Costa, Leonor Freire e Mafalda Soares da Cunha, D. João IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Xavier, Ângela Barreto e Pedro Cardim, D. Afonso VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Lourenço, Maria Paula, D. Pedro II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007; Silva, Maria Beatriz Nizza da, D. João V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Monteiro, Nuno Gonçalo, D. José I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Costa, Leonor Freire e Mafalda Soares da Cunha, D. João IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Xavier, Ângela Barreto e Pedro Cardim, D. Afonso VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Lourenço, Maria Paula, D. Pedro II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007
Silva, Maria Beatriz Nizza da, D. João V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Monteiro, Nuno Gonçalo, D. José I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Texto integral
1A publicação da colecção de biografias dos reis de Portugal, sob coordenação científica de Artur Teodoro de Matos e João Paulo Oliveira Costa, constitui um enriquecimento da historiografia portuguesa. Sendo o exercício proposto uma recensão crítica, optei por dar mais destaque aos aspectos que em cada um dos textos me merecem reparos e discordância.
2Principio por D. João IV, da autoria de Leonor Freire Costa e Mafalda Soares da Cunha. Nele dá-se muita atenção à Restauração e à explicação deste complexo movimento, marcado por uma forte memória simbólica, por vezes mítica, dificultadora da observação do historiador. Sublinhou-se, bem, que não foi um caso único na política europeia seiscentista, mas que constituiu uma «linha efectiva de demarcação de alteridade», transformando-se «num importante factor de formação de uma identidade colectiva politicamente enquadrada num Estado» (p. 272). Neste âmbito releve-se a excelente caracterização dos revoltosos que prepararam e participaram no golpe (p. 27 e seguintes); o esforço para desconstruir a memória de alguns factos; a importância conferida à oposição ao par Diogo Soares / Miguel de Vasconcelos como um dos factores agregadores dos restauradores; ou, em capítulo dedicado às formas jurídicas e parenéticas de legitimação da nova dinastia, o enquadramento ideológico dominante sobre a Restauração, que foi equiparada à libertação do cativeiro babilónico descrita no Antigo Testamento, o que identificava os portugueses com o povo eleito de Deus (p. 155).
3A Restauração é ainda apresentada como propiciadora de «mudanças estruturais com relevantes consequências em várias dimensões», ainda que, algumas delas, possam não ter resultado da vontade expressa dos protagonistas de 1640. Uma das mudanças foi a renovação da elite nobiliárquica e sua curialização, tendo Lisboa como centro. Recomposição da nobreza que provocou um assalto ao poder no período subsequente a 1640. Neste contexto (p. 141), mostrou-se que a ascensão e preponderância de Francisco de Lucena, até 1643, foi contestada por sectores aristocráticos que temiam ver nele projectada uma forma de governo por um valido, tal como nos odiosos tempos do passado. A ideia é boa, mas não exagerar. Porventura, o que mais incomodava a nobreza preterida não era tanto o regime político, mas antes o seu objectivo afastamento do centro da arena política, com a consequente perca de privilégios.
4Restauração e nobreza que, no livro, ofuscaram o rei. No fundo, só no último capítulo, o da morte de D. João IV ele foi protagonista, o que, aliás, é claramente repercutido no Epílogo, que não é senão outra forma de dizer Conclusão. Esta obra é mais sobre o tempo de D. João IV, do que uma biografia do rei. Apesar do esforço feito nas duas páginas derradeiras (pp. 278-280), nas quais se procurou pensar D. João IV no quadro da cultura política em que se movimentou. O que sucedeu, no final, provavelmente quando as próprias autoras se aperceberam do facto e o tentaram remediar.
5Quanto ao rei, a tese de fundo, parece ser a de que D. João IV, sobretudo até 1643, foi incompetente, basicamente porque, até ter assumido a Coroa, quase nunca saíra de Vila Viçosa, apesar de tentado a «participar na política» (p. 9). Hoje, dir-se-ia que era um provinciano. Por isso, foi indeciso, hesitante, inepto a gerir conflitos, concedeu excessivo poder a Francisco de Lucena, governou mais atento ao respeito das formas de decisão polissinodal e menos como rei absoluto. Ainda, que tenha havido algumas oscilações nesta análise. Afirma-se que D. João IV foi activo na governação e na guerra (p. 129) e, simultaneamente, que «era tido, por quem lhe entregara a Coroa, como estando distante e pouco inteirado dos assuntos» (p.132). O que se retoma declarando que, por 1642, o monarca estava «sobrecarregado de trabalho, analisava pessoalmente todos os requerimentos, assinava e despachava os papéis para serem submetidos a consulta nos Conselhos» (p. 142). Vingando a ideia geral de um rei pouco apto, ela não é fácil de articular com o resultado do governo no seu tempo. É que, se o monarca foi pouco enérgico e ausente, apesar disso, a Restauração triunfou, e ele não foi, para glosar expressão conhecida e no livro também adoptada, um «rei de Inverno». Morreu rei.
6Pontualmente há outras interpretações passíveis de discussão. A inexistência de uma Introdução não valoriza o livro. Todo o capítulo 1, «Fazer um rei. A conjura», propõe uma visão parcial do problema, ao focar-se nas perspectivas dos conspiradores, deixando à margem as debilidades do Reino, sem as quais o golpe não teria tido sucesso, e a própria conjura, provavelmente, não teria existido. Por outro lado, não explica as motivações concretas dos conjurados. Diz-se que Boxer foi «redutor e apressado» na classificação do grupo dos revoltosos (p. 29), mas aqui nem uma «apressada» análise das motivações foi sugerida. Não se avaliou com fidelidade o posicionamento da Igreja. Deu-se a ideia, incorrecta, de que em 1640 agiu como um corpo, sob o comando de D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa (p. 21). Interpretação retomada ao declarar-se «o compromisso do estado eclesiástico com a revolta» (p. 158), a partir das posições de alguns pregadores. O estado eclesiástico não teve uma posição consensual, uniforme e muito menos de corpo na conjura de 1640. Tal como em 1580, houve variados alinhamentos e evolução das estratégias individuais no decurso do processo.
7O capítulo 2 «Identificação do rei» tem um título desajustado. De facto, com inigualável domínio do assunto, trata da Casa de Bragança em geral (cerimonial, estratégias de casamento, espaços de habitação, hábitos alimentares, etc.), mas raramente do biografado. O melhor que aqui se colhe a esse respeito é o ambiente em que ele viveu e foi educado. Trata-se mais do pai e do avô que dele próprio. Por outro lado, parece deslocada uma tão detida análise da questão sucessória em 1580 (p. 40-43).
8No capítulo 3, salta-se do casamento de D. João para uma reconstituição das dificuldades económico-militares da monarquia hispânica, a partir de 1625, e das acções do então 8.º duque de Bragança, sublinhando a sua cumplicidade com os interesses daquela monarquia. No final do capítulo trata-se, da passagem dos episódios dos levantamentos de Évora de 1637/1638 para o golpe de 1640. Neste processo não fica claro como é que D. João abandonou o seu posicionamento tradicional e se transformou em protagonista e rebelde. Se assim foi, isso merecia explicação. Neste contexto (p. 76-77), condenou-se a interpretação segundo a qual durante a visita de D. João ao primo, D. Francisco de Melo, em 1635, a recepção e os discursos jesuítas denunciavam já um ambiente favorável à busca da nova situação no governo do reino. A esse respeito, as palavras pronunciadas na Sé pelo jesuíta Gaspar Correia são fundamentais, pois usou e ousou mesmo jogar com o vocábulo «coroa» aplicada a D. João. Ao contrário das autoras, não vejo nelas inocência.
9No capítulo 4 «As urgências» abordam-se os assuntos de governo mais prementes a seguir ao golpe: diplomacia, finanças, guerra, mas também a preparação das instalações do Paço da Ribeira. Mais uma vez a lógica da narrativa, por via de regra, não se faz a partir da perspectiva do biografado. Mas o maior problema do capítulo é que, depois de identificar/declarar quais os assuntos urgentes, não revela as soluções adoptadas, nas quais era expectável encontrar a mão de D. João IV. Pena ainda não se ter inserido qualquer referência à necessidade de conquistar apoios políticos internos, o que era também «uma urgência». Isso mesmo as autoras comprovam no capítulo seguinte, o 5 «Rei por mais de um Inverno». Ali o assunto é tratado, ainda que com incursões que, mais uma vez, não estão centradas na perspectiva da intervenção/participação/estratégias do biografado, inserindo-as nos respectivos contextos. E estes, por vezes, são exageradamente detalhados, como é o caso das páginas dedicadas à Casa de Vila Real (pp. 107-108).
10António Vieira surge pela primeira vez no capítulo 7, referido como conselheiro importante de D. João IV, a proferir o sermão de S. Roque, em 1644 (p. 151). Ora, bem antes, já ele usara o púlpito para intervenções de enorme significado político e já lhe tinham sido confiados serviços que mereceram recompensas, como a de ter sido feito pregador régio, nesse ano de 1644. Discutível e não demonstrada, ainda sobre Vieira, a tese que o dá como inábil do ponto de vista político (p. 219). O que neste mesmo capítulo se diz sobre a falta de provimento de bispos para as dioceses (pp.180-181), tem lacunas e por vezes afirmações reveladores de um domínio pouco aprofundado do assunto. Isso fica bem patente ao afirmar-se que crescia o número de dioceses «com bispos sem ser sagrados pelo papa». O papa não sagrava todos os bispos. Segundo, ninguém era bispo sem aprovação papal. Logo, em Portugal, nunca houve dioceses com bispos não sancionados pelo papa.
11É difícil aceitar o título do capítulo 10 «O meu Salomão. O príncipe herdeiro». É certo que nele se falará de D. Teodósio, mas as 6 a 7 páginas iniciais são para aludir aos gostos musicais do rei. Porquê só agora? Só nos anos 50 D. João se tornou melómano?
12Deviam ainda evitar-se algumas pontuais e excepcionais imprecisões: «Assentar» por «Santar» (localidade próximo de Viseu) (p. 110); 2.º Conde de Cantanhede, por 4.º Conde de Cantanhede (p. 115); apresenta-se Sebastião César de Meneses como «bispo de várias dioceses», o que ele nunca foi (p. 160); afirma-se que um Jorge Araújo Estaço era deputado do Conselho Geral do Santo Ofício, o que é erro (p. 215); na p. 211 e 220 faz-se referência a «luso-brasileiros». Que categoria é esta em meados do século XVII? D. Manuel da Cunha foi apenas bispo de Elvas, nunca teve um irmão «arcebispo de Lisboa» (p. 247).
13Justificava-se mais diligência na revisão do texto – o que não competia exclusivamente às autoras – por forma a evitar um número excessivo de gralhas, a referência a bibliografia nas notas de rodapé que não comparece no elenco bibliográfico final, ou até que se remeta o leitor para os «Apêndices», que afinal são «Anexos». Uma nota final para declarar que a redacção do texto é, em geral, clara e correcta, mas há alguns passos a merecerem reformulação.
14D. Afonso VI, da autoria de Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim é uma obra notável. Excelente problematização, exímio domínio da biografia do rei e da época, profundo conhecimento das fontes, exaustivo aproveitamento da biblio-grafia (sublinhando os contributos da historiografia precedente o que só valoriza e confere segurança à análise), num texto muito bem escrito, que chega a parecer poético, a partir de analogias sugeridas entre a história do rei e escritos de contemporâneos, particularmente António Vieira.
15O primeiro capítulo «Um rei incorrupto» funciona como introdução teórico-metodológica. Nele expõem-se os problemas que levanta a biografia do rei (o maior a desconstrução da sua memória e a recriação de uma mais fiel), faz-se um balanço da historiografia já produzida e apresentam-se as fontes.
16O capítulo II intitula-se «A paz está no céu». A primeira impressão é a de uma alusão ao processo do rei. No final, percebe-se que a metáfora evocava a paz de Vestefália, através de uma afirmação de António Moniz de Carvalho. Significa isto que, por vezes, este modo de enunciar os problemas, tem tanto de sugestivo como pode ser fonte de equívocos. Do ponto de vista substantivo fornece um panorama da política europeia no período da meninice de Afonso, insinuando-se a ideia (que acaba por não ser bem concretizada) de que havia «no ar do tempo», uma tendência para a mudança política, e como de Vestefália saíra uma nova Europa, pelo que a experiência portuguesa não deve ser vista como original. O que se articula com perspectivas seguidas no livro de D. João IV. Assinala-se ainda o paradoxo que constituiu o afastamento de um rei que, no seu curto reinado, foi protagonista de vitórias decisivas no conflito com Castela (p. 28).
17«O príncipe “partido pelo meio”» (capítulo III) apresenta uma original análise das representações pictóricas e médicas do rei, bem como dos quadros culturais que as enformavam. Pretendeu-se sublinhar que a imagem do rei doente e intelectualmente limitado foi o resultado da propaganda posterior. Trata-se ainda do nascimento de D. Afonso e do seu percurso até à regência de D. Luísa de Gusmão. Alguns detalhes são denunciadores do profundo conhecimento da vida do rei, das fontes coevas, da cultura do tempo e ainda de uma fina sensibilidade interpretativa. Excelente a reconstituição do ritual do baptismo (pp. 48-49), mostrando ter-se percebido que se estava a executar uma biografia. Exageradamente longo o tratamento das exéquias de D. João IV (pp. 64-66).
18O capítulo IV é dedicado à regência de D. Luísa de Gusmão. Centra-se na reconstituição da configuração política da corte e nas dificuldades financeiras causadas pela guerra e política diplomática portuguesa. O rei desaparece, tirando alguns passos, como o da entrada do Conti na corte. Mas a reconstituição é exemplar, fornecendo dados para perceber não só as movimentações que, após a morte de D. João IV, cindiram a corte em facções, como para perceber posicionamentos futuros relativamente à ascensão e queda de D. Afonso VI. Sublinha-se que de acordo com fontes produzidas por apaniguados de D. Pedro II, o rei era já descrito como desgovernado, violento, rodeado de más companhias, havendo rumores sobre as limitações sexuais de que padecia. Mas, na maioria das vezes, isso é apresentado condicionalmente e não afirmativamente. Deixa-se ao leitor, que não é especialista, o ónus da decisão interpretativa. Não parece avisado.
19O capítulo V trata do lance que colocou Afonso VI, apoiado por Castelo Melhor, conde de Atouguia e Sebastião César de Meneses (o triunvirato) no poder, reconstituindo as movimentações dos protagonistas, a cultura político-ideológica e o contexto sócio-cultural que conformavam a sua acção. O mesmo quadro que serviu para desenhar as alterações provocadas no centro político com a nova configuração saída do «golpe de Alcântara», expressão usada para referir o acto que levou D. Afonso de regente a rei e, simultaneamente, forçou o 3.º conde de Castelo Melhor a controlar o governo do Reino. Neste riquíssimo capítulo – pela percepção fina da realidade que procurou descrever, pela argúcia e clareza da narrativa –, explicita-se que não existiam apenas duas parcialidades (a da rainha regente e a de D. Afonso), e também que as alianças e ódios que marcavam a vida cortesã não eram um quadro de rígida estabilidade. Pelo contrário, «fidelidades e ódios» podiam «desfazer-se e reorganizar-se em função de episódios concretos» (p. 106). Ao tratarem do que seria(m) o(s) paradigma(s) políticos do modo de governar abrem muitos cenários, propõem duas vias alternativas para o que era considerado o poder do rei e o modo justo/perfeito de governar, criando um quadro de alguma ambiguidade, apenas desfeita no final do capítulo, ao defenderem que «a realeza era, no final de contas, refém da grande aristocracia» (p. 132). Interpretação controversa, mas, apesar de tudo, aceitável no caso específico e único de Afonso VI.
20O capítulo VI foca a acção de Castelo Melhor, como valido, a partir de 1664. Sugere-se que este é o tempo ideal para analisar «as transformações das representações sobre o poder no Portugal seiscentista», dado ter sido então que melhor se manifestou a «desestruturação da monarquia corporativa» e se afirmou a «monarquia real». Nuno Monteiro, em D. José I, dirá que tal só se efectivou com Pombal. O protagonista aqui é Castelo Melhor, esclarecendo-se qual seria o quadro ideológico em que aprendera o que veio a ser a sua praxis política, para depois se explicitar como governou no período decisivo e difícil das guerras da Restauração. Esta pluri-articulada incursão suscitou uma análise prévia muito bem informada do puzzle da política e da diplomacia internacional, focando em particular as relações entre Portugal, França, Inglaterra, Províncias Unidas e Espanha. Não se descurou o modo como a coroa se relacionou com os restantes corpos institucionais do Reino, ou seja a questão da comunicação do centro/periferias. Mas é mais um capítulo onde o rei desaparece. Os autores tiveram disso consciência e perguntaram «O reino rodava, e o rei, onde se encontrava o rei?» (p. 161).
21O capítulo sétimo é dedicado ao casamento de Afonso VI com Maria Francisca de Sabóia. De recorte muito bem pensado não se centra nos detalhes pitorescos (tantas vezes lidos de forma desenquadrada e anacrónica no género biográfico) das cerimónias e festas que se realizaram. Aqui, o conúbio e as festas, para além da reconstituição do facto em si, são aproveitados para reler a sua importância no plano da política externa portuguesa e enquanto projecto que visava combater a oposição interna ao governo de Castelo Melhor. Brilhante.
22Com o capítulo VIII inicia-se a análise da queda do rei. O primeiro episódio seleccionado foi a anulação do seu casamento, defendendo-se ter sido juridicamente viciado (p. 187), as testemunhas «inimigos de Castelo Melhor» (p. 193), e que, por isso, devia ser nulo. Sustenta-se que um dos pontos que o processo procurara demonstrar, sobretudo a partir do testemunho do médico António Ferreira, era a imbecilidade do rei e, nesse contexto, escreve-se que: alguns retratos pintados do monarca o denunciavam (p. 190). Ora, isto contraria a análise dos retratos exposta no capítulo III, de acordo com a qual, eles não figuravam a «imbecilidade» e doença de D. Afonso. Depois analisou-se a conjura de 23 de Novembro de 1667. Defende-se não ter sido «um golpe», mas antes o efeito de uma sucessão de pequenos golpes contra Sousa Macedo e Castelo Melhor cometidos nos meses anteriores (p. 198). Tendo presente esta interpretação, falta na reconstituição – que não é absolutamente conforme com aquela que se apresentou no livro dedicado a D. Pedro II – uma referência exacta à data (dia e mês) do «recolhimento e fuga» de Castelo Melhor (informação que tem que ser descoberta na cronologia final). Mas, sobretudo, estes episódios ocorreram cronologicamente antes da anulação do processo matrimonial, portanto antes da «demonstração» da deficiente anatomia e comportamento do rei, não havendo no texto o cuidado de justificar esta opção discursiva. O terceiro lance deste capítulo, é «o segundo tribunal» do rei, as cortes de 1668. Ali se procurou evidenciar, para além da incapacidade do rei, o facto de o seu governo ter sido tirânico e desastroso (banimento da corte de fidalgos, depauperação das finanças, ausência de respeito pelos regimentos dos tribunais, etc). Esta foi a visão dos vencedores, pois apesar das dificuldades graves, a gestão de Castelo Melhor teve imensos sucessos que foram calados em cortes. Porque não se contrapôs isso aqui?
23O nono capítulo mostra o que aconteceu ao rei e aos «afonsistas» após 1668. Ressalta o facto de que, ao contrário do que a historiografia tem acentuado, houve oposição política ao governo de D. Pedro, feita «na clandestinidade» por uma facção de fiéis do irmão, que, infelizmente, não foi identificada na sua composição. No fundo, teria sido essa oposição e a agitação que causava em Lisboa a desencadear a necessidade de o afastar da capital. Por aqui se demonstra também que o infante D. Pedro e a rainha Maria Francisca já se relacionavam enquanto decorria o processo de anulação do matrimónio (p. 221). Inovadora a reconstituição da vida de D. Afonso, em Angra. Talvez se diga mais sobre o monarca neste passo, quando ele já não reinava, do que nos capítulos dedicados ao seu governo, o que não deixa de ser significativo. Desnecessária a avaliação sobre a governação de D. Pedro.
24O décimo capítulo observa o regresso de Afonso VI dos Açores, em Agosto de 1674, e a sua ida para o derradeiro «desterro»: Sintra. Ali, ficou isolado e esquecido, como se sugere no título «Como se não houvera tal homem no Mundo», expressão do secretário de Estado Francisco Correia de Lacerda que os autores bem aproveitaram. Refere-se ainda a necessidade prévia que se sentiu de «limpar» os últimos vestígios de «afonsistas», explicitando-se a dureza das condenações de alguns dos envolvidos em conjura descoberta em Fevereiro de 1674. Uns degolados, outros esquartejados, incluindo fidalguia. Mais um exemplo da inaudita violência, a juntar a uma longa lista de desterros e afastamentos compulsivos da corte assinalados no decurso do livro. Actuação do rei e do centro político dificilmente conciliável com a interpretação de que os reis e a monarquia eram débeis e «reféns da aristocracia». Neste capítulo há ainda uma desequilibradamente longa incursão pelas cortes de 1674. Nelas se levantaram vozes para que os «povos» não fossem chamados a opinar sobre o destino a dar a Afonso, pois, como dizia o Marquês de Gouveia: «nos negócio políticos não é justo que tenham parte os povos», o mesmo Marquês que dizia a D. Pedro ser necessário influenciar a escolha dos representantes às cortes. Significa tudo isto que o centro estava nas mãos da periferia? Tanto mais que havia boa capacidade para controlar e centralizar no rei, coadjuvado pelo Conselho de Estado e secretários as decisões nucleares do governo político. O próprio Vieira insistiu na ideia de que não se devia «pedir aos súbditos os remédios e arbítrios que a eles pertence obedecer e não determinar». Sabia do que falava.
25O derradeiro capítulo serviu para tratar da morte do rei, espremendo, como sempre, os poucos relatos conhecidos desses momentos. Depois as exéquias, aproveitando-se o facto de ter sido sepultado em Belém e não em S. Vicente de Fora, para assinalar o que fora estratégia desde 1667: anular a memória sobre Afonso VI. Por último, volta-se a D. Pedro, à questão de dever ele ou não assumir a coroa, à morte da rainha D. Maria Francisca, e ao problema da sucessão, com breve referência ao 2.º casamento de D. Pedro e às diligências para o matrimónio da única filha, que não se concretizou.
26O objecto e a memória que quis fazer esquecer D. Afonso, ou dele dar determinada imagem, criou embaraços. Porventura, foi essa a origem do que me parece um dos problemas do livro: uma relativa ausência e apagamento do rei. Ao invés é um estudo lapidar, a partir de hoje incontornável, sobre a política portuguesa e a sua articulação com a política europeia no tempo em que Afonso VI viveu. A segunda crítica que faço é a da ausência de uma conclusão. Faz enorme falta. Foram sugeridas muitas pistas interpretativas e sem sempre os autores demonstraram com clareza as suas opções. Falta aqui uma tese, ou teses.
27O terceiro livro em análise, D. Pedro II. O Pacífico (1648-1706), foi redigido por Maria Paula Marçal Lourenço. Há nele um desequilíbrio de qualidade entre os quatro capítulos iniciais e os três finais. São evidentes as dificuldades subitamente surgidas na vida privada da autora durante a redacção do texto, o que a própria confessa na Introdução. É disso sintoma a inexistência de uma conclusão que avivasse e resgatasse as múltiplas incursões efectuadas, as linhas de força mais salientes do perfil de D. Pedro II e do modo como chegou a rei e exerceu a governação.
28Os quatro capítulos iniciais têm excelente recorte. Bem escritos e estruturados, inovadores, seguros, consistentes na argumentação e domínio das fontes. No capítulo 1, demonstra-se que a ascensão de D. Pedro não foi apenas fruto das debilidades do irmão Afonso ou do governo malquisto de Castelo Melhor. Explica-se que D. João IV preparou o infante para poder vir a assumir o trono: dotou-o com património através da criação da Casa do Infantado, não se esqueceu da preparação militar, armando-o cavaleiro da Ordem de Cristo, na capela Real, em 1655. De igual modo, D. Luísa de Gusmão e a sua «entourage» (o Duque de Cadaval, o Conde de S. Lourenço, Rodrigo de Meneses, Nicolau Monteiro, António Vieira, Conde de Cantanhede e Marquês de Nisa), apoiaram a criação de uma alternativa à Coroa. O facto de durante a regência da rainha se ter posto casa ao infante, com 14 anos, é indicador dessa estratégia. O capítulo encerra-se com a morte de D. Luísa de Gusmão, em Fevereiro de 1666, considerado o momento terminal de uma relação que, até então, fora pacífica entre os irmãos.
29No capítulo 2 avalia-se se os direitos concedidos à Casa do Infantado foram uma fonte de centralização e reforço do poder da Coroa, ou um factor da sua diluição, abordando uma questão nevrálgica sobre o poder do centro político e a sua capacidade de afirmação face à constelação dos poderes existentes na monarquia polissinodal. Neste aspecto, notam-se indefinições interpretativas e uma flutuação constante entre teses filiadas nas leituras inicialmente propostas por António Manuel Hespanha – as quais sublinham os limites do poder do rei e tomam a justiça como a sua principal função – e, por outro lado, constatações baseadas em conclusões retiradas pela própria autora, que vão no sentido de que a criação da Casa do Infantado constituiu reforço do poder jurisdicional da monarquia. Aborda ainda 3 linhas para explicar a deposição de Afonso VI: a postura de D. Pedro face ao casamento do irmão; o crescente protagonismo político da rainha que degradou a imagem de Afonso VI; os motivos do descontentamento do infante relativamente ao governo do Reino. Louva-se a clareza metodológica e a problematização da abordagem. Questiona-se a ausência neste complexo causal da pressão da diplomacia francesa (aspecto considerado no capítulo seguinte), as razões do descontentamento dos «Grandes» apoiantes de D. Pedro, e as fragilidades da estratégia de isolamento político de Castelo Melhor. Aliás, sobre este último ponto, fica pouco definido o comportamento do valido nesta conjuntura. Salienta-se que no seu tempo se forjou uma «corte restrita» (p. 89), tal como se assevera que ele «foi hábil» (p. 92) – dando lugares e mercês a gente ligada a D. Pedro – e «politicamente moderado» a reprimir as oposições a Afonso VI. O terceiro capítulo, corolário de toda a trama explicativa trata da tomada do poder por D. Pedro II, no «decisivo ano» de 1668, num andamento trifásico: analisar o grupo dos mentores da «conjura», o papel da rainha e a interferência da diplomacia francesa, e a realização das cortes de 1668. Os títulos talvez não sejam felizes, par além de sugerirem que, de certo modo, D. Pedro teria sido empurrado por quem lhe estava «detrás». O que não corresponde exactamente à interpretação explicitada no texto. Acresce que, ao referir o auto-afastamento de Castelo Melhor como um dos aspectos que decidiu o rumo da «cabala» de 1667 a favor do infante, desvaloriza, talvez não intencionalmente, as próprias movimentação políticas dos «cabalistas». Fica também por explicar porque não se procede a uma reconstituição mais detalhada dos três factos com que inicia a exposição do capítulo 3.3 e que se consideraram essenciais, isto é: o afastamento de Castelo Melhor, a fuga da rainha para o Convento da Esperança e a deposição do rei, evidenciando o envolvimento de D. Pedro nesta conjuntura. Devia ter-se explicado a inexistência de bispos nas cortes de Janeiro de 1668 (p. 114).
30O capítulo 4 centra-se em tópico que quase todos os autores destas biografias consideraram (aspecto elucidativo de tendências da historiografia portuguesa contemporânea) a questão da memória do rei. Depois de num excelente exercício mostrar a necessidade de, para construir a imagem do rei, ser imperioso desconstruir os textos, ora apoteóticos, ora críticos da sua representação, conclui, talvez com uma parcialidade própria de quem ganhou afecto pelo biografado, que o monarca teve vida e comportamento «quase ascético» (p. 124). Não será esta uma conclusão que padece dos vícios dos autores/historiadores polemistas que a precederam? Tanto mais sabendo-se que, tanto do ponto de vista da sua vida amorosa privada, como do envolvimento político na deposição do irmão, D. Pedro não foi “asceta”, nem inocente.
31A partir do capítulo 5 o livro perde qualidade. Está excessivamente centrado em casamentos (o da filha de D. Pedro e o seu segundo) e na influência da rainha D. Maria Francisca de Sabóia. Diz pouco dos problemas do Reino e sua governação. Glosando o título dir-se-ia sobrar-lhe «em afectos» o que carece de «razão de Estado». Ao contrário do expectável, sobre esses anos decisivos de 1668 a 1685, pouco se fica a saber de Portugal e do seu governo pelo rei. O que não foi resolvido adiante, no ponto 6.4.3, que ficou aquém do desejável, quase se limitando a expor por ordem cronológica medidas legislativas tomadas, a maioria das quais apenas atinentes a Lisboa. Até do ponto de vista da estrutura organizativa se topam falhas. Parece pouco acertado ter-se encaixado um ponto sobre «as amantes do rei» (capítulo 5.9.4) no capítulo 5.9, dedicada à segunda esposa de D. Pedro II. A própria escolha dos títulos oferece reparos. O tópico 5.9.4, para o qual se procurou uma designação apelativa «As doces delícias dos amores proibidos: as amantes do rei», está mais centrado nos casamentos de D. Luísa, filha ilegítima do rei, e na revelação de algumas facetas dispersas do governo do arcebispado de Braga por D. José, outro bastardo do «ascético» D. Pedro, do que nos amores do monarca.
32No capítulo 6, que seria decisivo para perceber a actuação de D. Pedro enquanto rei, traça-se um quadro da diplomacia, guerra, formas políticas de governo, conjuntura económica, relações Igreja/Estado e dinâmicas culturais, raramente na perspectiva do envolvimento de D. Pedro. No fundo, trata-se do «tempo de D. Pedro II», mas não de D. Pedro no seu tempo. Exemplos de alguns aspectos menos conseguidos indicativos de imprecisões e falta de profundidade. Não é clara a explicação dos motivos que originaram a Guerra da Sucessão (p. 218), sobretudo por confronto com a dada, aí talvez fora de contexto, por Nuno Monteiro, no livro relativo a D. José. Enaltece-se o lugar de centralidade que a corte vai assumindo a partir da Restauração (p. 230), em particular durante o governo de D. Pedro. Ora, o processo não nasceu com ele. Desde pelo menos D. Manuel I que tal se verificava. Sugere-se que o «disciplinamento da nobreza» começou com D. Pedro (p. 241), quando tem raízes mais remotas no tempo. Que fez D. Pedro comparável à decapitação da Casa de Bragança verificada no reinado de D. João II? A reconstituição do episódio do roubo do Santíssimo Sacramento ocorrido na Igreja de Odivelas, em 1671, e o problema da suspensão do Santo Ofício (p. 265 e seguintes), são tratados de forma incompleta, para além de baseados numa visão única (Martins, 2002), a qual é muito pouco consistente e enferma de vários erros. Por fim, deparam-se neste capítulo momentos de eleição para verificar a contradição/tergiversação das posições da autora entre a defesa do «modelo» Hespanha/Cardim (que sublinha a debilidade e dependência do poder do rei, uma cultura política marcada pelo predomínio de relações de amor e afecto entre o monarca e os súbditos, na qual a função principal do soberano é respeitar os privilégios e direitos dos vários corpos sociais - fazer justiça, uma elite aristocrática que monopoliza e controla o Conselho de Estado e da qual o rei é refém, etc.) e o «modelo» de Jorge Borges de Macedo e outros que sustentam a existência de uma monarquia absoluta (em especial pp. 230-231 e 239-241). Este é, aliás, conceito que a autora aqui usa (p. 231), imediatamente após ter contextualizado o lugar central da corte na linha das teses do «modelo» Hespanha: indefinição/ incoerência, que se entranha ao longo do texto.
33O breve capítulo sétimo, reproduz a partir das fontes os passos essenciais da fase terminal da vida e o ritual da morte do rei.
34Há ainda lapsos menores e gralhas que se adensam a partir do capítulo 5: Nicolau Monteiro nunca foi bispo de Portalegre (p. 22); «datas» por «dadas» (p. 24) erro que se repete sistematicamente; no título de um capítulo «fracterna» por «fraterna» (p. 87); ao contrário do que afirma a Inquisição não tinha jurisdição para vigiar os comportamentos relacionados com as normas de recato e recolhimento femininos (p. 151); Roma não era um «reino» (p. 194); «vivência da morte» (p. 199) não é expressão feliz; «quidénios» por «quindénios» (p. 227); Manuel de Moura Manuel nunca foi «inquisidor-mor» (p. 227). E imprecisões e ausências injustificadas na bibliografia. Não citar Fernanda Olival ao falar do sistema da economia de mercês é incompreensível, pois trata-se do estudo mais exaustivo disponível sobre a questão (pp. 239-241); estranha-se não referir o trabalho de Maria do Rosário Castiço Campos - D. José de Bragança: estadia e educação no “Colégio e Universidade” de Évora, quando analisou a educação deste bastardo de D. Pedro. Em simultâneo utiliza bibliografia a evitar em trabalhos académicos rigorosos, como é o caso de G. Minois, autor que escreve sobre praticamente tudo, obviamente, de forma superficial. Por último, surgem várias referências abonadas em nota de rodapé que não constam do elenco final da bibliografia, por exemplo: p. 143, nota 3 «Abreu, 2000»; p. 145, nota 4 «Pereira, 1995»; p. 166, nota 3 «Faria, 2005»; p. 191, nota 7 «Moita, 2005»; p. 214, nota 1 «Gomes, 2002», «Abreu, 1997» e «Lobo, 2002»; p. 231, nota 3 «Peck, 1993»; p. 232, nota 2 «Marques, 1993»; p. 242, nota 4 «Serrão, 1960».
35Termine-se com uma das boas ideias e contributos para a historiografia moderna: D. Pedro II preparou muitos dos aspectos que marcaram a actuação do seu sucessor e filho D. João V. São disso exemplo a exuberância ritual e cerimonial (de que o seu 2.º casamento é um dos momentos áureos), a afirmação estratégica de Portugal no contexto da diplomacia internacional (de que a participação na Guerra da Sucessão de Espanha, ou a primeira embaixada do futuro Marquês de Minas a Roma foram peças fulcrais), a consolidação da autoridade absoluta do monarca. Estes não são dados menores. É que eles constituíram tópicos que, durante largas décadas, a historiografia quis sublinhar como sintomas do cariz inovador do governo joanino.
36Observe-se D. João V, da autoria de Maria Beatriz Nizza da Silva, o qual destoa do padrão de boa qualidade de todos os outros. Ele está construído a partir de um enorme equívoco e com a intenção oculta de transmitir uma ideia pré-concebida do rei (criada pela historiografia oitocentista), segundo a qual ele teria sido fanático, leviano, repleto de tiques ridículos, que viveu rodeado por hábitos e por uma corte também eles ridículos: gente extravagante e esbanjadora das riquezas oriundas do Brasil.
37O equívoco foi considerar-se que era possível compilar um livro sério baseando a sua construção quase exclusivamente em informações avulsas e pitorescas recolhidas em gazetas e notícias de viajantes estrangeiros (e mesmo a este nível com graves lacunas, não utilizando as preciosíssimas, detalhadas e quase quotidianas informações enviadas pelos núncios para a Segretaria di Stato, na Santa Sé. Desconhecimento?). Fica evidente que a autora esteve mais preocupada em assinalar episódicos acontecimentos, por norma mal alinhados e organizados, frequentemente sem significado relevante para compor a biografia do rei ou para perceber o seu tempo. Isso fica expresso em muitos indicadores, como o seguinte. Para tratar o assunto essencial dos «Mecanismos de decisão» (cap. 1 da Parte III) utilizou 4 páginas. Mas já «Como a nobreza se divertia» mereceu 7 páginas de historietas irrelevantes. Por vezes, a obsessão pela informação recolhida em gazetas é tão absorvente que se chega ao cúmulo de escrever: «Em 1709, no dia de Santa Ana, se preparou no Paço um sarau ‘com uns retalhos de comédia alinhavados não sei por quem’, segundo escrevia José da Costa Brochado...» (p. 105). Dado precioso, sem dúvida!!!. E o pior é que, com frequência, nem apurou o significado do que se referia nessas fontes. Por exemplo, diz-se que os criados comiam em tinelo, «ou seja, numa mesa redonda numa sala própria» (p. 54), o que não é correcto. Fica ainda patente o muito pouco rigor na utilização dos dados. Por exemplo, apresenta-se uma tabela extraída do sério trabalho de António Pimentel sobre as obras de Mafra (pp. 98-99), de acordo com a qual, em 1731, ali trabalhavam cerca de 10 mil artífices. No mesmo contexto, e usando imprecisos dados colhidos numa gazeta, a autora contabiliza-os entre 15 mil e 21.594!!! E comentando a tabela de Pimentel diz que, a dado passo, adoeceram 17.097, quando eles eram cerca de 10 mil!!!
38A isto juntam-se falhas inadmissíveis na bibliografia compulsada. Elenco um reduzido leque das mais gritantes omissões, tanto de estudos clássicos, como de trabalhos mais recentes: Luís Ferrand de Almeida, Alexandre de Gusmão, o Brasil e o Tratado de Madrid (1735-1750) e A colónia do Sacramento na época da sucessão da Espanha, Coimbra, 1973; Ana Cristina Araújo, A cultura das Luzes em Portugal. Temas e problemas; José Sebastião Silva Dias, Portugal e a cultura europeia (sécs. XVI a XVIII); Isabel Maria Henriques Ferreira da Mota, A Academia Real da História. Os intelectuais, o poder cultural e o poder monárquico no século XVIII,; Rui Bebiano, D. João V poder e espectáculo; Nuno Gonçalo Monteiro, Identificação da política Setecentista. Notas sobre Portugal no início do período Joanino; Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal; Fernanda Olival, As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789); António Pereira da Silva, A questão do sigilismo em Portugal no século XVIII. História, religião e política nos reinados de D. João V e de D. José I. Uma das consequências deste posicionamento e desastrado modo de proceder foi a denúncia de uma autora mal preparada, desinformada e profundamente desactualizada. Enumerem-se apenas alguns dos casos mais graves, pois os limites de espaço não consentem outro modo de proceder, nem é relevante para o leitor desta nota crítica conhecer a catadupa de incorrecções em que o texto é pródigo.
39Na p. 16, assumindo o axioma de que partiu, segundo o qual não é possível construir uma biografia quando não há notícias nas gazetas, afirma-se a parcimónia de informações sobre o parto do príncipe João, o que nem permite saber o nome das pessoas que a ele teriam assistido. Ora, esses dados são disponibilizados no volume anterior, relativo a D. Pedro II (p. 189). É certo que a autora não teve acesso a ele, mas podia ter consultado a mesma fonte de informação, um códice manuscrito existente na Biblioteca Nacional (Lisboa). Para alguém que devia ser especialista sobre o assunto é inaceitável uma falha desta natureza. Este género de lacunas perpetuam-se por todo o ponto 1 e 2 da Parte II, relativos à «infância e aprendizagens» do biografado e à morte de D. Pedro II, para os quais não foram utilizadas fontes de informação indispensáveis. Na p. 21, o relato da morte de D. Pedro, para além de conter pormenores desnecessários, distorce e desvaloriza os conselhos que o moribundo deu ao seu sucessor. Basta compará-lo com a reconstituição que, do mesmo acto, apresentou Paula Marçal Lourenço (p. 287). Isso não foi inocente, antes estratégia dirigida a apoucar a imagem global do rei.
40Sustenta-se que a educação de D. João V «foi pouco cuidada» (p.17) por não ter preceptor e passar o tempo com um jesuíta. Ideia insustentável. Porque supõe que a formação ministrada por um jesuíta era incompetente. Mas, sobretudo, porque a educação de um príncipe não era deixada ao sabor do acaso, como, aliás, a autora revela mais adiante, contradizendo-se. Contradições que abundam. No essencial, isso decorre de compor o texto a partir de leituras fragmentárias de curiosidades excertadas de gazetas. Por exemplo, sustenta que os fogos preparados para o casamento de D. João V, apesar de dispendiosos foram de «pouca ou nenhuma variedade», aproveitando para os declarar «monótonos» (p. 25). Adiante, os mesmos fogos eram «brilhantes», pelo que se lhes referiu salientando a «magnificência do espectáculo» (p. 26) e «complexidade» (p. 27). Ao abrir o capítulo 10 considera-se: «Enquanto os actos de devoção eram diários no quotidiano de D. João V (aspecto a que no capítulo dedicado a esta matéria não referiu, nem lhe reconheceu a importância que ele merecia) as ocupações recreativas eram esporádicas e submetidas a um calendário de aniversários e dias onomásticos, casamentos, nascimentos» (p. 105). Poucas páginas antes (pp. 80-82), fornece exemplos de saídas do rei para a caça, passeios a quintas, etc., que não sucediam nestes dias, e que demonstram como os momentos de desenfado não eram «esporádicos».
41O capítulo 7, da Parte II «Confessores e conselheiros», assunto importantíssimo para se perceberem os mecanismos de decisão e de influência do rei, é de uma pobreza confrangedora. Não explicita a cronologia e áreas dos valimentos. Não releva a acção e importância de alguns dos mais próximos elementos do círculo restrito do monarca, como o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real. Em relação a outros denota crassa ignorância, como sucede com frei Gaspar da Encarnação, cujo papel foi bem realçado no livro seguinte, mas que aqui é apresentado como alguém que trataria dos assuntos privados do rei, sobretudo das relações com os filhos «adulterinos». Ora Gaspar da Encarnação influência notável nas decisões eclesiásticas, pelo menos a partir dos anos 20, sobremaneira, após a morte do cardeal da Mota, e nos anos finais da governação do rei, foi a figura mais poderosa no centro político.
42Idênticas carências no capítulo dedicado aos mecanismos de decisão de governo (p. 154 em diante), com a agravante de que ele era essencial para se perceber que D. João V não foi um rei fanático, debochado e ridículo. Não se valoriza o papel que o Conselho de Estado manteve até aos inícios dos anos 20, não se estabelece uma correcta e rigorosa cronologia dos indivíduos com valimento junto do rei, não se apercebe das disputas entre facções ao redor do rei e as implicações que isso tinha na tomada de decisões, mas, sobretudo, não explicita o papel activo e cuidadoso do rei, que era um profundo conhecedor e examinador das matérias de governo, em especial até à sua doença.
43Em alguns momentos parece haver uma intenção de «falsificar a história». Para tentar passar a ideia de um rei fanático, escreveu que foi «a sua presença constante nos autos-de-fé [sic]» (p. 114). Ora, entre 1706 e 1750 fizeram-se em Lisboa 28 autos-de-fé públicos. O rei esteve presente em 7. De igual modo, não é sério colocar o capítulo dedicado a este assunto, intitulado «O espectáculo da fogueira» (desconhecendo que «o espectáculo da fogueira» acontecia após e não durante o auto-de-fé), ao lado de outros em que pretendeu abordar os «divertimentos» do rei e os seus interesses científicos e literários (não relevando a importância destes na vida de D. João V, com particular ênfase para o seu gosto pela História e mecenato da Academia Real da História). Acresce que neste pequeno ponto de duas páginas relativo aos autos-de-fé comete vários erros, como afirmar que os nobres, só por esse facto, eram familiares do Santo Ofício, ou dizer que o rei contribuíra com 15 mil cruzados para um jantar de um auto em 1709 (revelando não fazer ideia do que eram 15 mil cruzados); ou equiparar as instalações do Santo Ofício a um «lugar de recreio da família real» (p. 115)!!! Erros que volta a cometer adiante, no capítulo «O rei e a Inquisição». Afirmar que a presença do monarca num auto-de-fé se destinava a levar os «penitentes a confessarem as suas culpas, escapando assim à fogueira», é algo que um historiador minimamente informado não pode reproduzir. Em parte, identifica-se a origem dos erros: as más fontes que usa. Um dos exemplos é o episódio que conta de umas feiticeiras de Alcácer do Sal, as «Salemas», a partir de um manuscrito da Biblioteca Nacional. O original existe na Torre do Tombo e revela um caso bem diferente do aqui narrado.
44Pese tudo isto, uma das partes pior conseguidas do livro é a IV, a qual foi intitulada «Politicas régias». Subdivide-se em 3 capítulos: «Política colonial», «Política Europeia», «A embaixada à China», o que faz lembrar, de facto, uma taxinomia chinesa!!!. E políticas para o governo do reino não houve? Para além disso, há um fosso entre o que os títulos sugerem e aquilo que se abordou. Na maior parte dos casos não se tratou das «políticas» da Coroa sobre o império, mas de acontecimentos que por lá iam ocorrendo. No caso das relações com a Santa Sé descuidam-se até aspectos essenciais. Ao ler o aqui escrito o leitor não fica sequer a saber por que motivo houve no reinado de D. João V um corte de relações diplomáticas com o papado.
45Outro dos vícios deste trabalho é o de misturar «anedotas» e rumores com dados sérios, como é o caso da uma suposta banheira de ouro destinada a uma amante do rei (capítulo 4, parte II). Para além de frequentes comentários, de mau gosto, despropositados, e reveladores do não entendimento da cultura do tempo. É o caso de considerar uma «diversão» da rainha e das damas as visitas que faziam às igrejas na semana da Quaresma, «divertimento» que se coloca ao lado de passeios de falua pelo Tejo ou montarias (p. 33). Ou sustentar que a preocupação de D. João V em visitar locais de culto é perceptível «logo» em 1732 (p. 96). Logo? Em 1732 tinha passado mais de metade da sua vida, 43 anos e governava há mais de duas décadas!!!.
46A estrutura narrativa é sofrível. Não tem sentido (ponto 4 da Parte II) ao abordar a casa da rainha, colocar um tópico relativo às amantes do rei. No ponto 13 da Parte II, intitulado «Doenças e preces pela cura», há um ponto sobre «A declaração dos filhos espúrios»!!! Esta falta de ordem transmite-se ao interior dos capítulos, incluindo neles matérias absolutamente deslocadas. O dedicado à mesa do rei termina com dois parágrafos extravagantes: o 1.º sobre precedências relativas a ofícios da guarda do rei; 2.º com as opiniões de D. Luís da Cunha a propósito dos critérios que se deviam utilizar para escolher servidores para o Paço Real. E que sentido terá criar um capítulo autónomo, o 12 da Parte III, com cerca de 1 página de texto?
47É, para finalizar, um texto recorrentemente mal escrito, muitas vezes utilizando formas que não são as comuns em português. Exemplos: «a discussão do conceito de infância (...); uns a prolongavam até os 7 anos» (p. 16); «Como escrevia D. Mariana Vitória esta viagem lhe faria bem...» (p. 45); «As caçadas com os irmãos se repetiram» (p. 80); «O rei lhes garantiu que tal não acontecia e lhes disse que não se falasse mais nisso» (p. 83); «Quis D. João que participassem desta procissão...»; «Quando se realizassem festas na cidade, ou fora dela, D. José não as assistiria em público...» (p. 54); «Uma outra liberalidade do monarca nos é conhecida através das memórias do Conde...» (p. 93).
48E assim se chega a, D. José. Na sombra de Pombal, da autoria de Nuno Monteiro. Eis um livro de muito boa qualidade para conhecer o Portugal da segunda metade do século XVIII. Bem escrito, actualizado, por norma centrado em problematizações pertinentes, preocupado em integrar/comparar o caso português com outras situações coevas, não deixando de fora, em geral, nenhum dos aspectos nevrálgicos do período. Com a vantagem acrescida de ser portador de importantes novidades, demonstrativas de que ainda vale a pena os historiadores trabalharem nos arquivos. Destaco a excelente síntese da evolução política, a que chamou a «monarquia barroca». A constatação de Carvalho e Melo ter sido o primeiro secretário de Estado elevado à condição de «Grande», contrastando com o passado em que tal jamais sucedera. Uma apurada capacidade para perceber os assuntos nevrálgicos da política do tempo, de que é bom exemplo a identificação dos grandes problemas enfrentados pela governação do reino no início da tomada do poder por D. José (pp. 60-74), ou a reconstituição do atentado contra o rei em 1758 (pp.104-107), baseada na correspondência da rainha D. Mariana Vitória. Aspecto que tem a enorme vantagem de resolver em definitivo um problema historiográfico decisivo para interpretar o reinado e a actuação de Carvalho e Melo, pois fica comprovado que o atentado existiu e que não foi uma maquiavélica invenção. A constatação de que só 3,5% das receitas da Coroa se destinaram a cobrir as despesas da reconstrução de Lisboa, após o terramoto de 1755 (p. 176), mostra bem a diferença entre o impacto real e o imaginado ou divulgado de um acontecimento.
49Um dos problemas maiores, e do qual em boa medida o seu autor tem consciência (prova-o bem o título e o que escreve no Epílogo) é a quase ausência do rei. Esta ainda não é a biografia de D. José. Dele se fica a saber pouco mais além de que «era grosso», admirava o sexo oposto e gostava de caça e ópera. O episódio do atentado é disso paradigma. O que se diz do comportamento do rei nesse contexto? Nem sequer se deixa o leitor esclarecido relativamente ao facto de saber se manteve ou não, um relacionamento com a marquesa Teresa de Távora. Neste livro, para retomar imagem sugerida pelo título, D. José nem sequer apareceu por trás da sombra de Pombal. Foi eclipsado por ela. Isso é bem evidente no capítulo 13, no qual, finalmente, se procura centrar a atenção no rei, e já se tornara por demais evidente que o rei não governava. Por isso se pergunta se não teria sido mais ajustado para toda a economia do texto colocar este capítulo a abrir o livro, explicitando que ele não iria ser uma biografia. É ainda difícil perceber porque é que neste mesmo capítulo só se fala do monarca entre 1762-1774. O que justifica esta opção? Não houve rei entre 1750 e 1762? E desapareceu, mais uma vez, de 1774 até morrer em 1777? Lamenta-se que esta não seja uma biografia de D. José, tanto mais que se revela existirem abundantes fontes para a compor e pensar (apesar de não ter sido compulsada muita outra documentação com preciosas informações, existente tanto na Biblioteca da Ajuda como no Archivio Segreto Vaticano). Entre esses dados destaque-se a confirmação de que D. José também teve filhos bastardos, mas que, ao contrário de outros seus antecessores, nunca os legitimou, o que também é um bom sinal do seu carácter (ou falta dele?). Outras vezes não se entende porque não explicita aspectos fundamentais para se perceber a relação do monarca com o seu principal ministro, e o modo como D. José participava na governação. Por exemplo, sustenta-se a partir da leitura da correspondência de Carvalho e Melo com o secretário de Estado Luís da Cunha, que na relação dele com o rei «tudo decorreu conforme o valido quis, embora houvesse algumas surpresas» (p. 213). Que surpresas? Porque não se explicitam e justificam? E que significado atribuir em concreto à expressão tudo decorria «confirme o valido quis»? Finalmente, é pena que não se tenha justificado/argumentado a tese de fundo sustentada, a saber, que boa parte das opções que em nome do rei foram tomadas por Carvalho e Melo, sobretudo após 1755, se não partiram da própria iniciativa josefina, contaram com a sua conivência. Isto foi apenas afirmado, não demonstrado. Já para não dizer que em alguns momentos rei e valido não estiveram de acordo. Sabe-se, por exemplo, que o corte de relações com a Santa Sé era algo que apoquentava D. José I, o que não é referido neste estudo.
50O segundo grande problema é a falta de justificação para o livro ter sido dividido em duas partes. Qual a lógica interna que presidiu à constituição de cada uma? Que fractura, mudança, novidade justifica o início da segunda Parte, pela década de 60? A novidade foi a produção legislativa? Então antes de 1760 ela não existiu? E, mais uma vez, que conta isso na perspectiva da biografia do rei? É que o livro era uma biografia do rei, como o autor quis recordar no Preâmbulo, chamando a atenção para a importância deste género e a desvalorização a que foi sujeito na historiografia portuguesa do século XX. Acresce que se tomou por boa a clássica divisão do reinado em 4 ciclos, proposta por Borges de Macedo (p. 174), a qual evidencia que também houve produção legislativa antes de 1660. Mais, se esta parte II era a dedicada às reformas pombalinas, falta uma atenção cuidada dada às do ensino. Delas, particularmente sobre a da Universidade, dizse pouco e fora de sítio, apenas no capítulo 14 (que era capítulo intitulado «Inauguração da estátua equestre: apoteose e declínio», um título claramente falhado em função do seu conteúdo), não a integrando em toda a dinâmica das políticas de ensino. Ainda a este respeito é lacuna do estudo a inexistência de qualquer referência ao impacto da obra de Verney, Verdadeiro Método de Estudar, que julgo não ter sido referida em todo o livro. O que facilmente se poderia apurar se o Índice remissivo final não tivesse tantas omissões. O que é lamentável. Mas essa responsabilidade não pode ser exclusivamente imputada ao autor.
51Depois há outras críticas ou discordâncias pontuais. Discutível a vantagem e pertinência de abrir o livro com a Guerra de Sucessão de Espanha, pois D. José ainda nem sequer nascera.
52A síntese sobre a origem da jacobeia e a questão do sigilismo (p. 43) contem imprecisões e equívocos, como declarar que o movimento nasceu no interior dos cónegos regrantes de S. Agostinho, em Santa Cruz. Vícios de que enferma a reconstituição proposta adiante (p. 204) sobre D. Miguel da Anunciação, sigilismo e jacobeia.
53Defende a tese de que a escolha de Carvalho e Melo para secretário de Estado dos Estrangeiros teve muito de contingente, e que tanto o rei, como o próprio, não a promoveram, sustentando ainda que o ministro não tinha por esta altura, tal como não havia no espírito do rei e dos dois outros secretários de Estado, um projecto político definido (p. 56). Isso não foi demonstrado. Não há dados que permitam contra-argumentar as bem fundadas opiniões de Silva Dias, no seu «Pombalismo e projecto político», que evidenciam um pensamento já bem estruturado de Carvalho e Melo nos anos 40, quando era ainda diplomata em Londres e que, durante os doze ou treze anos de marcha para o poder, ele revelou prudência, medindo com cautela e critério os seus passos políticos, e mostrando-se cuidadoso nas suas relações pessoais.
54A explicação monocausal fornecida para o antijesuitismo pombalino é insuficiente (p. 72). No fundo, para jogar paradoxalmente com a sua argumentação (um interessante exercício de estilo), o autor afirma que se o Tratado de Madrid motivou o apoio dos jesuítas a Carvalho e Melo, foi a aplicação do mesmo a desencadear a aversão à Companhia. Mais, nesse processo teriam sido informações fornecidas pelo seu irmão Francisco Xavier Furtado de Mendonça, governador do Pará e Maranhão, sobre o domínio e poder exagerado dos jesuítas naquela região, o móbil inicial do dissídio. Como escreveu, o Brasil foi a causa do anti-jesuitismo pombalino (p. 77). Ora, os motivos que levaram ao enfrentamento não radicam apenas no Brasil, como, aliás, no decurso do livro se deixa patente. O poder jesuítico no ensino, a influência na corte e em famílias da nobreza, as posições na Santa Sé, foram outras causas do choque que Carvalho Melo, estratégico seleccionador dos seus adversários, teve com a Companhia. Outro detalhe.
55Nuno Monteiro não foi o primeiro a assinalar a importância dos episódios do Brasil para justificar a querela Pombal/jesuítas. Era correcto isso ter sido explicitado. Aliás, são frequentes as afirmações sem fontes bibliográficas ou outras que as sustentem. Pode-se argumentar que a colecção tem um cariz de divulgação, não convindo sobrecarregar o texto com erudito aparato crítico. Mas entre isso e, por vezes, omitir totalmente as fontes de informação vai um largo passo. Bom exemplo quando se diz ser plausível resumir em duas «categorias» as leituras que se têm feito do rei. Da primeira dá apenas um exemplo, «Santos, 1979», da segunda nem um só representante (p. 211). Foi categoria fantasma?
56É também controversa a tese de que só com Pombal a legislação passa a ser feita para modificar o status quo, até então o governo servia apenas para «fazer justiça» e nada alterava. Esta é uma interpretação vulgarizada na historiografia portuguesa, na esteira das propostas de António Hespanha. Mas ela não resiste facilmente à observação dos factos, sobretudo quando se olha para o exercício concreto da actuação do centro político, para a praxis e não para a doutrina ou para o direito. É mais do que evidente que antes de Pombal houve governo do Reino. Em nível variado, é certo, de acordo com os reinados e os ciclos de cada um. Em muitos dos livros anteriores isso fica evidente. E até neste, pois inadvertidamente, o autor constata: «Boa parte das medidas iniciais, designadamente nos domínios administrativo e fiscal, prosseguiam orientações já antes traçadas e a sua imputação a Carvalho, como já se destacou, é duvidosa. (...) O processo seria encerrado em 1754. (...) Assim se encerrava um processo iniciado há bem mais de um século e que colocava formalmente nas mãos da coroa a nomeação dos governadores de todas as capitanias da colónia» (p. 179); ou «Assim, apesar dos esforços dos vice-reis para imporem a sua autoridade sobre os capitães-generais, como já se afirmou, as reformas pombalinas não transformaram [...] [o] padrão tradicional de exercício do poder no império» (p. 180).
57Ao invés de Nuno Monteiro, entendo que as medidas referentes à Igreja não foram «pontuais e avulsas» (p. 205). Pelo contrário, não devem ser vistas como pontuais ou desgarradas, antes estavam em sintonia com um projecto político, plausivelmente concebido por Carvalho na sequência da sua missão diplomática a Viena e que começou a ser posto em prática de forma sistemática depois da expulsão dos jesuítas e do corte de relações com a Santa Sé, a partir de 1759-60, na que se pode considerar a segunda fase da governação pombalina no que toca às relações com a Igreja.
58Há ainda no livro alguns equívocos e contradições a merecer revisão. Parece enfermar de anacronismo o argumento utilizado para justificar o apoio de alguns jesuítas a Carvalho e Melo, por altura da sua subida a secretário de Estado (p. 72). O ponto sustentado é que tal decorreria das suas posições relativamente à aplicação do Tratado de Madrid. Esta só se deu depois de Carvalho e Melo estar no poder, e não antes, pelo que não é válida para justificar o posicionamento jesuítico. Identifica-se, erradamente, Nuno da Silva Teles como sendo inquisidor geral (pp. 89-90). Afirma-se que não houve jesuítas julgados pelo Tribunal da Inconfidência especialmente designado para condenar os que atentaram contra a vida do rei, porque, sendo clérigos, estavam isentos da justiça civil (p. 134). É um equívoco, pois o privilégio de foro não era aplicável em crimes de lesa-majestade. Afirma-se que o iluminismo teve menos importância em Portugal do que o reformismo italiano (p. 231), adiante, sustenta-se que a «cultura oficial do regime» manifestou propensão para patrocinar obras associadas à cultura francesa do reinado de Luís XIV (p. 234), e que a principal Academia Literária Portuguesa, a Arcádia Lusitana, defendeu os «parâmetros estéticos do classicismo, sobretudo de inspiração francesa» (p. 235). Afirma-se que, quando em 1772 o Marquês de Pombal foi a Coimbra, se hospedou em casa do bispo (p. 251). É lapso, pois nessa data o bispo de Coimbra era D. Miguel da Anunciação, o qual estava preso em Lisboa e era franco opositor do secretário de Estado. Ao referir-se a criação de um conjunto de novas dioceses a partir de 1770, esquece-se nesse elenco a diocese de Penafiel e afirma-se, equivocadamente, que a de Aveiro foi erecta em 1759 (p. 252) e não em 1774.
59Para concluir diga-se que não é surpreendente que o autor tenha optado por pretender causar efeito através da defesa de opiniões «contra corrente» (p. 261). A grande tese do Epílogo, não suficientemente demonstrada, é a de que o Pombalismo, ao contrário do sustentado «pela corrente», mudou pouco. Isto é, as várias reformas económicas, sociais, militares, nas relações com a Igreja, etc., tiveram um efeito de transformação reduzido. A única verdadeira mudança teria sido o início do Estado. No fundo, fez recuar algumas décadas aquilo que Hespanha sustentou ter apenas começado no século seguinte, depois do liberalismo, mas que outra historiografia já afirma existir, pelo menos, desde o reinado de D. João II. Em suma, é apenas uma novidade «contra corrente» se se tomar a produção de António Hespanha como definidora da norma interpretativa historiográfica portuguesa.
60De igual modo, não encontro grande pertinência na discussão de saber se Pombal foi um valido ou um primeiro-ministro. O assunto não merece alarido. Tanto mais que, como bem demonstrou Nuno Monteiro, no século XVIII os dois termos se usaram indiferentemente. É, pois, um problema académico que não ajuda a entender melhor nem o rei, nem Carvalho e Melo, nem o período. O que é indesmentível, e nisso estou totalmente de acordo com o autor, é que Carvalho e Melo, sobretudo a partir de 1755, dominou o governo do Reino e fê-lo, utilizando ideias, princípios e métodos que colheu no passado, por vezes num passado bem remoto. Como também já escrevi a propósito de outros assuntos, perdoe-se-me a imodéstia de me convocar, mas concluindo em sentido diferente de Nuno Monteiro, «a mudança pombalina utilizou processos velhos para alcançar o que era novo» (Os bispos de Portugal e do império, p. 559). Não considero que depois de Pombal tudo tenha ficado na mesma no Reino de Portugal.
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
José Pedro Paiva, «Costa, Leonor Freire e Mafalda Soares da Cunha, D. João IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Xavier, Ângela Barreto e Pedro Cardim, D. Afonso VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Lourenço, Maria Paula, D. Pedro II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007; Silva, Maria Beatriz Nizza da, D. João V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Monteiro, Nuno Gonçalo, D. José I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006», Ler História, 56 | 2009, 253-269.
Referência eletrónica
José Pedro Paiva, «Costa, Leonor Freire e Mafalda Soares da Cunha, D. João IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Xavier, Ângela Barreto e Pedro Cardim, D. Afonso VI, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Lourenço, Maria Paula, D. Pedro II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007; Silva, Maria Beatriz Nizza da, D. João V, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Monteiro, Nuno Gonçalo, D. José I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006», Ler História [Online], 56 | 2009, posto online no dia 15 outubro 2016, consultado no dia 20 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2086; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2086
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