1Se a análise de um conceito consiste em distinguir «as diversas significações que estão vivas na língua, mas que obtêm uma determinação mais restrita em cada contexto do discurso» (Gadamer, 2002, 248), compreender o significado do termo constituição, no mundo luso-brasileiro da segunda metade do século XVIII em diante, pressupõe um recuo temporal até a Restauração de 1640, momento de refundação da monarquia portuguesa (cf. Buescu, 1991, e Marques, 1965). Rompido o pacto estabelecido nas Cortes de Tomar de 1580 com Felipe II de Espanha, coube à nação portuguesa em 1640 o direito de aclamar um novo soberano, ato insurrecional legitimado pela reunião em Cortes, nas quais o duque de Bragança viu-se aclamado como D. João IV (1640-1656, cf. França, 1997, e Torgal, 1982). Realização máxima de uma reflexão sobre o poder e a sociedade com profundas raízes nos séculos anteriores (Boucheron, 2005), a que não eram estranhas certas vertentes da segunda escolástica dos jesuítas, que apoiaram o movimento, a Restauração de 1640 surge, portanto, associada à linguagem de um constitucionalismo antigo.
2Ao longo do século seguinte, tal concepção não desapareceu, mas passou a sofrer a concorrência de outra. Numa Europa de monarquias compósitas (Elliot, 1992), de que o Sacro Império Romano de Nação Germânica constituía o modelo por excelência (Schrader, 1998), após a superação das guerras religiosas a partir da Paz de Vestfália (1648), a sobrevivência no tabuleiro de poder europeu tornou-se cada vez mais dependente de um certo reforço do poder do rei e de uma certa uniformização do território, a partir do centro, às custas das liberdades de cada corpo, na periferia. Ao mesmo tempo, à antiga idéia de pacto, substituíam-se agora os imprescritíveis direitos do soberano, até mesmo diante da Igreja, sob a forma de uma razão de estado (Meinecke, 1973), vazada em argumentos e atitudes bem distantes dos princípios cristãos. Esta foi a linguagem do absolutismo, que, ao reservar para o soberano o domínio da política, relegou as questões morais para o foro íntimo do indivíduo, estabelecendo uma divisão entre homem e súdito (Koselleck, 1999, 26-39, em especial).
3No caso português, a crise constitucional que conduziu D. Pedro II ao trono em 1683, a reunião das últimas Cortes em 1697, o esplendor barroco do reinado de D. João V (1706-1750), graças ao ouro do Brasil, e, mais que tudo, a longa governação (1750-1777), de Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal, com a publicação da Dedução Cronológica e Analítica (Silva, 1767), marcaram as principais etapas da assimilação dessa linguagem absolutista. Não foram capazes, contudo, de sufocar a tradição do antigo constitucionalismo, embalsamado nas lembranças de 1640.
4Sob esse aspecto, a melhor evidência provém do embate em torno da proposta de um novo código de leis, travada no emblemático ano de 1789, entre o jurista Pascoal de Melo Freire e o canonista Antônio Ribeiro dos Santos. Este, com certeza, não podia ser acusado de «monarcômaco» e de «propagador de doutrinas populares, republicanas e sediciosas contra os príncipes», como fez o seu adversário. Na realidade, a evolução do pensamento político de Ribeiro dos Santos mostra que, se ele afastou-se crescentemente da órbita pombalina de um «absolutismo racionalista», cujos fundamentos fora buscar em Grócio e Pufendorf, por intermédio de Heinecke, o fez em direção a uma concepção tradicionalista, escorada na história constitucional do reino, em busca de um novo «ordenamento político e jurídico pela via das Cortes tradicionais.» Segundo ele, a «primeira, principal e mais importante obrigação de um ministro, que o príncipe põe à testa do governo, é manter a primeira lei constitucional e fundamental de toda a sociedade civil, isto é, a da segurança pessoal e real dos cidadãos, que foi o porquê os homens se ajuntaram em sociedade». (Apud Pereira, 1983, 244-250).
5Ao contrário, para Melo Freire, o «reino não veio ao rei por eleição e vontade dos povos, mas por conquista e sucessão». Nesse sentido, «o pacto social é um ente suposto, que só existe na cabeça e imaginação alambicada de alguns filósofos», não havendo, entre o súdito e o monarca, senão a «eventual ‘humilde e modesta representação’ do primeiro ao segundo.» E acrescentava: «A História nos ensina, e agora experimenta a França, quão funestíssima foi em todos os tempos a liberdade de pensar e de escrever, assim a respeito das matérias da religião, como do Estado», idéias que espalhadas «pela gente do povo» são capazes «por si só [...] de causar em poucos anos revolução, assim na religião, como na constituição da cidade.» (Apud Pereira, 1983, 291-300; cf. também Cunha, 2000; Neves, 2001; Hespanha, 2004, 34-43; Mesquita, 2006, 26-38).
6Essas duas concepções permaneceram ativas e concorrentes praticamente ao longo de toda a regência do futuro D. João VI (1816-1826), iniciada em 1792, após o colapso mental de D. Maria I. Enquanto indivíduos como Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812, cf. Silva, 2002-6) e J. J. de Azeredo Coutinho (1742-1821, cf. Holanda, 1966) davam continuidade ao impulso pombalino com propostas de reformas, setores da nobreza portuguesa e de outros segmentos manifestavam o receio do governo a «mero arbítrio» sobre o povo português, que trazia de volta o fantasma do despotismo ministerial (Alorna, 1803). Num período de turbulência internacional, o resultado foi uma situação de grande instabilidade política no reino, para a qual a instalação da Corte na América, em 1808, trouxe novos motivos de descontentamento. Durante as invasões francesas de 1807-1811, D. João chegou a ser considerado traidor, sendo tanto solicitada a sua deposição, para que assumisse o príncipe D. Pedro, quanto a concessão da coroa a um nobre francês, designado por Napoleão (Neves, 2002). Mais cedo, nos penhascos das Minas Gerais, o cônego Vieira da Silva revelava, em seus depoimentos à devassa da chamada Inconfidência mineira (1789), os ecos que trazia das concepções constitucionalistas que assimilara da leitura do conde de Ericeira (1632-1690); enquanto o ouvidor Tomás Antônio Gonzaga, igualmente implicado no movimento, ostentava em sua bagagem intelectual um Tratado de direito natural de inspiração pombalina e absolutista (Villalta, 1999; Gomes, 2004).
7Em contraste, com a riqueza que se escondia, assim, durante esse longo período, na idéia de constituição enquanto «a unidade política de um povo» (Schmitt, 2006, 29), a pobre tradição lexicográfica luso-brasileira pouco revela. No início do século XVIII, a palavra significava «um estatuto, uma regra» (Bluteau, 1712, 2, 485), na perspectiva de um ordenamento político, pautado nas leis fundamentais do reino, resultado das disposições legais e da prática do direito consuetudinário, corporificadas na «antiga constituição», que deviam ser respeitadas pelo soberano. Em 1789, o dicionarista Antônio de Morais Silva, ao reformular o vocabulário do padre Bluteau (1712-1727), não se afastou da visão de «estatuto, lei, regra civil ou eclesiástica», embora acrescentasse a de «compleição do corpo», que, além dos aspectos médicos, remetia para a concepção tradicional de uma sociedade corporativa, típica do Antigo Regime, mantendo tais significados nas edições seguintes, até sua morte, em 1824 (Silva, 1813 e 1823).
8Tais indicações sugerem, no entanto, com toda a probabilidade, uma outra aplicação do vocábulo, em geral no plural, de uso mais largo e difundido na época. Constituições era termo corrente nos meios eclesiásticos para designar o conjunto de leis, preceitos e disposições que regulavam uma instituição como seu estatuto orgânico. Como exemplo, sirvam as várias Constituições diocesanas e, na América portuguesa, as célebres Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia, aprovadas em 1707 por monsenhor Monteiro da Vide, em um sínodo em Salvador, e que permaneceram a principal legislação eclesiástica do país até meados do século XIX (Costa, 1963; Soares, 1963; Paiva, 2000; Neves, 2000; Hespanha, 2004, 68).
9Em fins do século XVIII ou princípios do XIX, com as revoluções atlânticas – a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa – a essas acepções, veio juntar-se um outro sentido, que tendeu a se impor como o do constitucionalismo moderno. Constituição passou então a significar a garantia de direitos e deveres, estabelecidos por um novo pacto social, elaborado entre o rei e o indivíduo, símbolo da política moderna, na perspectiva de François-Xavier Guerra (2003, 53-60). A constituição assumiu, assim, a forma de «um sistema fechado de normas» que designa uma unidade que não existe concretamente, mas apenas de maneira ideal (Schmitt, 2006, 29).
10Não obstante, se «os conceitos são criações de nosso espírito, com cuja ajuda compreendemos o mundo que sai ao nosso encontro na experiência» [Gadamer, 2002, 128], essa nova concepção de constituição somente ingressou no mundo luso-brasileiro após a eclosão do movimento do Porto de 1820, que repercutiu no Brasil, nos inícios de 1821. A espantosa quantidade de periódicos, folhetos políticos e panfletos postos em circulação nesse momento possibilitou novas discussões e inaugurou práticas políticas até então desconhecidas no Brasil. Mais do que obras de cunho teórico, foram esses escritos que acabaram por introduzir «palavras da moda», como constituição, com novos significados, que anunciavam princípios, definiam direitos e deveres do cidadão. Somente a constituição, enquanto instrumento de um ideário político, era vista como podendo assegurar a possibilidade de triunfo das práticas liberais (Mesquita, 2006, 53-7). Símbolo da Regeneração vintista iniciada em 1820, a palavra exprimia o anseio político de todos os membros das elites política e intelectual, tanto do Brasil, quanto de Portugal. «Cortes e Constituição» foi o «grito dos portugueses», que ecoou por todo mundo luso e retumbou em terras brasileiras (Instruções para intelligencia, 1822, 1). E essa Constituição, a lei fundamental de um povo, devia ser elaborada por uma Assembléia composta pelos representantes da nação – no caso, em Portugal, as Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821 e, no Brasil, a Assembléia Legislativa e Constituinte de 1823.
11A essa altura, o conceito de constituição inspirava-se em pelo menos quatro vertentes significativas: a de um constitucionalismo histórico; a de Montesquieu; a de Benjamin Constant; e a de uma versão democrática. A idéia da «excelente Constituição antiga de Portugal», segundo expressão de Hipólito da Costa (Correio Braziliense, 1809, n.º 9), foi retomada a partir das discussões do último quartel do século XVIII, definindo-se constituição enquanto um conjunto de instituições, criadas por direito comum no passado, mas que, corrompidas pelo tempo, exigiam reformas que as conduzissem de volta à antiga ordem, como os astros realizavam suas revoluções nas órbitas que lhes eram próprias. Defensor dessa abordagem em 1821, por exemplo, foi o ouvidor geral do Rio Grande do Sul, José Antônio de Miranda. Embora admitindo a construção de um novo pacto social como «o apoio da autoridade pública, o penhor da felicidade, a prosperidade geral e o paládio da liberdade de todos os Cidadãos», que se traduzisse em uma constituição, não deixava de retomar a idéia do «antigo pacto social e aliança», estabelecido pelo fundador da monarquia com o povo português e novamente ratificado por D. João VI e seu filho D. Pedro, no dia 26 de Fevereiro de 1821, quando juraram a futura Constituição portuguesa (Miranda, 1821, 43 e 88). Da mesma forma, nas discussões da Assembléia Constituinte de 1823, José Joaquim Carneiro de Campos, um dos mais distintos juristas da época e um dos redatores da Constituição Brasileira de 1824, defendia a idéia de que os poderes que os deputados receberam para elaborar a Constituição não eram «absolutos e ilimitados», mas «restritos à forma de governo que já temos e que nos deve servir de base para a Constituição», uma vez que tais poderes já estavam «distribuídos e depositados pela nação em outras vias, muito tempo antes da nossa reunião e instalação» (Brasil, 1823, 3, 474-5). Pautada nas idéias de Montesquieu, ou seja, no princípio da separação dos poderes, mas também influenciada pela perspectiva de um constitucionalismo histórico nos moldes de Edmund Burke, encontrava-se a visão de José da Silva Lisboa (1756-1835), futuro visconde de Cairu, redator de inúmeros folhetos e periódicos da época. Concebia a constituição como «a ata das leis fundamentais do Estado, em que se declara o sistema geral do governo sobre a divisão e harmonia dos três poderes» (Lisboa, 1822, VIII, 1) e em que também se definiam «os direitos dos cidadãos e regulamentos dos deputados do povo para o corpo legislativo» (Lisboa, 1822, XI, 1). Aproximava-se, assim, muito mais da idéia de uma carta constitucional, como aquela que o Conde de Palmela propusera a D. João em Dezembro de 1820 (Mesquita, 2006, 48-9). Algo semelhante pregava um folheto anônimo intitulado Diálogo instrutivo em que se explicam os fundamentos de uma Constituição. Este a considerava uma lei fundamental, que regulava a forma pela qual uma nação devia ser governada e estabelecia «máximas gerais, a que todos deviam satisfazer» (1821, 3).
12A terceira vertente se apropriava das propostas de Benjamin Constant e defendia a teoria das garantias individuais, em oposição à visão de Rousseau e da interpretação jacobina de uma vontade geral (Cf. Wehling, 1994, 11-13). Encontra-se explicitamente no primeiro folheto político anunciado pela Gazeta do Rio de Janeiro (1821), a Constituição explicada, publicado sem autoria, cujo objetivo era esclarecer os leitores, em especial das camadas mais baixas, quanto ao conceito de constituição e quanto ao de um governo organizado sobre bases constitucionais. Mencionando Benjamin Constant, logo no início, como um dos esteios de seu pensamento, afirmava que «a Constituição não era um ato de hostilidade, mas um ato de união que determina as relações recíprocas do monarca e do povo, sancionando os meios de se defenderem e de se [apoiarem] e de se felicitarem mutuamente» (1821, 1; cf. também Hespanha, 2004, 161-75).
13Finalmente, a vertente democrática. Uma vez que, no Rio de Janeiro, a palavra constituição, como «tantas outras, se tem tornado quase ininteligível, à força de acepções de que a maior parte são absolutamente diferentes, e algumas até contraditórias», os redatores do Revérbero Constitucional Fluminense – Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo – decidiram determinar o sentido que devia ser dado à palavra. Para eles, a constituição de um povo não era uma «lei, nem um código de leis», porque «o estabelecimento de uma lei ou de um código de leis supõe necessariamente alguma coisa anterior». Assim, era necessário que o povo existisse e estivesse constituído, antes de se organizar; que os homens já tivessem se tornado «cidadãos por um pacto antes de se fazerem súditos pelo estabelecimento da lei». Era necessário que uma convenção permanente e imutável assegurasse «a todos os membros do corpo político o exercício de seus direitos essenciais» (n.º 4, 18 de Junho de 1822). Conscientes da falta de unidade do povo brasileiro, os redatores temiam a imposição de uma lei geral que não resultasse do próprio povo. Logo, a constituição devia garantir uma lei justa, porém, flexível, capaz de impedir a supremacia do poder do monarca sobre os demais. De maneira ousada para o meio em que viviam, incluíam, por conseguinte, em suas reflexões alguns princípios de teor democrático.
14Em Pernambuco, a mesma linha de pensamento estava presente em Frei Caneca, que definia a constituição, em 1824, como «a ata do pacto social que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viver em reunião ou sociedade», de modo a esclarecer as relações em que ficavam os que governam e os governados. Tais relações nada mais eram que os direitos e deveres que deviam defender e sustentar «a vida dos cidadãos, a sua liberdade e a sua propriedade» (2001, 559-60).
15Mais do que algum princípio democrático abstrato, no entanto, tais formulações ecoam, talvez, aquelas que John Locke (1632-1704) publicou no contexto da crise inglesa de 1688 / 1689. Conhecido no mundo luso-brasileiro pelo menos desde 1734, quando foi citado por Martinho de Pina e de Proença, em Apontamentos para a educação de um menino nobre, e tendo posteriormente servido, em 1746, de base para muitas das reflexões de Luís Antônio Vernei em o Verdadeiro método de estudar (Salgado Jr, 1950-2), não é difícil supor que também algo de os Dois tratados sobre o governo do autor inglês tenha alcançado a elite intelectual no Brasil da Independência. É verdade que, na época, os «grandes autores foram mal lidos, mal entendidos, mal citados, truncados, falsificados» (Hespanha, 2004, 14). Apesar disso, não deixa de haver uma forte semelhança entre a constituição de que falam Ledo, Januário e Caneca e a concepção de Locke de que somente «ao povo é facultado designar a forma da sociedade política» (Locke, 2005, 513), através daquele acordo ou pacto que, de maneira pouco definida, distingue a condição natural da condição política e que «torna possível governar por consentimento» (Laslett, 2005, 163).
16Além disso, embora sem chegar a constituir vertentes em termos de concepção, importa registrar dois outros tipos de escritos característicos desse momento. Em primeiro lugar, os satíricos. É o caso do Dicionário Corcundativo, que, assumindo o ponto de vista dos corcundas, ou anti-constitucionais, definia a constituição como um «plano de desordem, inventado pelo espírito de seita na sua efervescência, e que o povo, não sei porque aplaude». Achava-a desprezível por ter «começado debaixo para cima», pois somente «os reis e seus ministros têm o poder, recebido do Céu, de mudar o governo, a que os outros homens devem obedecer cegamente, como um rebanho ao seu pastor» (Lima, 1821, 5-6). Ao seu lado, porém, circulavam escritos intitulados «orações constitucionais», que sugerem o pequeno grau de secularização e de amadurecimento político da maior parte da população. Sirva de exemplo, este «Padre Nosso»: «Constituição portuguesa, que estás em nossos corações, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu regime constitucional [...] não nos deixes cair em tentação dos velhos abusos, mas livranos destes males, assim como do despotismo ministerial, ou anarquia popular. Amém» (Regeneração constitucional, 1821, 20).
17Nesses escritos de circunstâncias, a palavra constituição aparece freqüentemente em expressões como constituição política, constituição da monarquia, constituição geral da nação e constituição brasílica. O procedimento de recorrer a essas qualificações parece indicar que o termo ainda não estava inteiramente assimilado, em sua acepção política, como o documento fundamental, o único fiador das garantias da vida política e social. Não menos abundante mostrava-se a adjetivação positiva que a Constituição merecia: santa, sagrada, liberal, sábia, pacífica, feliz (Neves, 2003, 151). O jornal A Malagueta afirmava que o Brasil tinha jurado «cooperar em tudo e por tudo para a grande obra da santa Constituição!» (n.° 1, Dezembro de 1821). Outros escritos davam vivas à religião e à feliz Constituição. No primeiro aniversário da Regeneração política, a oração de ação de graças proferida pelo cônego da Real Capela Francisco da Mãe dos Homens Carvalho, no Rio de Janeiro, sintetizou o poder mágico que a idéia de constituição parecia assumir nesse momento: «Constituição é a defesa do Estado, o apoio do trono, a escala da grandeza, a melhor herança do povo, o nível da perfeita igualdade cívica. Constituição é o código universal da sociedade, a regra infalível da justiça, o Evangelho político da Nação, o compêndio de todas as obrigações, o manual cotidiano do cidadão.» (1821, 18). Em Portugal, a sensibilidade não se mostrava diversa: «Vem, pois, ó Santa Constituição, abençoada filha do Céu, único e verdadeiro remédio para o Reino de Portugal, Brasil e Algarves [...], desce do Céu, onde resides, vem fazer as delícias e a felicidade duma Nação, que teme a Deus, e que é objeto da sua singular predileção.» (Soares, 1963, 674) Paralelamente, além do caso de O Constitucional (1822), o adjetivo, ao identificar uma opção política, associou-se ao título de inúmeros periódicos: Diário Constitucional (1822), Compilador Constitucional (1822), A Verdade Constitucional (1822), O Justiceiro Constitucional (1835), A Trombeta Constitucional (1840), entre outros.
18Todas essas acepções do conceito de constituição e suas conotações, que as discussões da época trouxeram à luz, estiveram presentes, de algum modo, na elaboração da própria primeira Constituição brasileira. Após a dissolução da Assembléia Constituinte, em novembro de 1823, o imperador Pedro I justificou a medida de força por encontrar-se a pátria em perigo e, ao mesmo tempo, prometeu uma carta «duplicadamente mais liberal». Elaborada pelo Conselho de Estado, presidido pelo próprio imperador e formado por seis ministros e mais quatro membros, todos brasileiros natos, a Constituição foi então outorgada em 25 de março de 1824 (Neves, 2003, 413).
19A Carta de 1824 não diferia muito da proposta discutida pelos constituintes na Assembléia, antes de sua dissolução. Continha, no entanto, uma diferença fundamental: não emanava da representação da nação, mas era concedida pela magnanimidade do soberano, o que a aproximava da Carta Constitucional francesa de Luís XVIII (França, 1814). Apesar disso, embora não tivesse sido submetida à aprovação de uma Assembléia nacional, havia pelo menos alcançado a aprovação das Câmaras Municipais, sendo considerada até mesmo como «assaz liberal», por alguns livros de História do Brasil, escritos em meados do século XIX, como os de José Inácio de Abreu e Lima (1845) e de Caetano Lopes de Moura (1860). No entanto, outras influências revelaram-se de maior peso, como a Constituição francesa de 1791 (França, 1791) e a espanhola de 1812 (Espanha, 1812). De modo semelhante a esta última, a brasileira não começava declarando direitos (Portillo Valdés, 2002, 189), como ficara estabelecido pelas revoluções do final do século XVIII, mas sim definindo o Império, com seu território, governo, dinastia e cidadãos. Em seu cerne, admitia um governo monárquico hereditário, constitucional e representativo (Art. 3.º), em que vigorava a separação dos poderes por força de uma nítida influência de Montesquieu, embora incluísse um quarto – o poder moderador, «chave mestra de toda a organização política», que, em teoria, inspirava-se em Benjamin Constant. Apesar de não fazer menção explícita à questão da soberania, ficava claro, através do Art. 11.º, que esta era partilhada entre o soberano e a Assembléia Geral, o que indicava seu caráter moderado. Na perspectiva do liberalismo francês, encontrava-se ainda, no Art. 179.º, um esboço de garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos, com base na liberdade, na segurança individual e na propriedade. Da mesma forma, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 ecoava no Art. 16.º, em que se atribuía à Constituição a garantia dos direitos civis, e no Art. 9.º, em que a harmonia dos poderes políticos aparecia como o meio mais seguro para fazer efetivas as garantias que a Constituição oferecia. Apesar disso, os cidadãos distinguiam-se, do ponto de vista dos direitos políticos, por meio da adoção de um critério censitário para os eleitores, o que a diferenciava tanto da Constituição espanhola de Cádiz (Espanha, 1812), quanto da primeira Constituição portuguesa (Portugal, 1822). Por outro lado, se a Constituição abolia os privilégios, mantinha intocada a questão da escravidão, embora a ela fizesse menções indiretas ao incluir os ingênuos ou libertos nascidos no Brasil como cidadãos, excluindo-os, porém, da definição de eleitores. Como sinal das permanências do Antigo Regime e elemento fundamental de identidade, a religião católica, como também estabelecia a Constituição espanhola, continuava sendo a religião do Império, ainda que, diferentemente, se permitisse o exercício privado de outras religiões (Campanhole & Campanhole, 1976, 523-573).
20Pouco dessa variedade encontrou expressão nos dicionários da época. Na 5.ª edição, revista e ampliada, daquele de Morais Silva, em 1844, introduziu-se no verbete constituição a idéia de «lei que determina a forma de governo do reino, ou República; os direitos e deveres, e relações dos súditos, e regentes, ou governantes», fazendo uma alusão à Constituição da Inglaterra (1, 499). Na edição seguinte, de 1858, outra mudança no conceito inclui o sentido de um «corpo de leis fundamentais que constituem o governo de um povo» (1, 531). Somente na edição de 1878, porém, faz-se menção à «carta fundamental da nação portuguesa outorgada por D. Pedro IV» (1, 437-8). No trabalho de Luiz Maria da Silva Pinto, Diccionário da Lingua Brasileira, o termo aparece registrado de modo semelhante ao conceito antigo, existindo apenas um curioso detalhe em relação ao termo constitucional, que, para o autor, era o que «nasce do vício da constituição». Outros dicionários que circularam no Brasil do oitocentos, elaborados por portugueses, como os de Francisco Solano Constâncio e de Eduardo de Faria, anotaram mais cedo o sentido moderno de constituição: o primeiro, na edição de 1836, refere-se à Constituição dos Estados Unidos, da França, do Brasil e de Portugal, mas não indica qualquer distinção entre carta constitucional – outorgada – e constituição promulgada. Já Eduardo de Faria, em sua segunda edição, datada de 1850-1853, acrescentava que o termo designava o código político de um Estado, citando como exemplo a Constituição de 1822, promulgada pelas Cortes de Lisboa, e que diferenciava da Carta Constitucional da monarquia portuguesa, decretada em 1826. Em nenhum exemplo, encontra-se, contudo, uma definição mais afim ao pensamento liberal, como aquela registrada no Diccionario nacional o gran diccionario clásico de la lengua española (1846-1847) de Ramón Joaquín Domínguez; ou seja, «teoria e prática do governo das nações; reunião e força reguladora de suas leis fundamentais vigentes: a natureza, a essência, o todo de um estado».
21Apesar das críticas dos políticos mais radicais, tanto pela forma como foi imposta, quanto por seu caráter liberal moderado e pela centralização administrativa que pressupunha, a Constituição outorgada de 1824 acabou considerada como código sagrado da nação brasileira. Com pequenas alterações – o Ato Adicional de 1834 e mudanças no processo eleitoral – permaneceu em vigor durante todo o período imperial e somente foi substituída pela primeira Constituição republicana, em 1891.
22Ao longo desse período, o debate a seu respeito, que envolveu juristas, deputados e senadores, não questionou a própria Constituição, mas, sim, o seu caráter fortemente unitário e a prática, que propiciava, de respaldar medidas autoritárias. Não obstante, foi sobretudo a questão do unitarismo e do federalismo que colocou, diversas vezes, em lados opostos conservadores e liberais, desde Frei Caneca e a Confederação do Equador de 1824 (Mello, 2004). No outro extremo, ainda em 1870, Tavares Bastos, natural da província nordestina de Alagoas, manifestava-se a favor da «escola revolucionária de 1831», que procurara descentralizar o governo e confederar as províncias através do Ato Adicional; criticava a política da ordem e moderação implementada após 1840; e advertia os possíveis leitores de sua obra A Província de que «os que desejam a eternidade para as constituições e o progresso lento dos povos, os que são indulgentes, moderados, conciliadores, escusam folhear esse livro» (1975, 9). Em compensação, apenas três anos antes, sob a invocação da Santíssima Trindade, o desembargador Joaquim Rodrigues de Sousa publicava em São Luís do Maranhão uma obra intitulada Análise e Comentário da Constituição Política do Império do Brasil, em que criticava veementemente o Ato Adicional de 1834 e ainda continuava a «definir constituição política, ou do corpo político, pelos mesmos termos por que define-se contituição humana, ou do corpo humano.» (1867, XVI-XXI, XXV-XXVI e 1-3). De maneira semelhante, mas com a antecedência de uma década, Pimenta Bueno, o autor do mais importante trabalho sobre a Constituição do Império, intitulado Direito Público e Análise da Constituição do Império, continuava a defender o modelo aprovado em 1824. Segundo ele, «Nosso direito público é a sábia constituição que rege o Império; cada um de seus belos artigos é um complexo resumido dos mais luminosos princípios de direito público filosófico ou racional». Continuava, no entanto, em 1857, a relacionar a Constituição com a religião: «Graças à Providência, temos uma Constituição, que já é uma das mais antigas do mundo, sábia, liberal e protetora. [...] Ela será sempre, como já tem sido, nossa arca de aliança em nossas tempestades e perigos; é e será sempre a base firme de nosso poder» (1958, IV e 560).
23Como resultado, a tomar-se a concepção de Marcel Gauchet, de que, mais do que um conjunto de crenças, a religião «é primordialmente uma organização do mundo humano-social, que assume a forma de uma ordem que mantém os homens juntos por força de uma ordem exterior, anterior e superior à vontade deles», encontra-se talvez, após a incursão acima, uma explicação plausível para a dificuldade demonstrada por portugueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse «poder dos homens tomando o lugar da ordem definida pelos deuses ou desejada por Deus». Afinal, se «a democracia é a expressão por excelência da saída da religião», o que a história do conceito de constituição no mundo luso-brasileiro evidencia, considerada em sua longa duração, de 1640 ou 1750 a 1850 ou pouco depois, é justamente a falta de «ruptura com [esse] modo de estruturação religiosa a que esteve sujeito o conjunto das sociedades humanas anteriores à nossa.» Ou seja, a prevalência da heteronomia do universo tradicional sobre a autonomia do mundo moderno (Gauchet, 2004, 183).