1821, J. B. Almeida Garrett (1799-1854), um dos mais célebres autores liberais, explicara: «todos sabem que se uma nação conserva em si toda a amplidão da majestade (embora tenha executores subalternos) esta forma de governo se chama – Democracia –, e um tal povo – República –; que se ela erige um magistrado principal que, debaixo de suas vistas e com seus conselhos, presida à administração da justiça e seja executor de suas leis, então se diz uma Monarquia Constitucional, e seu supremo magistrado – Rei ou Monarca. (...) É pois, numa monarquia constitucional, o rei o supremo magistrado, o executor das vontades da nação» (Garrett, 1966 (1821), vol. I, 1055). Mas exceptuando a execução das «vontades da nação» por um supremo magistrado, não havia outra diferença admitida entre a monarquia constitucional e a república. Ambos os regimes estavam fundados na soberania da nação. Foi isso que levou o escritor e comerciante João Francisco Dubraz (1818-?), em 1869, a reconhecer que, na monarquia constitucional, «nós temos já uma república sui generis, valha a verdade, posto que democrática de menos e pobrezinha de mais» (Dubraz, 1869, 14-15).
20Daí que o republicanismo de um Passos Manuel pudesse ser «teórico» e dispensasse um «partido republicano», isto é, um movimento revolucionário. O republicanismo podia ser concebido como uma luta pelo «progresso» dentro da legalidade, através da instrução e do fomento económico.
21Em 1853, o Dicionário Portátil registava «república» como «a coisa pública», mas também «forma de governo em que o povo por seus delegados ou directamente exerce o supremo poder». No entanto, dado que a monarquia constitucional também reconhecia a «soberania nacional» e de alguma forma os seus governantes podiam ser concebidos como «delegados» do povo, como distingui-la da república? O ano de 1848 já dera a resposta.
22As revoluções dessa Primavera em França e na Europa central surpreenderam as esquerdas portuguesas no rescaldo da guerra civil de 1846-1847, durante a qual a tentativa de tomar o poder da Junta do Porto tinha sido derrotada pela intervenção militar inglesa e espanhola. O conde de Tomar, líder da situação contestada em 1846, descreveu assim o que estivera em causa na guerra civil: ou vencia o governo, «ou vencia a Junta do Porto, com a gente setembrista, e então proclamavam a república» (citado por Ribeiro, 1989, 37). Os chefes da Junta, no entanto, sempre insistiram em que o seu objectivo era apenas o de «restaurar o sistema constitucional». De qualquer modo, a sua derrota impediu que o exemplo de França pudesse ser imitado. Em contrapartida, a insurreição de Paris provocou em Lisboa a proliferação de uma imprensa, mais ou menos clandestina, onde a «república» foi assumida como um objectivo imediato e urgente. Os títulos de algumas das publicações são claros, como os dos periódicos lisboetas A República ou O Republicano.
23O principal traço distintivo desta imprensa não é simplesmente o seu republicanismo descarado, mas uma nova concepção da república. Os «republicanos teóricos» como Passos Manuel tinham imaginado que o estabelecimento do governo republicano dependia de uma transformação social e cultural que só seria consumada num futuro distante. Ora, para os escritores revolucionários de 1848, essa transformação podia ser realizada imediatamente, através da revolução. A revolução, enquanto acto de emancipação colectiva por meio da violência, produziria a exaltação cívica do povo necessária para viabilizar o governo republicano. A república, nos escritos dos entusiastas de 1848, é carregada de um sentido providencialista. «República» é sinónimo de «religião», a «revolução» é interpretada como uma «redenção», e o «povo» aparece como uma entidade messiânica, um Cristo colectivo. A república, que Montesquieu já fizera depender da virtude do cidadão, aparece agora como assente na fé do crente, na capacidade de identificação fraterna entre os indivíduos, e aponta para uma transfiguração colectiva, mais do que para um governo representativo e eficiente. Note-se que esta dimensão religiosa é compatível com o anticlericalismo. No panfleto Catecismo Republicano, publicado nesta época, a república é assim definida: «Uma república democrática fundada sobre a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade não é portanto senão a tradução da lei de Deus». Noutro folheto, intitulado Deus e a Liberdade, onde transparece a influência de Lamennais, argumenta-se que «a República é a realização da Liberdade que Deus concedeu aos homens, da Igualdade que o Cristo manifestou ao mundo, da Fraternidade que é a expressão do seu divino verbo». No panfleto intitulado O que é a verdadeira república?, o autor («um verdadeiro republicano») respondia assim à questão: «é uma forma de governo em que se não consideram os homens como partidários mas como irmãos igualmente livres, trabalhando todos para o mesmo fim, governados por leis feitas pelos seus representantes, e postas em acção pelos mais sábios e virtuosos, aos quais seus irmãos entregam, pelo tempo que lhes apraz, as rédeas do seu governo, tornando-os responsáveis pelos actos da sua administração». Havia, no folheto Fazei as barricadas e a república será salva, quem já antevisse a revolução: «sobre as barricadas tremulará uma bandeira republicana de vermelho e branco. Sobre elas se dará o grito: viva a República! Viva a federação peninsular! Nada de rei! Nada de regência!» (citados por Ribeiro, 1989, 97, 175, 229, 233).
24A república está assim claramente identificada com a revolução, e esta descrita como uma insurreição na rua, com símbolos (uma bandeira) e procedimentos próprios (as barricadas), inspirados pelos acontecimentos de Paris e adequados à mobilização do povo nas cidades. O elemento místico é dado pelo jornal A Alvorada, de Lisboa, dirigindo-se ao povo: «A república é o astro do dia que desponta no horizonte, e que rasga e dissipa as trevas da longa noite de opressão em que definhavas» (A Alvorada, 1848, n.º 1, Marques, 1990, 18). Já não há confusão possível entre república e monarquia: «queremos a república» porque «realeza e liberdade popular são duas ideias que se repelem mutuamente». E a república, que tinha sido considerada utópica, era agora possível porque a França indicara o método a seguir para implantar o governo republicano: «A revolução de Fevereiro foi a inauguração de uma revolução completa social». A república seria realizável através do aniquilamento do «individualismo» burguês, que até aí impedira a fraternidade. O método da república seria necessariamente o «socialismo» (O Regenerador, n.º 4, 28 de Abril de 1848, e n.º 11, 6 de Junho de 1848, em Marques, 1990, 54, 79). Por isso, o país «quer a República, e não Governo que só tenha o nome de República». República era o «governo da igualdade! Governo da liberdade sem licença! Governo de amor entre todos os homens! Governo angélico!» O que, sem contradição, justificava e requeria o recurso à violência redentora, recomendando-se o «fuzilamento» e o «degredo» contra os inimigos da revolução: «guerra de extermínio a tudo quanto não disser de coração Viva a República!» (A República, n.º 1, 25 de Abril de 1848, e n.º 8, 20 de Junho de 1848, em Marques 1990, 108 e 131).
25O investimento revolucionário no termo «república» terá agravado a rarefacção do uso de «república» no sentido antigo de «nome comum» – uma tendência notória nos debates parlamentares a partir da década de 1850. Mas o mais interessante é que, depois de 1848, mesmo os propagandistas da esquerda revolucionária, conotados com o republicanismo, como José Félix Henriques Nogueira (1823-1858), evitam o termo. Henriques Nogueira declarou na abertura dos seus Estudos sobre a Reforma em Portugal (1851) que preferia que o «governo do Estado fosse feito pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa de REPÚBLICA (sic)» (Nogueira, 1976 (1851), vol. I, 22). No entanto, nesse mesmo livro e no resto dos seus escritos escolheu, para rotular a solução desejável, «democracia» e «federação». Ao contrário do que acontecera na década de 1820, estes termos pareciam agora mais aceitáveis do que «república». Para se definirem a si próprios, autores como Henriques Nogueira tenderam também a recorrer a expressões como «verdadeiros liberais», em vez de republicanos.
26Uma nova época de afirmação de um republicanismo revolucionário ocorreu nos anos agitados de 1868-1870, no contexto da revolta dita da «Janeirinha» (1 de Janeiro de 1868) e sob o impacto da deposição de Isabel II em Espanha e depois da queda de Napoleão III em França. República surgiu identificada com a revolução, isto é, com o projecto de estabelecer uma «democracia» federalista, «racionalista» (laicista) e «socialista». Os jovens republicanos de 1868 passaram a acusar os da geração de 1848, que se haviam instalado na monarquia constitucional como simples «liberais», de não passarem de «republicanos platónicos» (carta de Antero de Quental a Oliveira Martins, Fevereiro de 1873, Quental, 1989, vol. I, 182-183). República consubstancia agora a afirmação de uma única fonte de legitimidade democrática, e portanto a negação da monarquia, incluindo da monarquia constitucional. As propostas de um programa para a formação de um partido republicano em 1873 e 1878 atribuem ao «partido republicano democrático» (note-se esta dupla definição) a defesa da «soberania nacional como origem única, natural e exclusiva de todos os poderes do Estado» (citado por Catroga, 1991, vol. I, 73). República estava definitivamente confundida com um programa de derrube da dinastia através de uma revolução (sobre o carácter revolucionário do movimento e, mais tarde, do regime republicano português, ver Ramos, 2003). Daí que o seu uso pejorativo, para significar desordem e «anarquia», se tenha conservado. Num romance publicado em 1871 com enorme sucesso, Júlio Dinis (1839-1871) pôs um personagem, Frei Januário, a defender a nobreza: «a sociedade precisa destas distinções, senão não há ordem, não há governo, tudo é anarquia e república» (Dinis, s.d. (1871), vol. I, 1212).
27«Repúblico», adjectivo, é registado em documentos do século XVI (Machado, Dicionário Etimológico). «Republicano», mais tardio, só terá sido retido pelo dicionário de António de Moraes Silva em 1813, embora já corresse antes. Em 1819, O Diccionario Geral da Lingoa Portugueza de Algibeira por Tres Literatos Nacionaes dava dois sentidos para «republicano»: «o que vive em uma república», e o que «aprova o governo das repúblicas». Para o primeiro, havia um sinónimo registado noutra entrada: «repúblicola», com o significado de «o que habita no território de alguma república». Era o segundo sentido, porém, que justificaria a introdução de um outro verbete dedicado a «republicanismo», e que surge definido como «qualidade do republicano», acrescentando-se que «diz-se também, por criminação, dos que seguem opiniões temerárias da rebelião». Não era o mesmo que «Republico», registado como adjectivo para caracterizar o que era «zeloso do bem público».
28Trinta anos passados, em 1853, o Diccionario Portatil Portuguez interpretava «republico» como sinónimo de «republicano», e definia este, em entrada separada, como o «que goza dos direitos de cidadão de república, que aprova a forma republicana de governo». Mas não se tratava de uma evolução geral. Um ano antes, no seu Diccionario de Synonimos, José Ignácio Roquete analisara a relação entre «republico» e «republicano», notando que «bem parecidos são estes vocábulos, e parecem ter igual significação, porém há entre eles mui notável diferença». Assim, repúblico era definido como «o homem zeloso e amigo do bem público», o que significa que «pode-se ser um bom republico sendo vassalo dum rei». Outra coisa, segundo Roquete, era um «republicano». Este podia ser duas coisas: o «cidadão duma república», ou então «o que é partidário da república, isto é, da forma de governo democrático em que governa o povo em parte por si e em parte por meio de alguns cidadãos escolhidos». A entrada terminava com uma lição moral: «Não se pode ser vassalo sendo republicano; mas pode haver, e tem havido muitos republicanos que são muito maus repúblicos». No entanto, em 1844, Francisco Solano de Constâncio já notara que «republico» era um termo «antigo». O universo semântico da «república» já não compreendia o bom cidadão de um regime constitucional, mas apenas os militantes do partido que propugnava a abolição da monarquia e uma transformação igualitária e laicista da sociedade.