1Mesmo não sendo possível encontrar uma via de sentido único no percurso seguido pelo vocábulo povo em Portugal entre 1750 e 1850, podem, no entanto, identificar-se certos movimentos ou tendências no trajecto das transformações semânticas por que o termo passou ao longo do período considerado.
2Não deve esquecer-se, desde logo, que os pontos de partida são em si mesmo variados. Assim, considerando a entrada povo na primeira edição do Dicionário da Língua Portuguesa de António de Moraes Silva que conhecerá diversas actualizações ao longo do período aqui em estudo, encontramos as três seguintes asserções principais:
3«Povo, s. m. os moradores da Cidade, vila, ou lugar. § Povo miúdo, a plebe, gentalha. § Nação, gente» (Moraes, 1789).
4Os três sentidos aqui referenciados, em boa parte herdados do latim, o primeiro de inscrição territorial, o segundo de sentido, diríamos hoje, mais sociológico, e o terceiro, mais abstracto e generalizável, permanecerão, invariavelmente, referidos nos dicionários de língua portuguesa do período em estudo.
5Na verdade, os usos modernos do vocábulo, nomeadamente a acepção inspirada em Rousseau de corpo político dotado de soberania, emergirão muitas vezes em situação de tensão e conflito num universo linguístico marcado por estes três significados referenciais, a que haverá que acrescentar um quarto, este também de natureza política, ou mais exactamente socio-política, só mais tardiamente registado nos dicionários:
6«(Povo) emprega-se porém frequentemente para significar a terceira classe dos cidadãos, por distinção das outras duas da nobreza, e clero: assim dizemos: ‘a nobreza, clero, e povo’: ‘a câmara, nobreza, e povo’ e em nenhuma destas frases podemos usar do vocábulo plebe» (Moraes, 1831).
7No processo de depuração e sedimentação que os dicionários registam ao longo dos cem anos em análise, podemos identificar momentos-chave no caminho da clarificação das fronteiras semânticas do termo povo através do esforço para distinguir cada um desses sentidos de vocábulos contíguos, sujeitos também, alguns deles, a intensos processos de transformação. Num dicionário de sinónimos datado de 1836 é possível encontrar uma notável tentativa de afinação de conceitos a partir da distinção entre povo e nação: «No sentido literal e primitivo a palavra nação indica uma relação comum de nascimento, de origem; e povo, uma relação de numero e de reunião. A nação é uma dilatada família; o povo, uma grande reunião ou agregado de seres da mesma espécie. A nação consiste nos descendentes de um mesmo pai; e o povo na multidão de homens reunidos n’um mesmo sitio» (Novo Diccionário, 1840).
8Se nos reportarmos apenas aos dicionários encontraremos um esforço comparável de definição de fronteiras na 4.ª edição do já citado dicionário de Moraes Silva a propósito da distinção entre povo e «plebe» e povo e «vulgo»:
9«Por onde se vê que plebe significa precisamente o povo miúdo, e gentalha, o mais baixo do povo; ainda que d’este mesmo vocábulo deriva o adjectivo plebeu, exprimindo (segundo a significação latina) homem da classe do povo, não nobre. Vulgo é propriamente o comum do povo, e refere-se não tanto a classe alguma de cidadãos distinta das outras classes, quanto às pessoas (de qualquer classe que sejam) que, ou por sua ignorância, ou por seus baixos sentimentos e acções, pertencem ao comum da gente, ao que é mais ordinário, ao maior numero.» (Moraes Silva, 1831).
10Encontramos, sinteticamente, nestas duas formulações as grandes balizas que parecem ter servido para delimitar o sentido do termo povo no período em que a transformação do vocábulo se acelerou em Portugal, ou seja, a partir da ruptura iniciada em 1820 com o pronunciamento do 24 de Agosto na cidade do Porto que irá conduzir à convocação das primeiras Cortes liberais. Balizas que delimitam, por um lado, uma acepção que o aproxima do termo «nação» a ponto de quase com ele se confundir, e que, por outro, traçam uma linha divisória bem nítida entre povo e «plebe» que pode mesmo chegar à exclusão de «plebe» do universo de acepções que o termo povo admite.
11Na verdade, apesar do radicalismo político que costuma ser associado à primeira revolução liberal portuguesa que encontraria a sua expressão legal na Constituição de 1822, o regime dela saído – o vintismo – evitou colocar o povo no centro do seu discurso político, substituindo-lhe a «nação» e evitando assim, de forma clara, que o povo, no sentido rousseauista do termo, aparecesse como protagonista do processo revolucionário e como portador de uma «vontade soberana» (Bron, 2005).
12Bem ilustrativas desse facto são as considerações inscritas num Dicionário (…) Filosófico, Político e moral, atribuído a um deputado vintista tido por radical: «Um Povo nunca pode nem deve governar. Se ele é o único fiscal da autoridade como é que há-de exercê-la e fiscalizá-la ao mesmo tempo?» Acrescentando, em seguida, ser o povo «a inconstância e a versatilidade personificadas» (Moura, mss, s/d)).
13Foi talvez por essa razão que, durante a experiência liberal iniciada em 1820, a utilização do plural povos foi recorrente tanto nas Cortes como na imprensa e em muitas outras publicações pró-liberais.
14Uma intervenção nas Cortes do deputado moderado Aragão Morato em favor do veto real e das duas Câmaras expressa bem este sentido do uso do plural povos: «Eu não faço aqui as vezes de Procurador dos Reis (…), sou Procurador dos Povos que fiaram de mim seus interesses e por isso absolutamente digo que a diminuição dos poderes necessários à Realeza não só tende a diminuir a dignidade do Rei em prejuízo dos povos mas ataca a Liberdade Civil da Nação» (cit. Bron, 2005, 42).
15O uso do plural povos neste contexto não deve, no entanto, ser visto apenas como uma estratégia discursiva dos sectores moderados; defendendo princípios opostos, o deputado Borges Carneiro afirmava por exemplo: «O veto absoluto seria inteiramente fatal à liberdade dos Povos e provavelmente inútil à majestade do rei» (Diário das Cortes, 23-2-1821).
16Na verdade, o plural povos utilizava-se frequentemente no Antigo Regime para designar o conjunto dos «vassalos», nomeadamente quando se discutiam as relações destes com o poder régio. A relação entre o rei e os povos ou os «seus povos» ocupou papel preponderante na polémica jurídica e política desencadeada, nas últimas décadas do século XVIII, pelo projecto de um novo código de direito público de autoria de Pascoal de Melo Freire, professor da Universidade de Coimbra, cujos princípios foram questionados e combatidos por outro jurista e professor da mesma universidade, António Ribeiro dos Santos. Na «polémica do Novo Código» os termos povo e povos foram usados com diversos significados políticos que, nalguns casos, roçaram as teorias da soberania popular (Cardim, 1998, 178). No entanto como o referencial antitético era «rei», o uso do plural povos foi recorrente.
17Partidário, ao contrário de Melo Freire, da limitação do poder régio pelas «leis fundamentais» do reino encaradas numa perspectiva contratualista, Ribeiro dos Santos escrevia, por exemplo: «Em um século de razão e humanidade, em que os monarcas da Europa reconhecem que foram criados para os seus povos, e que os interesses dos seus vassalos são os únicos objectos do seu governo, não pode esperar-se que a nossa augusta Soberana (…) deixe de aprovar estes desígnios e de firmar, pela sabedoria e prudência das suas leis, os antigos direitos e regalias dos seus povos» (Santos, cit. por Pereira, 2005, 259).
18No complexo jogo entre o singular povo e o plural povos, nas suas várias configurações ao longo do período em estudo, parece também perceber-se uma preferência pela utilização do plural quando está em causa o significado do termo povo na sua primitiva acepção territorial de moradores de vila, cidade ou lugar. Fundado num entendimento do reino como o conjunto, plural, dessas unidades territoriais e de outros corpos políticos (Hespanha, 1993), o uso do termo povos mantém-se até tarde no vocabulário político português e, embora se registe uma clara tendência, ao longo da primeira metade de Oitocentos, para um fortalecimento do singular, ainda podemos encontrar um frequente recurso ao plural em meados do século.
19Apesar da tendência dominante no discurso público da primeira experiência portuguesa de governo liberal ter sido marcada pela recorrente afirmação da soberania da nação e não do povo, a soberania popular não deixou de ser evocada durante o vintismo. São, no entanto, relativamente excepcionais afirmações como a que foi proferida pelo deputado Barreto Feio durante o debate parlamentar sobre a composição das Cortes ao rejeitar uma proposta relativa à existência de uma segunda Câmara não eleita: «(…) com suma admiração minha vejo que não falta entre nós quem pretenda sustentar que a soberania reside não só no Congresso mas noutro Corpo a que se deu impropriamente o nome de Conselho de Estado, ultrajando-se assim a Majestade do Povo Português e usurpando-se-lhe metade da soberania» (Debates, Actas, 26-2-1821).
20Mais do que portador de uma vontade soberana, o povo foi visto por alguns políticos liberais como sendo detentor de uma opinião segura e confiável na escolha dos seus representante. A propósito do sistema eleitoral dizia Manuel Fernandes Tomás, figura central da revolução de 1820, aproximando até à indiferenciação povo, nação e opinião pública: «Quem é mais capaz de escolher e conhecer estes homens constitucionais? É o Povo, é a opinião pública, que designa este homem ou aquele. Esta opinião pública está no total da nação e não em meia dúzia de pessoas; o povo nunca se ilude nestas coisas» (Diário das Cortes, 29-8-1821). Advogando as eleições directas para deputados, Fernandes Tomás afirmaria ainda: «(…) por este motivo, pois, concluo que tendo de rejeitar um método mau, voto por aquele em que o povo goze mais plenamente dos seus direitos», apontando uma outra configuração política de povo enquanto entidade detentora de direitos.
21Esta posição seria contrariada por outro deputado, Ferreira de Moura, que alertava contra os perigos das eleições directas por causa dos «resultados das reuniões tumultuárias do povo», de que era exemplo maior e mais temível a França revolucionária, mas de que também era possível registar os riscos em países como a Inglaterra.
22O povo como agente de «excessos» mas também como portador de liberdade fora várias vezes evocado durante as invasões francesas de Portugal (1807-1811) a propósito das rebeliões que a presença das tropas napoleónicas desencadeara a partir de 1808. De facto, em Portugal, à semelhança do que aconteceu em Espanha, a insurreição anti-francesa assinala também um novo protagonismo político do povo de que é possível registar varias facetas em escritos contemporâneos. No entanto, contrariamente ao que ocorreu naquele país, o levantamento não desembocou numa solução de tipo constitucional prevalecendo a evocação do rei, da dinastia e da religião.
23José Acúrsio das Neves traduziu bem na sua História das Invasões dos Franceses em Portugal, publicada em 1811, o misto de admiração pelas acções destemidas do povo e de receio perante os riscos decorrentes dessas mesmas acções. Embora verberando os «actos vertiginosos» de que o povo era considerado «tão susceptível», não deixou de colocar o povo na posição de grande protagonista da insurreição «patriótica»: «(…) Nas províncias houve alguns oficiais, fidalgos, ministros e pessoas de representação que dirigiram os movimentos populares, a oficialidade militar correu às armas de todas as partes ao primeiro brado, mas, confessemo-lo, este primeiro brado ou saiu imediatamente do povo nas terras onde a revolução principiou sem chefes ou foi preparado pelo povo» (Neves, 1984, 413, 2.º vol.). No entanto, escreveria também: «É preciso, eu o direi sempre, conhecer o povo; depois de amotinado raras vezes cede sem passarem os seus primeiros ímpetos; depois de acostumado a dar a lei não reconhece mais limites nas suas empresas» (Neves, 1984, 101, 2.º vol.).
24O povo como possível e mesmo provável fautor de «excessos» será um tópico recorrente no discurso liberal português que não difere muito, neste aspecto, do que podemos já encontrar nos escritos de um partidário do absolutismo como Acúrsio das Neves. Mas não há no interior do liberalismo, apesar de tudo, unanimidade de vistas.
25Para um liberal como Manuel Fernandes Tomás os «excessos» populares, que outros deputados do vintismo receavam e cujo receio exprimiram a propósito do sistema eleitoral, não eram para temer num regime constitucional:
26«O povo só rompe em excessos quando se lhe não deixa usar a sua liberdade; os males que fez em França foi porque não tinha leis e regras para usar da sua liberdade; estas leis são que requeiro que na Constituição se determinem; logo que haja estas leis o povo não quer outras» (cit. Bron, 2005, 46-47).
27A tensão entre um conceito abstracto de povo detentor de soberania e possuidor de um juízo fiável na eleição dos representantes da nação num regime constitucional e de povo fautor de «excessos», demasiado rude para ser confiável porque identificado com os sectores mais baixos e ignorantes da sociedade, permaneceu uma constante em todo o período aqui considerado.
28Os dicionários apontam, claramente e desde cedo, esse outro sentido do termo povo que o desqualifica em relação à sua capacidade de julgar. Encontramos no Dicionário de Moraes Silva de 1789 a seguinte acepção do termo: «Povo no fig.: o que tem costume, usos, e credulidade do povo. ‘Sois povo’ ‘essa opinião é povo’». Apesar da sua várias vezes expressa admiração pela intervenção popular na luta anti-francesa, Acursio das Neves não deixou também de chamar a atenção para o facto de «as vistas» «dos povos» serem «ordinariamente curtas» (Neves, 1984,279, 2.º vol.). O «povo ignorante» ou «indouto» são configurações semânticas presentes também no 1.º liberalismo, nomeadamente nos seus projectos de pedagogia política ou de instrução pública.
29A questão da instrução popular fora abordada anteriormente em escritos referenciais do pensamento ilustrado alguns dos quais informaram os projectos de reforma do ensino de que foi responsável o marquês de Pombal. Foi o caso da obra Verdadeiro Método de Estudar, de Luís António Verney, em que no contexto de um amplo plano de reforma dos estudos à luz do racionalismo e do exprimentalismo, se advogava também o ensino elementar dos «plebeus» sugerindo a multiplicação de escolas no país «para que todos os pobres pudessem mandar lá os seus filhos» (Verney, 1952 [1747], pp. 49-50, vol. V). Em sentido inverso, Ribeiro Sanches, outra figura do pensamento ilustrado, autor, também ele, de escritos sobre a educação, defendia que o Estado devia preocupar-se sobretudo em propiciar «trabalho e industria» aos sectores populares, considerando não necessitar «esta classe do povo outra educação do que os pais e as mães estivessem empregados no trabalho» e que «o trabalho bastava para a boa educação da mocidade plebeia» (Sanches, (s/d) [1760] 131).
30O afastamento do povo do processo revolucionário vintista, por receio da «anarquia» que a sua intervenção pudesse causar, foi considerado por Almeida Garrett uma razão maior do fracasso da primeira experiência liberal iniciada com a revolução de 1820.
31No seu Portugal na Balança da Europa, reflexão sobre as causas do fracasso das revoluções que no início dos anos 20 tinham sacudido vários países europeus, escrevia: «Logo era certa a ruína da Liberdade? – Não, não, homens cegos, não: chamai o povo, interessai-o, fazei por ele a revolução; ele defenderá a obra das suas mãos» (Garrett, s/d [1830], 71-72).
32Ao escrever estas linhas, Garrett incorporou também no seu campo de experiência não só os «excessos» que o povo podia cometer num contexto político revolucionário mas também no campo oposto, do lado da contra-revolução. Quando as escreveu encontrava-se exilado pela segunda vez em consequência da tomada do poder pelos partidários do absolutismo, dos quais se tornara chefe-de-fila o infante D. Miguel, que se fizera aclamar rei de Portugal em 1828.
33A fim de legitimar interna e externamente a ascensão de D. Miguel ao trono haviam sido convocadas, nesse mesmo ano, as antigas Cortes dos «três estados», à maneira tradicional, reunindo em assembleias separadas clero, nobreza e «braço popular». Apelava-se assim, ainda, à concepção tripartida e hierárquica das três ordens em que o sentido do termo povo era o de terceiro corpo de um reino concebido como sendo corporativamente constituído. O papel das antigas Cortes, e do povo no seu âmbito, será ainda, até meados do século, amplamente discutido e reinventado nos escritos contra-revolucionários.
34O apoio popular a D. Miguel e ao campo contra-revolucionário virá a ser matéria de séria reflexão para muitos liberais perseguidos e exilados, servindo frequentemente para justificar um discurso em que o povo era motivo de dupla desconfiança em razão tanto da sua ignorância e actuação tumultuária como do apoio que prestava a D. Miguel e ao miguelismo.
35Silva Maia, outro liberal obrigado a exilar-se durante o período que durou o governo de D. Miguel, exprimiu-o com clareza nas suas Memórias, escritas durante os anos do seu exílio. Percorrendo os sentimentos e atitudes políticas das «três classes» em que, na sua opinião, se dividia a sociedade portuguesa: a «aristocracia de nascimento», a «classe média» e os «plebeus», ou «grande massa do povo rude», o autor verberava a última – que «só sente e quase nada pensa» e só se dirige «para onde a impelem seus mandatários». Sobre o seu apoio a D. Miguel escrevia: «Se agora ociosa e sem trabalho que lhe facilite os meios de subsistir a armaram e a induziram à pilhagem, fazendo-lhe crer que a Carta (constitucional) e seus sequazes são a causa das sua misérias, também se lhes pode fazer crer o contrário. Se quando os Constitucionais tinham o poder lhe insinuassem que os Fidalgos, Frades, e Desembargadores eram os inimigos do povo, e lhe metessem armas na mão como o fez D. Miguel, ver-se-ia que a plebe portuguesa faria o mesmo que fez em França na calamitosa época de 1793» (Maia, 1841, 238).
36O apoio popular à contra-revolução serviria ainda, mais tarde, a um escritor tão referencial do romantismo e do liberalismo português quanto Alexandre Herculano, para fundamentar a sua liminar recusa da democracia. Na introdução à 2.ª edição da obra A Voz do Profeta, Herculano evocaria as suas recordações de combatente na guerra civil de 1832-34 entre liberais e absolutistas para alertar contra os perigos das ideias democráticas, ilustrando-os, precisamente, com essa estranha e explosiva mistura entre «direito divino» e «soberania popular» que considerava ter caracterizado o miguelismo (Herculano, 1983 [1867] 40).
37Ninguém exprimiria melhor que Herculano a concepção liberal de povo como classe intermédia e melhor traçaria a fronteira que a separava da «plebe» ou «populaça». Num texto datado de 1856 e publicado em francês, em que fazia o elogio das medidas de Mouzinho da Silveira, Herculano escrevia: «Quand je dis le peuple je n’entends pas parler de la populace qui ne réfléchissait point; qui n’avait presque pas d’intérêts matériels ou moraux attachés aux mesures du cabinet Mouzinho qui journellement était prêchée, excitée, fanatisée par des moines. (…) Non, ce n’est pas de ces gens-là que je vous parle: j’en laisse le soin aux démocrates. Pour moi le peuple c’est quelque chose de grave, d’intelligent, de laborieux, ce sont ceux qui possèdent et qui travaillent» (Herculano, 1983, 302-303).
38Em 1826, quando as primeiras revoltas anticonstitucionais eclodiram no Norte do país contestando o novo regime liberal que resultava da outorga da Carta Constitucional por D. Pedro, os jornais liberais designavam as populações que manifestavam o seu apoio aos revoltosos com expressões desprezíveis como «os rotos» e «a canalha» (Lousada, Monteiro, 1982, 169-181), evitando desse modo utilizar o vocábulo povo para designar os apoiantes de D. Miguel oriundos das classes baixas.
39Os miguelistas, por seu lado, não se privaram de recorrer ao campo semântico do discurso político revolucionário e liberal, jogando de forma ambígua com a polissemia do termo povo, para apresentarem as manifestações públicas de apoio a D. Miguel como expressões do «sufrágio popular» e do «voto da nação». Essa ambiguidade é patente num relato, feito por um partidário do absolutismo, das festividades organizadas em Braga, por ocasião da visita de D. Miguel àquela cidade quando, no início da guerra civil que o opôs a seu irmão D. Pedro e aos liberais (1832-34), visitou o seu exército que cercava o Porto: «Errante pelo meio deste povo eu então, mais uma vez, tive lugar de reconhecer por um lado a vontade nacional e por outro a inconsequência daqueles que, proclamando em teoria o sufrágio popular, contudo, na prática, negam a legitimidade de um soberano a favor do qual se ligam estreitamente a letra da lei e o voto da nação» (Silva, 1832).
40O conceito de «soberania do povo» só virá a ser utilizado, de forma clara, pela ala mais radical ou «exaltada» do liberalismo que chegará ao poder em consequência do movimento revolucionário desencadeado em Lisboa a 9 de Setembro de 1836.
41Passos Manuel, que viria a ser ministro do Reino na sequência da «revolução de Setembro», daria um eloquente exemplo da evocação das consequências políticas da vontade popular quando, perante a Câmara dos Deputados, justificou a sua adesão a um movimento que derrubara um regime, o regime da Carta Constitucional, que ele tinha anteriormente jurado respeitar: «Jurei a Carta sem escrúpulo e sem receio. – Enquanto ela foi a lei fundamental cumpri-a fielmente (…) mas esta Carta foi destruída por uma revolução popular. O Povo quis e o Povo podia» (Pinheiro, 2005).
42Não será, no entanto, em Passos Manuel, representante de uma linha média e prudente do setembrismo, que poderemos encontrar referências mais afirmativas e recorrentes à soberania do povo. Será na sua ala mais radical, em políticos e parlamentares como José Estêvão, ou em órgãos de imprensa como o Nacional ou o Tempo, que se detectam usos do termo povo em que este é claramente identificado como portador de soberania.
43Na discussão do projecto da Constituição de 1838, por exemplo, José Estêvão afirmava: «Mas confessar um princípio não é nada; é preciso defini-lo para não lhe cercear a importância, e submeter-nos às suas consequências para não parecer uma teoria estéril. Ora definir o princípio da soberania popular é reconhecer que o povo é o único senhor de todos os poderes políticos, de todas as faculdades governativas» (Estêvão, 1909).
44O radicalismo setembrista que mobilizou camadas populares urbanas nas principais cidades do país, em particular em Lisboa, no quadro das guardas nacionais e dos clubes, invocou a vontade popular para legitimar a intervenção da milícia cívica nas decisões políticas. A resistência oposta por alguns batalhões de guardas nacionais às ordens do governo para que se desarmassem e dispersassem conduziria a uma sangrenta intervenção do exército contra os corpos rebeldes, em Março de 1838. Comentando a fermentação nas ruas da capital, o jornal exaltado O Tempo, considerava que ela se explicava por se ter espalhado a notícia de ter a rainha chamado para o governo homens que não eram vistos como sendo fiéis à revolução, o que justificava a intervenção revolucionária do povo: «Esta só notícia excitou os ânimos na capital: todos preveniram que tal passo podia ter funestas consequências. Quando o trono dá golpes de estado o povo responde com os seus» (cit. Pata, 2004, 133).
45Um dicionário publicado em 1840, com a indicação de que era «traduzido do francês» e que se anunciava como sendo «para uso do vulgo», dava conta de novas acepções do termo registando na entrada povo: «Quando significa a universidade (universalidade) dos Cidadãos, é nele que residem a força, o poder a riqueza e a majestade. Quando se emprega para designar os artistas deve olhar-se como a parte mais útil da nação – A populaça é a sua escória» (Diccionário, 1840). A tendência à identificação de povo com os sectores artesanais estivera já presente no periódico radical o Procurador dos Povos, que adoptara o subtítulo de «jornal dos artistas» (Pereira, 1988, 22-23).
46O termo povo virá a inscrever-se no discurso público oitocentista com uma nova vitalidade e uma nova amplitude semântica a partir da eclosão em 1846, no Norte do país, da revolta rural que iria fazer cair o governo conservador que, na sequência do fracasso do setembrismo, tinha subido ao poder em 1842 restaurando a Carta Constitucional.
47Esta revolta, com início na província do Minho, fora baptizada com o nome de «Maria da Fonte», nome de uma hipotética líder das mulheres que protagonizaram os primeiros motins onde se contestavam as leis sanitárias que, como se sabe, proibiam o enterro dos mortos nas igrejas. A revolta viria a politizar-se conduzindo a uma nova guerra civil – «a Patuleia» – uma designação cuja origem é controversa mas que foi desde cedo considerada como uma derivação do termo «pata-ao-léu».
48Nos relatórios das autoridades governamentais os termos povo e povos seriam amplamente utilizados para designar as populações sublevadas e na imprensa abundaram expressões como «povo em tumulto», «motim do povo», «motim popular», «revolução popular» e «forças populares» (Capela, 1997) que, nalguns casos, se consagraram no discurso político, como foi o caso de «revolução popular» a que a oposição setembrista particularmente recorreu.
49Almeida Garrett, partidário do setembrismo, daria, numa intervenção pública, uma curiosa justificação desse carácter popular: «(…) Senhores nós acabamos de presenciar uma grande revolução, uma revolução que tem (…) além de todas as outras características brilhantes, o magnífico, o transcendente carácter de ser verdadeiramente popular porque começou pelas mulheres. Quase que ainda não houve uma revolução verdadeiramente grande, verdadeiramente nacional que assim não começasse…» (Garrett, 1963, p. 1242).
50O já referido Mouzinho da Silveira, convicto adversário do setembrismo, julgava, igualmente legítima a revolta do Minho iniciada em 1846. Considerava que, apesar de poder ter contido «violências» e «injustiças», como frequentemente se verificava com as acções do povo, o seu objectivo último era a justiça e nela se teria expresso uma «vontade geral» de sabor rousseauista: «(…) e isto por haver nos povos ainda quando o despotismo os vexa e a corrupção os embala o instinto imortal do amor do justo». Acrescentando que «o povo na sua vontade geral é sempre justo» (Silveira, 1989, pp. 1213-1214, vol. 2).
51Através da revolta dos campos do Norte do país contra as «leis da saúde» e contra os impostos, um novo segmento do «povo português», podia agora coincidir, para uma parte da opinião liberal, com o povo concebido como corpo político. Um encontro relativamente improvável alguns anos antes quando, por exemplo, um clérigo liberal, deputado às Cortes Constituintes, alertava numa obra de intenção pedagógica intitulada O Cidadão Lusitano: «(…) não acrediteis tolices do povo rude, e povo português que ainda crê em duendes e lobisomens e espera por El-rei D. Sebastião» (Miranda, 1822).
52Na verdade será, precisamente, o povo detentor de algumas dessas crenças que os românticos irão apaixonadamente invocar. Almeida Garrett será mais uma vez um precoce exemplo desse procedimento que teve a sua expressão plena com a publicação, em 1843, do seu Romanceiro. Criticando a literatura clássica e estrangeira que se tinha vindo sobrepor à literatura nacional, escrevia no prefácio a essa obra: «Só o povo, o povo dos campos, as classes menos ilustradas da sociedade protestaram em silêncio contra este injusto abuso de uma justa vitória, guardando na lembrança e repetindo entre si, como os hinos de uma religião proscrita, aqueles primitivos cantares das antigas eras que os doutos desprezavam e perseguiam» (Garrett, 1949 [1843], 31).
53O povo do programa romântico, cujo saber se sobrepõe ao dos «doutos», aparece-nos pois como uma derradeira derivação do termo no quase secular percurso aqui traçado. O modo como esta acepção era susceptível de se cruzar com as novas acepções políticas nascidas com o liberalismo foi expresso, mais uma vez, de forma exemplar, pelo mesmo Almeida Garrett na sua «Memória ao Conservatório Real»: «Este é um século democrático; tudo o que se fizer há-de ser pelo povo e com o povo... ou não se faz. (...) Os poetas fizeram-se cidadãos, tomaram parte na coisa pública como sua. (...) Dai-lhe [ao povo] a verdade do passado no romance e no drama histórico – no drama e na novela de actualidade oferecei-lhe o espelho em que se mire a si e ao seu tempo, (...) e o povo há-de aplaudir porque entende: é preciso entender para apreciar e gostar» (Garrett, 1963 [1843], 1086-87).
54No entanto, a concepção romântica de povo não deixou de contribuir poderosamente para desenhar uma outra fronteira no interior do termo, bem perceptível já em meados do século: a que separaria o «povo dos campos», possuidor de uma ancestral sabedoria e verdadeiro depositário dos valores nacionais, do povo urbano em nome do qual se publicaria, por exemplo, em 1850 o jornal O Eco dos Operários e se fundaria, dois anos mais tarde, o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas.
55Nas suas associações e na sua imprensa nascentes, estas «classes laboriosas» iriam mostrar uma clara preferência pela utilização de vocábulos menos genéricos para se auto-designarem. «Operários», «classes trabalhadoras», «classes laboriosas», «classes operárias» e «proletárias» são expressões que não se confundem com o termo povo e recolhem, desde o início, uma clara preferência. Expressões que irão imprimir uma nova e duradoura marca no vocabulário político e social da segunda metade do século.