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Dossier: História Conceptual no Mundo Luso-Brasileiro. 1750-1850

História

Histoire
History
João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araujo
p. 83-96

Resumos

Entre 1750 e 1850, aproximadamente, o conceito de história conheceu, na América portuguesa e no Brasil, uma dinâmica indicadora de transformações cuja magnitude e profundidade só podem ser devidamente apreciadas considerando-se todo o período. Tais transformações relacionam-se directamente com o aprofundamento das dificuldades sentidas pelo Império português no século XVIII e com a criação das condições históricas que possibilitaram, nas primeiras décadas do século seguinte, a ruptura entre Portugal e seus domínios americanos e a formação, nestes, de uma unidade política nacional e soberana, já não portuguesa mas sim brasileira. Para o Estado e para a nação brasileiros, o conceito de história e suas mutações revelam-se fundamentais.

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1. Linhas gerais da evolução do léxico

1No Vocabulário de Bluteau, o verbete «história» confere peso à história antiga, pois o relato bíblico, sendo o mais confiável, deveria preponderar no caso de divergência com autores modernos («de todas as Histórias, a mais certa é a da Sagrada Bíblia»). Longos parágrafos são dedicados à defesa da cronologia bíblica, porém reservando autoridade para o relato profano nos fatos da história moderna (Bluteau: 1712-1721). Em Bluteau a história é sagrada e erudita, com o léxico impregnado dos topoi da tradição retórica ciceronia e refletindo perfeitamente o tipo de história que no século XVIII português se produzia em locais como a Academia Real de História (1710), a Academia Brasílica dos Esquecidos (1724-1725) e a Brasílica dos Renascidos (1759) (Kantor 2004).

2Já na primeira edição do Dicionário de Moraes Silva (1789), o verbete é enxugado do peso da história sagrada, e o historiador começa a ser claramente diferenciado do cronista (Silva 1823, 1831 e 1844). Na edição de 1831 é acrescentado um parágrafo sobre a divisão da história no qual Silva procurou esclarecer as diferenças entre História Universal (cujo exemplo é a de Bossuet) e História Geral. Com ele, a edição de 1850/53 do Dicionário de Eduardo Faria polemiza, ao dizer que Bossuet nunca havia escrito uma história universal, mas apenas «discurso sobre a história universal» (Faria, 1850-3). Afirma também que seria pouco útil ou exeqüível uma história que apresentasse um quadro único, e que, por isso, deveria ser dividida «em três grandes idades ou três histórias que se sucedem, «tendo cada uma delas seu caráter particular, que são: a história antiga, a da idade média, e a moderna, as quais se pode ajuntar uma quarta, que é a contemporânea» (Faria 1850-3, grifo nosso). O esforço de Faria indica claramente que o termo história já não se referia apenas ao livro, mas a uma realidade exterior que devia inclusive ditar sua forma de apresentação.

3O que esses dicionários, de forte presença no mundo luso-brasileiro, parecem indicar é, de um lado, um esforço de refinar as definições de palavras da língua, procurando estabilizar o campo semântico; de outro, uma crescente centralidade do conceito de história, que deixa de ser apenas uma «narração dos sucessos» para concentrar um conjunto de novas experiências sociais e categorias explicativas. Mas seria apenas a partir da década de 1870 que os dicionários (Silva 1877-78) começariam a normalizar a definição do conceito moderno de história, associando-o a outros de movimento, como evolução e progresso.

2. A laicização das narrativas (1750-1807)

4Quando D. José I iniciou seu reinado em 1750, o Império português encontrava-se em meio a dificuldades no tocante à sua inserção no cenário de competição internacional, centrado em países da Europa ocidental que, sendo potências coloniais, tinham em territórios ultramarinos espaços fundamentais de atuação. Embora as dificuldades portuguesas nesse cenário viessem pautando consciências entre os estadistas lusos desde a independência em relação à Espanha (1640), seria somente com a abertura de um novo campo de ação, possibilitado pela ascensão de D. José, que o persistente agravamento da situação geral seria enfrentado por uma ampla mobilização iniciada na alta cúpula política imperial, cujo epicentro era a metrópole, mas que desde o início definiria a centralidade da América, obedecendo à lógica de complementaridade entre metrópole e colônia em busca do «bem comum», ponto central do programa reformista.

5A diferenciação de perfis políticos e econômicos entre aquelas que agora eram as duas partes principais do Império português se processaria tendo por base dois séculos e meio de uma contraditória história de simbiose, individuação e complementaridade, na qual Portugal e América compuseram, junto com porções asiáticas e africanas, uma unidade. No caso da América, tal processo encontrara manifestações no plano da narrativa de acontecimentos passados que, não deixando de ser portugueses, eram, segundo obras a eles voltadas, singulares por conta do espaço no qual ocorreram. Um grande número de obras mesclando passagens sobre tais acontecimentos com descrições geográficas e de tipos sociais nativos foi escrita por portugueses da América e da Europa, dentre as quais algumas trazendo já em seus títulos uma palavra indicativa de seu caráter primordial: «História».

6A partir de 1750, a política reformista portuguesa se coadunará com uma ampliação dessa produção. De um lado, com a escrita de obras eruditas, o Estado contará com um espaço privilegiado de reforço da lógica de complementaridade entre metrópole e colônias; de outro, os autores de ditas obras terão renovadas as oportunidades de promoverem a obtenção, para portugueses naturais da América, de títulos nobiliárquicos «de serviço». A lógica a permear tal objetivo será a da própria configuração regional da colonização portuguesa da América, expressa no plano de identidades coletivas das quais os naturais daquela porção do Império eram portadores: a coletividade mais abrangente era a nação portuguesa, condição da qual todos compartilhavam e que, por seu turno, determinava suas condições identitárias específicas. As narrativas sobre o passado da América seguiriam a essa mesma lógica, incidindo sobre acontecimentos cuja unidade («Brasil» ou «América», por exemplo) continuaria a ser, sobretudo, uma criação intelectual de seus autores: ou uma simples somatória de espaços de pouca ou nenhuma ligação direta entre si, ou a consagração de espaços regionais como locus de narração, nobilitação e perpetuação coletiva.

7Assim, a narrativa dos acontecimentos passados encontrará terreno fértil para disseminação, configurando um processo no qual a idéia de «história» se mostrará indicadora e produtora de transformações cuja magnitude dificilmente poderia ser vislumbrada naquela metade de século. Transformações que levariam não somente ao aprofundamento das dificuldades sentidas pelo Império português, mas até mesmo à criação de condições históricas que possibilitariam, nas primeiras décadas do século seguinte, a ruptura entre Portugal e seus domínios americanos e a formação, nestes, de uma unidade política nacional e soberana não mais portuguesa, e sim brasileira.

8Na metade do século XVIII, contudo, o conceito história se apresenta, na América portuguesa, segundo as premissas básicas de seu sentido no mundo luso em geral, agregando matizes a ele conferidos pela dupla condição de singularidade e tipicidade do mundo colonial. Para essa direção aponta a obra do pernambucano Loreto Couto, Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco (1757), produzida com o intuito de louvar feitos passados de naturais daquela capitania e, com isso, valorizá-la enquanto espaço de realizações presentes. Em passagens dedicadas a criticar outras «Histórias», isto é, livros (pp. 95, 359, 379, 393), Couto desenvolve várias possibilidades de cronologia do povoamento da América a partir da criação do mundo (Couto 1981, pp. 37, 58-59). Além de corroborar o esforço de Bluteau em definir os campos da História Sagrada e da História Profana – esta subvertida àquela – por história Couto frequentemente indica narrativas ligadas a lugares territoriais mais específicos do que a «América» ou a campos diversificados do saber. Há referências a «todas as histórias» (pp. 90, 236); igualmente as «histórias de França e Espanha», as «Histórias do nosso Reino, e de muitos estrangeiros», as «nossas histórias» [isto é, do Brasil] (pp. 522, 523, 474). Quanto a campos do saber, as referências são à «história antiga, e moderna», à «história sagrada, e profana», à «história genealógica» e à «História Eclesiástica» (pp. 358, 364, 380, 379, 523).

9No entanto, as elaborações de Couto são distantes das de Bluteau em um ponto sensível. Este registra alguns sentidos que se tornarão lugares comuns ao campo semântico de história, incluindo-se aí «todo o gênero de matérias», em especial a chamada História Natural (Bluteau 1712-1721). Em língua portuguesa, essa compreensão parecerá capaz de produzir um gênero próprio muito influente, a chamada História Geral, cuja definição variara – e variaria – ao longo das décadas, mas que em meados do século XVIII tinha como meta uma descrição completa da realidade de determinado território e de uma variedade de saberes, uma somatória, portanto, das diversas «histórias» acima referidas. Em Desagravos do Brasil..., contudo, as referências a uma totalidade desse tipo não são encontradas, havendo apenas a distinção entre «História, e Filosofia Natural» (Couto 1981, pp. 522, 523). De outra parte, Bluteau e Couto convergem no que diz respeito aos atributos clássicos da história ciceroniana. Se para o primeiro «a história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade» (Bluteau 1712-1721), para o segundo a história de Pernambuco ofereceria muitos exemplos de validade de tais assertivas (Couto 1981, p. 236).

10A polissemia inerente ao conceito de história começará a sofrer mutações no último quartel do século XVIII, com as várias «histórias» começando a esboçar uma unificação em torno de um campo de experiência comum, sob a forma de algo que poderíamos chamar de «narrativas ilustradas». A este movimento corresponderá um sensível declínio no prestígio da concepção de uma história sagrada, até então subordinadora das histórias profanas, com a correspondente valorização de um sentido de articulação entre todas elas, bem como da crescente recorrência a métodos de crítica da veracidade das fontes. Por fim, começarão a surgir testemunhos de uma fundamental alteração nas sensibilidades coletivas no espaço colonial: a percepção de aceleração no tempo vivido e representado – isto é, do tempo histórico.

11Ainda na conjuntura do reformismo português, indícios dessas mutações são encontrados em dois poemas de autores naturais de Minas Gerais: O Uraguay (1769), de Basílio da Gama, e Vila Rica (1773), de Cláudio Manoel da Costa; o primeiro, narrando as guerras hispano-portuguesas contra os povos indígenas chefiados pelos jesuítas na América do Sul; o segundo, a elevação do povoado de Vila Rica à condição de vila. Em ambos, a referência à história é fundamental, merecendo o termo figurar logo nas primeiras estrofes (Teixeira 1996, p. 195; Proença Filho 1996, p. 377). Trata-se de uma história específica, de realizações individuais, mas de heróis – no primeiro caso o ministro do rei Sebastião José de Carvalho e Melo, no segundo Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, governador e capitão-general de Minas e São Paulo – e, portanto, superior, por seu caráter exemplar. A centralidade da idéia nos dois poemas parece, assim, indicativa de um processo de unificação do passado em torno de uma referência única, que não apenas mantém as «várias histórias» (Teixeira 1996, p. 232; Proença Filho 1996, pp. 383, 396) como surge por meio delas, além de implicar consenso em torno da prevalência da história profana à história sagrada.

12Essas transformações são reforçadas nas complementares ao texto poético. Nelas, há um aprofundamento e uma explicitação dos critérios de seleção e crítica dos acontecimentos passados, com didática exposição de significados de termos, fatos, personagens e intenções referidas no texto principal. Os dois autores referem-se a tradições, mas também a livros, documentos escritos, testemunhos orais deles próprios ou por eles recolhidos e, assim, indicam uma «história» una (Teixeira 1996, p. 203, nota 217; p. 222, nota 182; p. 238, nota 33; Proença Filho 1996, p. 359).

13Percebe-se como a tarefa de reformar o Império, racionalizando sua administração, integrando melhor seus territórios e reconhecendo-lhes especificidades fomentou a idéia de «história» enquanto uma categoria una e abrangente, conferindo-lhe maior centralidade no vocabulário político-social. Contudo, se tal hegemonia estava organicamente inserida nos propósitos reformistas, as contradições inerentes a essa política mostrar-se-iam capazes de fomentar um movimento que, a médio-prazo, caminharia em sentido oposto: o difícil estabelecimento dos limites integradores das diferenças entre metrópole e colônias, sobretudo das especificidades destas no conjunto, que por um lado haviam-se tornado condição do reformismo, mas por outro acirrariam essas mesmas especificidades a ponto de torná-las, em muitas situações, mais problemáticas do que de costume.

14Na América portuguesa dos últimos anos do século XVIII, indícios daquilo que, em última instância, se revelava um aprofundamento da crise geral iniciada antes – o quadrante português da crise do Antigo Regime – encontram-se, conforme afirmado há pouco, em manifestações de mudança qualitativa na relação social com o tempo. Vila Rica, por exemplo, contém ao menos duas passagens onde a narrativa se defronta com tal situação (Proença Filho 1996: pp. 430 e 432).

15As Minas Gerais, que já em 1773 sentiam os efeitos de uma nova inserção no cenário luso-americano, logo se mostrariam especialmente favoráveis à recepção e re-elaboração dos novos paradigmas políticos em circulação no mundo ocidental. Porém, em termos de consciências e comportamentos coletivos, as preocupações do reinado reformista de D. Maria I, iniciado em 1777, não se restringiriam aos habitantes das Minas, embora destes viessem os primeiros sinais de alerta. A descoberta de uma conspiração tramada em 1788 e 1789 e as sucessivas investigações revelariam, ao mesmo tempo, articulações inter-regionais, um movimento político eivado de carizes inovadores no cenário luso-americano e eloqüentes testemunhos de difusão de um novo regime de temporalidade, de uma nova concepção de futuro e, inevitavelmente, de um novo sentido de história. Uma realidade confirmada e reiterada por praticamente todos os movimentos similares doravante tramados na América portuguesa, onde a ruptura com noções tradicionais de história, se nem sempre era plenamente concebida pelas alarmadas autoridades coloniais, denunciava a dificuldade de afirmação da política reformista e o correspondente aprofundamento da crise (Jancsó 1996).

3. A formação das macro-narrativas ilustradas (1808-1831)

16Marco fundamental da crise do Antigo Regime português, a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro em 1807 abriu um período de inédita aceleração histórica no mundo luso-americano. Seus atores são unânimes em perceber o caráter memorável do acontecimento, que não apenas acentuaria a idéia de especificidade do continente americano no conjunto do Império português, como lhe conferiria uma nova dignidade histórica. Tal percepção atribuía ao presente funções de fundação mítica, capaz de orientar o olhar para o futuro em um momento carregado de incertezas. Essa tentativa de sondar o futuro a partir do presente ficou registrada pela presença recorrente de uma famosa máxima de Leibniz – «o presente está prenhe de futuro» – muito utilizada por atores políticos da época. Aos poucos se consolidava a experiência do presente como um momento de transição para um futuro que se procurava prognosticar.

17Tal o caso do Correio Brazilienze, cujo editor, Hipólito da Costa, recorreu a narrativas ilustradas para defender um tipo de emancipação da América – isto é, amadurecimento natural em relação à Europa, sem rupturas. No Correio, a versão providencialista da história está ausente, substituída pela possibilidade de obter orientação através da análise racional de leis históricas. As narrativas ilustradas aparecem constantemente adaptadas de fontes inglesas e escocesas para a história do Império português. O caráter especialmente histórico do tempo presente é constantemente sublinhado, justificando o empenho do Correio em estabelecer a verdade, pois seriam os jornais os «anais modernos», de onde os historiadores, no futuro, retirariam seus fatos (Correio I, 1808, p. 321).

18No Correio a história é orientadora moral, juíza e guardiã da posteridade, fonte para uma história filosófica capaz de revelar as vocações dos povos. Nesse ponto é central a leitura ilustrada de Tácito. No interior da macro-narrativa ilustrada são lidos os principais eventos contemporâneos, em especial a expansão napoleônica – razão de ser da transferência da Corte para o Brasil – entendida como a ameaça de um retorno a um «despotismo universal» semelhante ao dos romanos, impedindo «assim os progressos de civilização». (Correio I, 1808, p. 44). As medidas de abertura do comércio colonial adotadas por D. João foram lidas pelo Correio como o fim do «Antigo sistema colonial», isto é, o início de uma nova era (Correio I, 1808, p. 123).

19Ao lado da noção cada vez mais forte de circunstâncias históricas a exigir medidas adequadas ao tempo, pode-se encontrar a recorrência a exemplos do passado – longínquo ou recente – como alerta (Pimenta 2007). Tanto em Portugal como no Brasil essa nova percepção da história era acompanhada da necessidade de se escrever uma história geral e filosófica capaz de apontar causas e soluções para a crise. Embora em Portugal não faltassem manifestações a favor do empreendimento, será do britânico Southey a primeira história filosófica do Brasil. Southey firma uma visada ampla sobre o processo colonizador do Brasil, visto já como um império que, «descoberto por acaso, e ao acaso abandonado por muito tempo, [...] com a indústria individual e cometimentos particulares [...] tem crescido [...] tão vasto como já é, e tão poderoso como um dia virá a ser» (Southey 1810, p. 39). Pela primeira vez as teorias civilizatórias da ilustração européia eram aplicadas para a escrita de uma «história do Brasil» enquanto unidade autônoma com relação à história de Portugal.

20O programa histórico desenvolvido no interior da Academia das Ciências de Lisboa apontava para outra direção: uma restauração da cultura portuguesa que passava pela leitura dos clássicos lusitanos, nitidamente atrelada a uma persistente concepção reformista setecentista da monarquia e da nação portuguesas. Contudo, inovação e conservação deveriam estar equilibradas em um projeto político e cultural que enfrentasse os tempos modernos. Para José Bonifácio, natural da capitania de São Paulo e Secretário da Academia, o filósofo, ao restaurar a língua portuguesa deveria, «lima[r] com jeito e arte a ferrugem antiga, que o tempo deixara; e corrig[ir] o que há de anômalo ao gosto, e à razão [...] se favorece o comércio livre de novas idéias e conceitos; sujeitá-os todavia às leis precisas da polícia nacional»(Bonifácio 1813, p.141; Correio XV, 1815, p. 52).

21Em outro discurso, Bonifácio recapitularia a narrativa ilustrada desde seu momento clássico, passando pela decadência romana e as invasões germânicas. Estas, apesar da aparência catastrófica, teriam inoculado novo ânimo na história européia, permitindo mais adiante a valorização das línguas vernáculas e, com elas, dos diversos povos europeus. Trata-se de uma caracterização do tempo presente e de sua conquista de auto-confiança (Bonifácio 1815, p. 358-9). Os limites da macro-narrativa ilustrada mostram uma experiência de aceleração do tempo que apresentava perspectivas distintas entre aqueles que se viam no interior do Brasil e no «velho» Portugal. Para homens nascidos na América como Hipólito e Bonifácio, o peso de um passado decadente parecia relativizar-se frente ao espaço «virgem» do novo mundo, sendo mais fácil recomeçar do que corrigir o velho. (Bonifácio 1815, p. 360).

22Bonifácio procurou aplicar à história das Letras em Portugal princípio narrativo equivalente; no entanto, para ele o que se verifica são sucessivos períodos de decadência, sendo o mais recente aquele marcado pela invasão francesa. No governo de D. João V a criação da Academia de História era «digna de nossos agradecimentos pelos trabalhos corajosos de seus Sócios em explorar e cavar as ricas minas de nossa História, que até então estavam em grandíssima parte escondidas e desaproveitadas.» (Bonifácio 1815, p. 364). Aqui, a metáfora geológica confere à erudição história uma concretude que lhe faltava nas tradicionais referências às «páginas da história». A narrativa que orienta a compreensão de Bonifácio organiza-se em torno da existência da República da Letras enquanto força trans-histórica. Essa compreensão permitia uma visão cosmopolita da história, muito ao gosto dos intelectuais que de toda a parte do mundo português eram chamados a socorrer o Império.

23No interior da Academia de Ciências fundiam-se demandas por uma história erudita e, ao mesmo tempo, filosófica, capaz de iluminar o passado e orientar o presente através de uma narrativa elevada («cumpre esperar que virá tempo, em que tenhamos os nossos Gibbons, e os nossos Humes» – Bonifácio 1815, p. 367-8). Aos «azedos filósofos» que viam na história apenas um cortejo caótico de fatos, Bonifácio contrapunha as novas possibilidades de uma história filosófica e pragmática (Bonifácio 1815, p. 368).

24Frente às novas exigências documentais, estéticas e filosóficas, uma «História do Brasil» ainda não encontrara uma forma adequada dentro da tradição historiográfica portuguesa. A realização de Southey refletia uma evolução do gênero no mundo britânico, e não no português. Neste havia uma rica tradição cronística e, mais recente, de corografias, mas faltava ainda uma concepção de História Geral capaz de apresentar de forma orgânica o processo histórico. Exemplo dessa limitação pode ser encontrado na Corografia Brasílica, em que o país é mostrado sob a perspectiva de um patrimônio do rei a ser inventariado (Casal 1817, p.15).

25Já nas Memórias de José da Silva Lisboa (1818), a situação é outra. As teorias dos estágios civilizatórios são empregadas para defender um otimismo reformista de longo prazo que procurava colocar as bandeiras revolucionárias em uma perspectiva histórica secular: «agora acelerar-se-á a época agourada por sábios da Europa, que entre os seus habitantes indígenas (por ora embriões da espécie) surgirão também, algum dia, seus Newtons e Lockes». (Lisboa 1818, p.129). Lisboa escreveu uma história da América portuguesa nos quadros do providencialismo lusitano, sem, no entanto, comprometer suas tentativas de compreensão racional e processual da história. Na mesma linha segue o também monarquista Gonçalves dos Santos, em memórias publicadas em 1825: «foi então que a Providência [...] inspirou aos sobreditos vice-reis os planos de reforma, e melhoramento» (Santos 1981, p. 36). «Reformas» e «melhoramentos» tanto mais importantes de serem narrados quanto mais presente fazia-se, em solo americano, manifestações políticas de contestação não mais restritas ao mau governo, mas aos próprios fundamentos do poder monárquico.

26Se na Europa a Revolução Francesa marcou uma nova sensibilidade histórica, no quadro especificamente luso-americano a expansão napoleônica e seus desdobramentos se mostraram cruciais para transformações no campo conceitual. A visão de Napoleão como representante de uma vontade trans-histórica de domínio universal parece ter limitado – ainda que não excluído – a recepção do conceito moderno de revolução (Pimenta 2003), dando nova vida a formas mais conservadoras de experimentar o processo histórico, apegadas ao passado, do que é sintoma a centralidade dos conceitos de restauração e regeneração.

27Em 1821, pressionado pela eclosão da Revolução Constitucionalista do Porto (1820), Dom João VI deixou o Rio de Janeiro e o Brasil entregues ao príncipe-regente D. Pedro. A conjuntura que permitira imaginar um futuro mimetizado na idéia de um Império Luso-Brasileiro, complexificada com a criação do Reino do Brasil (1815), logo se esgotaria, bem como suas imagens históricas correspondentes. Criticando o partido dos «desejadores do governo antigo», o Revérbero Constitucional Fluminense afirmava, em agosto de 1822, que «a espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas luzes, que não pode mais conter-se na concentração dos poucos conhecimentos dos séculos passados» (Revérbero II, 1822, p.128).

28O projeto de independência do Brasil enquanto separação política total de Portugal resultou de uma rápida radicalização nas idéias articuladas de «emancipação» e «autonomia», de modo a atingirem outra, de criação de um novo Estado e de uma nova esfera de soberania. Ao seu cabo, ainda que não desaparecessem totalmente sonhos de uma reunificação, os intelectuais e homens públicos nele envolvidos se veriam diante da necessidade de darem conta de uma experiência de ruptura revolucionária – em seu sentido moderno – que sua formação anterior procurara evitar.

4. A nação como meta-narrativa historiográfica (1831 – c.1850)

29A formação do Estado nacional, amparado por renovadas elites escravistas ligadas a interesses econômicos em expansão, definiu os limites para uma atuação intelectual ligada a quadros burocráticos. Paralelamente ao avanço conservador da década de 1830, também os campos discursivos foram se transformando (Mattos 1987). A nova ordem, inaugurada com a abdicação de D. Pedro I em 1831, trazia a necessidade de construção de uma história nacional.

30Na formação desse campo de experiência da nacionalidade, a história da literatura assumiria funções de vanguarda (Araújo 2003). No entanto, para homens como Bonifácio, em 1825 ainda era difícil pensar uma literatura brasileira que não fosse, de algum modo, uma continuação da portuguesa (1825b, p.137). Não se fala de duas histórias literárias separadas, e não há ainda uma história do Brasil escrita sob a ótica nacional brasileira. Sensível a tal demanda, o francês Denis lançaria um programa de uma literatura independente para uma nação independente: seu Resumo Literário foi um dos primeiros documentos que relacionaram independência política, história e nacionalidade brasileiras (Denis 1826, p. 36).

31Para os egressos do processo de Independência, a situação política do Brasil exigia a dedicação a novas tarefas: redescobrir o passado (inclusive literário), revisar a história colonial, dedicar-se às letras que a dominação metropolitana havia bloqueado e que as lutas políticas haviam sufocado. Quando Gonçalves de Magalhães publicou o texto considerado o manifesto do romantismo literário brasileiro, o conceito de literatura deixava de se referir apenas ao conjunto de obras organizadas ao longo de uma grade de gêneros e passava a ser a representação de todo um campo de experiência: «eu [literatura] sou o espírito desse povo, e uma sombra viva do que ele foi» (Niteroy I, 1836). Transformada em processo, a literatura assumia o papel de totalidade, como dimensão capaz de produzir e preservar a identidade de uma comunidade, por meio da qual a história deixava de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de desenvolvimento dessa identidade.

32Na revista Niteroy, pela primeira vez reflexões históricas e estéticas unificam-se em torno desta nova tarefa. A escrita da história deveria apresentar qualidades dramáticas e poetológicas sem abdicar de seu compromisso com a verdade factual, pois «toda a história, como todo o drama, supõe lugar da cena, atores, paixões, um fato progressivo, que se desenvolve, que tem sua razão, como tem uma causa, e um fim. Sem estas condições nem há história, nem drama» (Niteroy I, 1836, p. 142). Mas os projetos de uma história da literatura e de uma poesia românticas ainda não correspondem a uma escrita da história nacional.

33Em 1836 John Armitage publicou sua History of Brazil (versão brasileira em 1837), peça de luta política liberal na qual a imagem de um Imperador belicoso e passional – D. Pedro I – é contraposto à sociedade civil comercial, aplicando o modelo das narrativas ilustradas para explicar os fatos de 1831. No fundo, é uma história da formação da sociedade civil, uma história que «já não pode ser considerada como mera resenha das tiranias e carnificinas, mas antes como o arquivo das experiências tendentes a mostrar a maneira de assegurar aos governados as vantagens do governo» (Armitage 1837, p. 25).

34Essa crescente politização da escrita da história é uma das motivações para a criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o qual abriu-se o espaço institucional no qual foram pensadas as bases de uma história nacional a partir de um campo de experiência moderno (Guimarães 1988; Guimarães 1995). Tal projeto procuraria integrar os avanços da historiografia com o objetivo de produzir uma história nacional brasileira, rompendo assim com vários dogmas do modelo ilustrado (como o seu compromisso com a «sociedade civil»). Para Cunha Barboza o Brasil já poderia iniciar a escrita de sua história, pois era o único país da América a possuir uma «literatura nacional» (RIHGB I, 1839, p. 360). Aqui fica claro que a própria história, enquanto processo real, deveria «produzir as condições para a sua escrita». O princípio organizador já não dependeria apenas das hipóteses racionais, começando a ser procurado na própria realidade histórica. Também a experiência do tempo histórico afastava-se das concepções cíclicas e da idéia de uma natureza humana limitada (RIHGB I, 1839, p. 78).

35A meta-história nacional se consolidaria na década de 1840. Barboza lembrava da censura e da herança da fragmentação que no período colonial teriam impedido a visão total que a história requer: «estes fatos liam-se derramados em vários escritos, ou conservavam-se amortecidos na memória dos homens. Relatados diversamente por escritores, ou nacionais ou estrangeiros, não podiam, até o feliz momento de proclamar-se a nossa Independência, fundar base sólida a nossa nacionalidade» (RIHGB V, suplemento, p. 5). O elemento de novidade nessa reflexão é a elevação da Independência a fio condutor da história. Este evento não apenas teria produzido as condições da escrita, mas seria ele mesmo o grande objeto da narrativa. A história do Brasil deveria ser, desde sua origem, a história de seu processo de emancipação. Como em toda a filosofia da história, o fim estava no começo.

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Bibliografia

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araujo, «História»Ler História, 55 | 2008, 83-96.

Referência eletrónica

João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araujo, «História»Ler História [Online], 55 | 2008, posto online no dia 16 outubro 2016, consultado no dia 19 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2231; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2231

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Autores

João Paulo G. Pimenta

Universidade Federal de Ouro Preto – Brasil

Valdei Lopes de Araujo

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