1No período estudado o conceito de América varia ao longo de seis significados básicos: (1) um significado geográfico, mormente descritivo, que iguala a América, ou continente americano, ao Novo Mundo; (2) a essa definição um sentido político pode ser acrescentado para significar as possessões coloniais das metrópoles européias; (3) América como fonte de abundância e promessa de um futuro mais próspero; (4) a versão política análoga da definição 3, ou seja, de América como espaço de liberdade, de novas formas políticas e sociais algumas vezes associadas aos conceitos de república, federalismo e democracia; (5) a negação de 3, isto é, a América como o continente imaturo ou degenerado, terra de animais pequenos e de homens primitivos e ferozes, de clima insalubre; e por fim, (6) a negação de 4, ou seja, o avesso à vida civilizada da Europa, escravidão, instabilidade política, violência e facciosismo, muitas vezes também associados negativamente à república, federalismo e democracia.
2Os verbetes referentes aos conceitos América e americano nos principais dicionários da língua portuguesa produzidos nos últimos três séculos revelam muito pouca variação semântica. Essa observação é consoante com os usos desses termos em discursos e documentos políticos e mesmo em obras literárias. Ademais, na maioria das vezes em que foram usados, tais conceitos não constituíam dentro dos argumentos matéria de contenda semântica. Aplicando a categorização proposta por Reinhart Koselleck, América e americano não assumiram propriamente o papel de conceitos-chave no período estudado, pois nunca se tornaram objeto central do debate político, nem foram dotados de definições múltiplas e antagônicas, próprias do caráter polissêmico dos conceitos dessa categoria (Koselleck, 1996; Richter, 1995; Lehmann e Richter, 1996). Contudo, não podemos desprezar o fato desses conceitos terem sido por vezes incorporados a discursos políticos e debates importantes para a história do Brasil no período em questão.
3Devemos notar que a pouca variabilidade semântica não faz com que o estudo dos conceitos de América e americano seja destituído de interesse, pois significados que não se tornam controversos são janelas para a observação do consenso social, das crenças e idéias mais profundas de um povo, comunidade ou grupo social. Ademais, como já observado alhures, a terminologia geográfica, a despeito de sua aparente neutralidade valorativa, pode conter julgamentos morais fortes e ser usada como ferramenta de controle social e/ou justificação para ações de política internacional (Feres Júnior, 2005a, 2005b).
4O Dicionário da Língua Portuguesa composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, publicado em 1728, contém um longo verbete América. A definição do termo é simples: sinônimo de «mundo novo», a quarta parte do mundo. De fato, a extensão do verbete não se deve à abundância de significados do conceito em si, mas à narrativa que se segue a sua definição. Nela, Bluteau relata que essa parte do mundo empresta seu nome de Américo Vespúcio, que tomou posse dela em nome do «gloriosíssimo Rei de Portugal D. Manoel». Ademais, o texto também informa que Christovão Colon (sic) somente se animou a empreender sua viagem de descoberta após tomar posse na Ilha da Madeira das cartas de navegação de um piloto português. «A um português deve este mundo o descobrimento daquele novo mundo». Portanto, Bluteau apresenta o significado geográfico associado àquele de pertencimento colonial. Depois de afirmar o primado português sobre o novo continente, o verbete narra a viajem de Colombo e descreve com alguns detalhes a geografia do novo mundo, terminando com um comentário sobre a fonética correta do termo. Logo em seguida, o continente é divido em América setentrional e América meridional. Em cada uma dessas divisões são enumeradas as colônias e possessões das monarquias européias e também os povos «que não tem Reis», os indígenas, no vocabulário contemporâneo.
5É interessante notar que no dicionário Bluteau não há o verbete americano, ao passo que nas várias edições do dicionário de Antonio de Moraes Silva, produzidas no período em pauta (1789, 1813, 1823, 1831, 1844 e 1858) esse verbete existe, enquanto que América está ausente. Cabe lembrar que o dicionário organizado por Moraes Silva foi baseado no Bluteau, ou seja, ele é produto de uma reforma daquele velho dicionário.
6A definição de americano no Moraes é também muito simples e se repete em todas as edições do período, «Natural da América, ou pertencente à América», seguida de uma citação do padre António Vieira (1608-1697): «Não quero comparar estes meninos Malabares, com os Americanos, senão com os Romanos». Apesar do parco interesse da citação, ela serve para demonstrar que o conceito já estava em uso no século XVII. Vieira utiliza a palavra América sete vezes nos Sermões. Em cinco delas, ela aparece juntamente com Ásia e África (74, 106, 132, 242 e 242), em uma somente com Ásia (244) e em uma outra sem a vizinhança desse outros continentes (240). Nesta última passagem o termo serve simplesmente como elemento retórico de uma comparação reiterada. No Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda (1640), América aparece novamente ao lado de África e Ásia, entre as terras conquistadas dos bárbaros pelos portugueses a serviço de Deus. Desses usos, podemos perceber que o conceito pertencia à categoria das possessões coloniais portuguesas, ou seja, nomeava um dos continentes nos quais os portugueses tinham colônias, e, portanto, tinham que lidar com problemas similares: conflito com outras potências européias, exploração colonial, controle do território e dos mares, do tráfico, administração colonial e dos povos ali residentes, etc. A definição do Bluteau também expressa esse ponto de vista colonial português, pois se apressa em afirmar a primazia da coroa lusitana sobre as terras do Novo Mundo. Deve-se notar, contudo, que o Moraes de 1789 já não faz menção a isso, optando por uma definição geográfica mais estrita do termo, ao passo que o dicionário de Eduardo de Faria, de 1849, editado em Portugal, repita de forma sintética o argumento da possessão do Novo Mundo em nome do rei lusitano.
7O termo América era também utilizado no período em expressões compostas, tais como América portuguesa, espanhola, meridional e setentrional. A mais importante delas foi América portuguesa, que até a independência, em 1822, era o termo mais usado para se denominar a totalidade da colônia portuguesa no Novo Mundo. A palavra Brasil até então designava somente as capitanias sob o vice-reino do Rio de Janeiro (Neves 2003) – também o termo brasileiro não teve um significado estável até pelo menos o advento da independência (Vainfas 2002).
8Ainda que os dicionários da língua portuguesa se tenham restringido à definição geográfica de América, seria ingênuo desprezar a imensa carga semântica depositada sobre o conceito desde a descoberta do Novo Mundo, mormente pela contribuição de escritores europeus como Buffon, De Pauw, Olviedo, Montesquieu, Voltaire, Hume, Hegel, Kant e tantos outros. Duas opiniões opostas se depreendem desse conjunto de reflexões, as duas formuladas de uma perspectiva marcadamente européia: uma de abundância e promessa de prosperidade e outra de imaturidade, degeneração, insalubridade e, portanto, incapacidade para a vida civilizada. A versão negativa parece ter sido de algum uso nas disputas entre portugueses e habitantes da colônia – principalmente após a mudança da Corte de Portugal para o Rio de Janeiro em 1808 – e que perduraram até a consolidação da independência do Brasil. Do lado português, era comum encontrar-se argumentos apontando para a ingratidão dos brasileiros para com Portugal. Na Carta do compadre de Lisboa em resposta a outra do compadre de Belém ou juízo crítico sobre a opinião dirigida pelo ‘Astro da Lusitânia’, de 1821, o Brasil é descrito como «um gigante, em verdade, mas sem braços, nem pernas; não falando do seu clima ardente e pouco sadio», habitado por «hordas de negrinhos, pescados nas costas da África», «terra dos macacos, dos pretos e das serpentes» em oposição a Portugal que seria «o Jardim das Hespérides, os Elísios, deste pequeno mundo chamado Europa», «país de gente branca, dos povos civilizados e amantes de seu soberano» (Martins 2003). Já a versão positiva da visão européia de América, a terra da fartura e do futuro promissor, francamente minoritária em relação à negativa, foi recebida com entusiasmo no Brasil. Contudo, esse significado foi com o tempo se dissociando do termo América, pelo menos dentro do discurso político que se tornou hegemônico com a consolidação do Estado nacional brasileiro.
9É no contexto da Conjuração Mineira (1789) que o termo América assume um conteúdo político importante e novo. Nos Autos da Devassa, produzidos pelas autoridades portuguesas no inquérito que se seguiu ao desbaratamento do movimento, ele é muitas vezes empregado com sentido político, relacionado a conceitos como o de república, liberdade, revolução e sedição, e identificado ao projeto político dos conjurados, tanto por parte dos inquisidores quanto por parte dos acusados. Na «1.ª Inquirição do Auto de Perguntas» ao Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, de novembro de 1789, perguntado se sabia a causa da sua prisão, este responde que havia sido procurado para ser informado que «nesta cidade tinham prendido a Joaquim Silvério, e ao Alferes Joaquim José, por alcunha – o Tiradentes –, que se supunha ser por alguma liberdade, com que este falava em idéias de Repúblicas, e Américas inglesas ...» (Proença Filho, 1996, p. 1028). E continua dizendo que «não tinha sido convidado por pessoa alguma para que, faltando às obrigações de bom e leal vassalo, concorresse para que a América conseguisse a sua liberdade, e se formasse dela uma República (...)». Ao ser perguntado sobre a possível ajuda francesa aos revoltosos, declara que tinha ouvido no Rio de Janeiro «a pretensão que a França, e as mais Cortes estrangeiras tinham a liberdade do negócio nos portos da América e que equivocando-se, confundia esta liberdade do negócio com a liberdade da América ...»(Proença Filho, 1996, pp. 1028 e 1029). Nota-se aqui não somente a associação de liberdade e república com a América inglesa, mas também com a América em geral, ainda que o acusado se esforce para negar qualquer associação sua com tais movimentos.
10Nos mesmos Autos da Devassa encontram-se referências a uma carta escrita por José Joaquim da Maia, quando estudante em Montpellier, a Thomas Jefferson, então embaixador dos Estados Unidos em Paris, com a finalidade de angariar ajuda militar daquele país para um movimento de independência do Brasil. Nesse documento, o conceito de América é central. Maia opõe a América à Europa, a liberdade americana à escravidão imposta pelos europeus, e os Estados Unidos são tomados como o exemplo a ser seguido: «... porque a natureza, fazendo-nos habitantes do mesmo continente, como que nos ligou pelas relações de uma pátria comum»(Bonavides e Amaral 2002). Ainda em sua carta, o autor usa o termo América para se referir ao Brasil simplesmente. Em suma, por um lado, o significado aqui ainda é muito próximo ao do dicionário, Novo Mundo, continente americano, porém a essa unidade geográfica é associada uma finalidade política comum que é a da conquista da liberdade frente à Europa.
11Deve-se ressaltar, contudo, que os exemplos da Conjuração Mineira e da carta de Maia são marginais ao debate político que se travava na capital da colônia. É somente com a intensificação da agitação política durante o período de emancipação e construção do Estado nacional brasileiro, que vai de 1810 ao triunfo do regresso conservador no início dos anos 1840, que o termo América passa a ser empregado com mais freqüência no debate público, integrado ao discurso de diferentes personagens da época. Além do termo América, a distinção entre a América do Norte, ou setentrional, referida aos Estados Unidos, e a «outra» América, chamada de América do Sul, América Meridional ou América Espanhola, também é de uso corrente.
12Dependendo do lugar de onde se fala, esta América hispânica pode assumir significados diversos e, não raro, antagônicos. No discurso político dominante na Corte, que pretendia impor ao resto do país um projeto político de império centralizado e unificado, a América hispânica muitas vezes é identificada à república, à barbárie, à anarquia e à fragmentação política, todos conceitos com forte conteúdo negativo. Já no discurso das províncias que defendiam projetos políticos divergentes e alternativos aos da corte, como por exemplo, Pernambuco, a América aparece com um significado positivo, identificada à república, ao federalismo e à liberdade.
13Vejamos alguns exemplos desses vários lugares de enunciação. Frei Caneca, revolucionário pernambucano e um dos pensadores políticos mais combativos de seu tempo, representou, tanto pela sua atuação política intensa – participou da Revolução de 1817 e da Confederação do Equador em 1824 –, quanto pela sua escrita contundente, uma das mais importantes vozes de oposição ao projeto imperial hegemônico na Corte e ao que chamava de «absolutismo» do imperador. No Typhis Pernambucano, periódico editado por ele de Dezembro de 1823 a Agosto de 1824, a América aparece como a «quarta parte nova do mundo», ou como sinônimo de «Novo Mundo», identificada aos interesses dos «verdadeiros patriotas brasileiros», – os pernambucanos, por exemplo –, que se diferenciavam dos «europeus transplantados na América», provavelmente os brasileiros da Corte identificados por ele aos interesses absolutistas portugueses. (Caneca e Mello 2001, p. 59). Caneca não só chama o continente de «mãe amorosa», por ter acolhido e beneficiado os europeus conquistadores, mas também identifica a América ao seu povo nativo, tratado por muitos «não como irmãos e compatriotas». Ao protestar veementemente contra a dissolução da Assembléia Constituinte em 1823 pelo imperador, o frei argumenta que com aquela atitude «inconstitucional e atentatória da soberania da nação» o Brasil se distanciava do resto da América (Typhis de 1.º de Janeiro de 1824). Ainda no Typhis, publica vários artigos de teor similar, inclusive um no qual exalta a máxima do presidente dos Estados Unidos, James Monroe – «a América para os americanos» –, por ver nela um manifesto contra a ameaça absolutista européia à soberania do Brasil e das Américas. O modelo político americano vislumbrado por Caneca era o do sistema federativo dos Articles of Confederation e não o da Constituição Federal norte-americana de 1787, que para ele extinguira muitos dos direitos locais (Mello, 2004). Ou seja, para o autor e muitos de seus conterrâneos revolucionários, a América estava associada à liberdade local, federalismo e república, numa chave eminentemente positiva.
14Se, por outro lado, focarmos os textos que circulavam no ambiente da Corte, um outro leque semântico se apresenta. O Correio Braziliense, periódico mensal impresso em Londres de 1808 a 1822, contém outros exemplos fecundos do uso do termo. Esse impresso foi também a principal fonte de informação na América portuguesa acerca dos processos de independência das colônias de Espanha (Pimenta 2003). Seu editor, Hipólito da Costa, era monarquista constitucional de influência britânica, inimigo do republicanismo francês e franco defensor da independência do país. Hipólito publicava seu periódico com a firme intenção de influenciar o pensamento das elites locais da época, e foi em grande medida bem sucedido, pois o Correio serviu de modelo para o jornalismo político no país que surgiu durante o período da independência (Lustosa 2000). Em artigo de 1808, denominado «América», Hipólito saúda a independência do México e examina a situação política do novo país frente às potências européias: à França, descrita como influência populista e ardilosa, e à Inglaterra, potência comercial. Os «Estados Unidos da América» são citados de passagem, somente como possível influência sobre o México (Lima Sobrinho, 1977). Em artigo de julho de 1809, comentando a independência do território de Buenos Aires, Hipólito faz uso abundante do termo América, sempre no sentido da totalidade do continente, do Novo Mundo, e pressagia sua independência inevitável da Europa em um curto espaço de tempo. Segundo o autor, por «prejuízos [preconceitos] e educação equivocada, os europeus erram ao tratar tais regiões como se estivessem em sua infância» (Lima Sobrinho, 1977). Em Março de 1810, no texto denominado «América – a oportunidade da América», o autor mostra preocupação com o destino republicano que os novos países americanos estavam escolhendo, condição que, segundo ele, assemelhava-se muito à anarquia (Lima Sobrinho, 1977).
15No artigo «Estado político da América no fim de 1822», publicado em Dezembro do mesmo ano, Hipólito da Costa diferencia os Estados Unidos da América, «uma nação que se faz conspícua no mundo por seu poderio» e «uma potência que é inconquistável às forças européias», das «outras seções da América», as ex-colônias espanholas, «consideradas pelas potências européias como pequenas províncias em rebelião e não dignas de serem tratadas como nações independentes». Ao exaltar a emancipação da América dos governos europeus a que estava sujeita, defende o seu direito à soberania e à liberdade como «um direito que sempre têm exercido todos os demais povos do mundo» e que foi reconhecido pela Europa em relação aos Estados Unidos. Ao colocar-se claramente em oposição ao projeto de independência que pretendia manter a escravidão no Brasil afirma: «Como estas revoluções da América são agora fundadas nos princípios da liberdade, claro está que fica sendo incompatível com a existência desses governos a conservação da escravatura. Assim vemos que todos os governos da América Espanhola, imitando o exemplo dos Estados Unidos, têm já proibido o comércio da escravatura da África, como passo preliminar para a aniquilação total da escravidão; e o Brasil, pelas mesmas razões, há-de necessariamente seguir a mesma linha de política; e eis aqui um bem de considerável magnitude, que procede não simplesmente da independência da América, mas dos princípios liberais em que se estribam os promotores dessa independência» (Lima Sobrinho, 1977). Aqui o Brasil apesar de vir a se tornar uma monarquia, aparece para ele identificado a uma América que representa a liberdade, a revolução, as «idéias do século» e a razão. Em suma, ainda que Hipólito rejeitasse o republicanismo da América hispânica, considerava digno de admiração seu exemplo de liberdade frente às potências européias e sua determinação no tocante à abolição da escravidão.
16Posição similar é manifestada por José Bonifácio de Andrada e Silva, político e estadista de grande influência no período da independência, e defensor do regime da monarquia constitucional, uma solução política que evitava «os planos e astúcias secretas dos governos republicanos da América, por uma parte, e os da Santa Aliança da outra». Se por um lado, Bonifácio afirma que «o Brasil quer ser livre; e tem o exemplo de todos os nascentes Estados que o rodeiam», também deplora a opção pelos «amargos sacrifícios [do] ideal republicano», que na experiência de nossos vizinhos se apresentava «anárquico e violento». (Bonifácio e Dolhnikoff, 1998). Nos dois últimos exemplos, notamos um alargamento semântico do conceito, que passa a expressar uma tensão entre o valor positivo da liberdade e a negatividade de seu abuso, ou excesso.
17Já nos escritos de Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai, um dos mais importantes representantes do projeto de Estado nacional centrado na Corte, defensor da monarquia e da centralização, a América aparece identificada a valores negativos, representando a oposição à civilização encarnada pelo Império do Brasil. Uruguai também diferencia a América hispânica dos Estados Unidos. Com relação à primeira diz: «Tais são as repúblicas hispano-americanas. Têm organização política constantemente mutável. Quase não tem organização administrativa. Tudo é precário e depende do arbítrio dos chefes das revoluções» (Uruguai e Carvalho, 2002, p. 92). Já os Estados Unidos da América são um «daqueles afortunados países onde o povo é homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o habilitam para se governar bem a si mesmo» (Uruguai e Carvalho 2002, p. 491). As duas Américas são herdeiras da Europa, mas de «Europas» diferentes: «há a Europa latina e a Europa teutônica. A Europa latina compreende os povos do meio-dia, entre os quais estão a França, a Espanha, a Itália e Portugal. A Europa teutônica, os povos continentais do Norte e a Inglaterra. A primeira católica, a segunda protestante. Nas línguas da primeira domina o latim, nas da segunda, o idioma germânico. Essas duas grandes diferenças, essas duas grandes divisões reproduziram-se na América descoberta e povoada pela Europa. A América meridional é, como a Europa meridional, latina e católica. A América do Norte é anglo-saxônia e protestante» (Uruguai e Carvalho 2002, p. 500-501). A América Meridional que vive segundo Uruguai na anarquia, na desordem, na instabilidade política e na barbárie, não deve ser o espelho da nação brasileira que se quer civilizada.
18Como vemos nos exemplos acima, se tomado no plano aproximadamente sincrônico do momento da independência e de sua consolidação, o significado político do conceito de América variava entre a associação positiva com o conceito de liberdade à associação negativa ao exemplo de anarquia, desordem e instabilidade política das republicas hispano-americanas. No caso de Caneca e dos liberais exaltados, essa associação positiva se estendia a conceitos como autonomia, federalismo e, às vezes, república. Já os defensores da monarquia constitucional não raro expressavam em seu discurso as contradições decorrentes do inchaço semântico do conceito, por vezes louvando a liberdade americana e por outras deplorando o exemplo hispano-americano. Por fim, a rejeição da experiência republicana da América espanhola é dominante no discurso de defensores da centralização política, como Uruguai. A estigmatização das repúblicas da América espanhola presente, por exemplo, tanto no discurso dos liberais moderados quanto no discurso do Regressso fez com que os «Estados Unidos da América» fossem tomados cada vez mais como um caso singular, que devido às diferenças de língua, religião e processo de colonização, podiam até ser admirados mas não deviam ser seguidos.
19Já no plano diacrônico, além do sentido puramente geográfico, que permaneceu constante, podemos dizer que o conceito de América no início do período em questão (1750-1850) porta três significados principais: o de possessão colonial portuguesa, o de abundância e promessa de prosperidade e o de imaturidade, degeneração, insalubridade. Como podemos perceber, os termos dos últimos dois significados denotam traços marcantes de temporalização. Esse era basicamente o mapa semântico do conceito no período colonial, que começa a se enriquecer de tons políticos com o advento das independências dos EUA e das colônias espanholas, e o conseqüente uso desses exemplos por parte de atores coloniais descontentes com império português. A associação da América como o valor da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do século XIX, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século XIX e além.
20A simultaneidade entre a fundação de uma nova nação e a adoção de uma nova forma de governo, que parece ter sido fundamental na experiência política hispano-americana, não se verificou no Brasil. A transformação da colônia em centro de fato do Império Português, com a chegada de D. João VI em 1808, fez com que se alimentassem fortes desígnios de continuidade política, que conseguiram sufocar por muito tempo os projetos republicanos, federalistas e democráticos – esses frequentemente identificados com a América. Na verdade, o conceito de Brasil, de nação brasileira, parece ter absorvido em grande parte essa interpretação positiva do Novo Mundo, principalmente com o advento do romantismo, que se implanta com força a partir do Segundo Reinado (1840-1889). A imagem da nação brasileira moldada a partir daí se apresenta como um projeto civilizacional singular no Novo Mundo, que mistura elementos europeus, descartados no restante do continente, como a monarquia, com elementos nativos supostamente próprios (Schwarcz, 1999).