1«Na língua portuguesa, bem como na espanhola, a palavra cidadão tem uma significação mui particular, ela designava o morador ou vizinho de uma cidade. Sabe-se que pelo direito feudal as povoações, segundo que eram cidades, vilas ou lugares, tinham assim diferentes direitos, gozavam certos privilégios, liberdades, isenções (...) [O cidadão], por isso, gozava diferentes direitos que não se entendiam a todos os membros da sociedade; (...) isto porém acabou» (DAC, 24/09/1823, 106). Este discurso de Pedro Araújo Lima, na Assembléia Constituinte de 1823, faz parte do debate sobre o artigo do projeto de constituição que definia quem eram os brasileiros. O artigo foi objeto de uma discussão acalorada, pois no momento em que o deputado faz o seu discurso, não só a palavra cidadão assumia um novo significado, mas a própria idéia de brasileiro era nova. Entretanto, na edição de 1823 do Diccionario da lingua portugueza, as mudanças apontadas por Araújo Lima permaneciam ignoradas. O cidadão era «o homem que goza dos direitos de alguma cidade, das isenções, e privilégios, que se contêm no seu foral, posturas», ou «o vizinho de alguma cidade», ou, ainda, o «homem bom». No Novo Diccionario Critico e Etymologico da Lingua Portugueza, de 1836, cidadão é alguém «apto para os cargos municipais». Todas estas definições pertencem a um quadro de referência de fundo hierárquico, que, aos olhos de Araújo Lima, havia ficado para trás. Não por acaso, na seqüência da sua fala, ele insistia que «deve ser extensa esta denominação [de cidadão] a todos os indivíduos, porque seria odioso que conservássemos uma diferença, que traz sua origem de tempos tão bárbaros» (DAC, 24/09/1823, 106).
2Entre o final do período colonial e as décadas iniciais do Brasil independente, o vocábulo cidadão sofreu transformações no seu significado cujo resultado foi o estabelecimento de um conceito novo. Sob alguns aspectos, estas transformações são tributárias dos rumos assumidos pelo conceito de cidadão na história européia. Isto implicou a passagem de uma compreensão hierárquica da cidadania para um entendimento igualitário. Nesse sentido, a história do conceito de cidadão no Brasil entre 1750 e 1850 acompanha e atualiza a sua trajetória no mundo europeu. No entanto, a separação que o constituinte estabelece entre dois tempos claramente distintos precisa ser matizada. Para que a natureza das transformações mencionadas possa ser apreendida na sua complexidade é preciso associá-la a dois outros aspectos sem os quais o quadro permaneceria incompleto e simplificado. Referimo-nos ao papel que o conceito irá desempenhar na definição das fronteiras de pertencimento à coletividade em uma sociedade marcada, por um lado, pela sua condição colonial e, por outro, pela permanência de relações escravistas.
3Quando Araújo Lima fazia o seu discurso na Constituinte, ele punha em evidência uma associação muito comum no Antigo Regime português. A condição de cidadão e a de vizinho não raro se confundiam. Em ambos os casos, estava em jogo um estatuto jurídico-político que definia o pertencimento de um indivíduo à comunidade local em termos de privilégios, deveres, isenções, costumes. Portanto, ainda que nos diferentes dicionários o cidadão e o vizinho apareçam vinculados à habitação mais ou menos permanente em um lugar, esta é apenas uma parte da definição. A vizinhança, como pode se ler nas Ordenações de D. Manuel (1514-1521), estava associada ao gozo de «privilégios e liberdades de vizinho, quanto a ser isento de pagar os direitos reais, de que, por bem de alguns forais e privilégios dados a alguns lugares, os vizinhos são isentos» (Livro II, Título XXI). O estatuto do vizinho é inseparável de um «direito de vizinhança» (Freire, 1789, Livro II, Título II, § 7), que distingue uma comunidade local como um corpo privilegiado. As prerrogativas do vizinho se referem em primeiro lugar a este corpo privilegiado e é como membro do grupo, e não a título subjetivo, que o indivíduo desfruta delas.
4Segundo jurista português Pascoal José de Melo Freire, no livro Instituições de Direito Civil Português, de 1789, entre a cidadania e a vizinhança seria possível estabelecer uma diferença, já que os direitos do cidadão teriam uma alcance maior do que os referentes aos vizinhos, fundamentalmente dirigidos ao âmbito municipal (cf. Freire, 1789, Livro II, Título II, § 5). A despeito dessa provável diferença, importa salientar que os dois estatutos remetem a uma mesma lógica concreta e particularista, segundo a qual a integração do indivíduo à res publica é concebida em termos de uma diferença baseada em privilégios. De uma maneira geral, o estatuto de cidadão se refere a um conjunto de prerrogativas, que estão vinculados aos cargos da administração local, principalmente da câmara. O cidadão é o «homem bom», que se distingue dos demais por uma posição superior, garantida pela hereditariedade ou alcançada por mecanismos de enobrecimento. Assim, a definição de cidadão, embora não se confunda com a de nobreza, se aproxima dela, identificando-se a uma série de marcas que distinguem aqueles que buscavam ser reconhecidos como os «principais da terra» ou os «homens principais» (Bicalho, 2003, 146). Na sociedade colonial, o estatuto de cidadão tem entre outros pré-requisitos a idéia da «pureza de sangue» – ou seja, a ausência da mácula que contamina a descendência das «raças infectas», judeus, mouros, negros, indígenas, ciganos (Carneiro, 2005) – e a inexistência de qualquer «defeito mecânico» – isto é, de qualquer vínculo com atividades manuais, os ofícios mecânicos (Bicalho, 2003, 143). Nesse contexto, cidadão e povo são noções diversas. Em uma representação de 1748 do Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro sobre a procissão de Corpus Christi, os vereadores cobram a presença dos «Cidadãos», da «Religião» (ordens religiosas), das «Irmandades e Confrarias» e do «mais Povo» (apud. Santos, 2005, 114). O povo aqui não se confunde com o conjunto dos cidadãos, mas designa os ofícios mecânicos (artesãos), que exerciam função simbólica relevante nas cerimônias régias e que haviam tido participação política por um certo período de tempo em algumas cidades do reino e da América portuguesa (Schwartz, 2004; Santos, 2005).
5Na verdade, essas noções de cidadão e de vizinho têm que ser compreendidas no horizonte das concepções corporativas que marcaram as representações teológico-políticas da sociedade e da monarquia portuguesa no Antigo Regime. Para tais concepções, a hierarquia social era pensada como a expressão de uma ordem mais geral do mundo, na qual cada coisa encontra a sua razão de ser no desempenho de uma função e na ocupação de um lugar que lhe são próprios. O todo é o resultado da articulação entre as suas diferentes partes, cada uma cumprindo o papel que lhe compete em vista do bem comum. Em termos das relações políticas, a perspectiva corporativa impõe o reconhecimento de uma organização da vida coletiva que precede a vontade humana e que requer a preservação da autonomia e da diferença dos corpos sociais em relação à sua cabeça, o rei. Este último tem como principal incumbência a preservação da harmonia do todo através da realização da justiça, entendida como a atribuição a cada qual daquilo que lhe compete (Hespanha, Xavier, s/d, 122-125). Esta compreensão de origem medieval será reatualizada na época moderna com a difusão no mundo português das doutrinas políticas corporativas da Segunda Escolástica, cuja influência se manteve na América portuguesa até o final do século XVIII, resistindo aos esforços de reforma empreendidos pela Ilustração. Para os autores da Segunda Escolástica, a ordem política apresenta um duplo caráter: ela decorre de uma ordenação natural das coisas que escapa ao arbítrio humano; simultaneamente, é pactuada, porque resulta da transferência ao governante de direitos que residiam originariamente nos corpos da República (Hespanha, 2000; Hespanha, Xavier, s/d, 127-133).
6Nesse quadro, a idéia de constituição remete, em primeiro lugar, a uma estruturação natural da sociedade, antes de ser o resultado de um ato de vontade dos cidadãos de um Estado. A precedência da constituição e do direito sobre a livre escolha dos membros da coletividade está na base do estatuto do cidadão. Este último é inseparável da idéia de que a comunidade política é produto da articulação entre corpos sociais que são por natureza diversos e desiguais em direitos. Por isso, a constituição é a condição dos pactos dos quais os cidadãos tomam parte, e não o oposto (Hespanha, Xavier, 1998, 122-125; Hespanha, 2000). Da mesma forma, as palavras nação e pátria não eram portadoras de um significado político vinculado à idéia de direitos cidadania. A pátria, em geral, designava o lugar de origem dentro dos domínios portugueses (Berbel, 2003, 348). Nação, quando compreendida em termos políticos, era, antes de tudo, a «nação portuguesa», sinônimo de Estado português e, portanto, expressão de uma unidade que se imaginava resultante da submissão e da fidelidade de todos os súditos à monarquia (Jancsó, Pimenta, 2000; Chiaramonte, 2003).
7No contexto do Antigo Regime português e da sociedade colonial das décadas iniciais século XVIII, o estatuto de cidadão apresenta-se como o resultado de uma concepção partilhada do poder, segundo a qual o exercício do governo local é compreendido como uma prerrogativa de alguns corpos sociais e indivíduos e, ao mesmo tempo, como um serviço cuja justa contrapartida deveria ser ampliação dos privilégios. Sendo assim, não é de se espantar que, em 1655, os oficiais da câmara da cidade de São Luiz no Maranhão demandassem junto ao rei os mesmos privilégios que distinguiam os cidadãos da cidade do Porto desde 1490. Tampouco surpreende que o rei atendesse à reivindicação, alegando que o fazia em retribuição aos serviços prestados pelos súditos fiéis e na expectativa de que a fidelidade já demonstrada viesse a se renovar (cf. Alvará de 15 de Abril de 1655 in Andrade e Silva, 1856, 226). Como o estatuto do cidadão pressupõe o reconhecimento prévio de uma determinada ordem da vida social, toda disputa em torno dele se dá dentro de limites muito precisos, que são aqueles colocados pela própria compreensão hierárquica, e por extensão corporativa e estamental, da sociedade. É possível disputar sobre os critérios de acesso aos privilégios que definem a cidadania, mas não sobre a sua condição privilegiada.
8Ao longo do século XVIII, este quadro tendeu a se transformar como resultado da incorporação de uma linguagem referida a um novo sujeito do direito: o indivíduo. Tal fato foi o produto da difusão de duas retóricas nem sempre convergentes, ainda que ambas tributárias do jusnaturalismo moderno: a retórica igualitária dos direitos subjetivos e a da soberania popular. A repercussão no ultramar do ideário das Luzes, da independência das colônias inglesas e da Revolução Francesa foram os principais responsáveis pela assimilação estas novas retóricas. No entanto, a acolhida das novas idéias no mundo português se deu dentro de limites muito claros, buscando conciliar a preservação de estruturas sociais e políticas do Antigo Regime e um programa de reformas modernizantes inspirado no racionalismo do século XVIII. Além disso, a vigilância e a censura sobre as noções que se chocavam com as instituições da monarquia e a proibição das tipografias na América portuguesa impunham limites à circulação da palavra impressa. A disseminação de novas idéias ocorria sobretudo por intermédio de alguns impressos, manuscritos e pela comunicação oral e não sob a forma de uma reflexão de cunho mais sistemático e livresco. A formação de um novo conceito de cidadania será essencialmente clandestina e ganhará a luz do dia com as vestes da sedição, nos movimentos de contestação da ordem colonial que ocorrerão nos anos finais do século XVIII e início do XIX. Portadores de projetos políticos distintos e, muitas vezes, marcados por diferenças internas, alguns destes movimentos trouxeram a público noções que punham em questão a ordem do Antigo Regime e, com ela, a concepção hierárquica e estamental da cidadania.
9A Conjuração Baiana de 1798 é, nesse sentido, exemplar. Expressão da crise do Antigo Regime, ela foi um episódio cujo alcance permaneceu pontual e localizado. No entanto, permite vislumbrar desdobramentos possíveis da assimilação na sociedade escravista de uma idéia de cidadão como titular de direitos de caráter igualitário. Projeto abortado de revolução contra o que se designava como o «despotismo» e a «tirania» da Coroa portuguesa, a Conjuração Baiana de 1798 tem entre seus traços distintivos a assimilação do ideário da Revolução Francesa. Como proclamavam os pasquins afixados nas ruas da cidade de Salvador, seria chegada a hora dos «homens cidadãos», dos «povos curvados e abandonados pelo rei» levantarem «a sagrada bandeira da liberdade» (Mattoso, 1969, 149). Ao incorporar o ideário francês, o discurso dos conjurados atingia as bases estamentais da sociedade colonial e as concepções de direito que lhe eram próprias e, ao mesmo tempo, transformava a igualdade de direitos em condição de pertencimento à comunidade política. Na nova ordem, as distinções de estatuto entre os homens livres seriam abolidas e o governo seria a expressão da soberania do povo. Como observava outro pasquim dirigido ao «poderoso e magnífico povo bahinense republicano», «será maldito da sociedade nacional todo aquele ou aquela que for inconfidente à liberdade coerente ao homem» (Mattoso, 1969, 155 e 156). Dessa forma, em movimento similar ao que se verificava contemporaneamente na América do Norte e na Europa, a legitimidade do exercício do poder se transferia do trono para o povo. Compreendido agora como um conjunto de indivíduos juridicamente iguais, o povo deixava de ser uma das ordens da sociedade para se transformar no titular dos direitos de soberania: é o povo que, na linguagem dos pasquins, «quer», «manda», «ordena» fazer uma revolução, abrir os portos, elevar a remuneração dos soldados, criar um «novo código», punir os oponentes do movimento (Mattoso, 1969, 158-159). Se a nação no vocabulário político dos insurgentes continua a ser sinônimo de Estado, ela já não se identifica mais com a unidade da Coroa, mas remete à vontade coletiva do povo (Jancsó, Pimenta, 2000, 147).
10Na Conjuração Baiana, a noção de «liberdade coerente ao homem» e a concepção abstrata de direito que lhe é correspondente encontraram expressão em uma expectativa de eliminação das distinções fundadas na diferenças de cor. Como antecipava um pasquim: «cada um soldado é cidadão, mormente os homens pardos e pretos que vivem escornados e abandonados, todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade» (Mattoso, 1969, 157). A abolição da escravidão não figurava entre as reivindicações dos revoltosos, apesar de ter sido vocalizada por alguns deles. Ainda assim, a bandeira de uma cidadania que eliminasse as diferenças de cor trazia consigo um potencial de questionamento não só das desigualdades estamentais e dos estatutos de pureza de sangue a elas associados, mas também da própria ordem escravocrata. Esta ameaça, no final do século XVIII, ganhava contornos ainda mais nítidos em função das notícias da rebelião de escravos iniciada em 1791 na colônia espanhola de São Domingos. A possibilidade – entrevista na Conjuração Baiana e que se reproduzirá em outras ocasiões – de que o ideal de uma cidadania igualitária se disseminasse como uma demanda pela abolição das discriminações de cor e, em último caso, como um grande conflito social, imprimirá uma tônica particular aos debates políticos sobre o conceito de cidadão que se inauguram a época da independência. As controvérsias em torno da amplitude dos direitos de cidadania ocorridas na constituinte brasileira de 1823 são um momento importante desse debate.
11A discussão na constituinte de 1823 está marcada pela necessidade que então se colocava de fundar um novo corpo político após a separação de Portugal. Dessa forma, a definição sobre o cidadão brasileiro implicou a determinação das fronteiras que separariam este último dos não-cidadãos, isto é, de todos aqueles que não participariam do «pacto social» sobre que se fundava o Estado nascente. A linguagem é, em grandes linhas, a do jusnaturalismo moderno. A sociedade é criada pelos indivíduos tendo em vista a preservação dos seus direitos. Serão cidadãos aqueles que, através do seu consentimento, estabelecerem um poder comum para a sua própria segurança e conservação. No entanto, a determinação da natureza do pacto social brasileiro se deparava com duas grandes dificuldades. A instituição da nova ordem se dava a partir de uma secessão no interior da antiga «família portuguesa»: como diferenciar os cidadãos do Estado que se formava em relação aos membros da antigo reino português? Ou ainda: dado que até então todos eram igualmente membros da «nação portuguesa», como distinguir a partir de agora brasileiros e portugueses? Além disso, uma outra questão se colocava: quais dos membros da sociedade brasileira poderiam ser considerados parte efetiva do pacto social? (cf. Slemian, 2005) Nas palavras de um dos constituintes: «por ser heterogênea a (...) população» brasileira, seria preciso diferenciar aqueles que poderiam reivindicar o título de cidadão dos demais, evitando «confundir as diferentes condições de homens por uma inexata enunciação» (DAC, 23/09/1823, 90).
12Às vésperas do rompimento com Portugal, «brasileiro» não indicava uma identidade política diferenciada. Com efeito, «até o início de 1822, nascer brasileiro significava ‘ser português’; com isto designava-se apenas o local de nascimento dentro da nação portuguesa» (Ribeiro, 2002, 46). A palavra podia ser igualmente utilizada para apontar os que, nascidos em Portugal, tinham residência fixa ou interesses mais permanentes no mundo americano (Ribeiro, 2002, 46). Em Fevereiro de 1822, Hipólito José da Costa no seu jornal Correio Brasiliense ainda acreditava ser necessário diferenciar entre «brasiliense» – «o natural do Brasil» –, «brasileiro» – «o português europeu ou o estrangeiro que lá vai negociar ou estabelecer-se» – e «brasilianos» – «os indígenas do país» (apud. Pimenta, 2006, pp. 78-79). Em 1823, nos debates da Constituinte, brasileiros e portugueses passam a ser concebidos como membros de nações diferentes. Em parte, esta distinção se baseará no critério da naturalidade, já que os cidadãos brasileiros se definirão, entre outras coisas, pelo fato de terem nascido no território da nova nação. Mais do que o critério da naturalidade, porém, será a adesão, tácita ou explícita, à causa da independência, isto é, o engajamento no novo pacto social, que, para os constituintes, constituirá a diferença entre brasileiros e portugueses. Ponto de vista semelhante, fora defendido por Frei Caneca, em texto do início de 1822, publicado no ano seguinte. Segundo ele, «pátria não é tanto o lugar em que nascemos, quanto aquele em que fazemos uma parte e somos membros da sociedade» (Caneca, 1823, 98). Seria preciso distinguir a «pátria de lugar» – «efeito do puro acaso» – da «pátria de direito» – «ação do nosso arbítrio» (Caneca, 1823, 80). Esta, e não aquela, seria a verdadeira «pátria do cidadão». De modo similar, dizia José Martiniano de Alencar na Constituinte, é cidadão brasileiro tanto o nascido em Portugal como o nascido no Brasil, contanto que entrassem de princípio no novo pacto social» (DAC, 26/09/1823, 118). No momento em que se desenham os contornos do novo Estado, o que define o cidadão brasileiro é, em primeiro lugar, o seu consentimento.
13O fato de que o português seja concebido como não-cidadão, ainda que o converta em estrangeiro, não afeta o seu estatuto jurídico de homem livre. O mesmo já não se pode dizer quando foi preciso definir «para dentro», e não mais «para fora», as fronteiras da cidadania, separando as diferentes «condições de gente» que compunham a sociedade. Isto implicou uma tentativa de estabelecer uma distinção entre os que pactuariam para a formação da sociedade civil e os que não possuiriam títulos jurídicos para participar dela, os negros escravos e os índios. Daí a necessidade de diferenciar entre o brasileiro e o cidadão brasileiro. Nos termos do deputado Francisco Carneiro de Campos: «o nosso intento é determinar quais são os cidadãos brasileiros e, estando entendido quem eles são, os outros poder-se-iam chamar simplesmente brasileiros, a serem nascidos no país, como escravos crioulos, os indígenas, etc., mas a constituição não se encarregou desses, porque não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas não fazem parte dela» (DAC, 24/09/1823, 106). Os índios estariam excluídos, porque, embora livres e nascidos no país, sequer reconheceriam a existência da nação brasileira e de suas autoridades, vivendo inclusive em «guerra aberta» contra elas (cf. DAC, 23/09/1823, 90). Já os escravos, nascidos ou não no Brasil, a sua situação é outra, uma vez que o seu estatuto de não-cidadão será pensado com referência a uma condição jurídica precisa: o fato de que não são donos de si mesmos, o seu estado de privação de liberdade. Os escravos, observava Francisco Jê Acaiaba Montezuma, em relação «ao exercício de direitos na sociedade, são considerados coisa, ou propriedade de alguém». O seu estatuto jurídico os tornava incapazes de serem membros da sociedade civil brasileira, pois, como insistia Montezuma, «este nome só pode competir, e só tem competido a homens livres» (DAC, 23/09/1823, 90). Dessa forma, se estabelece uma clara demarcação entre cidadãos – que por serem livres podem reivindicar a «qualidade de pessoa civil» (DAC, 30/09/1823,
14106) – e os escravos – que, mesmo quando naturais do país, não são livres e não são senhores da sua própria vontade, não podem tomar parte do pacto social, «não passam de habitantes no Brasil» (DAC, 23/09/1823, 135).
15Havia, no entanto, uma condição adicional de homens em relação à qual o estatuto de cidadão precisou ser definido. Uma condição ambígua, já que livre, natural do país, habitante do seu território, integrada à ordem política do Império e, no entanto, marcada pela condição servil: os escravos libertos. O lugar dos libertos no interior da sociedade política colocava no centro do debate a questão sobre a amplitude tolerável de uma noção de direitos de cidadania baseada na idéia de uma «liberdade coerente ao homem». Em outros termos, dada a continuidade da ordem escravista, qual o grau aceitável de abstração do conceito de cidadão em relação às desigualdades que organizavam a vida social? Ou ainda: em uma sociedade marcada por um passado recente de institucionalização de privilégios de sangue e de cor e na qual condições sociais se entrelaçam a matrizes raciais (cf. Mattos, 1987, 113; Grinberg, 2002, 184), até que ponto seria possível estender a igualdade jurídica entre seus membros?
16Nas outras sociedades escravistas da América, a tentativa de conciliar continuidade da escravidão africana e concepção universalista da cidadania levou a uma exclusão dos negros e seus descendentes, fossem eles cativos ou livres, baseada em critérios de desigualdade racial (cf. Mattos, 2000; Berbel, Marquese, 2006). Com isso, se buscava preservar não só a escravidão, fundando-a sobre bases raciais, mas também as premissas individualistas do conceito de cidadão, tornando a universalidade dos direitos compatível com a sua simultânea restrição. No século XIX, portanto, «raça e cidadania são duas noções construídas de forma interligada no continente americano» (Mattos, 2000, 13). No Brasil, esta associação não se verificou. A noção de raça só ganhará difusão mais ampla na segunda metade do século, em um momento posterior à definição das bases constitucionais da cidadania. Ao mesmo tempo, a ordem constitucional inaugurada em 1824 será mais inclusiva do que no restante das sociedades escravistas da América.
17Na Assembléia Constituinte de 1823, foi consenso que o liberto deveria ser um cidadão do Império, já que, nas palavras de um deputado, com a liberdade se «restabelece o direito natural» (DAC, 30/09/1823, 136). A divergência ficou por conta de saber se os direitos de cidadão – mais precisamente, os direitos civis – deveriam ser estendidos aos libertos africanos e brasileiros ou exclusivamente aos nascidos no país. A Constituição outorgada de 1824 consagrou o ponto de vista mais restritivo e, além disso, impediu que os libertos participassem de uma das etapas do processo eleitoral. De qualquer forma, a solução oferecida pela carta permanecia comparativamente inclusiva. A defesa de uma concepção extensiva da cidadania partia do reconhecimento de que «haveria grandes ciúmes, e desgostos, se uma classe de brasileiros acreditasse que este título se queria fazer privativo a outra classe» (DAC, 23/09/1823, 93). Por isso, dizia Venâncio Henriques de Resende na constituinte, seria preciso «neutralizar (...) o veneno» da «aversão» entre libertos e brancos, assegurando que os primeiros «tivessem o interesse em ligar-se a nós pelos foros de cidadão» (DAC, 30/09/1823, 139).
18A natureza inclusiva do conceito de cidadania consagrado na Constituição foi, portanto, o resultado da tentativa de preservação do escravismo. Até certo ponto, ela respondia a uma expectativa de equiparação jurídica e de igualdade de direitos independente da cor expressos «em todas as ocasiões em que a participação popular se fez presente no processo de independência política» (Mattos, 2000, 22). Dado o peso numérico da população de negros e mestiços livres (algo em torno de 30% do total da população), ignorar essa demanda era, como reconheciam os próprios constituintes, pôr em risco a ordem escravocrata (Mattos, 2000; Marquese, 2006; Berbel, Marquese, 2006). Assim, na questão dos direitos dos libertos – e, por extensão, daqueles que eram brasileiros, livres, porém negros ou mestiços –, o conceito de cidadão se viu estreitamente associado ao problema da «segurança pública» (DAC, 30/09/2006, 136 e 138). Este será um tema do debate político na década de 1830, no qual adversários aludem ao risco da desordem social mobilizando argumentos simétricos: ou a implementação efetiva da igualdade de direitos civis estabelecida na Constituição seria capaz conter a insatisfação com as desigualdades de cor e de raça entre os livres; ou o apego excessivo a uma noção abstrata de cidadania seria uma incitação à revolta de negros e mestiços contra os brancos. A simetria dos pontos de vista remete, no entanto, a um mesmo pano de fundo: a tensão entre o novo conceito de cidadania consagrado na constituição e a continuidade das relações escravistas.
19No debate político dos anos 1830 e 1840, duas respostas opostas e polares buscam fazer face a esta tensão. Em linhas gerais, elas foram expressão do antagonismo entre liberais e conservadores e encontraram na Constituição de 1824 o quadro de referência da sua argumentação (cf. Mattos, 2000, 33-35). Desde os debates da Constituinte, a discussão sobre a igualdade jurídica se restringia à esfera dos direitos civis. Como observava Pedro Araújo Lima, «a palavra cidadão não induz igualdade de direitos» (DAC, 24/09/1823, 106). A Constituição outorgada consagrará este ponto de vista. Segundo Pimenta Bueno, principal comentador da Constituição imperial, os direitos políticos seriam um atributo daqueles que, além de membros da «sociedade civil ou nacional», participariam da «ordem ou sociedade política» (Bueno, 1857, 526). No debate político brasileiro do século XIX, a diferenciação entre cidadãos portadores de direitos políticos e aqueles apenas titulares de direitos civis será elaborada a partir da distinção entre cidadão ativo e passivo, originária do constitucionalismo francês. O primeiro, nos diz Pimenta Bueno, desfruta de uma liberdade relativa a «tudo quanto não lhe é proibido pela lei»; já o segundo possui a liberdade política que «decreta essa lei» (Bueno, 1857, 550). O exercício dos direitos políticos, diz o mesmo autor, seria «uma importante função social», antes de ser «um direito individual ou natural». Para possuir tais direitos, seria preciso «oferecer à sociedade certas garantias indispensáveis» (Bueno, 1857, 553), sob a forma de «capacidades e habilitações» (Bueno, 1857, 551).
20Na Constituição de 1824, a diferenciação entre cidadão ativo e passivo foi instituída com base em critérios censitários, que também estabeleciam diferentes graus no exercício dos direitos políticos. No debate políticos dos anos 1830 e 1840, o princípio que sustentava os critérios censitários da Constituição – a idéia de que a propriedade é a condição para o exercício independente dos direitos políticos – não será, em linhas gerais, questionado. No entanto, duas alternativas opostas serão derivadas do texto constitucional, visando conciliar escravidão e cidadania. Do ponto de vista dos liberais, as qualificações censitárias não negariam a igualdade fundamental dos cidadãos perante a lei. Apenas estabeleceriam distinções fundadas em um critérios adquiridos, e não herdados. Nesse sentido, o acesso aos direitos políticos dependeria apenas dos talentos individuais. A escravidão estaria justificada pelo direito de propriedade e não por quaisquer diferenças qualitativas entre os indivíduos. Não haveria razão, portanto, para a existência de categorias intermediárias entre os cidadãos e os escravos (Mattos, 2000; Grinberg, 2002). Como afirmava um jornal radical dos anos 1830, «entre nós não há mais do que povo e escravos; e quem não é povo já se sabe que é cativo» (apud. Basile, 2004, 165). Entre os conservadores – «partido» que se torna hegemônico a partir da década de 1840 – prevalecerá a idéia de que seria preciso demarcar as diferenças entre os membros da sociedade, atualizando e legitimando na nova ordem as prerrogativas que haviam organizado o Antigo Regime português. A preservação da ordem escravocrata se torna sinônima da conservação e reprodução de hierarquias tradicionais, que podiam ser lidas agora à luz das exigências censitárias do texto constitucional. Dessa forma, a associação entre cidadania, liberdade e propriedade se torna a referência das desigualdades que deveriam existir entre livres e proprietários (os cidadãos ativos), livres e não-proprietários (os cidadãos passivos) e não-livres e não-proprietários (os não-cidadãos) (Gonçalves, Mattos, 1991, 17-18).